Lembranças
I. O planeta sonho
Ávila atravessara uma parte da floresta com estrema pressa. Era um homem grande, de pele negra e traços rigorosos. Trajava uma túnica marrom feita em geral de peles de animais, as botas revestidas por pelugem também de algum animal. Deixava fundas pegadas na terra fofa por onde o passava veloz. Na mão trazia uma lança com ponta aguda.
Quando ele corria a fauna daquela floresta parecia se esforçar para sair de seu caminho, ele tinha o costume de arrastar consigo o que visse pela frente, e em especial ele tinha muita pressa nesse dia.
Não muito longe dali um jovem vestindo uma calça de tecido negro e paletó verde musgo escuro acordava. Seus olhos se abriram confusos. Ele não lembrava ao certo como havia ido parar ali, mas o fato era que esteve deitado Deus sabe por quanto tempo no meio de uma encruzilhada talhada num caminho de terra batida. O jovem limpou os olhos violetas tentando apurar a vista, porém nada havia por ali a não ser o caminho em encruzilhada cercado por uma espessa camada de mato seco.
Sua cabeça doía muito quando ele se levantou. Queria voltar para o museu, voltar para sua casa, mas qual dos caminhos devia tomar?
Sem se importar muito ele caminhou ermo seguindo para a direita tomando um dos caminhos, mas de forma alguma estava certo de onde estava indo, por isso voltou seus olhos para trás para olhar o outro caminho, e esse não estava mais lá, havia agora apenas a camada de mato seco.
-Mas, como? – Voltando sua atenção novamente para o caminho que escolhera notara que havia agora grandes portas douradas ali. –Elas não estavam aqui até agora. –Duo gemeu arqueando a sobrancelha como sempre costumava fazer quando se via intrigado com alguma coisa.
-Bem vindo, pequena ametista. – Uma voz grave, mas feminina ecoou quase dentro da alma de Duo que se assustou. –Ei, aqui em cima. – A voz falou.
-Jesus! – O rapaz quase saltou para trás vendo o que lhe falava. –Uma esfinge.
-Olá... Eu sou Enigma, a deusa que guarda uma porta muito especial, pequena ametista. – Ela falou. Era mesmo uma enorme esfinge com cabeça de leão. Sua expressão era bizarra e enigmática. –Sei quantos montes de perguntas você quer me fazer nesse momento, mas não estou aqui para ser sua orientadora, e sim para lhe dar a oportunidade de passar por essas portas, e antes que me pergunte petulantemente porque gostaria de passar, como sei que você fará, eu lhe digo que atrás dessas portas você pode voltar para casa e fingir que isso tudo não passou de um belo e gostoso sono da tarde, o que acha pequena ametista?
Duo a olhou confuso. Aquela coisa enorme conseguia a proeza de falar mais que ele. A esfinge simplesmente parecia não parar para respirar quando falava. –Eu acho que... Você fala demais. – ele respondeu finalmente a encarando com seus globos violetas.
-Ohhh... Por essa eu não esperava. Humanos são sempre imprevisíveis. Ponto para você, pequena ametista. – Ela sorriu dramática. –Mas não é a resposta certa. Eu espero algo mais inteligente de alguém que sabe tantas coisas.
-Eu não estou entendendo nada disso. –Duo se aproximou um passo.
-Nem tente. Conheço seus truques. – a esfinge sorriu sabendo que ele queria tocá-la. –O que temos aqui é simplesmente um lindo ladrãozinho de conhecimentos. Mas, ametista, eu não tenho o tempo todo. A volta para casa está por trás da porta... Posso lhe deixar passar. – A esfinge era enigmática, ela acabara de fazer uma pose que Duo achara ridícula ao deixar aquela condição no ar.
-O que quer? Já sei uma charada... – Ele girou os olhos impaciente.
-Nada disso, eu quero apenas o pêndulo em seu pescoço.
-O que? – Duo levou os dedos ao pescoço estava usando a jóia na qual tocara no museu.
-Idiota! Não toque nisso. – Enigma gritara tarde demais. Como por um encanto o céu fora engolido pela escuridão e um vento vigoroso passara a soprar violento. Relâmpagos cortaram os céus em riscos trêmulos e brilhantes.
Uma sombra negra tragara a esfinge e as portas, Duo por sua vez experimentou a mesma estranha sensação de antes, como se estivesse mergulhando em um turbilhão multicolorido com cheiros e odores, e vozes.
Ávila chegara bem a tempo. Ele erguera sua lança na direção de um pássaro negro que tentava fugir em meio àquele vendaval. Uma luz azul reluziu na ponta da lança e o pássaro crescera de forma considerável vindo em sua direção.
Mais que depressa o mulato tomara o corpo desacordado do jovem humano e saltara para cima do pássaro, agora enorme.
-Para o alto, nos leve para as montanhas Altares. – Ele gritou numa ordem ao animal alado que soltou um guincho agudo e saiu vencendo os ventos fortes cortando os céus tingidos de escuro.
O pássaro enorme riscou o horizonte de asas abertas e guinchando alto. O vento soprou movendo freneticamente a trança de Duo que tinha desacordado nos braços de Ávila quando eles passaram pelas nuvens alcançando um mundo bonito de jardins verdes, estavam nas montanhas Altares.
Ávila saltou do pássaro erguendo sua lança fazendo reluzir dela a mesma luz de antes, que agora o pássaro voltara a sua forma e tamanho normais.
-Obrigado pela carona, meu amigo voador. – ele agradeceu ao pássaro voltando sua atenção ao menino em seus braços. –Tão frágil e belo.
-Ávila, eu vi o céu escurecer. O menino está bem? – uma mulher de cabelos vermelhos corria em sua direção. Ela vestia um longo vestido bege com milhares de pontos brilhantes.
-Acho que sim. – o mulato falou sem ter certeza.
-Devemos levá-lo para dentro.
-E as estrelas? – o guerreiro a segurou pelo braço com seriedade.
-Veja. – A moça de cabelos ruivos apontou para um local em seu vestido. –Essa se apagou ainda há pouco. Está ficando cada vez mais rápido. – ela falou preocupada.
Escarlate era uma bruxa que vivia naquelas montanhas, acima do nível das nuvens, como eles diziam por ali.
Eles percorreram os jardins e foram deitar o garoto numa espécie de cama muito macia na sala de uma casa em formato de ovo.
Não demorou muito a Duo acordar e dessa vez mais confuso que antes.
Estava tão assustado que se encolheu quando seus olhos violetas esbarraram com os vermelhos vivos daquela mulher de cabelos também vermelhos e pele tão branca quanto as nuvens.
-Jesus! Quem são vocês? – ele gemeu achando que estava ficando completamente louco.
-É justo. – a moça sorriu. –Eu sou Escarlate e esse é Ávila Burga. Sei que não lhe diz muita coisa, mas vou lhe explicar.
-Vá devagar Escarlate, ele precisa entender. – Ávila falou com sua voz rouca.
-Você é o homem que estava no museu. –Duo apontou debilmente para aquele homem.
-Era sim, meu anjo. – a mulher falou suave. –Ele foi a meu mando. Eu escolhi você minuciosamente para passar um tempo em nosso país.
-Como? Do que está falando? – o jovem se moveu incômodo naquela cama esquisita.
-Os humanos dão a nosso país muitos nomes. Ilha da fantasia, Terra do Nunca, mundo do faz de contas, planeta sonhos, estação da lembrança... – Como vê muitos nomes.
-Terra do Nunca. – Duo repetiu como se aquilo fizesse algum sentido.
-Eu sei, um humano escrevera em outro momento um conto que se tornara famoso entre vocês... Esse humano esteve aqui um tempo atrás, mas ele se lembrava muito pouco daqui, por isso escreveu apenas alguns borrões do que se lembrava de sua estadia breve... – Escarlate sentara-se ao chão e passava a falar.
-Senhora. Não convém isso. Duo precisa saber os motivos pela qual foi escolhido. – Ávila interrompera o monologo da moça de forma impaciente.
-Ohh, claro. Eu sempre costumo falar demais.
-Parece ser um hábito por aqui. –Duo observou nada agravável. –O que está havendo afinal? – ele os olhou som seriedade.
-Duo, eu ouvia sua mãe lhe chamar de pequena ametista, tão lindo. Eu acompanhei alguma parte de sua vida e vi que você servia para o que eu precisava. Por isso pedi a Ávila que colocasse esse pêndulo que você está usando entre os artefatos daquela exposição, eu sabia que você o ia tocar e com sua especialidade viria direto para nosso meio. –Escarlate falou sorrindo.
-Esse mundo é um mundo paralelo ao seu. Escarlate é para nós uma deusa importante, mas agora estamos sofrendo uma grande ameaça. –Ávila falou agora.
-Existe um ser das trevas que quer dominar nossa dimensão, não o conhecemos, mas alguns o chamam de o Colecionador de dimensões, ele é forte demais. – ela completou. –Isso é meu corpo. – a moça ruiva mostrou o vestido bege a Duo. –Cada ponto desses é uma estrela que mantém a luz desse mundo. O colecionador está as apagando uma a uma e quando ele conseguir apagar todas as estrelas nosso lar vai morrer e será anexado ao mundo sem vida dele.
-Que viagem. – o jovem se encostou à estranha cama assoviando.
-Espero que esse monstro nunca se interesse pelo seu mundo... Pelo seu Sol. – Ela comentou triste.
-Onde eu entro nisso tudo? – Duo ergueu a sobrancelha.
-Antes que todas as minhas estrelas se apaguem você precisa encontrar um ser capaz de vencê-lo. Somente esse ser sabe como parar o colecionador.
-Certo. Onde eu encontro essa figura? –o trançado falou a olhando desafiadoramente.
-Não sabemos nada sobre esse ser. Nada mesmo. Apenas que ele existe, ao menos existe uma pequena nota sobre ele em um dos mandamentos. – a moça ruiva falou sonhadora. –Trotando sobre patas aladas ele virá erguendo seu báculo enfeitado de pedras preciosas, trás consigo a cura para o mal maior. – Escarlate recitou o pequeno trecho que referenciava o salvador de seu mundo.
-Certo. Estou num sonho louco, e você me diz coisas loucas, e ainda mais, me diz que um ser pode salvá-los, mas que a única coisa que tem sobre ele é isso que acabou de me dizer? – um Duo revoltado se levantou. –Quero ir para casa. A esfinge ia me levar...
-Desculpe, ela te enganou. Aquela era Enigma, a guardiã da porta do inferno. Ela queria o pêndulo e depois te mandava numa viagem só de ida lá para o inferno. – Ávila esclareceu.
-Que animador. – Duo comentou.
-A única forma de voltar para casa é a passagem que o ser pode abrir para você, quando nós o acharmos. – Escarlate falou.
Duo se calou por uns instantes. Era tudo novo e muito confuso. Estava em meio a uma aula chata de história em um museu quando se vira tragado por um tufão luminoso quando caiu de cabeça numa terra de loucos que falavam loucuras.
-Pequena ametista, como vê não há outra solução. – Ávila sorriu para ele. –Acho que vou lhe contar mais sobre nosso mundo, lhe mostrar umas coisas... – ao visto não tinham mesmo outra opção senão sentarem e se aceitarem. O jovem humano não tinha outras formas de voltar para casa.
Duo caminhara pela casa oval percebendo que ela era bem mais ampla que parecia. Talvez fosse algum encantamento que desse a impressão de espaço interior, afinal a essas alturas já imaginava de tudo naquele mundo estranho.
Entediando ele deixou Escarlate e Ávila conversando sobre os planos da partida, iam se aventurar pelas trilhas daquele mundo mágico na manhã seguinte em busca de mais aliados, mas o jovem humano não quis participar da conversa.
Ele preferiu passear pelo jardim tão belo da casa e aproveitar para pensar um pouco na vida, em seu passado, em seus pais.
Sua mãe havia morrido, como ele havia visto em uma de suas visões após tocar um pingente que ela usava na hora do acidente, essa visão o havia levado a um estado catatônico quando tinha apenas cinco anos de idade.
Muito preocupado o pai o internara várias vezes por causa das visões que ele dizia ter e que seu pai acreditava ser ainda perturbações da época do trauma que sofrera pela morte da mãe.
Atualmente vivia no internato para moços católicos, e via o pai apenas duas vezes por ano nas férias.
-Sinto saudades. – ele falou baixo mordendo os lábios e já sentindo os olhos grandes se lubrificarem. Duo era extremamente sentimental.
Somente ele sabia o desejo que lhe roia por dentro, necessitava de sua família inteira, de uma nova chance e talvez por isso fosse tão perturbado, porque nunca aceitara a morte da mãe, e vivia a sonhar com um dia que ela voltaria.
Ele sentou-se na grama sentindo como era macia. A brisa brincou com seus cabelos sedosos de forma suave. Era uma bela imagem aquela criança linda largada na grama com o vento a mexer com seu sossego.
Do alto de um galho um corvo o observava. Os olhos negros clavados no menino humano. Duo esquecido do mundo na grama nada percebera, também ocorrera tudo como em questão de segundos.
O corvo descera veloz com as garras afiadas na direção da criança.
O vento soprou mais forte e os olhos violetas do menino se voltaram na direção do pássaro que vinha para cima dele. Mas Duo não conseguiu fazer muito. As garras afiadíssimas engancharam na suave mão direita que o humano havia usado, no desespero, para defender o belo rosto. A dor foi instantânea e crucial, ele sentiu a pele sendo talhada por aquele quase vidro em forma de garras.
-Ahhhh... – o jovem deixou escapar um grito de dor. Mas era bem mais que isso. Ele havia tocado o corvo e isso era muita informação para sua cabeça infantil. Naquele momento Duo havia entrado em contato com uma maldade de dimensões apavorantes. Ele sentiu sua cabeça chuchar e rodopiar, seu corpo confuso demais acabou misturando uma série de sentidos.
O rapaz experimentara as mais estranhas e variadas formas de dor, frio, fome, sede, medo, solidão, Raiva, etc. Sentia tudo ao mesmo tempo...
-Ávila! Ele precisa ser purificado. – Escarlate gritou ao chegar à porta da casa de ovo.
-Ahhhhhhhhhhhh! – Duo tornara a gritar agora pondo sangue pela boca e pelo nariz numa convulsão violenta que fazia todo seu corpo sacolejar debilmente.
Sem perder tempo Escarlate se abaixou na terra erguendo os olhos vermelhos vivos para o céu movendo os lábios e as córneas de forma estranha, como se rezasse de forma enfeitiçada.
O corvo ao chão sofria, pois uma vez que Duo havia sido tocado pela força do mal a ave negra também havia sido tocada pelo bem, o sangue do humano a perturbava.
-Fogo... – Escarlate terminara sua reza estranha com essa palavra. E em seguida o corvo ardera em chamas sumindo no ar. –Fiz o que pude. – ela comentou vendo que Duo ainda sofria com a hemorragia e tremores.
Ele estava agora desacordado pondo sangue pela boa e pelo nariz, bem como seus olhos pareciam se moverem abaixo das pálpebras.
-Vamos ter que apressar nossa partida. – Ávila comentou com a moça. –Quando você matou o corvo Duo foi liberto das lembranças ruins da ave, mas ele foi ferido por ela... Somente a água da fonte nascente pode purificá-lo.
-Eu sei. O fogo é o elemento purificador, mas não podemos simplesmente torrá-lo como fiz ao corvo, precisamos desse garoto vivo. – ela ficou séria.
-Se ele não beber dessa água em menos de seis horas ele morrerá...
-E se ele morrer aqui isso significa que o corpo que ficou na terra ficará eternamente a espera da alma. – ela comentou nervosa olhando muito penalizada com sofrimento do garoto que não parava de sangrar pela boca e nariz.
A casa em forma e ovo foi deixada para trás.
Uma carruagem prateada era puxada por pássaros de fogo, que lembravam duas Fênix, lá dentro Escarlate matinha Duo aquecido com compressas de água morna e lençóis quentes, Ávila o olhava com pena amparando com uma toalha o sangue que o jovem expelia ainda pelo nariz em médios filetes ou pequenas golfadas pela boca.
-Apressem-se minhas aves de fogo. – Escarlate pediu olhando para fora da carruagem. –Ele não vai suportar muito tempo. Está com muita febre... – ela comentou muito preocupada.
-Se ele não viver eu não vou me perdoar nunca. A guarda dele é minha responsabilidade. Ávila se culpou penosamente.
A carruagem seguiu.
Duo sofria em febre e dor lá dentro. Somente as águas da fonte nascente podiam o salvar.
Valeu os comentários,
Mil beijos,
Hina
