Capítulo 24 – O ardil Viktar-Waldh

Västerås é uma cidade às margens do Lago Mälaren, um dos maiores da Suécia, conhecida por sua linda catedral e vários pontos históricos que remontam à história dos vikings. Na região, pode-se ver muito sobre esse fascinante povo, com ruínas e sítios que datam de 5 mil anos antes de Cristo. Ao redor do lago, os turistas são atraídos por fascinantes cruzeiros que visitam encantadores castelos medievais. Turistas mugglare observavam com curiosidade a grande quantidade de pedras rúnicas.

Visitantes bruxos conheciam precisamente o poder concentrado na região, que Severus imediatamente soube ser a ideal para instalar sua iniciativa. Como sempre, havia uma fachada Muggle que era verdadeira: era um abrigo para doentes severamente queimados. Com uso de pomadas e ungüentos mágicos disfarçados de medicamentos naturais, o Centro de Recuperação Viktar-Waldh (com nomes de antigos deuses nórdicos de cura) era sustentado por uma organização não-governamental (devidamente registrada no mesmo nome) e atendia a dois tipos de clientes: Muggles e bruxos carentes ou em situação de risco. Pacientes bruxos sabiam que o atendimento só era feito de duas em duas semanas aos fins de semana por uma figura misteriosa, conhecida apenas como den engelsman (o inglês, em sueco).

Por dois dias, nos fins de semana designados, Severus cuidava dos pacientes, sempre recomendando que não abandonassem seus médicos ou curadores. Explicava que não faziam propaganda, não anunciavam em lugar algum, nem cobravam pelas consultas ou remédios, mas lembrava que a ONG sobrevivia de doações, e qualquer coisa com que pudessem contribuir seria bem-vinda. Só fazia quatro anos que ele tinha aberto a Casa de Recuperação em Västerås.

Desde que encontrara com alguém do passado. Alguém que precisava de sua ajuda.

Tinha sido pura coincidência, na verdade. Em busca de novos fornecedores para ervas mágicas, ele tinha visitado a cidade de Leuven, na Bélgica, para um encontro com bruxos locais (do Flandres e outras regiões). Então ele viu um cartãozinho numa parede com a propaganda. "Dragão Branco, Agência de Segurança Bruxa – Exterminador de pragas, fantasmas, maldições de família. Sigilo Absoluto." Algo naquele aviso acendeu-lhe alarmes.

Severus estava certo. Por curiosidade, marcou uma entrevista com o misterioso dono da agência. Não foi fácil. Passou por várias checagens de segurança, muitos obstáculos, compromissos de sigilo. Mas Severus não se decepcionou. A pessoa era exatamente quem ele pensava que fosse.

– Severus? – Os olhos cinza se arregalaram. – É... você?

– Olá, Draco. Contra todas as possibilidades, nós nos encontramos de novo.

– O que está fazendo aqui?

– Relaxe. Não estava procurando você. Acredite ou não, foi pura coincidência.

– Está de passagem?

– Mais ou menos. Vim falar com fornecedores de ervas mágicas. Sou dono de uma botica que também vende poções na Suécia.

O rapaz desfigurado adivinhou:

– Engelsman? Você é o inglês do rótulo?

Lembrando do seu rótulo (a silhueta de um cavalheiro de chapéu-coco e bengala), Severus deu um risinho:

– Com Polissuco, talvez.

O herdeiro do clã Malfoy sorriu. Não era uma visão bonita, com todas aquelas cicatrizes desfiguradoras, notou Severus. Mas, estranhamente, reencontrar o filho de Lucius era uma recompensa afetiva maior que o desconforto de ver o rapaz naquela aparência. Como dois exilados, ex-Comensais, eles tinham muito em comum.

– Há quanto tempo está aqui?

– Faz mais de um ano que deixei o Reino Unido. Não são muitas pessoas que sabem onde estou.

– E o Ministério?

– Está me procurando em Barbados, acredito.

Draco riu suavemente. Severus indagou:

– É assim que está sobrevivendo agora? Dragão Branco? Exterminador de pragas mágicas?

– Meu pai teria arrebentado um aneurisma se soubesse.

– Não precisa mais fazer isso. Esqueceu que tenho acesso a propriedades que lhe pertencem?

– Não me pertencem mais. Eu lhe dei aquelas propriedades antes que fossem confiscadas. São suas. Além do mais, não deve ignorar que tenho bens na Bélgica. Não são mais a fortuna Malfoy de antes, mas me ajudam a sobreviver.

– Então, essa firma de segurança...

– ...também ajuda a pagar as contas. Ultimamente tenho gastado muito em remédios.

– Você consideraria usar produtos do inglês?

– Suas poções? Claro, elas são as melhores que eu conheço. Posso até recomendar outros conhecidos da comunidade bruxa da região. Eles poderão se beneficiar de seus conhecimentos.

– Draco, estou aqui de passagem.

– Então vamos marcar outro dia. Quem sabe outro lugar, também. Eu poderia viajar.

– Com uma fachada Muggle. Isso desviará possíveis... atenções indesejadas.

– Só você mesmo para trabalhar com Muggles. Contudo, admito: eles desviam atenções indesejadas. – Draco sorriu, e dessa vez Severus ficou com a impressão de que ele não fazia isso com freqüência. – É bom vê-lo mais uma vez, Severus.

– Não foi a última. Vamos manter contato. Estou pensando que posso tentar usar magia rúnica canalizada para a cura. Tem muita dessa magia ao redor de um lago sueco. Se combinarmos essa magia do local com poções...

– Aqui na Bélgica os Muggles têm muitos desses locais de cura. Um dos mais famosos fica numa cidade chamada Spa. É um conceito interessante, esse que eles têm em Spa. Pretende criar um desses, só que mágico?

– Talvez. Podemos atrair Muggles com queimaduras de fogo e tratar bruxos que precisem de tratamento. Sem perguntas, sem complicações.

– Isso parece estranhamente próximo a... caridade.

– Pois que seja. Podemos fundar uma ONG. Isso ajudará a baixar os impostos e dará uma fachada legítima. Na Suécia, esses impostos são extorsivos. É importante não levantarmos suspeitas. O Estatuto de Sigilo da Magia é aplicado em toda a Europa, claro. Hum, acabo de me lembrar de uma pessoa que pode nos ajudar.

Draco impressionou-se:

– Como sempre, você é rápido. Vai fazer tudo isso só para me ajudar?

– Gosto de pensar que mais pessoas poderão se beneficiar da iniciativa, Draco. – Severus o encarou. – Fiquei feliz de reencontrá-lo. Foi uma surpresa fortuita.

– O mesmo digo eu. Você tem uma coruja?

– Na verdade, uso um falcão. São menos conspícuos no lugar onde moro.

– Ótimo. Podemos trocar correspondência, então.

Isso tinha sido há quatro anos. Desde então, as coisas tinham evoluído bastante.

Agora, o Centro de Recuperação Viktar-Waldh era reconhecido na região e procurado por muita gente. Todos sabiam que o Engelsman atendia apenas alguns dos piores casos e que uma equipe fazia a maior parte do trabalho. Severus não queria fama, mas o Engelsman era admirado e reconhecido como um homem excêntrico, um recluso que ajudava os necessitados e não queria aparecer. Enquanto ele se mantivesse longe dos curiosos perigosos, estaria tudo bem.

Naquele fim de semana, ele pegou o furgão Volvo que usava para algumas entregas da botica e dirigiu as poucas horas até Västerås. Severus não gostava de ficar o fim de semana inteiro longe de Helena e das crianças, e o primo Oskar reclamava de sua ausência. Mas no fundo, ele gostava de trabalhar no centro. A casa antiga – restaurada a duras penas e sem mágica para não chamar a atenção – ficava na saída da cidade, e o carro era conhecido no pequeno estacionamento. Todos sabiam que ele vinha de longe, trazendo as poções disfarçadas de medicamentos. Assim que ele encostava o furgãozinho, a equipe corria a descarregar os remédios tão necessitados.

Severus entrava num pequeno consultório e lidava com os pacientes que previamente tinham passado por uma triagem. Alguns poucos passavam a noite ali, tomando "soro", tratando de infecções. A especialidade era queimaduras, e pessoas vinham de longe: além dos suecos, vinha gente da Noruega, Finlândia, Dinamarca, Bélgica, Estônia, Lituânia, Rússia. As salas de triagem eram torres de Babel, com diversas línguas sendo faladas ao mesmo tempo. A triagem era feita durante a semana, para concentrar os casos mais complicados (e os bruxos) nos fins de semana em que Severus estava presente.

No seu pequeno escritório, ele via primeiro os pacientes bruxos. Nunca falhava: o primeiro a ser atendido sempre era Draco Malfoy. Não só devido à ligação de tantos anos, mas também por orgulho profissional: Draco jamais ficaria totalmente livre das cicatrizes, mas seu rosto ao menos não causava mais tanta repulsa. Agora, ao invés de tecidos repuxando a pele, de cor nauseante, Draco parecia ter um caso muito severo de vitiligo. Foram necessários quatro anos, e muitas poções experimentais, mas Severus tinha conseguido um resultado bastante satisfatório.

– Você conseguiu, Severus. – Draco parecia entusiasmado, tirando o capuz. – Breve não precisarei mais andar de capuz em pleno verão.

– Você ainda precisa cuidar de sua situação. Já lhe avisei que o tecido pode infeccionar e degenerar em impetigo. Sabe o que é, não?

– Nossa, de onde você tira essas coisas?

– Da natureza. Estreptococos e estafilococos não são frutos da imaginação.

– Mas sabe, falando em se cuidar, você também poderia se cuidar um pouco.

– Que quer dizer?

– Quero dizer que esse lugar está crescendo. Daqui a pouco pode chamar atenção de pessoas inconvenientes.

– Tenho tudo sob controle.

– Controle?

– Tenho o que Muggles chamam de testa-de-ferro na tal ONG. Um laranja. – Draco não entendeu a terminologia, e Severus explicou. – Se eles se interessarem pela ONG, há uma pessoa instruída a despistá-los sobre a verdadeira natureza da organização.

– Mesmo?

– Sim. É o contador da botica, Toven Mellberg. Um Squib com uma folha no Ministério da Magia local. Ele tem todos os motivos para esconder a verdade também.

– Você sempre cercado de garantias, não, Severus?

– Nem sempre foi assim, Draco. Se você se lembra, na minha vida, eu raramente pude ter garantias. Tinha que confiar em mim e depender apenas de minhas habilidades para tentar sobreviver mais um dia.

– Não dá para esquecer. Mas parece que as coisas estão mudando na velha ilha.

– Você diz... em casa? – Severus fechou a cara

– Não é possível que você não esteja a par dos últimos acontecimentos. Até eu estou sabendo da...

Severus o interrompeu rispidamente:

– Você está falando de uma iniciativa inútil, infrutífera e – com sorte – apenas inócua. Não posso perder tempo com boatos e disse-me-disse.

– Mas Severus...

O ex-professor de Hogwarts pegou dois frascos de poções e mais um pote de ungüento, sem deixá-lo terminar mais uma vez:

– Tome seus remédios. Não vá negligenciá-los ou abusar de seu otimismo.

Draco o encarou durante alguns segundos antes de pegar os remédios.

– Certo. Vejo você em 15 dias.

– Até lá, Sr. Malfoy.

Mais uma vez, Draco o encarou como se quisesse dizer alguma coisa. Mas mudou de idéia, pegou seu capuz e saiu.

Severus fechou os olhos, tentando esvaziar de sua mente a última parte do diálogo. Ele não podia pensar no que acontecia a quase 2 mil quilômetros. Londres já não era mais seu lar. Ele tinha que pensar no aqui e agora.

Ergueu-se da mesa, abriu a porta e atendeu a bruxa que tinha levado uma maldição da mulher de seu amante.