Lembranças


II. Sombras sobre luz


A carruagem prateada seguia pelo céu azul levada pelas aves de fogo de Escarlate.

A situação de Duo era no mínimo penosa. Ele ainda sangrava muito e deixava escapar de seus lábios entreabertos suspiros chorosos de dor e angústia. Era como se estivesse em um estado de coma sendo consumido por uma febre altíssima.

Nesse momento Duo estava visitando o misterioso mundo dos sonhos perturbadores. O jovem humano não tinha como despertar, porém teria feito se pudesse.

Ele era ainda um menino e andava sozinho por um caminho de terra, seus olhos grandes e violetas vasculhavam os arredores em busca de alguém que pudesse lhe levar de volta para casa, porém não havia pessoas ali, apenas morros e morros coberto por túmulos. Era um cemitério interminável. Milhares de lápides e tumbas, crucifixos de pedra, flores secas, etc.

Ele não sabia quanto tempo continuaria vagando por ali, porém em cada túmulo que passava via dor e lágrimas, ele podia ver a forma como as pessoas morreram, podia sentir a mesma dor que eles sentiram, a mesma angústia. O menino assustado seguia sozinho sentindo a dor do mundo morto.

Escarlate o olhava com pesar, sabia o local ruim que ele estava visitando.

-Parece que ele está no vale da morte, e sabemos o quanto isso é terrível para ele. O Coitado deve estar sentindo cada pesar daquelas almas. É muito sofrimento. – a moça comentou nervosa, porém pouco podia fazer.

-Pobre criança. Estamos quase chegando. Natal vai nos ajudar. – o mulato falou acariciando os cabelos úmidos de Duo.


Aquele mundo era extremamente belo. Grama verde, rica fauna, florestas de climas diversos, fontes, lagos e mares, etc.

O que poucos sabiam era que abaixo daquele belo paraíso havia um outro mundo, uma civilização que vivia abaixo da terra sem nunca ver a luz do Sol.

Os que conheciam sua existência temia a maldade e ambição daqueles seres que jamais saiam da chamada galeria SubTerra, a não ser para praticar alguma maldade.

A vida abaixo da terra não era boa. Era uma vida sem cores, cheiros, gostos, etc. Havia pouco a fazer por ali e a maioria dos seres que habitavam aquele lugar odiava aquela vida, exceto por um ser em especial, o Senhor Sombra.

Senhor Sombra era como conheciam uma estranha entidade que percorria aquelas galerias subterrâneas. Não tinha uma forma física definida sendo composto por uma névoa de sombras e fumaça negra, era pura magia do mal.

Percorrendo um imenso e escuro túnel tinha-se acesso a uma saleta iluminada por tochas. Ali era a morada daquele ser tão temido.

-Falharam novamente? – a voz grave e arrastada reverberou por aquelas paredes de pedra úmidas. O ser que falava havia acabado de sair das sombras.

-Sinto muito. – uma moça estava com ele na sala, escondia-se numa túnica negra com um capuz que lhe escondia o rosto. Sua face era um enigma. Por isso lhe chamavam de Enigma, a guardiã da porta do inferno.

-Idiota. – as sombras se moveram tomando a forma de um corpo indecifrável. –Eu quero a pedra do garoto, essa pedra é a chave para libertar o ser que pode deter nosso mestre.

-Nosso mestre não pode mesmo estar preocupado com um humano idiota. – a moça falou.

-Enigma. Você mesma viu o poder da pedra quando tocada por aquele menino. Ele tem uma coisa que os outros humanos não têm e nenhum de nós tem. Não é magia o que o faz sentir e vivenciar as histórias. Aquilo é um dom, um maldito dom que se for usado para o fim de libertar o salvador nosso mestre jamais irá conseguir esse mundo e você sabe que o Conquistador sempre tem tudo o que quer. – as sombras que formavam a impressão de ter um corpo ali se agitaram.

-Escarlate e Ávila estão com o menino. Será muito difícil. – ela lembrou. Eu vi com os olhos do corvo que enviei, mas meu animal o feriu.

-Ótimo. Eles então só podem estar indo atrás de Natal para usar a fonte nascente, porém, você guiará as sombras até a fonte antes que eles cheguem. – Senhor Sombra ordenou.

-Será feito. – Enigma era um das únicas que conhecia exatamente como se encontrar a fonte nascente, afinal ela havia sido criada com Natal, o ser que era incumbido de guardar as águas da fonte. – A fonte nascente padecerá nas sombras. – a moça se levantou decidida, afinal não seria poupada se acaso tivesse uma terceira falha.


Enquanto isso os dois pássaros de fogo baixaram vôo se fundindo em apenas um e desaparecendo numa fumaça laranja quando se aproximaram do solo. A carruagem prateada sofreu um solavanco forte quando bateu contra o chão largada pelos pássaros.

-Você podia treinar esses pássaros melhor. – Ávila comentou.

-Não reclama. Eles nos trouxeram te aqui, não? E da próxima vez ordene um dos seus. – ela falou.

Haviam chegado a uma planície muito ampla. Ali ficava a fonte nascente.

Quando Escarlate e Ávila desceram da carruagem um jovem lhes esperava sorrindo. O rapaz era tão bonito e seu sorriso parecia ter alguma propriedade calmante. Seus olhos eram grandes e de um azul translúcido como o próprio céu daquela região, os cabelos curtos e loiros se moviam levemente com a suave brisa que soprava.

-Precisamos chegar à fonte. – Ávila se apressou falando ao garoto a sua frente.

-Eu sei. É por causa dele? – o jovem loiro olhou com aqueles olhos grandes e curiosos para o menino nos braços do alto mulato. –Ouvi dizer que é um humano, mas parece tão novinho? Uma criança ainda. É muito bonito também e coitado, parece estar sofrendo tanto. – de fato todas as conclusões apontadas pelo rapaz loiro eram bem óbvias e eles apenas perdiam tempo, mas o estranho loiro se aproximou afastando a franja ensopada de suor do rosto de Duo num carinho quase infantil. –É muito bonito mesmo. – suspirou voltando a sorrir.

-Quatre sabemos que Duo é realmente belo, mas temos que ajudá-lo. Ele foi ferido por um dos corvos de Enigma e não podemos perder mais tempo. – a ruiva falou quase num grito, ela realmente não tinha muita paciência com aquele rapaz falante e curioso.

-Eu compreendo... Só estava sentindo como ele está. Acho que dará tempo chegar à fonte antes que ele... – o loiro explicou, mas parou bruscamente tocando a testa com as pontas dos dedos e fazendo uma expressão séria e compenetrada, como se estivesse recebendo alguma ordem.

-O que foi dessa vez? – Escarlate o ia interromper, mas Ávila pediu que ela se calasse.

-Vamos. – Quatre era um jovem e belo rapaz, até o dado momento poucas pessoas conheciam suas funções naquela terra, porém isso o menos importante. Ele era discípulo de Natal que era uma espécie de deus naquela região, responsável pela prosperidade das colheitas e guarda da fonte nascente. –Ah... Natal estava me dizendo para passarmos em seu palácio antes de seguirmos até a fonte. – Quatre avisou sorrindo. –Não se preocupe com o garoto, ele vai agüentar até a fonte. – ele sorriu.

Assim seguiram por uma estrada cercada pelos mais belos jardins. Flores diversas estouravam em uma explosão de cores e formatos. Havia uma riqueza de frutos e cheiros, os mais diversos pássaros e borboletas eram atraídos para aquele jardim.

-Esse é o jardim Universal. Dizem que existe uma amostra de cada planta que existe em nosso reino nesse jardim, mas eu não sei se é verdade, pois nunca procurei saber isso com Natal. Na verdade ele também não fala muito comigo, e ultimamente anda tão misterioso, como se soubesse de algo que ninguém mais sabe, e eu sou tão curioso que... – Quatre falava ininterruptamente.

-Meu rapaz. – Ávila o interrompeu já estando muitíssimo impaciente. –Tem certeza que estamos chegando? – ele queria logo estar com Natal e depois seguir para a fonte, porém quando olhava a sua frente apenas o que via era o caminho e os jardins, nem sinal do palácio encantado.

-Arf, eu sei como sou indesejado quando começo a falar. – Quatre comentou. –Chegamos. – anunciou.

-Mas... Não há nada ali... – O mulato ia protestar, porém ao olhar novamente a sua frente esbarrava com a imagem de uma imponente construção com torres altas. –Não havia nada ali. – ele completou sabendo que nunca devia subestimar a magia de um deus.

Entrando palácio adentro as salas eram amplas, porém todas vazias dando uma sensação solitária. Não havia decoração ou moveis, apenas as paredes brancas e sem vida.

Quatre os guiou para uma sala redonda.

Finalmente Natal surgiu para eles. Era um ser belíssimo, porém sua beleza não era natural. A pele extremamente branca contornada por cabelos muito longos e lisos de um claro amarelo, quase sem cor. Os olhos eram grandes e de um verde-água raro, os lábios finos enfeitavam com riqueza aquele rosto divino. De longe não se sabia ao certo que sexo definir para Natal, visto que seu corpo, mesmo escondido por uma leve túnica cinza, apresentava curvas bem femininas, mas com ausência de seios.

-É sempre bom ter amigos em minha casa. – ele sorriu se aproximando. –Não há muito tempo, afinal o menino precisa de cuidados. –ficou sério olhando para Duo se remexendo dolorosamente nos braços fortes do homem alto.

-Temos que levá-lo a fonte. – Escarlate se adiantou.

-Vocês irão, mas antes é preciso saber que o Senhor Sombra deseja a vida desse menino. – Natal falou simples.

-Mas porque o Sombra ia... – a ruiva ia falar, mas Natal pediu que o deixasse explicar com um aceno de mão.

-Ele está servindo ao Conquistador. Eles precisam parar esse menino antes que ele use a pedra de ametista e liberte o rei das profecias. O problema é que nenhum de nós e muito menos o Senhor Sombra, sabemos como ele fará isso.

-Que vamos fazer? – a moça finalmente falou.

-Se for o destino de nosso reino perdurar ao ataque do Conquistador dos mundos, o destino nos guiará, por isso vocês devem apenas seguir e fugir. No caminho encontrão outras pessoas que os ajudarão, e espero que encontrem as respostas. – Natal falava seriamente. –Mas ouçam. Essa jornada será iniciada por muitos. – o ser vasculhou os olhos de cada um ali naquela sala, mas poucos dos que iniciarem terminarão. – terminou de falar e erguendo sua mão logo atrás de si se abrira um caminho cercado de jardim que era similar ao caminho que os havia trazido até ali. –Sigam adiante, chegarão até a fonte.

-Achei que viria conosco. – Escarlate falou.

-Hoje receberei uma visita muito importante, devo ficar. – ele sorriu. –Quatre. – chamou seu discípulo. –Sei que falta aprender muita coisa ainda, mas deverá estar pronto para ajudar o garoto em meu lugar. –Natal falou acariciando o rosto confuso de seu jovem aprendiz colocando no pescoço dele um cantil de couro. – Você tem a fonte nascente dentro de si. – o mestre falou ao aprendiz.


Seguindo adiante deixaram Natal para trás. Quatre carregava o cantil sem saber o que continha ou mesmo o que fazer com ele e principalmente o que o mestre quis lhe dizer com a última frase. O loiro se apressou em seguir o caminho até a fonte. Duo estava agora muito pálido com o sangue escorrendo pelo nariz, seu semblante parecia estar cada vez mais desamparado e frágil nos braços fortes de seu guardião.

Caminharam por um tempo imenso quando finalmente avistaram a fonte a sua frente. Era mesmo mágica. Ela surgia no ar e formava um lago cristalino que reunia em torno de si as mais belas flores, e pássaros e animais e vida.

-De pressa. – Escarlate correu, mas algo a parou.

Naquele momento foi como se o chão tremesse forte. A fonte pareceu evaporar rapidamente desde a nascente deixando no ar o vapor do que um dia foi uma queda de água tão cristalina. Foi tudo tão rápido e inesperado. Tudo ao redor da fonte foi se tornado sem cor, como se estivesse sendo evaporado, carbonizado. As flores, animais, tudo se tornando cinza e sumindo no ar, com num grande fumaça tóxica.

-O que é isso? – Quatre se perguntou apavorado. Toda a vida estava se tornando cinza. Ao redor deles todo o jardim estava queimando e se reduzindo nas temíveis cinzas.

Como se uma energia negra estivesse passando e lambendo toda a vida que antes existia ali.

-Sombras está aqui. Só pode ser ele. – Escarlate anunciou mantendo-se em guarda, mas a verdade era que pouco podia fazer contra aquele ser das trevas.

-Vejam! Lá! – Ávila chamou a atenção.

Eles puderam ver uma cena inacreditável.

Diante de seus olhos o palácio que se mantinha escondido por encanto surgira para em seguida ser tomado de uma sombra escura e tornado cinza, como tudo por ali.

Um vento quente e putrefato passou a correr por todo o local.

-Que vamos fazer? Não podemos fugir. – Quatre gritara assustado quando a neblina escura passara por eles, porém não os tocara. –Natal está nos mantendo seguros, mas por quanto tempo? – o rapaz notara ao redor deles um campo luminoso feito por seu mestre.

O vento soprou com mais força fazendo um corpo de sombras se materializar e seguir veloz na direção do grupo ilhado no campo de luz. Sombra queria a pedra ametista, porém quando estava quase se aproximando a terra tremeu surgindo ninguém menos que Natal.

-Maldito. – Sombras o olhou por um breve momento, talvez avaliando as condições de seu oponente. – Hum... Se eu não fosse acabar com seu corpo até torná-lo pó, eu bem que gozaria uma diversão com você. – ele falou antes de partir para cima do outro ser.

-É mesmo? Meu corpo te atrai? – Natal gemeu medindo forças com Sombras. –Eu não posso dizer o mesmo de você, afinal nem tem um corpo. – ele provocara aumentando sua energia luminosa.

Natal medindo forças com ninguém menos que o Senhor Sombras era uma cena inusitada, ambos os seres sempre se mantiveram distantes um do outro, pois o choque de suas forças teria um desenrolar catastrófico, a julga pelo jardim universal que jazia queimando em cinzas.

-Mestre. – Quatre sentiu o poder de seu mestre sendo tragado aos poucos.

E sem seguida uma explosão violenta engoliu toda a luz que banhava aquele lugar. Natal havia perdido.

Rapidamente as nuvens de trevas tomaram o lugar, somente no pequeno círculo que eles estavam ainda havia vida e cor, mas estava se fechando, as sombras se aproximando. Nenhum deles sabia exatamente o que fazer, afinal se Natal havia sido morto daquela forma ninguém poderia fazer muito por eles, a fonte estava acabada. Sombras se aproximava por um raio de 360º, quando estavam bem próximo quase os tocando todos puderam sentir como se toda a luz estivesse sendo tragada de dentro deles.

-A sombra que se alimenta da luz. – Escarlate falou vencida fechando os olhos segundos antes de as sombras avançarem de vez sobre o círculo que os defendia, uma vez que Natal havia sido destruído não mais haviam mais defesas.

Um momento os separava da morte. Duo se mantinha desacordado, mas o menino de seus sonhos fora arrancado do cemitério na qual seguia para cair em um tufão colorido. Ele então pode ver o exato momento que a sombra se aproximava, pode sentir o perigo, o medo e seus olhos violetas se abriram por um momento e aconteceu algo mágico, como se o tempo se congelasse.

Duo aproveitou esse mínimo momento para tocar a pedra em seu pescoço. Essa ação determinou suas vidas, no exato momento que a sombra consumia a luz um tufão colorido aconteceu e quando as nuvens escuras engolfaram o pequeno círculo de luz eles já não estavam mais lá. Haviam sido tragados pelo tufão que Duo sempre provocava quando tocava com os dedos aquela pedra.

O tufão em cores sumira levando-os para algum lugar longe dali.

O que um dia já foi chamado de o jardim Universal agora não passava de um campo vasto. Escuro e morto. Montes de cinzas estavam por todos os cantos. Era o fim do belo jardim Universal.

Enigma surgira das trevas. Um manto negro cobria todo seu corpo terminado com um capuz que lhe ocultava a face.

-Fizemos um bonito trabalho nesse maldito jardim. – aquela voz arrastada, um tanto quanto rouca falou.

-Acho que sim. – ela respondeu. Ao seu lado havia um ser formado de trevas, não tinha corpo. –É só uma pena que eu tenha que ter te trazido até aqui. Quando eu era aprendiz de Natal ele me fez jurar que jamais revelaria a localização do jardim Universal a ninguém que pudesse o destruir. E ironicamente uma das únicas coisas que podem destruiu a luz é a sombra.

-Não se culpe Enigma, Natal só perdeu para mim porque já havia oferecido seus poderes a outra pessoa, caso contrário eu não teria o vencido.

-Como? Mas eu sempre achei que ele um dia ia me dar esses poderes.

-Não seja tola. Você deixou de ser pupila dele quando se entregou a mim. Aqueles que aceitam as sombras jamais voltarão à luz. – Senhor Sombras falou. –Só é uma pena que o menino tenha escapado de minhas mãos... Mas iremos os encontrar novamente.

-O menino não vai viver, você destruiu a fonte. – a moça lembrou.

-Mulher. Natal delegou seus poderes ao idiota loiro. Ele agora tem a chave da fonte, se for mesmo merecedor da confiança que Natal lhe deu esse loiro saberá como salvar o garoto.

Eles ficaram em silêncio olhando o campo escuro que havia se tornado o jardim Universal.

Duo havia conseguido em um momento de inconsciência levá-los para longe, viajando no seu turbilhão de cores para algum lugar seguro, porém ainda tinham que oferecer a ele o poder da fonte nascente. E esta havia sido tornada cinzas pelo poder do Senhor Sombras quando esse matou Natal, o deus da prosperidade.

Agora, segundo o senhor Sombras Quatre era a única pessoa capaz de usar aqueles poderes, porém o jovem loiro parecia ainda não saber disso.


Mais um capítulo...

Beijos,
Hina