Lembranças


XII. O sacrifício: Onde haja trevas que eu traga a luz


Duo seguiu na frente, rompia as barreiras de seu próprio limite a cada passo. Uma dor violenta lhe afundava nas costelas toda vez que respirava, mas tinha que seguir.

Ávila vinha logo atrás trazendo Trowa em suas costas, o guerreiro apenas observava como Duo estava decidido, e como isso era ótimo, afinal o humano precisava despertar essa capacidade de coragem e liderança.

Eles caminharam por um tempo incontável, talvez horas naquele afinco de alcançar o topo da montanha.


Enquanto isso no palácio de Drácona Quatre olhou o cenário de pedra pela janela. Seus olhos tristes se voltaram para a mulher que estava a sua frente.

-Vamos. – ela falou rígida e o loiro a achou diferente de antes. Os olhos estavam mais agressivos.

-Aonde? – ele perguntou inseguro.

-Fazer uma breve visita para um velho amigo. – ela sorriu o acertando um poderoso feixe de raios.

Quando finalmente acordou Quatre estava em outro cenário. Quando Drácona lhe pedira para ficar com ela e lhe ensinar os segredos de seu poder ele acreditou mesmo que pudesse ajudá-la a trazer a vida novamente a seu mundo de pedra. Mas agora entendia que o mundo dela era uma farsa. Ela havia lhe trazido a Sub-terra, a morada das sombras.

Ele olhou em volta. O clima era fechado. O odor de mofo era quase putrefato e pairava no ar uma sensação de infelicidade muito grande.

-Essa é a casa do senhor Sombras. – Drácona informou erguendo os braços, tochas afixadas a parede se acederam e o loiro pode ver que a sua frente o que havia era uma criatura de pele quase cinza com um sorriso medonho que mais lembrava um rasgo. A pele estava enrugada em muitas partes.

-Quem é você? – ele temeu a resposta.

-Tenho vários nomes. Tantas facetas. Por isso, jovem mago, me chame de Enigma. – ela sorriu. –Somente eu poderia trazer de volta alguém do inferno. Eu que guardo as sagradas portas do inferno posso ter esse controle.

-Como fui ingênuo... Devia ter sabido. – ele se puniu. Mas se estava ali alguma coisa lhe seria pedida. Não daria de forma alguma.

-O eclipse das trevas está no fim. Hoje antes que o Sol se ponha eu terei meu corpo definitivo. – uma voz arrastada se espalhou pelo local. Um jovem de cabelos negros saiu das trevas sorrindo vitorioso numa expressão assustadora, vidrada. –Hoje ao fim do eclipse esse corpo será pare sempre meu, por isso, jovem, está aqui hoje. Usará seu poder para o mal, fará nascer dentro desse corpo às raízes que me eternizará como carne. – Sombras possuindo Wufei falou.

-Nunca. Nunca – Quatre gemeu sem ter muito que fazer. Não havia aprendido com Natal a usar os punhos, ou mesmo armas. Seu mestre e pai sempre dissera que a maior arma de um homem era seu coração e sua luz de espírito, o único problema era Quatre não sabia o que fazer com isso agora contra aquele inimigo.

-Você é igual a seu pai, moleque. Se ele tivesse colaborado não precisava ter morrido e nem precisávamos ter chegado a tanto. – Sombras falou sonhador. –Foi para usar a meu favor os poderes dele que eu me aproximei, mas ele nunca confiou em mim o suficiente. – falou. –Enviei minha serva fiel, Enigma, para roubar aquele poder, mas ela não podia entender a luz por ser das trevas... arhhh... Mas tanta coisa poderia ter sido evitada.

-Do que está falando? – o loiro estreitou os olhos.

-Idiota. Da vinda da Ametista, a chave do nosso mundo. Se eu tivesse forte o suficiente podia tê-la achado e ela teria me dito onde achar o salvador. Antes que seu mestre e Escarlate a enviassem para o mundo dos humanos. – ele falou. –Onde já seu viu enviar nossa chave para os humanos?

-Eles só fizeram isso porque aqui tinham muitos como você atrás do poder da chave para seu uso pessoal. Eles defenderam a Ametista o mandando para os humanos. – Quatre defendeu.

-Tolice. Eles quase o mataram... Aqueles humanos nunca o compreenderam. Nunca tiveram como entender o quanto o garoto era diferente. – Sombras acusou. –Já eu... Eu defenderia nosso mundo do conquistador. Mas não... Não. Natal achava que eu não agia de forma correta... Aquele sonhador nunca concordou comigo em nada. – ele falou.

Quatre abriu a boca algumas vezes, mas o som se recusou a sair voando pelos ares. Então o temido senhor Sombras, que vivia em busca da Ametista, queria apenas defender o mundo deles, como qualquer outro guardião? Mas porque matou Natal? Porque queria matar Duo? Porque era aliado do conquistador?

Estranhamente Quatre viu seu pensamento voar diante de seus olhos como uma lembrança saudosa de seu mestre Natal.

-Quatre. Quatre olhe as estrelas... Cada constelação forma um desenho lindo e diferente. Cada uma tem um significado e uma função, mas olhando daqui de baixo todas parecem ter a mesma função e apenas um único desenho. O manto estrelado que Deus criou para enfeitar a noite. – seu mestre lhe disse isso há anos atrás quando os dois observavam o céu estrelado.

-O que o senhor quer dizer, mestre? – Quatre era só um garotinho naquela época.

-Que nenhuma verdade é absoluta. Todos temos nossas verdades. Basta saber olhar com os olhos dos outros. Do ponto de vista de uma constelação ela é completamente diferente da outra, mas do nosso ponto de vista são todas uma coisa só. Às vezes nem todos são maus e nem todos são bons. Às vezes nem há inimigos apenas as situações nos colocam em lados opostos a outras pessoas. – Natal sorriu.

O loiro voltou à realidade daquela caverna abafada e putrefata. Sombras estava lá o olhando.

-Natal me preparou para esse encontro com você. – Quatre falou finalmente.

-Imagino que sim. Então? – ele esperava uma resposta. –Posso contar com você para me ajudar a vencer o conquistador? Vai me tornar esse corpo? – ele perguntou.

Se Sombras tivesse um corpo no passado ele teria agido sozinho na sua gana, jamais precisaria da magia de Natal. Mas como nunca conseguiu um corpo havia se arrastado nas trevas, e quando sentiu que o perigo estava próximo fez a única coisa que alguém das sombras faria: aliar-se ao inimigo e depois tentar destruí-lo. Mas e depois? Depois que ele destruísse o conquistador dos mundos e se apossasse de todos os milhares de lugares que a esse ser pertencia? Depois disso nem mesmo o salvador conseguiria refreá-lo.

Natal podia ter lhe dado vida em um corpo, mas nunca o fez, talvez tivesse a plena noção que aquele ser não merecia um corpo físico. Talvez existissem mesmo criaturas tão pequeninas que jamais saberia entender se sentisse como as demais. Como Sombras conseguiria entender a lógica do amor, tão simples em partes e em outras, a mais complexa das operações. Como ele conseguiria entender o que se passa no coração de um homem ou de uma mulher quando esses olham no fundo dos olhos da pessoa amada?

Não. Sombras não saberia entender isso... Ele ansiava sentir, porém jamais conseguiria entender.

-Você não entende o quanto vou ser forte se puder ter esse corpo. Eu almejo sentir... – ele falou teatral batendo no peito. –Eu quero um coração batendo aqui. – completou

-Eu sei o que quer. – Quatre sorriu. –Destruir o conquistador e em seguida o salvador. Quer o poder só para você. Assim como almejava a Ametista. Por isso Duo teve que ser mandado ao mundo dos humanos, longe de suas garras. – o loiro se aproximou. – Agora diz que quer sentir? Você teve boas oportunidades de sentir coisas boas, mas nunca quis, porque sempre esteve afundado em trevas. – ele falou em um tom poético. – Não é preciso ter um coração para sentir amor e compaixão. Isso está na alma, na essência. Esse corpo que você ocupa... Porque não tentou aprender com ele?

-Aprender? – Sombras não entendeu.

-Amar é a mais simples prova de bondade. Quando se ama se protege... Mesmo que isso nos custe a vida. – Quatre falou.

-Eu imaginei. Natal criou sua imagem e semelhança. – ele sorriu vendo que o loiro não estava colaborando. –Mas já que vou precisar de você. E infelizmente vou precisar muito. Eu lhe proponho o mesmo que propus a seu pai. Fique ao meu lado, eu lhe farei senhor do meu universo. – propus num ultimo esforço.

-Nunca. – Quatre falou com raiva. –Nosso pior inimigo sempre foi você. – o loiro falou se aproximando cada vê mais. –Embora você acredite que está completamente certo, como meu mestre me disse no passado, é uma questão de ótica.

-Entendo... – o mago estava convicto. Não o ajudaria.

-Seu pai teria feito o mesmo. – Sombras falou se movendo rápido demais para que Quatre pudesse notar.

Lá fora o vento soprava enquanto o dia ia vindo à tona, a luz novamente engolindo as trevas. O eclipse estava indo embora, mas Sombras não perderia essa chance. Rápido demais ele se moveu se lançando contra Quatre.

-O coração da vida. – Sombras gemeu quando atravessou com força o peito do jovem loiro.

A dor latente tomou os pensamentos do mago jovem. Bem como sua vida passou como um raio diante de seus olhos azuis. Borrões de lembranças imbuídas na dor. Novamente o sorriso de seu mestre e pai e as palavras dele o preparando para aquele momento.

-Bem ou mal. Certo ou errado. O que é real? No universo, Quatre pouca coisa é real. A bondade não é uma lição que eu possa lhe ensinar, ela é uma virtude e não há como explicar porque uns a tem e outro não. Pequeno aluno, se você for bom na sua essência jamais será tocado pelo mal.

-Mestre.

-Quatre onde houver luz haverá sombras. Uma não pode viver sem a outra. Só existe sombra onde há luz. Por isso lembre-se. Sempre que as sombras estiverem bem perto deixe que ela lhe toque... Sua luz imensa pode transformar a luz dela. – Natal sorriu.

A imagem de seu belo mestre lhe sorrindo foi perdendo a nuance até desaparecer de vez e o jovem ser ver na dor daquele acontecimento.

Estaria tudo acabado? Com um golpe fulminante Sombras havia tocado o coração de Quatre, o guardião do segredo da prosperidade. Por um instante foi como se o tempo parasse, como todo o movimento do mundo fosse interrompido por um breve momento. Como se a escuridão chupasse toda vida e luz daquele mundo. Em seguida aconteceu exatamente o contrário. De dentro do corpo de Wufei começou a sair uma forte luz, quente viva.

Ele se afastou de Quatre que estava sorrindo embora toda a dor.

-Co-como? – aterrorizado ele olhou em tornou vendo que seu mundo de trevas estava clareando. – Como? – gritou se encolhendo.

-Você tocou a fonte de luz. E a luz dentro de você se expandiu. – Quatre sorriu caindo. –Esteja feito... Cumpri minha parte nessa jornada. – ele fechou os olhos sabendo que seu sacrifício havia selado também a participação de Sombras na história de seu mundo mágico.

Enigma que apenas era expectadora olhou assustada para a luz que agora crescia ao redor do corpo de Wufei. Ela teria feito alguma coisa, mas a luz se alastrou rápida como um farol, ofuscando qualquer outra coisa, cegando e matando as sombras. Tomada também pela luz Enigma explodiu no ar assim como tudo ao redor... Evaporando numa energia luminosa.

Naquela ampla região a terra tremeu e se abriu deixando passar uma luz que se confundiu com o claro do dia novo que nascia. Um dia menos escuro e mais cheio de esperanças.


Ávila e Duo seguiam na subida para os picos, mas pararam olhando para o horizonte ao longe onde um tufão luminoso se dissipava no ar. Eles se olharam pesarosos sem entender os motivos... Mas sentindo que sua jornada ficava menos rica e mais grave.

-O sacrifício, pequena Ametista. É a maior virtude que se pode ter... – o guerreiro sorriu com lágrima nos olhos seguindo em frente. – Quatre sabia disso. – sorriu olhando para o céu.

-É seu sei disso também. A maior prova de amor que pode existir. – Duo gemeu tocando a cruz estampada no seu paletó. –No meu mundo... Essa é maior prova de amor que pode existir. – repetiu enxugando as lágrimas e correndo atrás de Ávila.

Sombras almejava o poder, queria a Ametista, a chave do seu mundo para usar em deleite próprio. Porém havia escolhido as armas erradas para alcançar tal feito e pagara caro por isso. Natal havia preparado seu filho para um duelo contras as trevas. Um duelo se vencedor aparente.

Muitos já haviam partido na jornada, estavam perto do fim. Ou do começo.


Triste e triste e triste... mas tinha que ser.
Chegando à reta final. Paciência, amigos!

Beijos sinceros,

Hina