N/A: Para quem tiver interesse em uma espécie de 'trilha sonora', é possível encontrar uma playlist instrumental com algumas das músicas que me ajudaram a escrever essa história neste link: shorturl(ponto)at/joBS5. Divirtam-se!
I – Prólogo em um Lago
A água estava gelada.
À medida que o tempo passava, o frio penetrava sua pele pálida, enrijecendo músculos, arrancando tremores involuntários de seus membros paralisados. Lentamente, todas as sensações adormeciam, deixando apenas um casulo vazio onde deveria haver calor, movimento. Magia.
Olhos azuis encaravam as nuvens que se acumulavam acima. Assim como o vento enregelante que sussurrava aos seus ouvidos, o céu plúmbeo prenunciava o que estava por vir. O silêncio da floresta estava repleto de pesar e comiseração.
"Smyrill?"
Fechou os olhos e inspirou fundo. Deixou que, uma derradeira vez, o ar frio preenchesse seus pulmões, que seus sentidos se fundissem a tudo o que estava vivo ao seu redor, a tudo que compartilhava a sua dor naquele momento. Seus dedos dormentes se moveram sob a água, provocando pequenas ondulações, e deixou que sua mente se confundisse com elas à medida que se dispersavam.
Pela última vez, permitiu-se ser água e ar, a terra molhada sob seus pés e os peixes submersos à procura de alimento. Deixou-se alcançar a outra margem para se fundir com os pequenos animais à espreita, sentindo o sabor da sua curiosidade, da sua fome.
Emrys.
Um murmúrio de luto vindo das árvores, do lago, dos pássaros taciturnos.
Com um leve sorriso, ele assentiu em agradecimento, reconhecendo a despedida. E enfim retornou ao próprio corpo, deixando para trás aquela liberdade singular, à qual apenas poderia voltar em sonhos dali em diante.
Por fim reabriu os olhos, e o mundo já parecia mais acinzentado. Mortiço.
Com dificuldade, começou a levantar-se. Os joelhos, enrijecidos pelo tempo prolongado naquela mesma posição e pelas águas gélidas do lago, relutaram em obedecer. Seus movimentos vacilantes espalharam novas ondulações pela superfície, suas longas vestes criando um halo flutuante ao seu redor, até que enfim conseguiu colocar-se de pé.
Deu um primeiro passo em direção à margem e suas pernas fraquejaram. Contudo, antes que o lago pudesse tragá-lo por completo, um braço firme o enlaçou pela cintura, mantendo-o de pé. Somente sob aquele toque conhecido ele se deu conta do quanto o seu corpo tremia.
"Venha, irmão."
O hálito quente das palavras murmuradas contra o seu ouvido eriçou sua pele. Assentiu em silêncio e se deixou ser levado sem qualquer resistência, mãos gentis conseguindo suportá-lo mesmo sobre o tecido molhado e escorregadio das suas roupas e conferindo-lhe estabilidade suficiente para dar os próximos passos.
Ao deixar o lago, foi atingido em cheio pelo vento e fechou os olhos, os tremores tomando conta do seu corpo por completo. Quando o irmão deixou de tocá-lo, por um instante foi como estar à beira de um precipício na escuridão, suas pernas fracas fazendo-o oscilar.
Porém, logo um tecido quente e seco foi jogado sobre os seus ombros, fazendo-o voltar a si. Quando suas pálpebras voltaram a abrir, encontrou olhos azuis familiares observando-o com aflição. Lentamente, ergueu um dos braços e deixou sua mão repousar sobre o peito do irmão. Sua pele estava tão dormente que quase não podia sentir o tecido áspero sob os dedos, e encarou o membro pálido como se não o reconhecesse. Como se já não pertencesse ao próprio corpo.
"Agora, Mordred."
"Não, Smyrill. Não, não." Quando o irmão balançou a cabeça em negação, cachos negros caíram sobre os seus olhos arregalados. Por um breve momento, o homem enfraquecido quis afastá-los como tantas vezes já fizera antes, um pequeno gesto de conforto. Contudo, teve forças apenas para cravar os dedos entorpecidos no tecido da túnica sob sua mão.
"Mimus, por favor. Eu preciso da sua ajuda," sussurrou. "Eu não posso—"
O apelido fez Mordred engasgar. "Você mal consegue ficar de pé, Merlin, como—?"
"Porque depois… é provável que depois seja pior."
Quando Mordred o enlaçou pela cintura novamente, dessa vez em um abraço constritivo, repleto de amor e desespero em igual medida, Merlin enterrou o rosto no ombro quente do irmão. Inspirou fundo, absorvendo o cheiro familiar de ervas e terra úmida, e se lembrou de quando ainda eram crianças. De como Mordred era muito menor do que ele, de como seus braços finos mal conseguiam envolvê-lo por completo, e de como o irmão sempre compensara aquela falha com a intensidade do gesto. Como se tivesse medo de que Merlin fosse desaparecer se não o abraçasse com todas as forças de que seu pequeno corpo era capaz.
E agora ali estavam. Dois homens adultos em uma espécie de despedida, à beira de um lago, longe de tudo o que poderia ser considerado casa.
Talvez aquele pequeno Mordred já intuísse algo sobre o futuro.
Exalando o ar de seus pulmões com um tremor, ergueu o rosto e afastou-se apenas o suficiente para descansar ambas as mãos sobre o peito do irmão.
"Vamos, me ajude."
Com um sorriso pequeno e vazio, o homem à sua frente enfim assentiu – apenas um movimento breve e vacilante da cabeça – e cobriu as mãos de Merlin com as suas. Em silêncio e com calma, Mordred começou a retirar os anéis que cobriam quase todos os seus dedos entorpecidos.
A cada peça retirada, um vínculo era cortado. Por baixo delas, redemoinhos de pequenas tatuagens se revelavam, a tinta negra contrastando com o branco mortiço da pele fria. As pequenas joias retiniam umas contra as outras à medida que Mordred as abandonava no chão úmido, junto aos seus pés descalços. Primeiro os anéis, depois os finos braceletes que pendiam dos seus pulsos. Em seguida, o delicado fio de metal trabalhado que ornamentava sua orelha esquerda.
Quando os dedos de Mordred hesitaram sobre a frágil gargantilha ao redor do seu pescoço, Merlin sorriu fracamente e cobriu as mãos dele com as suas. Sem hesitar, tirou sozinho a peça que pertencera à mãe e logo a colocou onde deveria permanecer dali em diante. Mordred deixou a própria cabeça pender para frente e aceitou o presente, erguendo os olhos em agradecimento quando o colar já estava em seu pescoço.
Por fim, Mordred tomou as mãos do irmão nas suas.
"Fordwīnaþ."
O encantamento não passou de um murmúrio que logo foi levado pelo vento, mas foi suficiente. Quase como se acontecesse a outra pessoa, Merlin observou distraidamente enquanto suas tatuagens – as marcas de seu povo – começavam a desaparecer, até restar apenas pele alva em seu lugar. Como se as inscrições e símbolos nunca tivessem existido, eliminando parte de sua história. Seu último elo com Avalon.
Sentiu os lábios de Mordred tocarem sua testa em conforto, e outro exalo trêmulo deixou seu peito.
Não o último.
Quando o irmão afastou-se novamente, Merlin fechou os olhos e permaneceu onde estava, a cabeça curvada em direção ao chão, os braços pendendo inertes ao lado do corpo. Seus ouvidos registraram o som de passos descalços sobre a terra úmida, o farfalhar de tecido, uma ordem sussurrada: "Deixem-nos."
E então Mordred estava à sua frente mais uma vez. Hesitante.
"Smyrill, você tem certeza?"
No limite de suas forças, ele apenas assentiu em silêncio. Quando o irmão se aproximou para prender a nova gargantilha, Merlin pôde ouvir a sua respiração arquejante, sentir o tremor dos seus dedos ao apertar o fecho da joia com um estalo mudo. Quando o pingente de cristal translúcido se aninhou na base de seu pescoço, entre as clavículas, o frio da pedra em formato de gota provocou novos tremores, que se espalharam pelo corpo de Merlin como as ondulações do lago, eriçando sua pele ao longo do caminho.
"Weorc untoworpenlic nemne Arthur Pendragon."
De súbito, o mundo emudeceu ao seu redor.
Como uma marionete com os fios cortados, Merlin perdeu seu último suporte. O elo derradeiro – o mais forte e também o mais frágil – se foi. Com ele, foram-se também todas as sensações. As cores. Os sons. O calor em seu sangue. O ar em seus pulmões. Tudo parou abruptamente, com um simples fecho e um único encantamento.
Sua magia, trancada como se sua pele fosse também seu túmulo.
Em seguida, veio a dor.
Como um rio caudaloso, ela o inundou por completo. Instalou-se nos seus músculos, dentro dos seus ossos, invadiu seu peito, sua cabeça. Tomou o controle de seus membros e o levou ao chão. De algum ponto distante dentro de si, conseguiu registrar que Mordred abraçava-o mais uma vez. Que ele o embalava enquanto se ajoelhavam na terra úmida. Que ele chorava, as lágrimas penetrando seus cabelos, escorrendo pelo seu pescoço.
Merlin voltou a buscar o consolo daquele toque, mas sua pele amortecida não o encontrou. Seu corpo agora parecia desconectado do mundo.
E, sem qualquer alternativa para aquele vazio que agora o cercava de todos os lados, que penetrava tudo e o deixava à deriva, ele fincou os dedos entorpecidos no solo que já não conseguia sentir, deixou seus lábios anestesiados se abrirem e urrou.
Perdeu a consciência sem obter qualquer resposta.
Diante do seu apelo, a natureza – pela primeira vez – manteve o seu silêncio sepulcral.
And the cold pulls you down
It pulls you down.
(Bryan John Appleby)
