Pessoal, eu tenho uma nova lista de atualização em português. Vejam o endereço no meu perfil. Desculpem se eu responder às reviews só com quatro palavras. Este arquivo não me deixa enviar mais do que isso.
Capítulo 2
Aparataram diante da "Posada del Clavero". Era um hotel rústico — as paredes externas deixando as pedras à mostra e tabuletas de madeira amareladas. Atrás do hotel, o rio Tormes corria, por entre campos verdes pontuados aqui e ali por frondosas árvores.
Entrando na pousada, eles se viram em um saguão amplo, todo em pedra. À esquerda, um quadro retratando um homem de cabeleira negra, nariz pontudo e bigodes retorcidos para cima, sorrindo com um ar zombeteiro e festivo.
Na parede oposta, à direita, ficava o balcão da recepção. Um senhor de óculos e cabelos grisalhos ergueu os olhos para eles, sorridente.
— Buenas tardes, señores! Espero que hayan tenido un buen viaje.
— Muy bien, gracias (1) — respondeu Snape.
Harry odiou ainda mais Snape por falar espanhol. Quando Harry telefonara, aquele mesmo senhor (Harry reconhecera a voz) falara com ele em inglês — com um leve sotaque, mas bastante fluência. Agora, como Snape falava com ele em espanhol, Harry ficava sem entender nada. Harry decidiu ficar calmo e não reclamar. Snape estava fazendo aquilo para aborrecê-lo, e ele não iria lhe dar esse prazer. Enfim, o senhor (que dissera chamar-se Alejandro Clavero, pelo que Harry pudera entender) entregou a chave do quarto a Snape e fez um cumprimento de cabeça na direção de Harry.
Snape o conduziu pelo corredor ao lado do quadro, até uma escada de madeira.
— Não há elevador, mas, por sorte, a casa só tem dois andares. O nosso quarto é no último andar de cima.
Nosso quarto. Era uma combinação bastante improvável de palavras, considerando-se que vinha da boca de Snape.
Ao final da escadaria, havia um corredor levando a cinco quartos; todos do mesmo lado, exceto o último, que dava de frente para o corredor. Era o quarto deles.
Snape abriu a porta, e Harry entrou atrás dele.
Era um quarto amplo e de aparência confortável, com as mesmas paredes de pedras à mostra e uma bela cama de casal em madeira de pinho antigo, com cabeceira alta e decorada em arabescos.
Snape deu um lento giro na direção de Harry.
— Você não disse que havia pedido duas camas?
— Eu pedi! Oh, droga. Vai ver que ele não entendeu o que eu falei. Vou lá embaixo agora mesmo reclamar e pedir que troquem, ou que, pelo menos, mandem uma cama extra.
— Deixe que eu vou. Você não fala espanhol.
Harry largou a mochila por sobre uma mesa redonda, também de madeira, e foi até a janela. Afastou a cortina e ficou feliz de ver que a janela dava para o rio — suas águas incrivelmente azuis correndo por entre as margens verdes, e as montanhas do outro lado. Abriu a vidraça para respirar o ar fresco. Uma brisa agradável acariciou-lhe o rosto.
Ainda estava à janela olhando para o rio quando ouviu a porta sendo fechando e voltou-se para Snape.
— E então?
— O señor Clavero se desculpou muito, mas disse que não tem nenhuma cama extra. Disse que o hotel está cheio porque os hóspedes vêm passar a Páscoa e ficam até a Lunes de Aguas. Disse que muitas famílias alugam só um quarto, para poupar despesas, e pedem camas extras.
— Mas... ele me disse, por telefone, que o quarto teria duas camas!
— Ele entendeu errado. Entendeu que você queria uma cama para dois.
— Grr. Que ódio. O jeito é transfigurar alguma coisa em uma cama, não?
— Eu não vou dormir em uma cama transfigurada. Como você sabe, objetos transfigurados são muito instáveis. Não quero correr riscos desnecessários.
— Ora, eu também não quero correr riscos desnecessários.
— Essa discussão é inútil. Vamos deixar nossa bagagem aqui e aparatar em Salamanca. Quem sabe esta noite um de nós dois morrerá; assim, não precisaremos passar por essa desonra que será dormirmos na mesma cama — disse Snape, com uma mescla de raiva e sarcasmo tão intensos que Harry ficou espantado.
— Sempre podemos esperar que, ao contrário, resolvamos o caso ainda esta noite e possamos voltar para casa.
— Otimismo Gryffindor: totalmente irreal. — Snape andou até o banco de pedra junto à janela, onde havia largado sua maleta. Abriu-a, retirou dois livros e voltou-se novamente para Harry. — Você está pronto?
— Estou.
Snape abriu um dos livros — era um guia mágico-turístico de Salamanca — e mostrou um mapa a Harry, apontando para uma área verde no centro da cidade, junto à antiga muralha romana.
— Está vendo este jardim?
— O huerto de Calixto y Melibea?
— Exato. É aqui que vamos aparatar. Dê-me seu braço.
— Por quê?
— É melhor aparatarmos conjuntamente, embaixo da sua Capa de Invisibilidade. Você a trouxe, espero.
Harry levou a mão ao bolso e extraiu a Capa, toda amassada. Snape a tirou bruscamente de suas mãos e, puxando Harry pelo braço, colocou-a sobre suas cabeças.
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Harry aparatou rente a uma moita de acanto, e os espinhos roçaram-lhe o traseiro. Por sorte a Capa e os jeans o protegeram. Snape estava a seu lado, confortavelmente pousado junto a um arbusto de folhas macias, que se encolheram ao seu toque.
Harry fuzilou-o com os olhos.
— O que foi, Potter, não escolheu bem o lugar onde pousar?
— Muito engraçado. Aposto que fez de propósito. Você é tão repulsivo que até a planta foge de você.
— É uma mimosa. Suas folhas são sensíveis ao toque.
Harry controlou a vontade de mostrar-lhe a língua e saiu de perto do acanto. Viu-se em um frondoso jardim com oliveiras, ciprestes, acácias, nogueiras, amoreiras, parreiras e mais centenas de árvores e arbustos cujo nome Harry não sabia.
— Esse lugar é lindo. Olhe só, uma fonte!
— Essa é a fonte em que Melibea teria conhecido Calixto e se apaixonado por ele.
— Você andou lendo romances? — perguntou Harry, em tom irônico.
— Fiz minha lição de casa, nos últimos dois dias: procurei me informar sobre todas as lendas da cidade.
— E como acaba essa história?
— Acaba mal para todos. Até para Celestina, o personagem mais interessante.
— Quem era essa Celestina?
— Uma cafetã e, aparentemente, mestra em poções. Foi ela quem fez Melibea se apaixonar por Calixto, dando-lhe uma poção.
Harry olhou para Snape com curiosidade.
— Pensei que você desaprovasse o uso de poções de amor.
— Desaprovo veementemente. — Snape ergueu uma sobrancelha. — Mas, considerando-se que Celestina era Muggle, suas habilidades eram admiráveis.
Harry não pôde deixar de sorrir. Voluntária ou involuntariamente, Snape às vezes era engraçado.
— Vamos. Não temos tanto tempo assim a perder — reclamou Snape.
— Para onde vamos?
— Para a Cueva de Salamanca, claro.
— Você não disse que só poderíamos entrar lá à noite?
— Vamos apenas verificar a localização, os arredores, enfim, mapear o local.
Snape seguiu pelo passeio por entre as árvores até chegarem a um mirante. De lá, eles podiam ver o rio e grande parte da cidade. Era uma bela vista.
Dali seguiram para a Cuesta de Carvajal, uma rua estreita formada por degraus de pedra desgastados, e que levava à Cueva de Salamanca.
Pararam diante de grades que barravam o acesso a um grande arco românico.
— Esta é a entrada do que foi outrora a Igreja de San Cipriano, uma das primeiras igrejas cristãs a serem erguidas quando Salamanca foi repovoada, no século XII. A igreja era encravada na muralha romana da cidade — explicou Snape, consultando seu guia.
— E a Cueva é a cripta dessa igreja.
— A igreja foi derrubada no século XVI, e a maioria de suas pedras foi usada na construção da Catedral Nova de Salamanca. Mas este arco resistiu, milagrosamente, junto com parte da sacristia e os 23 degraus que levavam à escuridão da Cueva.
— Fascinante.
— Outro dado fascinante, como você diz, é que São Cipriano era bruxo antes de se converter ao cristianismo.
— Quer dizer que ele foi uma espécie de traidor do Mundo Mágico.
— Creio que você pode considerar assim, do ponto de vista do Mundo Mágico. — Snape olhou ao redor. — Já vimos o que tínhamos de ver. Podemos voltar à pousada, esperar a hora do jantar, que deve ser por volta das dez horas, e...
— O quê? Dez horas?
— Os espanhóis costumam jantar tarde. Para nós, é o ideal, porque precisamos mesmo esperar que o sol se ponha para voltar aqui, e o sol só irá se por às nove horas.
— Mas é muito cedo. Se voltarmos à pousada, não teremos nada para fazer. Por que não vamos dar uma olhada na cidade? Nas catedrais, por exemplo.
Snape encarou-o com certo estranhamento. Parecia tenso. Mas logo seus lábios se curvaram em um esgar.
— Nunca pensei que pudesse se interessar por catedrais, sr. Potter.
— Tem muitas coisas que você não sabe sobre mim.
Eles seguiram pela Calle del Silencio rumo ao Patio Chico, que abrigava as duas catedrais. As ruas estavam cheias de turistas e jovens.
Era uma visão magnífica, as duas catedrais lado a lado. Snape lhe explicou que a Catedral Velha havia sido construída entre os séculos XII e XIV e mesclava os estilos românico e gótico. As construções românicas eram muito pesadas, e suas paredes tinham de ser muito espessas. As janelas precisavam ser pequenas para que as paredes pudessem ser resistentes e, assim, o interior das igrejas era muito escuro. Esse problema só foi resolvido com a chegada do estilo gótico, com seus arcos pontiagudos e grandes janelas em vitrais. O estilo gótico, especialmente o gótico flamejante, enfatizava a verticalidade e estruturas de pedra quase esqueléticas, com amplos vitrais. Assim, a Catedral Velha era uma estranha mistura de elementos pesados e leves.
O que mais impressionou Harry na Catedral Velha foi a cúpula, chamada de Torre del Gallo por causa da forma do cata-vento em seu topo. Snape lhe disse que a torre era construída sobre um duplo tambor octogonal, o que Harry não tinha a menor idéia do que fosse, e que possuía influências bizantinas. O que Harry podia ver era que a torre era guarnecida por torres menores, e que era coberta de escamas.
Snape descrevia os detalhes da Catedral Velha com palavras exóticas como "tímpanos", "jambas", "empenas" e "arcobotantes". Harry apenas suspirava e olhava para o céu.
A Catedral Nova era maior, e a havia sido construída apoiada sobre a parede norte da Velha.
— A Catedral Nova foi construída conservando a Velha, o que não era habitual naqueles tempos. Como foi construída entre os séculos XVI e XVIII, é uma mistura de gótico tardio e barroco — leu Snape. — A cúpula e a parte superior da torre campanário são barrocas.
Junto ao portão norte da Catedral Nova, Harry aproximou-se para observar as miniaturas esculpidas em longas faixas sobre a fachada. Havia touros, gárgulas, coelhos, porcos, um astronauta...
— Ei! Veja isso. O que um astronauta está fazendo em uma igreja do século XVI?
— Essas igrejas estão sendo restauradas a todo momento — explicou Snape, com uma expressão não muito convicta.
Harry sacudiu a cabeça, inconformado. Não achava que fazia sentido esculpir um astronauta na fachada de uma igreja gótica.
Entraram na Catedral Nova, já que o acesso à Catedral Velha também se dava pela Nova. A Catedral Nova era magnífica, com seu gótico flamejante de torres arrojadas, mas Harry ficou mais impressionado com a Catedral Velha. No altar maior da capela central, havia um conjunto deslumbrante de painéis retratando a vida de Cristo e da Virgem Maria.
— O que você sabe sobre esses painéis? — perguntou Harry a Snape, aproveitando-se de seu guia particular.
— É um retábulo, formado por 53 painéis pintados por Nicolás Florentino no século XV.
Na abóbada, um afresco em cores vivas retratava o Juízo Final, com Cristo conduzindo as almas condenadas às portas do inferno.
Harry ainda estava admirando o afresco quando um sino bateu nove horas.
— Estou com fome — disse Harry.
— Vamos voltar à pousada e ver se já estão servindo o jantar.
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Ao chegarem na pousada, o sr. Clavero recebeu-os com seu sorriso habitual. Disse-lhes que a pousada começava a servir o jantar às oito e meia todas as noites e encaminhou-os pessoalmente pelo corredor até o restaurante, sempre falando em espanhol com Snape.
O restaurante era um amplo salão em estilo rústico — as paredes de pedra banhadas pela luz dourada dos candelabros. O piso era revestido por azulejos, e o teto, em terracota cor de cobre. Um balcão coberto de potes de vidro de azeitonas e das mais variadas conservas protegia uma estante com vinhos e outras bebidas, e a entrada para a cozinha. Pendurados sobre o balcão, havia grandes pedaços de presunto e lingüiça de porco. Snape explicou-lhe que isso era tradicional por ali, e que a criação de porcos era a principal atividade da região.
Como era sexta-feira, contudo, os pratos do dia eram todos à base de peixe. Concordaram em dividir uma merluza con chipirones (merluza com lulas). Segundo a garçonete morena que não conseguia tirar os olhos de Snape, o prato dava para dois. Acompanhavam o prato vieras com amanitas (ou seja, repugnantes mariscos com champignons, na tradução de Harry, que nem quis experimentar aquilo), verduritas salteadas (legumes fritos na manteiga) e pasta fresca con setas (um delicioso macarrão com champignon).
Snape pediu um vinho branco, "Palacio de Rueda", e quando tomou o primeiro gole, fechou os olhos de prazer. Harry encarou-o com espanto e, refletindo a respeito, notou que nunca antes vira Snape demonstrar satisfação com nada.
— Sublime — murmurou Snape, em uma voz aveludada que provocou uma reação quase física em Harry.
Sua própria reação deixou Harry um tanto preocupado. Snape, por sua vez, via o espanto com que Harry o observava, e meneou a cabeça.
— Você é muito jovem para saber apreciar um bom vinho.
Aliviado porque Snape intepretara mal a sua expressão, Harry experimentou, enfim, a bebida capaz de exercer tal efeito em Snape e... não achou nada de especial.
— Pensei que você desprezasse as coisas Muggle.
Snape fuzilou-o com os olhos.
— É assim que me vê, claro. Como fui Comensal da Morte, você acha que eu comia bebezinhos Muggle fritos no café da manhã. Está completamente enganado a meu respeito, mas sei que não adianta nada eu dizer isso: você nunca deu o menor valor à minha palavra.
As palavras de Snape saíram com um ódio contido e contrastaram terrivelmente com o tom de um minuto atrás, quando ele estava apreciando o vinho e tratando Harry quase que amigavelmente. Após o susto inicial, Harry também se deixou dominar pela raiva. Ele não dissera nada assim tão terrível. E Snape sempre fora um canalha. Snape não tinha o menor direito de ficar ofendido com o que Harry dissera.
— Eu vi você xingando a minha mãe de sangue ruim.
Uma veia pulsou na testa de Snape.
— Você não sabe nada sobre mim, está entendendo? Nada! Você não faz idéia. Não fale do que não sabe.
— Eu devia saber que era impossível conversar com você amigavelmente. Que ingenuidade a minha.
Snape cerrou o punho da mão direita, como que prestes a perder o controle e partir para cima de Harry, mas em seguida o descerrou e continuou a comer, mantendo a cabeça erguida. Harry se sentiu mal, mas não conseguia entender por quê. Racionalmente, não via nada de errado no que dissera.
Continuou comendo, mas os pratos deliciosos pareciam ter perdido o sabor. Os minutos se arrastavam. Harry começou a se preocupar pensando que não era possível eles trabalharem juntos em meio àquela animosidade.
— Se não quer mais ir comigo até a Cueva, diga logo. Preciso saber.
— Esse caso não tem nada a ver com nossos sentimentos pessoais, Potter. Nós fizemos um acordo e eu irei cumpri-lo da melhor maneira possível. Como é meu hábito.
Harry sentiu a tensão se dissipar um pouco.
— Certo. Será que você poderia... me contar o que sabe da Cueva?
Snape havia terminado seu prato. Tomou mais um gole de vinho e serviu-se de mais um copo, como que para mostrar que não estava com pressa. Harry também terminou seu prato e aguardou, o mais pacientemente que pôde, resposta de Snape.
— Como você deve saber, a Inquisição foi devastadora para os bruxos desta região — iniciou Snape. — Todos os bruxos da época foram mortos ou precisaram se esconder. Isso fez com que a próxima geração de bruxos fosse totalmente desligada dos bruxos que aqui viviam antes da Inquisição. Os bruxos da geração nova não se interessaram em saber sobre a Cueva, talvez porque o local tivesse sido fechado pelos Muggles, talvez porque as lendas que os Muggles espalharam a respeito fossem ridículas demais.
— Por isso há tão poucas referências à Cueva em nossas bibliotecas?
— É o que imagino. Há referências apenas a Scot, talvez porque Scot fosse um bruxo importante, e de origem escocesa. Mesmo assim, quando se menciona a caverna em que Scot aprendeu magia, as referências são muito vagas. Por isso, a única forma que encontrei de saber mais detalhes sobre a Cueva foi pesquisar em fontes Muggle.
Harry olhou para Snape com desconfiança. Lá estava Snape falando dos Muggles outra vez. Onde ele queria chegar, afinal?
— E o que dizem os Muggles sobre a Cueva?
— Ah, são histórias fantásticas. Dizem que o diabo dava aulas de Magia Negra lá, pessoalmente. Durante sete anos, ele lecionava sete alunos. O pagamento era a alma de um dos alunos.
Harry esboçou um sorriso.
— Eu li sobre isso. E o tal do Marquês de Villena, que dá nome à torre junto à Cueva?
— A torre na verdade nunca pertenceu a Villena que, por sua vez, nunca foi Marquês. Villena era da baixa nobreza sem títulos e, ainda por cima, bastardo. Ele foi um dos alunos a quem o diabo ensinou, e que, ao final dos sete anos, foi sorteado para entregar sua alma a ele. Esse Villena era uma figura interessante. Aparentemente foi um homem muito inteligente e de vasta erudição. Foi escritor, tradutor e cirurgião; estudou matemática e astronomia. Sendo tão sábio, não é de surpreender que tenha sido condenado à prisão pela Inquisição, sob a acusação de praticar bruxaria e necromancia. Queimaram seus livros, e ele morreu no cárcere.
— Isso é horrível!
— Sem dúvida. Salazar Slytherin tinha suas razões para defender a segregação. Mas há tantos Muggles idiotas como há bruxos imbecis, e nem todos os Muggles são idiotas. Villena não era um bruxo. Era um Muggle que estudou muito, e estudou, inclusive, artes mágicas. Mas era um Muggle, tanto quanto os que o caluniaram e provocaram a sua morte. Quanto à Inquisição, com certeza foi um período negro para os bruxos, mas algumas lendas a respeito são exageradas.
— Pelas aulas de Binns...
— Binns é um péssimo professor. Não deve confiar em nada do que ele lhe ensinou.
Harry suspirou.
— Não me lembro de muita coisa mesmo.
Surpreendentemente, Snape esboçou um meio sorriso. Harry ficou mais animado e tomou mais um gole de vinho.
— O que mais você sabe sobre o Marquês?
— Dizem as lendas que, na hora que o diabo quis cobrar o que lhe deviam e pegar sua alma, ele se escondeu em um vaso dentro da Cueva.
— Ahahahaha! E o diabo não o encontrou?
— O diabo achou que ele havia fugido, e saiu correndo atrás dele. Assim que viu o diabo sair, o Marquês saiu correndo, e conseguiu escapar com sua alma, mas o diabo conseguiu agarrar sua sombra, e ficou com ela.
— A sombra?
— Sim. — Os lábios de Snape se curvaram em um sorriso entre irônico e divertido. — Em resultado, o Marquês percorria as ruas ensolaradas de Salamanca sem deixar nenhuma sombra nas calçadas.
Harry balançou a cabeça.
— Isso é surreal.
— Sem dúvida.
— Acha, então, que não há nenhum fundo de verdade nisso tudo?
Snape pareceu refletir por um momento. Depois fixou seus olhos em Harry.
— Eu acho que essa Cueva era um sítio mágico, talvez um antigo cemitério celta. Um lugar em que as pessoas se reuniam para discutir e praticar magia desde muito antes da Idade Média. A Schola Obscura foi apenas um dos grupos que se valeu da Cueva, na Idade Média. A Igreja Católica quis sufocar isso, apagar da mente das pessoas a ligação com a magia, e por isso ergueu uma igreja por sobre esse sítio mágico. Como isso não foi suficiente, a Inquisição queimou todos os livros que mencionavam a Cueva, e mandou murar o local.
— E será que hoje em dia há magos tentando recuperar a tradição da Cueva e da Schola Obscura?
— Creio que a Cueva nunca deixou de ser usada para atividades mágicas. É claro, no entanto, que nem todos os que a freqüentaram sabiam realmente o que estavam fazendo.
A garçonete aproximou-se para tirar os pratos e roçou os seios no ombro de Snape. Harry olhou para o teto, e Snape deu-lhe um sorriso entre malicioso e vaidoso. A garçonete ofereceu-lhes a sobremesa. Harry abriu o cardápio e pediu um Coulant fluido de praline de avellanas y chocolate blanco com helado de galleta. Snape pediu apenas um café com uma trufa de chocolate.
— Você ao menos sabe o que pediu? — perguntou Snape, enquanto a garçonete se afastava, rebolando levemente os quadris.
— Claro que sei.
Na verdade, Harry tinha apenas uma vaga idéia, e ficou feliz ao descobrir que era um petit gâteau de praliné de nozes com sorvete de chocolate branco e wafers em cima. Harry jamais comera uma sobremesa tão deliciosa. O chocolate branco não era doce demais, e o bolo tinha uma textura macia e crocante ao mesmo tempo.
Entretanto, aquela overdose de açúcar após o vinho o deixou sonolento.
— Potter, se você dormir à mesa eu irei fazer o que temos de fazer sozinho.
— Eu não estou dormindo! — resmungou Harry. — Tudo bem. Vamos logo, então.
Os dois se levantaram. Snape acenou para a garçonete, que lhe lançou um sorriso caliente. Eles saíram do salão para o corredor, subiram a escada e atravessaram o corredor de seu andar até chegarem ao quarto.
Lá dentro, Snape fez sinal para Harry que segurasse seu braço. Harry se rebelou.
— Escute, eu não sou mais seu aluno. Sou um Auror, e sei aparatar tão bem ou melhor do que você! Não precisa ficar me levando para todos os lugares.
— Eu estou no comando, lembra-se? Você vai aparatar conjuntamente comigo todas as vezes que eu achar necessário.
Harry suspirou e passou o braço ao redor do de Snape. Assim que o fez, Snape fechou o braço, segurando o braço de Harry junto à lateral do corpo, como para ter certeza de que ele não escaparia. Harry não pôde deixar de se surpreender com seu jeito possessivo e protetor. Snape era realmente um enigma que Harry não conseguia decifrar.
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Aparataram do lado de dentro da cerca de arame que circundava a igreja de San Cipriano, atrás do arco de entrada. Estava bastante escuro, pois não havia lua, e um tanto frio — Harry lamentou não ter levado nenhum agasalho mais quente para Salamanca.
— Aqui estamos — disse Snape, baixinho, soltando-lhe o braço. — Na Cueva.
Harry olhou ao redor com atenção. Era uma espécie de pátio em ruínas, com várias pedras caídas e muito entulho.
— Mas isto é apenas um pátio!
— De fato, não parece haver nada aqui — Snape caminhava pela cripta, com a ponta da varinha acesa. — Mas... eu sinto a força da magia. Você não sente?
Harry fechou os olhos para se concentrar melhor, e sentiu uma vibração nos ares.
— Sinto alguma coisa, sim.
Snape caminhou até uma construção de pedras.
— Esta é a Torre de Villena. Ela fazia parte da antiga muralha romana, que protegia a cidade contra invasores.
Harry se aproximou. As pedras caídas bloqueavam a visão de qualquer coisa dentro da chamada torre.
— Há magia de séculos concentrada aqui — murmurou Snape.
Por um instante, Harry entrou no espírito poético que parecia ter dominado Snape. Mas logo preocupações mais práticas o assaltaram.
— Muito emocionante, mas o que vou dizer para Robards, o meu chefe?
— Se não encontrarmos nada aqui, provavelmente eles enviarão esquadrões e destruirão tudo, até o centro da Terra — declarou Snape, em tom mais alto que o normal. — Não vai ficar pedra sobre pedra.
Harry o encarou com perplexidade.
— Acha mesmo?
— Tenho certeza. Eles vão querer fazer uma grande encenação para dizer que havia aqui um grupo de bruxos das trevas que precisava ser exterminado, e destruirão todo o local.
Harry ia argumentar que não era assim que o Ministério costumava agir, mais para contradizer Snape do que por convicção, quando um brilho prateado iluminou o interior da Torre, e uma figura começou a se materializar diante deles.
Parecia ser o fantasma de um homem alto, magro, de cabeleira negra e bigodes retorcidos para cima.
— Estou desapontado. Pensei que vocês fossem bruxos civilizados — disse ele, em um inglês perfeito, com um leve sotaque castelhano.
— Marquês de Villena, presumo? — indagou Snape.
O homem fez uma ampla mesura, sorrindo.
— Ao seu dispor.
Harry achou que o conhecia de algum lugar, mas não conseguiu se lembrar de onde.
— Er... Sr. Marquês, desculpe-me a minha indiscrição, mas como é que o senhor fala inglês?
— Sr. Potter, só porque estou morto não é razão para que não aprenda novas línguas! Não sei se sabe que fui tradutor quando era vivo...
— Oh, sim. Desculpe-me a ignorância: não sabia que os fantasmas podiam aprender línguas.
— De fato nós, fantasmas, somos muito conservadores: em geral, continuamos a fazer o que fazíamos em vida. Eu aprendia e praticava línguas; continuo a fazê-lo.
— Por que acha que não somos civilizados? — perguntou Snape.
— Bruxos civilizados destruiriam sem mais nem menos um templo da magia?
— Ah, mas aparentemente tudo não passa de lenda. Não vejo nada aqui a ser preservado. Só vejo pedras.
— A mais profunda magia opera no invisível, cavalheiros!
Harry estava cada vez mais desconfiado. Mas Snape agia com naturalidade, como se já esperasse o que estava acontecendo.
— Precisamos de provas concretas, Marquês.
— Se eu fosse vocês, não mexeria com assuntos tão perigosos — declarou o Marquês, em tom mais enigmático do que ameaçador.
— Quer dizer que aqui é, realmente, um portal de comunicação com o demônio? — indagou Snape.
— Não devo revelar nada a esse respeito. Como vocês sabem, é necessário que se faça um pacto previamente.
— Você está nos propondo um pacto com o demônio? — perguntou Harry.
— Eu? Não. Mas se vocês querem mesmo encontrar com Ele, saibam que o preço é bastante alto.
— Você nos levaria até Ele? — perguntou Snape.
— Venham aqui amanhã à meia-noite e eu os conduzirei... ao seu destino.
— Por que amanhã? Por que não hoje? — insistiu Snape.
— Oh, creia, não é por mim que lhes digo que voltem amanhã... É por vocês. Para que tenham tempo de refletir a respeito do acordo que estão prestes a fazer.
Com estas palavras, o Marquês se dissipou nos ares.
De repente, a noite pareceu mais fria e mais escura do que nunca. Snape se aproximou de Harry e segurou-lhe o braço.
— Vamos voltar à pousada.
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Ao chegarem ao quarto, Harry foi para o banheiro tomar uma ducha. Quando saiu, já trajando seu pijama, encontrou Snape confortavelmente instalado na poltrona, lendo. Snape se levantou, guardou o livro em sua maleta, e foi para o banheiro. Harry ficou olhando para a cama, morrendo de cansaço e sem saber o que fazer. Acabou afundando na poltrona
— Potter. Acorde.
Harry abriu os olhos e demorou a entender por que havia um Snape diante dele, e de camisola, ainda por cima.
— Uh...
— Eu seria plenamente capaz de dormir a seu lado sem que nenhuma parte do meu corpo tocasse o seu, mas como você está nitidamente aterrorizado com a perspectiva de que esse contato repulsivo possa vir a ocorrer, armei uma barreira divisória mágica na linha central da cama, e arrumei os dois lados da cama separadamente, cada um com um lençol e um cobertor.
Harry se sentia confuso. Snape parecia realmente ofendido e até magoado, e Harry entendia por quê. Harry parecia estar sugerindo que Snape poderia atacá-lo sexualmente, e isso, com certeza, era ridículo. Racionalmente era absurdo, Harry reconhecia isso. Mas havia uma parte de Harry que não tinha tanta certeza assim.
— Onde você encontrou outro lençol? — perguntou Harry, decidindo desviar o assunto para detalhes menores.
— Telefonei para a portaria e mandei que trouxessem um.
— Ah. Tudo bem.
Talvez porque Harry não houvesse soado muito decidido, Snape murmurou, em seu tom mais baixo:
— Pode testar a barreira o quanto quiser.
Harry quase disse que não precisava fazer isso, que confiava em Snape, mas um demônio interior o levava a querer contrariar Snape. Aproximou a mão da barreira e verificou que não conseguia ultrapassá-la. Snape o fuzilou com os olhos, com certeza zangado por ver que Harry continuava não confiando nele.
— Estou vendo que eu não consigo romper a barreira, mas e quanto a você? Como posso ter certeza? Talvez eu deva colocar minha própria barreira.
Snape parecia a ponto de explodir.
— Faça o quiser, Potter. Só me deixe dormir, porque estou cansado. Não se esqueça de que estou aqui lhe fazendo um favor. Você não precisava fazer toda essa cena só para mostrar a repulsa que sente pela minha pessoa. Nós dois sabemos muito bem quais são os seus sentimentos em relação a mim.
Snape entrou embaixo dos cobertores, ocupando o lado direito da cama. Sentindo-se culpado e sem saber por quê, Harry aconchegou-se no lado esquerdo.
sSsSs
Continua...
Nota: (1) tradução
livre (obrigada a Ana Granger e Jessy Snape pela ajuda com o
espanhol):
— Boa tarde, senhores. Espero que tenham feito boa
viagem.
— Muito boa, obrigado.
