II – A Coroa
"Esse tratado é uma farsa. Aliás, essa reunião inteira é uma completa farsa."
"Bem, com esse tipo de atitude, certamente estamos todos perdendo tempo aqui, Odin."
"Annis, você não acha realmente que—"
"Ele tem razão. Os últimos acontecimentos provam que as melhores intenções são inúteis nesse caso. Morgana—"
"Eu cuspo no nome dessa bruxa! Bayard, não se atreva a—"
"Ora vamos, cavalheiros, um pouco mais de maturidade."
"Annis tem razão, meus caros. Eu não vejo como essa reunião pode progredir sem que o nome da bruxa seja mencionado, Sarrum. Afinal, foi por causa dela que—"
"Não tente colocar panos quentes na situação, Rodor. Eu sempre disse que essas asneiras mágicas voltariam para nos assombrar, eu avisei! Agora vejam só, fomos todos feitos de—"
"Preconceitos do passado de nada servem para solucionar as avenças do futuro, Sarrum. Nós precisamos—"
"O que nós precisamos é da mão pesada da justiça sobre essas criaturas asque—"
"Se eu estivesse no seu lugar, Cenred, pensaria muito bem antes de continuar essa frase."
"Bem, a questão é essa, não é, Annis? Você não está no meu lugar. Aliás, você me parece bastante confortável no seu trono no Norte, enquanto as fronteiras de Essetir são invadidas todos os dias por essas aberrações. Eu—"
"Ora vamos, seja razoável, Cenred. Todos aqui têm algo a perder, Mércia também foi esfacelada pela morte de homens bons, meu exército está—"
"Exatamente, Bayard. Todos aqui tiveram perdas consideráveis graças a essas leis ridículas. O que há para discutir? Acabemos logo com isso. Expulsem essa gente para o buraco de onde vieram."
"Uma farsa, eu já disse. É tudo uma completa—"
Arthur resistiu bravamente à tentação de esfregar as mãos sobre o rosto para externar sua frustração. Aquele já era o quinto dia de debates desde que os governantes de Albion haviam aterrissado em Camelot com a fúria injuriada de deuses insatisfeitos e, ao que parecia, mais uma vez a discussão continuaria em círculos sem que chegassem a qualquer conclusão definitiva.
Em meio a tantas ofensas, preconceitos arcaicos e declarações arrogantes, já não sabia como intervir sem incitar proclamações ainda mais enfurecidas. Sua admiração por Annis e Rodor, em especial, só aumentava, já que a paciência de ambos os regentes para perseverar na busca por resultados frutíferos parecia infindável.
Enquanto suspirava longamente, sentiu um toque suave sobre sua mão direita. Ao virar-se, se deparou com o pequeno sorriso de comiseração de Mithian, cuja elegância para lidar com aquelas discussões circulares era invejável. Ainda que não tivesse voz de decisão no Conselho, Arthur sabia que ela estava atenta a todos os acontecimentos, pronta para aconselhar o pai assim que sua opinião fosse solicitada. E Rodor não estava preocupado em esconder o fato de que confiava plenamente na capacidade de julgamento da filha.
Com toda razão, claro. Até ali, Mithian havia demonstrado uma sabedoria além da sua idade e uma postura digna de rainhas.
Arthur admitia a si mesmo que não teria conseguido suportar os últimos dias sem o apoio silencioso dela. Também tinha plena consciência de que as interações reservadas e sorrisos cúmplices entre os dois vinham criando certas expectativas na corte quanto a uma união mais íntima entre Camelot e Nemeth num futuro próximo.
Ainda que não quisesse pensar sobre o assunto naquele momento, o Grande Rei sabia que, em breve, precisaria tomar uma decisão e fazer um anúncio oficial. Devia aquilo ao seu povo e também a Mithian e Rodor.
Todos encaravam aquele caminho como o mais óbvio a ser tomado. Até mesmo Agravaine parecia afeito à ideia, e agradar o tio se tornava uma tarefa cada vez mais difícil. No entanto, Arthur ainda hesitava.
De forma inconsciente, seu olhar buscou Guinevere no grande salão, encontrando-a em meio às sombras, encostada à parede e pronta para servir a qualquer sinal de Mithian. Assim como provavelmente a maior parte dos servos ali presentes, seus olhos escuros estavam atentos às mãos unidas de Arthur e da Princesa de Nemeth, mas não havia qualquer julgamento no olhar dela.
Arthur ainda a procurava no salão mais por hábito do que por algum antigo desejo de seu coração. Qualquer possibilidade de romance entre os dois havia se desfeito em cinzas assim que Lancelot reaparecera em Camelot, e sabia que ela estava feliz com aquilo. Sem qualquer ressentimento, Arthur simplesmente passara a vê-la como uma amiga fiel e conselheira valiosa. E era o suficiente.
Mesmo assim, era inegável que, além de respeito e admiração, qualquer outro sentimento que pudesse desenvolver por Mithian empalideceria quando confrontado com o carinho que nutrira por Guinevere durante aquele curto período em que a cortejara.
As vozes ainda mais elevadas de seus convidados o tiraram de seus devaneios e, depois de finalmente retribuir o gesto de Mithian com um pequeno sorriso, afastou-se dela e voltou sua atenção para a mesa. À sua esquerda, podia sentir o olhar calculista e julgador de seu tio. Entreabriu os lábios, pronto para apoiar a última proposta de Annis – ainda que não soubesse qual era –, quando os portões se abriram e Leon surgiu.
Os nobres continuaram seu embate acalorado, ignorando o cavaleiro que se aproximava de Arthur a passos rápidos, mas o Rei se retesou. Leon raramente interrompia as sessões do Conselho, exceto em caráter de urgência. Olhos azuis atentos acompanharam todos os movimentos do recém-chegado, notando inclusive a tensão em seus ombros e a rigidez com que segurava o punho da espada embainhada.
Leon enfim parou ao seu lado. Com um gesto breve, Arthur dispensou qualquer pedido de desculpas pela interrupção e se inclinou a fim de aproximar-se do cavaleiro, indicando que ele deveria ir direto ao assunto. De esguelha, notou Agravaine empertigando-se no próprio assento, mas ele não se virou para observá-los.
Curvando-se para evitar ser ouvido por terceiros indesejáveis, Leon sussurrou ao seu ouvido.
"Os últimos emissários chegaram, Meu Senhor."
Arthur franziu o cenho. "Emissários?"
A hesitação de Leon antes de continuar o surpreendeu, mas o homem logo se explicou, lançando um olhar rápido e ansioso ao redor deles como se buscasse espiões nas sombras do meio-dia.
"Avalon, Meu Senhor. Dois emissários de Avalon chegaram a Camelot e solicitaram uma audiência com Vossa Majestade."
Sua respiração falhou. Afastando-se de súbito, Arthur encarou Leon e encontrou a mesma incredulidade no rosto habitualmente impassível de um dos seus melhores homens. Não se deu ao trabalho de perguntar se ele tinha certeza do que acabara de dizer. Ainda assim, Leon assentiu com a cabeça, confirmando aquela informação inesperada.
Arthur logo se recuperou.
"Leve-os ao Salão do Trono, Leon, e mande chamar Gaius e Iseldir. Assegure-se de que eles sejam escoltados pelos cavaleiros mais preparados e, não importa o que aconteça, não os perca de vista."
Com outro breve aceno, Leon se retirou a passos ainda mais apressados. Arthur se voltou para os outros nobres, momentaneamente perplexo. Ao seu lado, podia sentir que Mithian o observava com preocupação, mas evitou o seu olhar.
"Majestades."
Sua interrupção abrupta, em alta voz, suspendeu de imediato todas as atividades. Até mesmo os servos que circulavam pelo salão, servindo água ou vinho e atendendo às necessidades de seus mestres, congelaram onde estavam e se voltaram para o Grande Rei.
"Parece que o rumo dessa conversa está prestes a mudar." Arthur olhou ao seu redor com gravidade. "Avalon enfim respondeu ao nosso chamado."
Arthur marchou pelos corredores a um ritmo que poucos seriam capazes de acompanhar, determinado a chegar sozinho ao Salão do Trono para tirar suas primeiras impressões sobre os visitantes inesperados.
Entrar em contato com Avalon se revelara uma missão quase impossível. Morgana vinha aterrorizando todos os reinos há quase dois anos e, nesse meio tempo, Arthur nunca recebera qualquer indício de que o misterioso povo mágico se importasse com o destino dos mortais em Albion. Sem saber como agir, dera aos druidas a tarefa desesperançada de espalhar a mensagem de que o Grande Rei exigia algum tipo de satisfação.
E agora, tantos meses depois, dois deles simplesmente o aguardavam aos pés do trono mais elevado de Albion.
Podia ouvir passos cada vez mais próximos atrás de si, mas, ao lançar um olhar rápido sobre o ombro, ficou agradecido por ver apenas Gwaine e Percival, com quem trocou um breve aceno de cabeça. E então adentrou o salão com um estrondo retumbante dos pesados portões, o som ecoando como trovões no ambiente cavernoso.
A tensão era palpável. Em meio ao tradicional vermelho Pendragon que adornava os cavaleiros presentes no recinto, foi difícil encontrar o elemento estranho à cena. Porém, seus olhos habituados ao campo de batalha logo localizaram os dois forasteiros, parados muito próximos um ao outro e de pé à frente do salão. Estavam rodeados por homens experientes e prontos para reagir a qualquer movimento brusco.
Enquanto andava até o estrado, os cavaleiros se viravam em sua direção para uma breve mesura. Arthur apenas retirou seus olhos dos recém-chegados quando Lancelot se aproximou e emparelhou com ele, e a postura quase tranquila do cavaleiro permitiu que o Rei relaxasse minimamente. Era aparente que não tinham tido problemas até ali.
"Meu Senhor."
"Lancelot. Algo que eu precise saber antes de continuar?" Arthur murmurou sem diminuir o passo.
"Eles chegaram juntos e sem cavalos. Passaram despercebidos pela cidadela, mas abordaram a guarda do pátio central e se identificaram. Ao que parece, os sentinelas inicialmente não acreditaram, mas eles se recusaram a ir embora." Quando Arthur fez menção de interromper, Lancelot se antecipou à sua pergunta. "Eles apenas aguardaram em silêncio. Não houve qualquer conturbação, eles nem sequer atraíram a atenção dos passantes."
Quando chegaram ao pé do estrado, Lancelot pareceu hesitar. Arthur aguardou. Confiava nas impressões dos seus cavaleiros e sabia que valia a pena dar-lhes tempo para se expressar.
"Um deles parece… debilitado, Arthur."
Registrando aquela informação para um momento oportuno, Arthur assentiu em silêncio e enfim parou à frente de todos. O trono assomava às suas costas. Não se deu ao trabalho de subir o curto lance de degraus – pretendia lidar com aquela situação diretamente. Em contrapartida, Lancelot manteve-se mais próximo do que o habitual, e notou quando Kay e Percival também se postaram nas suas imediações, prontos para agir ao menor sinal.
Arthur enfim pousou seu olhar sobre os estranhos – e se deparou com dois pares de olhos azuis quase idênticos encarando-o de volta. As duas figuras esguias e pálidas aguardavam em uma imobilidade quase desconcertante.
"Meus homens me dizem que vocês vêm de Avalon. Isso é verdade?"
De início, o indivíduo à esquerda atraiu a atenção do Rei, não só pelos cachos negros contrastando com sua extrema palidez – traços incomuns em Camelot e nos reinos que a circundavam –, mas também pelas numerosas tatuagens em sua pele. Em meio ao tecido escuro das vestes, Arthur pôde entrever marcas sinuosas formando estranhos símbolos ao longo das mãos, pescoço e até próximo aos olhos inquietantes do estranho. Ele também estava estranhamente adornado por joias – anéis, na maior parte – de um metal prata-azulado que Arthur não reconhecia.
Ao notar que tinha o olhar perspicaz do Rei sobre si, o homem curvou os lábios em um sorriso breve e sem humor.
"Meu nome é Mordred, Majestade."
O que não respondia a qualquer uma das numerosas perguntas que lhe assomavam, inflamando a frustração de Arthur.
"Muito bem, Mordred. Quais motivos os trazem até aqui? Supondo que vocês vêm de onde alegam vir."
"Motivos dizem respeito apenas à Deusa Tríplice, Meu Senhor, e interpretá-los e transmiti-los são tarefas que cabem exclusivamente à Corte das Disir. Seria impossível responder a essa pergunta sem provocar a fúria dos Anciãos. Eu nunca me atreveria."
Era inegável que o sorriso do recém-chegado se transformara em zombaria.
Mais de um ano sofrendo ataques imprevisíveis, vendo exércitos serem dizimados por seres mágicos, mercenários e saxões, suportando meses de silêncio apesar de numerosas tentativas de contato… e agora Arthur era submetido ao deboche de um fedelho franzino com ares de quem estava mais acostumado a viver numa floresta do que a lidar com assuntos de reinados.
Uma fúria descomunal aqueceu o seu peito e se esgueirou pela sua garganta, impelindo-o a entreabrir os lábios. Não sabia o que estava prestes a dizer, mas sabia ser algo de que depois se lamentaria profundamente. Mais tarde, teria tempo para um agradecimento silencioso aos deuses pelo fato de os portões terem se escancarado naquele momento, dando passagem a Agravaine e a uma procissão de regentes aturdidos.
Para seu alívio, notou que Gaius também se esgueirara silenciosamente para dentro do salão, seguido por Leon e uma figura encapuzada bastante familiar.
"Mordred."
O chamado seco, em claro tom de repreensão, enfim atraiu a atenção do Rei para a outra figura parada à sua frente.
Apesar dos traços familiares entre os dois, o segundo estranho destoava bastante do companheiro. A pele alva não trazia quaisquer marcas e, do cume formado por maçãs do rosto definidas, olhos de um azul profundo se destacavam e miravam Arthur com uma intensidade desconcertante.
Os cabelos negros revoltos pareciam ter sido afastados da testa suada com pressa ou desleixo, e os lábios, apesar de cheios, estavam crispados. Os ombros, rijos de tensão. Pela primeira vez, Arthur enxergou os mesmos sinais que pareciam ter alertado Lancelot. Era claro que o homem sentia algum tipo de dor.
"Eu peço perdão pelo meu irmão, Majestade. Nós não viemos até aqui para contrariá-lo ou provocá-lo."
O tom de voz era brando, mas Arthur era capaz de reconhecer a autoridade silenciosa daquelas palavras. Ao seu lado, Mordred não esboçou qualquer reação à reprimenda, sinalizando para todos os presentes que suas ações se submetiam às decisões do segundo emissário.
O Rei assentiu brevemente, aceitando o pedido de desculpas em silêncio, mas a firmeza de suas próximas palavras deixou clara a sua descrença.
"Para que vocês vieram então? Até o momento, Avalon certamente se mostrou contente em nos ignorar enquanto Morgana devastava as nossas terras. O que mudou?"
Como resposta, o segundo emissário lançou um olhar para o companheiro, que pareceu hesitar antes de afastar-se, dando um único passo para trás. Somente ali Arthur se deu conta de que eles estiveram tão próximos porque, durante todo aquele tempo, Mordred servira de apoio ao irmão com um braço ao redor da sua cintura.
Com olhos argutos, Arthur observou aquela estranha criatura dar um passo lento e vacilante em sua direção, segurando com firmeza contra o peito o que parecia ser um amontoado de tecido escuro. No seu entorno, percebeu uma breve movimentação entre seus cavaleiros, mas bastou um rápido gesto com a mão para impedir que eles interviessem.
O forasteiro estava despido de joias e de tecidos ricos. Pela primeira vez, Arthur se permitiu observá-lo de forma mais detida. Ao contrário dos tons escuros trajados pelo irmão, o emissário vestia uma simples túnica branca que chegava até o chão e, como proteção contra o frio invernal do grande salão, tinha apenas um longo manto de aspecto rústico, cuja cor indefinida fora desgastada pelo tempo e pelo uso. O único adorno que trazia estava na base de seu pescoço longilíneo: um colar aparentemente forjado daquele mesmo metal desconhecido, do qual uma lágrima de cor âmbar pendia solitária, aninhada entre as frágeis clavículas que a abertura da túnica expunha.
E, no entanto, a altivez daquela figura quase selvagem evocava algo de régio aos olhos de Arthur. Mesmo incapacitado pela dor, os movimentos daquele estranho carregavam a elegância leve de um cervo adulto. Sua aparência e postura revelavam um furtivo elemento sobrenatural que dava ao Rei a certeza de realmente estar lidando com representantes de Avalon, ainda que não planejasse dizer aquilo em voz alta.
Pretendia extrair o máximo de informação possível daqueles dois antes de estender o benefício da dúvida a um povo que parecia tão indiferente ao sofrimento alheio.
O homem – Arthur então percebeu que ele nunca havia fornecido um nome – deu apenas mais um passo, mantendo uma distância respeitosa do Rei. Era óbvio que estava ciente da quantidade de sentinelas armados que os cercava. E então subitamente despencou, caindo de joelhos no chão.
Apenas anos de prática na corte permitiram a Arthur ocultar qualquer reação física ao movimento abrupto, que pareceu reverberar por todo o salão, agitando cavaleiros e nobres e fazendo emergir murmúrios de surpresa e indignação em igual medida.
Era difícil dizer se o gesto havia sido intencional ou se as forças do emissário simplesmente haviam se esgotado, mas ele não fez qualquer menção de levantar-se depois que seus joelhos atingiram a pedra fria. Arthur ergueu os olhos à procura de Mordred e, pela primeira vez, viu a máscara impassível daquele homem esboçar alguma emoção, ainda que não o conhecesse o suficiente para apontar qual. Os olhos azuis estavam fixos às costas do irmão ajoelhado, mas ele permaneceu onde estava.
"Vossa Majestade tem razão," as palavras logo trouxeram o olhar do Rei de volta para o segundo emissário, que nunca deixara de encará-lo. Diante do cenho franzido de Arthur, ele acrescentou: "Avalon permaneceu em silêncio por muito tempo. Tempo demais."
Pela primeira vez, Arthur o viu hesitar, lançando um rápido olhar ao seu redor. Os olhos de safira parecerem deter-se momentaneamente à sua direita, de onde o Rei sabia que Agravaine os observava em um silêncio grave e censurador.
"Explicações poderiam ser dadas, mas… elas seriam de pouca valia para Vossa Majestade e todos aqueles que sofreram pelas ações de um dos nossos."
Aqueles olhos penetrantes baixaram até o chão, e Arthur era capaz de identificar remorso genuíno quando era oferecido, ainda que naquele momento não fosse o suficiente. Porém, antes que pudesse expressar aquilo, o homem voltou a mexer-se, pousando próximo aos pés de Arthur aquela estranha pilha de tecido que até então trazia junto ao peito.
Os olhares daqueles presentes no Salão do Trono acompanhavam avidamente todos os movimentos do estranho emissário, observando enquanto mãos pálidas e levemente trêmulas afastavam retalhos de algum tipo de veludo negro. Devagar, o objeto que protegiam se revelou, e um burburinho estarrecido logo se disseminou por todo o ambiente, escalando as paredes de pedra até alcançar o teto abobadado.
Pela segunda vez naquele dia, a respiração de Arthur falhou.
"Mas o quê…?" balbuciou.
"Morgana de Avalon está morta."
O Rei ergueu olhos azuis perplexos para encontrar a expressão solene daquele mensageiro inesperado, que trazia notícias ainda mais surpreendentes. Procurando Mordred, encontrou o mesmo olhar calmo e circunspecto de quem revelava a contragosto uma verdade indesejada.
Ignorando a balbúrdia que começava a instalar-se ao seu redor, Arthur voltou a encarar o artefato aparentemente inofensivo estendido aos seus pés como uma oferenda.
"Esse é o—"
"O cetro proveniente da sorveira que cresce na Ilha dos Abençoados," o emissário interrompeu-o com delicadeza, como se quisesse apaziguá-lo. "Ele se partiu quando os poderes de Morgana se extinguiram."
Aquele maldito artefato mágico figurava em alguns de seus piores pesadelos. Por causa dele, seu pai estava morto. Camelot – e tantos outros reinos – quase ruíram devido aos poderes contidos naquele simples bastão de madeira. Apesar de partido ao meio, ele era inconfundível. E agora estava coberto por marcas escuras semelhantes àquelas deixadas ao longo de toda a cidadela quando Morgana tentara incendiar Camelot.
"Que tipo de asneira é essa?!" O brado de Agravaine ribombou pelo salão, sobressaltando o Rei e boa parte dos membros da corte presentes.
Antes que Arthur pudesse se virar, o tio já havia avançado a passos rápidos e se colocado entre o sobrinho e o emissário, que ele encarava como se pudesse esmagá-lo sob o peso do seu desprezo. Quando enfim se voltou para o Rei, seus olhos negros faiscavam com uma fúria contida.
"Francamente, Arthur, não me diga que você pretende levar esse absurdo a sério. Você nem sequer sabe quem é esse fedelho! Quem garante que ele fala por Avalon?"
A impassibilidade do homem ajoelhado perante o trono de Camelot – assim como o poderoso artefato mágico estendido à sua frente – eram suficientes para convencer Arthur de que, até ali, o recém-chegado nada falara além da verdade. Porém, sabia que aquela questão logo seria levantada pelos demais regentes e por isso precisava ser abordada o quanto antes.
Contornando o tio, Arthur se aproximou um pouco mais do emissário, que continuava a acompanhar todos os seus movimentos como um animal à espreita – ou, talvez, à espera do ataque de um predador muito maior.
"Há muito tempo eu aguardo para ouvir essa notícia… e agora que ela chegou, os reinos de Albion precisam se assegurar de que não se trata de mais um artifício de Morgana." O homem continuou a observá-lo em silêncio. "Como nós podemos ter certeza? Eu nem sequer sei quem você é."
De início, não houve reação, e Arthur temeu a possibilidade de ter que enviar aquela criatura debilitada para uma cela com o único fim de apaziguar um grupo de nobres desconfiados e exaltados. Então o homem assentiu com um movimento quase imperceptível, como se entendesse o que se passava pela cabeça do Grande Rei.
"Meu nome é Merlin, Meu Senhor."
Quando ele enfim falou, sua voz soou rouca, e por um breve momento Arthur se perguntou quanto tempo eles teriam levado de onde quer que tinham partido para chegar até Camelot.
"Eu venho em nome do meu povo para dar a notícia que Vossa Majestade tanto desejava porque foi pelas minhas mãos que minha irmã morreu. Esse encargo cabia apenas a mim e a ninguém mais."
Arthur precisou se conter para não arregalar os olhos.
"Sua— você—?" sussurrou, incrédulo.
Nas imediações, ouviu alguém arquejar sonoramente.
"Esse homem está mentindo, Majestade! Isso é—"
"Ora vamos, Arthur, isso é ridículo—"
A balbúrdia voltou a inundar todo o salão como uma onda incontrolável. Por alguns instantes, o Grande Rei se viu incapaz de fazer qualquer coisa além de sustentar o olhar glacial do emissário. Ele não esboçava reação alguma à horda furiosa que o cercava e ameaçava engoli-lo.
"Majestade, se me permite?"
A voz sóbria e imperturbável de Gaius soou como um bálsamo para Arthur, penetrando aquele tumulto com a mesma facilidade com a qual uma faca é capaz de cortar pele frágil. Indicou com um gesto breve para que o médico da corte prosseguisse, em consequência forçando os demais presentes a calar-se.
"Talvez tranquilize Lorde Agravaine o fato de que eu posso assegurar a veracidade do que esses jovens dizem." A sobrancelha erguida e o tom ácido eram sinais que Arthur reconhecia desde a sua infância: o desdém de Gaius quanto às acusações de seu tio era óbvio para quem o conhecia.
"Explique-se, Gaius."
Agravaine, por sua vez, não tentava esconder o seu ceticismo ou mesmo o desprezo diante das palavras do médico. Arthur rangeu os dentes, controlando-se para não repreendê-lo perante a corte por tamanha falta de cortesia com um de seus conselheiros mais antigos.
"Apesar de não ser comum encontrá-los fora das suas terras, muitos viajantes certamente já se depararam com os Aos Sí em Albion, Majestade. Existem diversos relatos documentados que nos permitem reconhecer algumas das suas características." Parecia impossível, mas a sobrancelha do ancião se ergueu um pouco mais. "Caso Lorde Agravaine duvide, tenho certeza de que Geoffrey pode esclarecer a situação, já que uma busca rápida pelas estantes da biblioteca de Camelot revelaria vários desses documentos."
"E quais características são essas, Gaius?" Arthur interveio, antecipando-se a outra manifestação rude de seu tio.
O olhar perspicaz do homem se voltou para os dois emissários, fixando-se primeiro em Mordred.
"Os símbolos na pele são uma tradição de Avalon, mas ninguém seria capaz de dizer a Vossa Majestade qual é o seu significado exato. Alguns acreditam que eles variam de indivíduo a indivíduo, que eles estão de alguma forma ligados à trajetória pessoal de cada um deles."
Apesar de naquele momento estar sob o escrutínio de quase todos os presentes, Mordred se manteve impassível, e Arthur não conseguiu conter certa admiração pelo caráter aparentemente imperturbável daquele estranho.
"O mesmo pode ser dito sobre as galas – as joias, Meu Senhor," Gaius esclareceu, antes mesmo que o Rei pudesse interferir. "Acredita-se que elas são forjadas de um metal existente apenas nas ilhas de Avalon, com propriedades mágicas capazes de interagir de maneira única com os poderes de um Sídhe. Como tantos outros elementos da magia desse povo, eu arriscaria dizer que elas também têm um caráter… subjetivo. Talvez sejam até mesmo uma forma de identificação entre eles."
Enquanto o médico da corte desfiava sua análise, Arthur continuou a observar aquelas duas figuras altivas à sua frente, que aguardavam em silêncio o seu julgamento. Começava a suspeitar que estava lidando com mais do que simples emissários. Também não pôde deixar de notar que, apesar de eles não demonstrarem qualquer sinal de que havia veracidade no que Gaius conjecturava sobre o seu povo, também não faziam menção de negá-lo.
"Isso tudo soa bastante conveniente, Gaius, mas o que dizer dessa criatura lamentável que nem sequer consegue ficar de pé perante o Grande Rei? Deveríamos acreditar que esse homem é um ser mágico poderoso o suficiente para destruir uma das nove Sumas Sacerdotisas da Antiga Religião?" Agravaine voltou seu olhar negro e furioso para o sobrinho. "Ora vamos, Arthur."
Antes que pudesse retorquir, o Rei foi interrompido pela voz cavernosa e condescendente de Sarrum de Amata, que deu um passo à frente, atraindo as atenções para si.
"Lorde Agravaine faz objeções pertinentes que não deveriam ser ignoradas, Majestades. Afinal, eu não consigo ver nenhum dos traços descritos pelo médico da corte neste homem que alega ser irmão da bruxa."
Murmúrios de concordância se disseminaram por todo o ambiente, e pela primeira vez Arthur conseguiu identificar um lampejo de consternação no rosto de Annis e Rodor, que até então não haviam esboçado qualquer reação quanto à chegada dos emissários, apenas observando o desenrolar dos acontecimentos em silêncio. Sabia que precisava retomar as rédeas daquela discussão antes que Cenred ou Odin decidisse intervir e dar força à insatisfação crescente entre os nobres.
"Eu peço desculpas pela interrupção, Majestade," o tom baixo e macio surpreendeu Arthur, que se voltou para a figura encapuzada atrás de Gaius, "mas lordes Agravaine e Sarrum claramente não sabem do que estão falando."
Arthur ergueu uma mão, impedindo de imediato que os dois homens em questão retrucassem, como era claro que se preparavam para fazer. Obrigou-se a ocultar sua própria surpresa. Era raro que o líder dos druidas se manifestasse durante reuniões como aquela, especialmente de forma espontânea – ou quase ofensiva.
"Você poderia ser mais claro, Iseldir?" o Grande Rei solicitou em tom apaziguador.
O homem deu alguns passos à frente até parar ao lado de Gaius, que se voltou para observá-lo com uma expressão serena. Para Arthur, era claro que seus dois conselheiros sabiam muito mais sobre o que estava acontecendo naquele salão do que todo o restante da corte – e que seria prudente ouvir os seus conselhos com atenção.
Ao baixar o capuz escuro, Iseldir fixou seus olhos acinzentados sobre os emissários. Mordred retribuiu a atenção com um olhar calmo e observador, mas Merlin manteve a cabeça baixa, encarando o cetro ainda estendido à sua frente.
"A magia que cerca estes dois homens é inegável."
Um silêncio sepulcral voltou a tomar conta do recinto, e Arthur lentamente exalou o ar em seus pulmões. Nenhum dos nobres teria a ousadia de contestar o juízo de um druida quando o assunto era magia, nem mesmo Agravaine.
Iseldir então se voltou para o objeto que havia sido oferecido a Arthur, sua expressão impassível.
"Vossa Majestade não deve se deixar enganar pelas aparências. Ainda que esteja partido, esse artefato possui um poder evidente. Mesmo após a morte de sua antiga dona – e não tenho dúvidas de que Morgana está morta –, ainda posso sentir ecos da poderosa magia da Sacerdotisa de Avalon emanando dele. Imagino que você também, Gaius?" O médico confirmou em silêncio quando Arthur olhou em sua direção. "Eu diria que, até entre os Sídhe, poucos teriam a capacidade de carregar os restos do cetro por muito tempo sem ser afetados pelos vestígios de uma magia tão negra, tão… corrompida."
A pele de Arthur se eriçou, revivendo a memória inconsciente do toque violador daqueles poderes. Até ele fora capaz de pressentir algo… perverso na magia de Morgana. Contraditoriamente, seus ombros retesados enfim puderam relaxar diante da afirmação inconteste de que a maior inimiga de Camelot havia, de fato, sido eliminada.
Porém, Iseldir não havia terminado. Seu olhar aguçado agora repousava sobre a figura curvada aos pés de Arthur, avaliando-a com uma intensidade fora do comum para o ancião.
"Por isso eu acredito que esse jovem à sua frente, Majestade, é muito mais do que um Sídhe," um pequeno sorriso curvou lábios envelhecidos, "não é mesmo, Emrys?"
O nome foi pronunciando em um murmúrio de reverência, mas seu efeito se propagou pelo Salão do Trono como um anúncio em alta voz. Mesmo entre seus cavaleiros, até então imperturbáveis, Arthur notou certa inquietação – e não poderia culpá-los.
Apesar de pouco mais de dois anos terem decorrido desde a extinção do Veto contra a magia, aquele período havia sido suficiente para que os mitos e lendas druidas se propagassem por todo o reino à medida que povos mágicos e não mágicos passavam a interagir dentro e fora de Camelot. E, de todos eles, a Profecia de Emrys fora aquela que, sem dúvidas, dominara as mentes e corações de todos. Aquela que preenchera de esperanças tanto famílias nobres como camponesas enquanto Morgana invadia e arrasava suas casas e suas terras.
Em meio ao caos que se instalara em Albion, os druidas nunca haviam perdido a fé na chegada daquele profetizado para trazer uma nova paz a todos os reinos. Fé esta que vinha dando alento aos desesperados e oferecendo ânimo a exércitos semidestruídos para perseverar em uma batalha que já parecia perdida.
Arthur nunca acreditara naquelas histórias – havia muito a ser feito enquanto seu povo era dizimado para que ele se permitisse qualquer tipo de consolo fantasioso –, mas sempre tivera plena consciência do poder delas sobre o imaginário popular. E, assim como ele havia prometido ao propor o tratado que traria a magia de volta a Albion, nunca se opusera às crenças de nenhum indivíduo ou criatura.
E ali estava Iseldir – líder do povo mágico que ajudara a proteger Camelot quando aquilo parecia impossível – dizendo-lhe que aquele suposto messias estava humildemente ajoelhado aos seus pés.
Ignorando o burburinho que voltara a instalar-se ao seu redor, o Grande Rei se aproximou daquele visitante envolto em mistério até que a única coisa a separá-los fossem os restos daquele cetro desprezível. O homem não se escondeu, erguendo a face para voltar a encará-lo diretamente. Já seus cavaleiros permaneceram imóveis, e Arthur agradeceu em silêncio por sua lealdade, pois não poderia haver demonstração mais óbvia de que confiavam no que ele estava prestes a fazer.
"Então é você que chamam de Príncipe dos Corvos?" Arthur sussurrou.
Tão rápido que poderia ter sido sua imaginação, um esgar de descontentamento atravessou aquele rosto pálido – para então ser substituído por um sorriso curto e resignado. Foi o primeiro oferecido por ele desde que o Rei adentrara o salão, mas não havia qualquer humor no gesto.
"Merlin é suficiente, Vossa Majestade."
Arthur assentiu, aquiescendo ao pedido silencioso. Antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, contudo, o tom colérico de Agravaine voltou a ecoar pelo salão.
"Iseldir, se o que diz é verdade, então esse homem possui poderes de amplitude inimaginável. O que o impede de se voltar contra os regentes de Albion neste exato momento – contra o Grande Rei – e assassinar todos eles?"
Novos murmúrios – dessa vez, de choque ou possível indignação diante de uma acusação tão explosiva – agitaram o salão. Como Arthur não havia rompido o contato visual com o emissário, pôde divisar o breve lampejo de pesar naqueles olhos azuis penetrantes antes que Merlin voltasse a vestir sua máscara de passividade.
"Mesmo que desejasse cometer tal absurdo – e eu devo insistir que Emrys jamais o faria –, acredito que ele esteja incapacitado para qualquer ato mágico, Lorde Agravaine."
Iseldir parecia no limite de sua paciência, e Arthur não podia culpá-lo. Seu tio estava estranhamente determinado a enxergar dragões onde havia apenas sombras.
"Incapacitado?" Para a surpresa de todos, a pergunta veio de Annis, que observava o líder druida com perplexidade. Por razões óbvias, ela não era a única – como acreditar que um forasteiro com poderes suficientes para destruir Morgana de Avalon não poderia usar magia dentro de Camelot?
E, no entanto, bastava a Arthur olhar para aquele homem fragilizado à sua frente para saber que Iseldir estava certo. Sua intuição raramente falhava. Mas… por quê?
"O colar, Majestades."
Os olhos do Grande Rei – assim como provavelmente os de todo o salão – recaíram sobre a joia alojada na base do pescoço de Merlin. A única que ele usava, ao contrário do irmão. Era uma peça simples, porém obviamente antiga e, de certa forma, deslumbrante. Enquanto observava, Arthur foi surpreendido pelo que pareceu ser um lampejo dourado da pedra âmbar que, alojada entre as clavículas, subia e descia conforme a respiração compassada do emissário.
"A lágrima de Lithianne," foi a vez de Gaius intervir, com a voz carregada, "é como o cristal é conhecido. Se os livros estiverem corretos, ele é capaz de… trancafiar a magia de qualquer feiticeiro."
Uma nova onda de inquietação no salão.
"Mas Iseldir acaba de dizer que esse jovem é… se eu entendi bem, não estamos falando de um simples feiticeiro," Annis mais uma vez se manifestou, soando estarrecida com aquela notícia.
Gaius se voltou na direção da rainha de Caerleon para uma mesura breve, sua expressão grave.
"É verdade, Majestade. Muitos acreditam que os Aos Sí são… bem, feitos de magia talvez seja a forma mais aproximada para explicar. Ela está presente na constituição elementar de seus corpos e mentes. E, no entanto, a ação do cristal é a mesma."
"Esse… colar está roubando a magia desse rapaz?" foi a vez de Rodor intervir, e era fácil identificar a indignação na sua expressão e voz.
"A magia ainda está presente, Majestade, mas… inacessível." Gaius parecia desconfortável com as implicações das próprias palavras.
"Gaius, Iseldir, isso soa…" Annis começou, mas aparentemente não foi capaz de continuar, chocada com a mera ideia.
Excruciante, a mente de Arthur sussurrou. Era como aquilo soava. E agora enxergava com novos olhos a fragilidade daquele estranho ajoelhado perante o trono de Camelot, que a cada instante parecia ter mais dificuldade para manter-se ereto. Que mesmo assim não rompia seu silêncio, ou o contato visual com o Rei.
"Eu só não consigo imaginar por que o seu povo o submeteria a um castigo tão… hediondo," Iseldir murmurou distraidamente, quase para si mesmo.
"Não." A interrupção abrupta, ríspida, surpreendeu a todos. Os olhares do salão se voltaram para Mordred, e Arthur ergueu uma sobrancelha ao identificar, pela primeira vez, uma emoção no rosto do forasteiro: fúria contida. "Nós não fizemos isso."
Enquanto murmúrios confusos se disseminavam ao seu redor, o Rei se manteve em silêncio. Seu olhar pensativo recaiu sobre o objeto esfacelado que os emissários haviam trazido, nele permanecendo à medida que a imagem daquele quebra-cabeça enfim começava a revelar-se em sua mente.
De algum lugar em suas lembranças, Arthur podia ouvir o sussurrar distante de uma das primeiras lições que haviam inculcado nele quando ainda era garoto e começava a aprender os procedimentos da corte.
Onde há armas, não há acordos de paz.
"Então é isso? Nós devemos simplesmente acreditar no poder de uma joia, como se uma coleira frágil pudesse conter um cão raivoso?"
Vozes começaram a elevar-se mais uma vez. Gaius e Iseldir trocaram olhares desconfortáveis, e os cavaleiros – em resposta ao ar de ameaça que se instalava no salão – reagiram em conjunto e de maneira silenciosa, aproximando-se um pouco mais do Rei.
"Já chega."
O tom quase agressivo de Arthur de imediato sugou o fôlego do recinto, imobilizando todos os presentes como numa cena de um quadro.
"Arthur, acabe de uma vez com isso. Você não pode—"
"Agravaine. Eu disse que já chega."
A reprimenda soou quase como um rosnado, e seu tio pareceu enfim perceber que estava andando sobre terreno traiçoeiro, pois cerrou os dentes e se calou, ainda que visivelmente a contragosto.
Sua atenção mais uma vez se voltou para o cetro e, depois de ponderar por alguns segundos, Arthur se inclinou o suficiente para voltar a cobrir o objeto com os retalhos de tecido escuro. Em seguida, empurrou-o para o lado – certificando-se de não tocar em nenhum dos fragmentos – até que não houvesse mais nada entre ele e o emissário.
"Merlin de Avalon."
Seus olhares se cruzaram, e o forasteiro pareceu inspirar fundo antes de assentir.
"Esta corte não tem motivos para duvidar das suas alegações. Então, ciente disto, eu agora peço que fale abertamente. Quais são suas intenções em Camelot?"
Arthur imbuiu suas palavras de formalidade. Preferiria evitar todo aquele ritual, mas, considerando onde estavam – e a companhia em que se encontravam –, era um mal necessário. Talvez evitasse novas acusações mais à frente.
Como se estivesse apenas à espera daquela oportunidade, Merlin pareceu se empertigar – suas costas se alinharam e os ombros, cada vez mais curvados ao longo da interminável inquisição dos nobres presentes, voltaram a erguer-se. Por um instante Arthur pensou que ele ficaria de pé, porém o homem se manteve onde estava, e só então o Rei teve certeza de que aquele gesto era intencional.
"Majestade," a voz rouca de cansaço voltou a preencher o salão, e não havia qualquer hesitação nas palavras enunciadas, "em primeiro lugar, meu irmão e eu agradecemos por nos conceder essa audiência. Nós sabemos que o silêncio prolongado de Avalon trouxe consequências desastrosas para todos, e Camelot mostra extrema boa vontade ao nos receber. Esperamos que nossa presença sirva para demonstrar que Avalon está disposta a dialogar. Mas…"
Merlin umedeceu os lábios enquanto ponderava suas próximas palavras.
"Antes de qualquer outra coisa, eu venho em nome do meu povo pedir… perdão."
Arthur se manteve impassível, ignorando a inquietação silenciosa ao seu redor.
"Avalon…" o visitante hesitou, "eu reconheço que o tempo em que palavras poderiam servir como algum tipo de promessa já passou. Nós falhamos com Vossa Majestade – com todos os reinos, mágicos ou não – de muitas maneiras. Morgana está morta, mas o mal que ela provocou… ainda há muito a se fazer para reverter por completo os efeitos nocivos das atitudes egoístas da minha irmã.
"Avalon ainda não é digna do perdão de Camelot, meu povo sabe disso." Olhos de um azul glacial penetraram Arthur, parecendo imobilizá-lo onde estava. "E é por isso que eu estou aqui. Para assumir pessoalmente a responsabilidade pelas ações de Morgana e aceitar quaisquer consequências que possam advir delas."
O Grande Rei observou aquele homem enigmático por alguns instantes, pesando o significado daquelas palavras, julgando seu conteúdo, mas nada encontrou naquela expressão pálida além de sinceridade e exaustão.
"E como você pretende fazer isso, Merlin?" Arthur enfim indagou, quase gentil.
"Colocando-me à mercê de Vossa Majestade."
A resposta brusca, peremptória, fez disparar uma nova onda de sussurros pelo salão, mas tanto rei como emissário os ignoraram. O elo visual entre ambos parecia isolá-los de todo o resto.
"Eu venho implorar que meu povo – que qualquer povo mágico – seja poupado de retribuições pelos atos de Morgana. Despido da minha magia, eu me submeto às leis de Albion e suplico que o Grande Rei me permita invocar o Preceito da Reparação."
Dois anos após o fim do Veto à magia, Arthur ainda sabia muito pouco sobre as velhas leis da Antiga Religião. Mesmo assim, compreendia com perfeita clareza a gravidade do que estava sendo proposto. Uma criatura mágica – um mito digno de profecias – estava agora ajoelhada à sua frente, implorando perdão. Suplicando por uma chance, mas disposta a morrer em nome de todos os povos mágicos caso Arthur não considerasse seu pedido digno de apreço.
De esguelha, Arthur notou a inquietação de Gaius e Iseldir, confirmando que as palavras do forasteiro possuíam ramificações muito maiores do que Arthur era capaz de avaliar naquele momento. Contudo, aquela não era a hora para virar as costas aos dois visitantes e pedir uma aula sobre tradições esquecidas pelo tempo. Teria de confiar em sua própria intuição, e aquilo bastava – ela dificilmente o decepcionava.
Arthur deu outro passo à frente, colocando-se ao alcance de Merlin e forçando-o a erguer o queixo para manter o contato visual entre eles. Com o alvo pescoço estendido naquela posição vulnerável, o Rei podia enxergar todos os detalhes do delicado pingente alojado entre as clavículas do emissário.
"E o que você espera de mim, Merlin de Avalon?"
Cílios negros tremularam com a velocidade das asas de um beija-flor, e Arthur se deu conta de que a pergunta havia surpreendido o forasteiro.
"Que Vossa Majestade faça jus à reputação que o precede. Mesmo entre os Sídhe, ouve-se falar da sua bondade e do seu senso de justiça, Arthur Pendragon." Foi a vez de Arthur piscar em surpresa, fazendo o emissário sorrir por um instante fugaz. "Eu peço que Camelot me conceda asilo pelos tradicionais nove dias. É o suficiente para a entrega dos três favores. Depois disso, Vossa Majestade pode tomar as providências que preferir – eu acatarei todas elas sem questionar."
Em outras palavras, se Arthur decidisse por qualquer razão enviá-lo para a pira, Merlin aceitaria a decisão, porque Avalon aparentemente o havia enviado para Camelot como fazendeiros mandam seus animais para o abate.
Todo aquele poder sobre uma única pessoa, aquele franco desequilíbrio – até mesmo na posição em que se encontravam no momento, Merlin olhando-o de baixo como se fosse de alguma forma inferior a todos os nobres presentes –, deixou um gosto amargo na garganta do Rei.
Uma criatura capaz de eliminar a mais poderosa das Sumas Sacerdotisas da Antiga religião – e que precisara se mutilar a fim de obter uma passagem segura por Camelot para uma súplica de paz.
As relações entre povos mágicos e não mágicos tinham chegado àquele ponto?
Não havia dúvidas sobre a resposta. Os debates circulares entre os regentes de Albion pareciam não encontrar solução, mas inegavelmente tendiam para um único tema: uma crescente aversão à magia. Em silêncio, Arthur observava enquanto figuras como Cenred, Odin e Sarrum destilavam o seu veneno com sutileza cada vez menor, plantando sementes de ódio e esperando colher apoio entre seus pares. Armando-se contra o homem que, há pouco mais de dois anos, eles a contragosto haviam ajudado a nomear como o Rei acima de todos os reis de Albion.
A possibilidade de uma nova proibição à magia já havia se infiltrado nas discussões e, com a notícia da morte de Morgana, era apenas uma questão de tempo até que aqueles reinos decidissem que também não precisavam de um Grande Rei afinal de contas.
Arthur se recusava a ser mais um Pendragon responsável por um genocídio, porém ainda não encontrara argumentos fortes o suficiente para contestar as alegações cada vez mais perniciosas que emergiam nas reuniões do Conselho Real dos últimos cinco dias. Sabia que tinha o apoio inarredável de Annis e Rodor, mas logo nem mesmo aquilo – ou sua autoridade máxima – seria suficiente.
Contudo, a resposta para o seu dilema parecia estar agora à sua frente. E Arthur não pretendia desperdiçá-la.
Os olhos do Rei recaíram sobre o amontoado de tecido negro largado ao seu lado antes de se voltarem para o emissário mais uma vez.
"Eu presumo que este seja um dos três favores que você mencionou?"
Merlin piscou, seu olhar acompanhando o breve gesto de Arthur na direção dos restos daquele cetro desprezível. Ele confirmou com um rápido aceno da cabeça.
"Se Vossa Majestade o aceitar."
Arthur o encarou com certa incredulidade. Você matou sua irmã para poupar o meu povo de mais sofrimento, como eu poderia recusar?, era o que esperava que sua expressão transparecesse. Um espasmo quase imperceptível dos lábios de Merlin o fez acreditar que o homem escondia um sorriso. Aparentemente, sua mensagem fora captada.
Com uma longa inspiração, Arthur tomou a única atitude possível para sanar em parte aquele desequilíbrio e, talvez, enfim criar uma ponte entre dois mundos tão distantes.
"Que assim seja."
Quando seu joelho esquerdo tocou o chão de pedra, os ouvidos do Rei foram inundados por uma cacofonia de vozes indignadas. Contudo, ele tinha olhos apenas para a figura silenciosa à sua frente, que pela primeira vez Arthur tinha a oportunidade de observar de perto, em pé de igualdade. Cílios negros se agitaram em surpresa novamente, chamando a atenção para os traços de cor âmbar que se misturavam ao azul dos olhos, impossíveis de notar a distância.
"Arthur—!"
Com um braço erguido no ar, Arthur de imediato silenciou Agravaine e todos os presentes. Quando já nenhum outro protesto podia ser escutado, levou as duas mãos até a fivela próxima ao seu pescoço e, com movimentos rápidos, soltou a capa que durante toda a sua vida o identificara como cavaleiro de Camelot.
Sem hesitar, ergueu-a com uma agilidade que denunciava anos de prática, fazendo-a esvoaçar. O farfalhar do tecido se propagou pelo salão. Por alguns instantes, a figura do dragão amarelo tremeluziu sob o sol que penetrava os vitrais das janelas, e então a capa se acomodou sobre os ombros de Merlin, envolvendo-o por completo. Escorrendo sobre o corpo esguio até chegar ao chão, um grande halo vermelho se formou ao redor do emissário, como uma flor desabrochando na primavera.
Quando Arthur por fim se afastou o suficiente para encará-lo outra vez, pôde sentir a respiração descompassada do forasteiro contra o próprio rosto. Olhos de safira o observavam com perplexidade.
"Eu, Arthur Pendragon, recebo o seu favor e todos aqueles que se seguirem, em nome da paz entre os nossos povos. Em agradecimento, Camelot oferece abrigo e proteção a você e aos seus pelo tempo que aqui permanecerem."
Sua voz ecoou pelas paredes de pedra com autoridade, e a mensagem ficou clara para os demais: contestações não seriam admitidas.
Ignorando todo o resto, inclusive a fúria silenciosa que Agravaine lançava sobre suas costas, Arthur estendeu a mão direita para Merlin, cujo olhar acompanhou o gesto sem esboçar qualquer reação.
"Você consegue levantar?" as palavras foram sussurradas, não ultrapassando o casulo formado pela estreita proximidade entre os dois homens ajoelhados.
Com uma inspiração trêmula, Merlin assentiu e por fim estendeu a própria mão direita, dedos longos e quase delicados aninhando-se aos de Arthur. Segurando a mão do Grande Rei com firmeza. Quando voltou a erguer o olhar, o emissário o encarava com gratidão e algo que Arthur não era capaz de identificar, mas que mesmo assim o preencheu com uma sensação de certeza. De alguma forma, aquilo estava predestinado a acontecer – e estava certo.
Ao se colocarem de pé, suas mãos ainda entrelaçadas, Arthur viu o emissário oscilar sobre as próprias pernas, provavelmente dormentes após tanto tempo naquela posição sobre a pedra fria. Sem qualquer hesitação, o Rei pousou a mão livre sobre a cintura dele, oferecendo o apoio necessário para mantê-lo de pé. Merlin ofegou, e mais uma vez a proximidade entre seus corpos permitiu que Arthur sentisse a respiração quente contra a pele sensível de seu pescoço.
Depois de assegurar-se de que Merlin não estava prestes a cambalear, o Rei lançou um olhar sobre o ombro dele em direção a Mordred, que assistia alerta à cena. Quando seus olhares se cruzaram, o homem não hesitou em aproximar-se. Era óbvio que, desde o primeiro momento, ele havia se afastado do irmão a contragosto e agora retomava seu lugar com certa avidez.
Apenas quando Mordred voltou a abraçar o irmão pela cintura Arthur se permitiu dar um passo para trás, soltando Merlin com certa relutância. Ao se afastar e ver o emissário nas cores de Camelot – nas suas cores –, foi atingido por uma sensação desconcertante, porém não desagradável.
"Obrigado, Majestade."
Arthur assentiu em silêncio, sem saber como reagir à gratidão estampada nas feições cansadas de Merlin, ou ao que parecia ser assombro no rosto de Mordred. Com um pigarro, ergueu a mão direita e inclinou sua cabeça na mesma direção, e foi o bastante para que Lancelot aparecesse ao seu lado de imediato.
"Merlin, Mordred, este é Lancelot."
O cavaleiro e os emissários trocaram breves acenos silenciosos de cortesia, e Arthur não pôde deixar de notar a lassidão de Merlin. Estava claro que as reservas de energia dele chegavam ao fim, e apenas o apoio do irmão ainda o mantinha de pé.
"Lancelot tem minha total confiança e, a partir de agora até o momento em que vocês decidirem deixar Camelot, ele será responsável pela sua segurança. Ele também vai garantir que tenham tudo de que necessitem."
Quando a palavra segurança deixou seus lábios, Mordred disparou um intenso olhar perscrutador na direção do Rei, mas que logo o ultrapassou e pousou sobre algo além do seu ombro direito. Ou alguém.
"Suponho que outros membros da sua comitiva também precisem de alojamento pelos próximos dias?"
Mordred voltou sua atenção para Arthur com um pequeno sorriso sem humor que já começava a tornar-se familiar.
"Agradecemos a gentileza, Majestade, mas somos apenas nós dois."
Aquilo o surpreendeu. Porém, antes que o Rei pudesse fazer qualquer comentário a respeito, outro cavaleiro aproximou-se respeitosamente do pequeno grupo.
"Sir Leon?"
"É verdade, Meu Senhor. Os sentinelas sobre as muralhas relataram a presença de alguns indivíduos encapuzados às margens da floresta, mas eles recuaram assim que os emissários foram recebidos dentro do castelo."
Quando Arthur se virou para Mordred com uma sobrancelha erguida, o homem deu de ombros. O gesto pareceu-lhe estranhamente resignado, incongruente com a postura até então sisuda do visitante.
"O papel deles era assegurar que o Mensageiro chegasse a Camelot."
Nada além disso, foi o que o Rei captou nas entrelinhas, e aquilo o deixou desconfortável. Algo mais a analisar quando tivesse tempo e privacidade. Naquele momento, havia assuntos mais urgentes a resolver.
"Guinevere." Aguardou até que ela deixasse as sombras do salão e se aproximasse, oferecendo uma breve mesura e um sorriso aos emissários, o qual Mordred surpreendentemente retribuiu. "Por favor, certifique-se de que os aposentos da antiga rainha estejam prontos para receber os visitantes. Chame quantos servos achar necessário para ajudá-la, mas imagino que não haverá problemas."
Deliberadamente ignorando o lampejo de surpresa na expressão da antiga parceira, Arthur indicou com um breve aceno que ela podia se retirar. Enquanto Guinevere o fazia – não sem antes lançar um rápido sorriso para Lancelot –, o Rei se virou à procura de Gaius, que não hesitou em aproximar-se quando seus olhares se cruzaram.
"Merlin."
O chamado pareceu pegar o visitante de surpresa. Com um leve sobressalto, ele ergueu a cabeça para encarar Arthur, que só ali notou como a atenção do emissário estivera divagando, os olhos presos ao chão como se tivesse dificuldade em mantê-los erguidos. Ele esmorecia a olhos vistos.
"Eu não pretendo fazer nenhuma imposição, então peço que fique à vontade para negar o meu pedido, se assim o preferir." Arthur hesitou, mas o aceno silencioso e o olhar curioso de ambos os irmãos o impeliram a continuar. "Se você permitir, eu gostaria que Gaius os acompanhasse até os seus aposentos. Para… examiná-lo. Talvez ele possa oferecer algum conforto depois de uma jornada tão árdua."
Mordred se virou para o irmão em silêncio, claramente deixando a decisão em suas mãos. Por sua vez, Merlin surpreendeu o Rei com um sorriso pequeno, porém sincero.
"Eu… creio que haja pouco que a medicina dos homens possa fazer por mim nesse momento, mas… se isso tranquilizar Vossa Majestade, eu não tenho qualquer objeção."
Ele e Gaius trocaram um olhar cordial, e Arthur conteve um suspiro aliviado.
"Pois bem. Sir Lancelot e Sir Leon vão acompanhá-los até os seus aposentos. Descansem. Nós voltaremos a nos encontrar em breve, quando tiverem recuperado as forças."
Rei e emissário se encararam em silêncio por alguns instantes, até que Merlin por fim assentiu. Aquilo foi suficiente para que Mordred firmasse o apoio ao redor da cintura do irmão, lentamente começando a mover-se e obrigando-o a acompanhá-lo.
Com um último meneio da cabeça em despedida, os irmãos deram os primeiros passos em direção aos portões, rodeados pelo pequeno cortejo composto por dois cavaleiros e pelo médico da corte. Os nobres, cortesãos, servos e guardas presentes abriram caminho para eles sem emitir qualquer ruído, o peso dos olhares julgadores acompanhando-os até desaparecerem.
Quando todos mais uma vez se voltaram para o Grande Rei, ele já havia regressado aos degraus que levavam ao trono, observando todo o salão com um ar grave e intransigente.
"É o bastante por hoje." Seus olhos azuis percorreram as expressões ainda estarrecidas dos demais regentes. "Majestades, a reunião do Conselho está suspensa. Nós voltaremos a nos encontrar amanhã, quando vocês poderão expressar qualquer dúvida ou insatisfação sobre os acontecimentos de hoje. Até lá, peço que reflitam antes de chegarem a conclusões precipitadas ou de tomarem decisões que não possam ser desfeitas."
Um burburinho confuso se disseminou pelo ambiente, mas ninguém ousou contradizê-lo. Em pouco tempo, todos começavam a retirar-se a passos lentos, e só então Arthur teve a oportunidade de cruzar olhares com Mithian, que acompanhava Rodor. Ela meneou a cabeça com um pequeno sorriso que transparecia aprovação, e pela primeira vez desde que adentrara aquele salão o Rei sentiu algo dentro de si relaxar.
Uma mão sobre o seu ombro desviou sua atenção para Iseldir, que mais uma vez encobrira o rosto com o capuz que lhe era característico.
"Muito bem, Majestade."
E antes que Arthur pudesse conceber uma resposta ao comentário inesperado, o líder druida já havia se afastado. Ao seu lado, um pigarro distinto se fez notar, e Arthur lutou para manter a expressão impassível ao virar-se para o tio.
"Agora não, Agravaine."
"Arthur…" Os olhos negros faiscavam com exasperação.
"Agora não," Arthur o interrompeu, lacônico.
"Muito bem, Meu Senhor. Amanhã então."
Arthur assentiu, fingindo não perceber o tom de intimidação das palavras. Com um último olhar insatisfeito, o homem se retirou, e após alguns instantes Arthur enfim se viu sozinho entre os grandes pilares de pedra que o cercavam. Até mesmo os criados haviam ido embora, fechando os portões atrás de si. Só então se permitiu sentar no trono com um longo suspiro.
"E então, Princesa? O que eu posso fazer por você?"
Bem, quase só. Arthur teve de conter a vontade infantil de revirar os olhos.
"Sir Gwaine."
"Majestade." O cavaleiro se afastou da pilastra cujas sombras haviam-no ocultado durante a maior parte dos acontecimentos. Com um movimento casual e um sorriso indolente, livrou-se das mechas de cabelo que cobriam o rosto à medida que se aproximava do trono.
Às vezes, Arthur invejava a desinibição com que Gwaine sempre transitara pela corte.
"Obrigado por permanecer."
"Eu imaginei que você precisaria de mim depois de designar Lancelot para os recém-chegados e fazer todo aquele belo discurso sobre segurança e tudo de que vocês precisarem. Muito sutil, aliás. Tenho quase certeza de que até os sentinelas do lado de fora dos portões conseguiram enxergar as veias prestes a explodir na testa do seu tio."
Algo em sua expressão o denunciou, ou talvez Gwaine simplesmente tivesse uma habilidade sobrenatural para compreendê-lo, pois de repente a expressão do cavaleiro se desanuviou.
"Ah, então é em Agravaine que eu devo ficar de olho?"
Com certa relutância, mas ciente de que seus cavaleiros conheciam-no bem demais para julgá-lo, Arthur assentiu.
"Nos outros também, mas... Agravaine principalmente, sim." A expressão do Grande Rei se fechou, como a lua a desaparecer por trás das nuvens de uma tempestade iminente. "Ninguém deve se aproximar dos emissários sem que eu saiba."
"Não se preocupe, Princesa. Eu tenho os meus métodos."
Era verdade. Todos os seus cavaleiros eram homens leais e eficientes, mas certas tarefas só podiam ser delegadas a Gwaine. Sua moral podia beirar o questionável, mas sempre fora uma das melhores armas no arsenal de Camelot.
Quando um sorriso quase insolente tomou conta do rosto do cavaleiro, Arthur suspirou — estava prestes a ser objeto de chacota —, mas sentiu os ombros relaxarem em antecipação às provocações espirituosas que o aguardavam.
"Então... o quarto da antiga rainha? Sutileza realmente não é o seu forte, é, Majestade?"
Arthur ergueu uma sobrancelha, recusando-se a reagir às implicações de Gwaine.
"Será que eu devo me preocupar com o que o reino pensa sobre a minha inteligência?" Quando a reação de Gwaine foi gargalhar, Arthur de fato revirou os olhos. "Ao contrário do que todos os servos desse castelo parecem acreditar, eu não sou cego nem idiota. Alguém realmente achou que eu não perceberia que o quarto da minha mãe foi reaberto depois de anos, ou que ele está sendo limpo sem qualquer razão aparente?"
"Bem, você pode agradecer ao seu tio nesse quesito. Agravaine parece bastante empolgado com a ideia de casar você e Mithian. E, por empolgado, eu quero dizer que ele tem feito menos servos chorarem nos últimos dias. Acho que ele decidiu antecipar alguns dos... preparativos."
Arthur franziu o cenho, mas aquilo não foi suficiente para deter o mais galanteador dos seus cavaleiros.
"Agora vamos, Arthur, não se faça de desentendido. Você realmente quer que eu acredite que a sua escolha de quarto para os emissários nada tem a ver com o fato de ser o mais próximo dos seus aposentos?"
"É uma questão de segurança, Gwaine."
"Bem, eles têm o seu charme. O que parece ser mais velho principalmente. Eles têm algo de etéreo e perigoso, você não acha? Será que todos os seres mágicos são assim?"
"Pare. Só... pare."
"Bem, eu sempre quis saber como seria levar um Sídhe para—"
"Gwaine, por todos os deuses, me poupe dos detalhes sórdidos das suas conquistas, eu não—"
"Mas aí é que está. Nesse caso, parece que Vossa Majestadevai ser o primeiro de nós acompartilhar como—"
"Gwaine! Por favor, só... desapareça da minha frente."
O homem lançou a cabeça para trás em mais uma gargalhada sonora e genuína que ecoou pelas paredes de pedra. Arthur cobriu os olhos com uma das mãos, como se seus dedos pudessem afastar a sombra de uma dor de cabeça que ameaçava se instalar.
"Você é tão sem graça. Eu já estou indo, eu já estou indo..."
Quando o Grande Rei reergueu a cabeça, o cavaleiro já estava a alguns passos de distância.
"Gwaine," ele parou e lhe lançou um olhar inquisitivo sobre o ombro, "garanta que os emissários tenham roupas aquecidas para os próximos dias. Eles não vão sobreviver ao inverno de Camelot com aqueles trajes."
Com um sorriso maroto e perspicaz, o cavaleiro assentiu e se retirou sem dizer mais nada, deixando Arthur com a impressão de que logo teria arrependimentos sobre aquela conversa.
Quando os portões por fim se fecharam, olhos azuis se mantiveram presos a eles, revivendo a imagem de Merlin – cansado, porém altivo – ao deixar o salão ainda envolvo pelo manto vermelho de Camelot.
Uma figura quase régia, enquanto todos abriam caminho para ele e o irmão com a mesma naturalidade com que o dia dá lugar à noite.
Uma sombra súbita cruzando o Salão do Trono trouxe Arthur de volta ao presente com um sobressalto. O farfalhar de asas chamou sua atenção para uma das janelas mais altas, e ali foi surpreendido pelo olhar atento de uma grande coruja. A plumagem branca como neve recém-caída emoldurava grandes olhos amarelos e arregalados.
Criatura e homem se encararam por um longo tempo, sem piscar. Arthur se sentiu analisado, como se a ave majestosa tirasse a medida do Grande Rei de Albion.
"Junte-se à multidão, minha cara." E logo se sentiu tolo por proferir as palavras.
Quando a coruja enfim lhe deu as costas, encerrando o impasse, Arthur se perguntou – um tanto absurdamente – se por acaso havia sido julgado insatisfatório. Observando-a alçar voo, voltou a ser surpreendido. Desta vez, por asas negras como uma noite sem estrelas, um contraste dissonante com o restante do corpo alvo.
Viu-a desaparecer, absorto em pensamentos e lembranças. Em promessas quebradas e planos desfeitos.
Acima de tudo, em novas esperanças.
Uneasy lies the head that wears a crown.
(W. Shakespeare, 2 Henry IV)
