SEXTO CAPÍTULO
- O que você quer que eu faça, Jack! Tem alguma coisa que me impede de continuar, sabe? Não, você não sabe! Você quer que eu esqueça? Quer que eu esqueça meu passado, o que eu fiz, o que eu fui, o que eu sou, tudo? – sua voz estava cheia de tristeza, mágoa, raiva, não dele, mas de si mesma. Chegara ao seu limite.
- Kate...
- Por que então você não me diz como eu devo fazer isso? Você acha que eu não quero me ver livre dos meus fantasmas? Era o que eu mais queria! Mas não é simples, eles continuam me perseguindo, quando eu acho que estou livre, eles aparecem! Eu não consigo! Eu não consigo esquecer que, Jack, eu matei meu pai, e matei justamente porque ele era meu pai! O que você acha disso? – as lágrimas agora corriam pelo rosto de Kate. Ela desistira de mentir, de se esconder. Jack poderia nunca mais olhar para ela depois daquilo, e teria motivos para isso, mas era impossível continuar agüentando aquela situação.
Jack estava sem reação. Devia dizer alguma coisa? O quê? Ela tinha matado seu próprio pai... estranhamente, não era aquilo que o chocava. O que o deixava perplexo era o fato de aquela revelação não ter lhe causado nenhum abalo... ele não se sentia enojado pelo que ela fizera. Mas Kate, aparentemente, interpretou de outra forma aquele silêncio.
- Isso fere os seus princípios, não? Isso vai contra a sua moral? É por isso, Jack, é por isso que eu fugi aquele dia... não é porque eu não queira, é porque eu não posso! – Ela chorava muito agora. Soluçando, sentou-se na cadeira ao lado da cama. Ele continuou de pé, observando-a, sem saber o que fazer. – Mas agora já não me importa o que você vai pensar... você queria a verdade, não queria? Toda a verdade. Então você vai ter.
Kate olhou para Jack. Ele parecia confuso, mas não fez nenhum gesto para impedi-la de começar. Ela agradeceu por isso. Tinha medo de que interrupções pudessem fazer com que desistisse do que já estava decidida a fazer. Suspirou. Aquilo iria doer.
- Ele nunca foi meu pai. Era meu padrasto, e só o que eu sentia por ele era ódio... e nojo. Ódio quando eu ouvia ele batendo na minha mãe, quase todas as noites. Ele chegava em casa bêbado, eu me trancava no quarto e ficava ouvindo. Sempre achava que no dia seguinte ela mandaria ele embora e estaria terminado. Mas de manhã, a única coisa de diferente nela era algum braço quebrado, algum hematoma no rosto... continuava tudo sempre igual. E nojo... nojo eu sentia quando via o jeito com que ele me olhava, o jeito com que sorria pra mim... aprendi, desde pequena, a fugir, a evitar qualquer momento a sós com ele. Vivia com medo, com raiva. Mas, ao menos, eu tinha Tom. – Jack lembrou-se então que Kate havia dito esse nome, no seu delírio, no dia anterior. – Ele sempre esteve do meu lado, me apoiando, me ouvindo. Era o único que sabia do meu padrasto. Meu pai... eu não queria magoá-lo, não queria estragar os poucos momentos que passávamos juntos... então não contava nada disso pra ele. Mas um dia eu soube. – Ela sorriu, como que rindo da própria desgraça, ao mesmo tempo em que uma lágrima escorria de seus olhos e ia recolher-se no canto de sua boca.
- Um dia eu soube. Wayne não era meu padrasto... era meu pai. Meu próprio sangue. Foi quando eu descobri que nunca, nunca na minha vida eu poderia ser alguém. Alguém de verdade. Porque ele fazia parte de mim, ele estava dentro de mim... com isso, eu não podia conviver. Então liguei o gás da cozinha. O deixei lá. Da moto, pude ouvir a explosão. E fugi.
Os olhos de Jack estavam cheios de lágrimas, mas Kate não havia reparado nesse detalhe. Ele sempre soubera... sempre soubera que Kate era uma vítima, e não uma assassina. Não entendia como ela não conseguia entender isso, como podia acreditar que não era uma pessoa boa... teve vontade de abraçá-la, beijá-la e lhe explicar que ela não feria seus príncipios, de nenhuma forma, que a única coisa que ela provocava nele não era ódio, era... nem ele sabia o que era, na verdade. Sabia apenas que sentia por tudo o que acontecera. E que nunca deixaria que nada de ruim voltasse a acontecer com ela.
- Passei muito tempo longe de casa, fugindo da polícia. Quando voltei... – o rosto de Kate contorceu-se ao reviver aquela memória. – Encontrei Tom... e ele foi morto, pelos policiais, tentando me ajudar. A única pessoa que se importava comigo tinha morrido por minha culpa.
Kate continuava sentada na cadeira. Soluçava, as mãos no rosto. Jack ajoelhou-se em sua frente.
- Kate... Kate, olha pra mim... – falou, segurando as mãos dela nas suas. Então, os olhos de ambos encontraram-se. Era como se tudo tivesse parado... não existia mais nenhum movimento, mais nenhum som ao redor deles... até os pensamentos pareciam estar congelados. Sim, eles não estavam pensando, estavam seguindo unicamente seus sentimentos, seus desejos, suas emoções. Quanto tempo ficaram parados, mãos e olhares unidos? Nenhum deles contou. Era como se o próprio tempo tivesse deixado de passar. Lentamente, as mãos de Jack chegaram ao rosto de Kate e foram o trazendo para perto, mais perto, mais, e mais.. até que os lábios dos dois se tocaram.
