CAPÍTULO 3: A DERRADEIRA VIAGEM.

- Está uma delícia, não acha? Mas nada se compara com este momento... O que importa é estarmos juntos, novamente! Fomos abençoados com a chance de um novo começo, uma nova vida... Longe de tudo e de todos que podiam atrapalhar a nossa felicidade, meine liebe Eliza! - Exulta Faustus VIII, sorvendo de sua taça de vinho, aparentemente gozando de um raro momento de paz.

A jovem loira o fita - totalmente embevecida - como se entendesse o que se passava na alma do seu noivo, embora não dissesse nada. Palavras eram poucas para definir aquele momento único.

Embora não tivesse desistido de suas pretensões de se tornar o futuro Shaman King, no momento, tal ambição era a última coisa que Faustus estava pensando. Ele e sua amada desejavam apenas desfrutar daquele momento único a dois, no aniversário do enlace matrimonial de ambos.

Contudo, um breve lampejo no olhar do jovem pálido indicava que ele estivera recentemente ampliando seus poderes. Para ele, pouco importava a incômoda lembrança daquele moleque japonês ridículo, o seu amigo anão e aquele samurai fantasma, bem como do arrogante pivete da China - que o atacara traiçoeiramente pelas costas tempos atrás.

Várias semanas haviam se passado. Os pergaminhos e livros de magia negra que seu ilustre ancestral havia deixado já haviam sido compreendidos, e, as negras artes cabalísticas - praticadas, aperfeiçoadas e dominadas. Neste meio tempo, o necromante alemão havia ampliado em muito seus poderes mágicos e não seria surpreendido de forma tão fácil como daquela vez. No próximo duelo, o feiticeiro germânico lhe iria mostrar um ou dois truques novos. Afinal de contas, a magia oriental era de pouca valia perante o poder massivo das Portas Infernais!
Compreendendo o que se passava, Eliza sorri de forma discreta e compreensiva para Faustus, que estava novamente com o olhar voltado para aspirações infinitas. Ele torna a sorrir de novo para ela, da forma que somente os corações mais apaixonados poderiam fazer.
Afinal de contas, mais do que a mulher amada, a jovem de aspecto frágil e sorriso encantador era a razão dele viver. E o calor que ele sentia neste momento dentro de seu coração frágil era bem diferente daquelas lembranças daquela tarde desoladora...

(início do Flashback)

"Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais dirás: Não tenho neles prazer;
antes que se escureçam o sol, a lua e as estrelas do esplendor da tua vida, e tornem a vir as nuvens depois do aguaceiro;
no dia em que tremerem os guardas da casa, os teus braços, e se curvarem os homens outrora fortes, as tuas pernas, e cessarem os teus moedores da boca, por já serem poucos, e se escurecerem os teus olhos nas janelas;
e os teus lábios, quais portas da rua, se fecharem; no dia em que não puderes falar em alta voz, te levantares à voz das aves, e todas as harmonias, filhas da música, te diminuírem;
como também quando temeres o que é alto, e te espantares no caminho, e te embranqueceres, como floresce a amendoeira, e o gafanhoto te for um peso, e te perecer o apetite; porque vais à casa eterna, e os pranteadores andem rodeando pela praça;
antes que se rompa o fio de prata, e se despedace o copo de ouro, e se quebre o cântaro junto à fonte, e se desfaça a roda junto ao poço,
e o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu
". (Eclesiastes, Capítulo 12, Versículos 1-7)

A pequena multidão - vestida de preto e roxo - acompanhava a pregação, no pequeno cemitério localizado atrás de um bosque em cima de uma das colinas que circundavam a cidade. Embora as flores e o verde do gramado convidassem ao repouso, nada mais podia ser desolador do que a paisagem humana.

Por consenso geral dos familiares e parentes, o culto era ecumênico. Agora era a vez do pastor da principal igreja da cidade fazer o seu discurso, baseando-se nas palavras escritas pelo autor bíblico há séculos atrás. A grande maioria dos presentes refletia ou pelo menos, tentava refletir, nas palavras da Escritura, embora muitos não fossem exatamente religiosos. Talvez, em parte por causa do respeito devido ao ministro da igreja, ou talvez, em memória à falecida.

Contudo, apenas para uma pessoa, tais palavras pouco ou nada significavam naquele momento. Derramando lágrimas amargas junto ao caixão lacrado, um inconsolável Faustus VIII permanecia no inferno particular aonde fora arremessado pela mão negra do Destino. Ele chorava convulsivamente e não havia ninguém naquele lugar que pudesse dirigir-lhe alguma palavra de consolo.

Pois o Sol da sua vida havia se apagado. A Lua estava ensombrecida e não havia estrela alguma que alumiasse seus caminhos. O frio de prata que mantinha a sua sanidade estava para se romper e o copo de ouro de suas esperanças foi irremediavelmente trincado, de uma formal cruel e caprichosa. O cântaro das esperanças havia sido destruído e a roda da vida havia desaparecido, no meio das trevas.

O pobre ministro de Deus tentava encontrar forças para continuar falando de forma pausada e coerente, mas era uma tarefa inglória - devido ao fato dos gritos desesperados do jovem loiro junto ao caixão sobreporem-se à esperança das palavras que ele tentava comentar. Em seu olhar, encontrava-se perplexidade e confusão, como que admitisse a futilidade de buscar motivos num desígnio aparentemente predeterminado.

Mal terminou de recitar o texto bíblico, um dos familiares de Faustus faz um sinal discreto e o pastor cede lugar ao idoso sacerdote católico que estava ao seu lado, e que havia sido chamado de última hora. O padre, devidamente paramentado, fecha os olhos por um instante, como que buscando algo além de si mesmo e acaba abrindo uma página do Novo Testamento, mais exatamente num trecho de uma epístola escrita por Paulo de Tarso, como que se fizesse contraponto ao dolorosamente realista texto do Eclesiastes:

"8-Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados;
9-perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos;
10-levando sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo.
11-Porque nós, que vivemos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal.
12-De modo que, em nós, opera a morte, mas, em vós, a vida
".

(II Coríntios, Capítulo 4, Versículos 8-12)

Um pouco distante da pequena multidão, Doktor Krause observa a dolorosa e deprimente cena, com o seu olhar clínico: A maioria dos presentes se compunha dos familiares e parentes próximos de Faustus e da falecida, como era de se esperar.

Afora os dois religiosos e de uns poucos funcionários do cemitério, haviam pouquíssimos colegas de escola do seu amigo e da falecida e alguns conhecidos - prova cabal de que a vida social de seu amigo era pouco mais que um zero à esquerda, a despeito de sua fama e perícia comprovadas como médico cirurgião.

O padre era um velho conhecido de Krause. Seu nome era Lucas Schwarz e era o mesmo que havia celebrado o casamento da falecida anos atrás. Amigo de longa data dos pais de Eliza, ele a conhecia desde quando era bebê, tendo acompanhado boa parte da vida da moça e o seu calvário particular. Padre Lucas era um homem alto, magro, com os cabelos grisalhos corretamente penteados para trás. Dotado de uma aparência séria e algo severa, mas que desarmava corações com a mansidão de sua voz e seu olhar compreensivo.

O idoso sacerdote deveria estar sofrendo intimamente o mesmo tanto que o pobre Faustus, pensava Krause com seus botões. De fato, o padre Lucas sabia mais do que ninguém a "via crucis" que tinha sido a infância e adolescência de Eliza, condenada prematuramente a uma vida curta e sofrida, devido a um mal incurável de origem desconhecida.

Foi somente com as pesquisas e os esforços quase sobre-humanos de Faustus que ela conseguiu ser curada. E tudo isto Lucas havia acompanhado, até o dia em que ela obteve alta do hospital e de quando os dois se tornaram noivos. E deveria ser esmagadora para o padre Lucas a sensação de constatar a fragilidade dos desígnios e projetos humanos perante a vontade do Criador, ao ver aquela jovem doce e meiga - tão cheia de vida - inerte dentro de um caixão lacrado, preparado para a última viagem.

Krause temia pelo pior quando chegasse o final dos ritos fúnebres e a hora dos funcionários enterrarem o caixão debaixo daquela ferida aberta em meio ao gramado verde. A reação de Faustus seria a pior possível - pensava ele - baseando-se no ocorrido na noite anterior. Sinceramente ele receava ter que usar o fatídico estojo que carregava dentro do casado – a pedido da família - contendo uma seringa e ampolas com tranqüilizantes.

Contudo, nada de grave aconteceu. Abraçando o caixão pela última vez, Faustus VIII balbuciou algumas palavras de despedida – com uma ternura indescritível - e em seguida permitiu que os funcionários do cemitério fizessem a sua derradeira tarefa. Entre lágrimas silenciosas, ele se afasta do local do túmulo sem ao menos olhar para trás.

- F-faustus? – Pergunta Krause, aproximando-se dele e indagando se o seu amigo e ex-colega precisava de ajuda. Antes mesmo que consiga estender a sua mão para ampará-lo, o infeliz médico balbucia algumas palavras.
- E-está tudo bem... E-ela está... em paz. Agora, por Favor, quero ir embora... – Sussurra Faustus de maneira quase imperceptível, como que tentasse controlar a avalanche de impressões e sentimentos conflitantes em ebulição no interior de sua alma.
- Faustus! - Percebendo tarde demais, Krause tenta amparar o jovem médico, mas em vão. Um murmúrio de susto percorre entre os presentes, no exato momento em que o rapaz cai, sem sentidos, no gramado do cemitério.

O pesadelo estava apenas começando...

(Final do Flashback).

Notas do Capítulo:

01- Este trecho da fic foi escrito entre Abril e Maio deste ano, mas a forma final veio apenas à tona agora em Agosto, após vários contratempos e imprevistos.

02 - Neste capítulo, coloquei algumas referências a acontecimentos do storyline original de Shaman King, mas apenas para situar cronologicamente a fanfic em algum momento posterior ao primeiro confronto entre Faustus VIII e Yoh. Contudo, deixo avisado aos leitores que esta vai ser uma das poucas concessões feitas nesta fic, como se verá nos capítulos seguintes.

03 -Mais um personagem que não figura na série adicional foi adicionado neste capítulo, o Padre Lucas. Pretendo descrevê-lo de forma mais elaborada num outro capítulo, mas a idéia básica foi detalhar e enriquecer o "background" da história, além dos limites da série original. O papel de Lucas na tramaserá discreto, mas surpreendente, posso garantir isto aos leitores. Deixei uma "pista" no significado do sobrenome do sacerdote. Quem viver, verá.

04 - Penso que todos aqueles que gostam e escrevem fanfics deveriam se esforçar em desenvolver personagens secundários próprios para adicionar mais dinamismo e originalidade à trama, desde que mantenham-se as linhas gerais da série de origem. E como a série "Shaman King" é rica em personagens secundários, não poderia deixar escapar esta oportunidade.

05 - Atendendo a pedidos, pretendo retomar várias fics que estavam paradas a tempos. Entre elas, "Despedida" (Pet Shop of Horrors / Love Hina) e a Love Hina Endless Fantasy.

06 - Mais uma vez, agradeço de coração à Márcia, queacreditou nesta fic desde o princípio e me incentivou a continuá-la, apesar de todos os problemas e obstáculos. E como sempre, comentários e sugestões serão mais do que bem vindos. O e-mail de contato é: em: Abril-Maio de 2005

Última Revisão: 26 de Agosto de 2005

Autor: Calerom

Colaborou: Márcia.