Capítulo 22 – Além da lobola

Kingsley Shacklebolt nunca tinha sido aluno de Severus Snape. Na realidade, ele era alguns anos mais velho do que o ex-Mestre de Poções de Hogwarts. Mas, naquele momento, o corajoso Auror acreditou piamente nas lendas de que alunos tinham desenvolvido traumas severos por causa das aulas de Snape. Porque ele mesmo estava lívido e engolindo em seco diante do tom e das ameaças contidas naquelas palavras quase sussurradas. Ele viu Harry tentar dizer:

– Mas... Severus...! O que está...?

– Harry, agradeço suas intenções, mas isso é entre mim e Shacklebolt. Ele não vai ousar negar que tentou se insinuar para cima de Helena. Eu vi com meus próprios olhos.

Shacklebolt ainda tentava se recuperar do choque, mas Severus não o deixou falar, os dentes cerrados, rosnando de forma ameaçadora:

– Ele não vai negar que, durante meu julgamento, ele entreteve a idéia de ficar com ela e criar os meus filhos, caso eu fosse condenado à morte ou à prisão perpétua em Azkaban. Não posso usar Legilimência, mas eu sei que isso passou pela cabeça dele. Então você pode me falar sobre isso, Shacklebolt. Aproveite e me responda se minha prima Emma é apenas seu prêmio de consolação.

O experiente Auror sabia que estava falando com um Comensal da Morte, e que, naquele momento, as cartas estavam todas na mesa. Com toda a sua habilidade, Kingsley respondeu:

– Muito bem, Snape, então vamos jogar tudo limpo. Cartas na mesa. Sim, eu confesso ter estado atraído por Helena. Sim, passou pela minha cabeça que, se você fosse condenado, eu talvez pudesse ter alguma coisa com ela. Mas sabe o que aconteceu? Nada. Sabe por quê? Porque Helena nunca me deu chance. Ela não vê ninguém a não ser você, Snape. Como diz o ditado, ela não me dava nem a hora do dia.

– Foi aí então que você desistiu e partiu para cima da minha prima? – rosnou Severus.

– Não! – vociferou Kingsley, com seu vozeirão. De maneira apressada, Harry lançou um feitiço silenciador na porta. – Não! Não ouviu o que eu disse? Eu nunca desisti de nada, porque Helena nunca me deu chance de desistir! Pode perguntar a Harry! Pode perguntar a Tonks! Helena jamais sequer sonhou que eu, algum dia, tive sequer um pensamento desse tipo a seu respeito. Isso nunca aconteceu, Snape.

– É melhor estar me dizendo a verdade, Auror.

– Deixe de ser paranóico, Comensal!

Severus rosnou:

– O correto mesmo seria eu desafiá-lo a um duelo para resolver a questão de uma vez por todas. Um duelo bruxo.

Shacklebolt teve que fazer força para não empalidecer, mas ele sentiu um frio na espinha. Um duelo bruxo com Snape era sinônimo de suicídio. O Auror não era nenhum neófito, mas Severus Snape era notadamente um dos melhores duelistas de toda Grã-Bretanha. Além do que, suspeitava Kinglsey, com uma motivação dessas, dificilmente Severus jogaria limpo. Num duelo com Helena em jogo, ele usaria toda e qualquer maldição, azaração, encantamento ou praga – fosse das Artes das Trevas ou não.

– Se você não estivesse impedido de usar magia, eu aceitaria. Só para provar que está errado. E que nada aconteceu. Nada, eu repito.

– Como pode me garantir?

– Harry não admitiria isso em sua casa. Ao menos, foi o que ele me exigiu. Em respeito às crianças.

O olhar de Severus voltou-se para o Rapaz-Que-Matara-Voldemort, e Kingsley jurou que era como se uma ave de rapina estivesse procurando uma nova presa. Ele estudou o rosto do dono da casa:

– Você confirma isso, Harry?

– Ele diz a verdade, Severus – garantiu o jovem. – Eu só pedi uma vez, e ele atendeu meu pedido completamente.

O Auror percebeu que um pouco do brilho de ódio deixou os olhos negros de carvão incandescente. Reforçou:

– Seu casamento jamais esteve ameaçado, Severus. Presumo que não tenha lhe passado pela cabeça perguntar nada disso a Helena.

– Não vou incomodar minha mulher com mais esse aborrecimento. – Severus o encarou longamente. – Muito bem, Shacklebolt. Digamos que eu aceite suas explicações – por ora. Agora comece a me explicar seus sentimentos sobre Emma.

– O que há para explicar? Emma é uma mulher ativa, alegre, sensível. Ela está interessada em mim, e eu, nela. Somos adultos e queremos construir uma vida juntos.

– No caso, o que você chama de "vida juntos" inclui a mim e a minha família. Convença-me de que deixar você entrar para a família e conviver com Helena regularmente vai ser uma boa idéia. Convença-me de que você não terá uma "recaída" e não vai dar em cima da minha mulher mais uma vez.

– Snape, isso é absurdo! É claro que isso nunca vai acontecer!

– Com certeza, isso não vai acontecer. Deixe-me dizer-lhe por quê – Os dentes voltaram a ficar à mostra, notou Shaclebolt, que estaria de cabelo arrepiado se não fosse calvo. – Se isso acontecesse, iria arrasar minha prima. Mas isso seria o mínimo.

– Eu disse que não vai!

– Não vai mesmo. Porque, se acontecer, eu vou matá-lo com minhas mãos nuas. Primeiro você vai morrer por se atrever a dar em cima da minha mulher, e depois eu o ressuscito com uma poção e o mato de novo, só por ter feito minha prima sofrer.

Harry o encarou, olhos verdes arregalados. Como, ressuscitar? Ninguém podia ressuscitar os mortos. Ou podia?

Como se lesse seus pensamentos, Severus olhou para o rapaz:

– Não pense que eu não posso fazê-lo. Sou um Mestre de Poções. Posso fazer coisas que o deixariam arrepiado.

Ele pode ter dito isso para Harry, mas Kinglsey entendeu o recado. Por isso tomou a iniciativa.

– Severus, escute. – Ele procurou usar um tom mais cordato a fim de procurar desarmar a fera. – Eu tenho sentimentos genuínos por sua prima. Emma significa muito para mim. Pretendo me casar com ela, talvez ter filhos. O que tive por Helena foi um entusiasmo passageiro, mais nada. Hoje consigo enxergar isso claramente. Emma e eu podemos ser muito felizes juntos. Ao menos, eu farei de tudo para fazê-la feliz.

– Emma vai se mudar conosco para nosso novo lar, fora da Inglaterra. Ela me disse isso. Como pretende conciliar esses sentimentos, com ela morando longe?

– Eu pensei nisso. Bem, posso Aparatar regularmente, quem sabe ajudá-lo no treinamento dela com sua magia. – Rapidamente, ele acrescentou. – Com sua permissão, claro.

Kingsley sentiu os olhos negros o encarando como se pudessem enxergar dentro de si, de sua alma, de suas intenções. Severus sempre teve olhos perscrutadores, e o Auror podia jurar que ele tentava usar Legilimência – se não fosse a proibição do Ministério e a maldita pulserinha que o jogaria direto em Azkaban se ele tentasse.

– Se é o que Emma quer, eu aceito. – Ele disse tão de repente que Kinglsey não ficou muito certo de ter ouvido corretamente. – Então, agora podemos passar a discutir os termos da lobola.

– Mesmo?

– Mesmo – assentiu Severus, e Harry deu um suspiro de alívio. – Com a condição de que essa conversa jamais chegue a outros ouvidos. Especialmente de Helena e Emma. É óbvio que, por algum milagre, as duas não se deram conta do que aconteceu, e será melhor para todos que isso continue assim. Isso precisa ser pétreo. No caso de Emma algum dia perguntar, você vai mentir. Se não concordar com isso, o trato está desfeito aqui e agora.

– Não, eu concordo plenamente. Você tem razão. É o melhor para todos.

– Excelente. Agora, se estiver de acordo, vamos discutir a lobola. Pretende fazer uma oferta?

– Eu ofereço todo meu patrimônio por uma noiva como Emma. Ela é educada, prendada, boa cozinheira, tem escolaridade e vem de uma tribo respeitável. Reza a tradição que eu dê a maior oferta que puder. Temo apenas que tudo que eu tenho não seja suficiente para o preço de alguém como ela.

– Guarde seu dinheiro, Auror. Minha opinião a seu respeito não mudou. Você é um homem digno e íntegro, por isso sei que vai procurar dar o melhor à minha prima. Vai precisar de seu dinheiro para isso.

– Mas... eu tenho que honrar a lobola!

– Não pretendo dispensá-lo de suas obrigações – garantiu Seveus, de maneira seca. – Como homem de sangue mais velho da família, eu vou exigir o preço da noiva, como é meu direito. Isso também é um respeito às suas tradições. Mas o preço da noiva não precisa ser pago em dinheiro. Concorda?

Kingsley arregalou os olhos ao ver o sorrisinho na boca de Severus. O frio na espinha voltou.

Ele deveria ter escolhido Oskar. Negociar com ex-Comensal da Morte, ainda que regenerado, não era melhor do que com um comerciante oriental daqueles bem ladinos.

Por um momento, Kingsley pensou que teria sorte se Severus não exigisse seu primogênito ou algo parecido. No fim, porém, foi bem mais fácil do que tinha imaginado.

FIM DA SEGUNDA PARTE