CAPÍTULO 5: FAGULHAS AO VENTO.

De volta ao presente:

- Mein liebe Elise,você sempre foi o meu amparo nas horas difíceis. Lembro-me que quando eu voltava para a casa – chorando por ter sido ridicularizado pelos alunos da escola – você era sempre a primeira a me consolar... Com o seu sorriso encantador e a sua paciência divina! - Dizia Faustus à sua acompanhante enquanto se servia do vinho especialmente escolhido para aquela ocasião especial.

Mas não era o vinho, muito menos os deliciosos pratos daquela ceia o seu objeto de interesse, mas sim a presença daquela jovem de longos cabelos esvoaçantes e de olhar marcante, que fazia mais um ano de "vida" Apenas o seu fiel cachorro servia como única testemunha do raro momento de paz e de intimidade daquele casal.

- Será que porventura a gente chegou a brigar ou ao menos discutir uma vez na vida, como outros casais, Elise? Não, talvez não... Você era muito doce e paciente para compreender meus defeitos e limitações... Mas talvez devo lhe fazer uma pequena confissão... Uma vez cheguei a me exasperar por você não estar perto de mim. Peço que me perdoe, minha princesa, pela minha fraqueza demonstrada naquele dia... - Continua a monologar o jovem elegantemente vestido, enquanto que começava a acender as velas que estavam em dois castiçais de ouro na mesa de jantar.

De fato, estava começando a escurecer, e logo apenas as estrelas e as luzes bruxuleantes das tochas acesas pelo castelo fariam companhia aos dois amantes.

Terminando de acender a última vela, o olhar de Faustus VIII se fixa na pequena chama, como se voltasse no tempo e no espaço.

Flashback:

O cheiro de fumaça começava a impregnar o ar ao redor daquele edifício neoclássico aparentemente deserto.

À medida em que aquela massa de ar cinzento ia ascendendo, cinzas ainda ardentes esvoaçavam ao redor daquelas duas sombras, tentando ganhar os céus, mas em vão. Tão efêmeras quanto a vida daquela jovem, as faíscas apagavam-se , voltando a cair lentamente no gramado.

A surpresa de Krause fora completa. De todas as coisas que ele cogitara naquele instante, o que ele via era justamente a que julgava mais impossível de acontecer.

-V-Você! M-mas como? – Disse Doktor Krause, recuando dois passos, ao reconhecer o vulto havia entrado no que seria o consultório de seu amigo.

- Hihihihihi (Hic!), como vai, meu velho amigo Krause? Surpreso em me ver? - Pela primeira vez, o veterano médico alemão sente o cheiro de bebida alcoólica, dentre tantos outros das coisas esparramadas e jogadas naquela fogueira. Ele estava literalmente sem palavras.

- Eu... Não sabia que... .

- Talvez imaginasse que eu estivesse numa camisa de força (Hic), tomando doses maciças calmantes junto com todos aqueles loucos... – Sem ao menos olhar para trás, a figura alta e magra continua a mecanicamente jogar os souvenirs e lembranças que acumulara nos últimos anos, nas chamas purificadoras da fogueira acesa.

A visão surreal proporcionada por aquela fogueira, apenas evidenciava mais o estado decadente daquele genial médico, outrora cheio de ideais e esperanças.

Exalando um forte "bafo" de álcool, Faustus estava muito mais magro do que o habitual e com a aparência terrivelmente suja, com os cabelos desgrenhados, a barba mal feita e com as roupas completamente amarrotadas.

A expressão do seu olhar manifestava uma falsa euforia, mesclada com o esgotamento provocado pela insônia e o tratamento que sofrera.

E, se estivesse mais claro, Krause teria reconhecido as marcas de várias "picadas" de injeções e de sondas nos braços pálidos daquele que foi o seu ex-colega de faculdade.

- Faustus! Então você... você... – Ainda atônito, Krause conhecia os procedimentos das clínicas psiquiátricas e sabia perfeitamente que para o seu amigo estar na sua frente sem ter tido notificação de alta... algo de muito sério deveria ter ocorrido.

- Heheheh... até que foi simples! Eu... simplesmente saí "de carona", pela porta dos fundos após ter entregado a propina ao pobre Jeremy, o responsável pela lavanderia... Tive que mentir para minha família para me enviar aqueles mil e tantos euros, mas aquele lugar estava simplesmente entediante. – Explica Faustus, ainda de costas, sem demonstrar a menor emoção ou remorso. Seus olhos focavam apenas o vazio, ignorando a presença de seu colega e amigo.

- Eu... não sei o que dizer... Lamento por tudo... – Krause está confuso demais para poder reagir de forma racional. Se fosse um paciente que tivesse perdido um familiar, seria muito mais simples explicar para ele as coisas e prepará-lo para aceitar a realidade inevitável da morte. Mas a figura que estava perto dele não era um paciente comum..

- Pfeh... Acabei de brigar com Elise. Por isto eu tive que voltar aqui para me.. – Subitamente a expressão do rosto do jovem loiro muda e passa da indiferença apática para uma, de ressentimento e amargura.

- O-o que v-você está falando, Faustus? – Para Krause, era evidente que o esposo de Elise ainda não aceitara a morte dela.

- Ele estava naquela fase de "negação" da morte, relativamente comum nos casos de familiares que perderam algum ente querido por causa de falecimentos traumáticos e que era mencionada em alguns livros e artigos médicos que lera .

Em termos práticos, isto equivalia a dizer que Faustus ainda não havia assimilado a morte de Elise e que estava criando uma fantasia como se ela estivesse viva, num esforço mórbido para racionalizar o seu sentimento de impotência e de culpa.

- É isto mesmo. Telefonei para a Elise nesta madrugada, antes de chegar na cidade. E ela me disse que eu era um incompetente imprestável. Ela ficou de cara amarrada comigo e depois de ter chorado, implorado por ela, ela desligou o telefone! Como pode isto ter acontecido? - Subitamente, a voz embargada do homem pálido e loiro muda abruptamente e ele começa a chorar convulsivamente.

- F-faustus, por favor, você precisa de...

- Eu não preciso de ajuda ou da compaixão alheia, Krause! E você, mais do que todos os outros, deveria saber disto! - Faustus fica irritado e começa a jogar com mais força as lembranças do seu efêmero casamento e as fotos que ele possuía de sua amada no fogo.

- Mas tudo isto... São as lembranças que você e a Elise construíram durante todos estes anos... Mas... Por quê? - Percebendo que o seu amigo de faculdade estava delirando e que o tratamento psiquiátrico não surtira efeito, Krause resolve apelar para as emoções. Ele era um dos poucos colegas de Faustus que sabia da sua verdadeira motivação para ter estudado medicina com tanto ardor e afinco. E havia conhecido pessoalmente Elise, sabendo o quanto ela era especial.

- É o fim... o fim de uma era. Mein freund... Não há como voltar atrás... Mas... eu... - Tendo esgotado a sua raiva e suas lágrimas, Faustus VIII sente o cansaço e o esgotamento apoderar-se de seu corpo debilitado. Apenas a prontidão de Krause o impede de tropeçar e cair em direção à fogueira.

- Faustus... - Murmura Krause enquanto ampara o seu ex-colega e amigo. Ele não sabia a decisão mais correta a tomar naquele momento, já que o jovem de cabelos loiros pálidos estava oscilando entre a dor da perda e o delírio mais completo.

Embaraçado pela sua queda e a inesperada ajuda, Faustus se ergue. Lágrimas correm dos seus olhos e as palavras lhe escapam. Ele ia dizer algo para Krause quando subitamente ele fita o céu, imenso e adornado por uma infinidade de astros, e vê uma estrela cadente riscar com a sua luz efêmera um instante.

Seria um sinal? Ou um aviso?

- Meine Elise irá voltar para mim! Novamente!... Sim, eu sinto isto dentro do meu coração! Da minha alma! - O seu coração incerto e desiludido ganha novas forças, desconcertando a Krause, que não tem coragem para dizer a triste verdade.

- Por favor, s-sei que é muito difícil dizer isto, mas... - Krause hesita. Primeiro por não saber da reação exata que Faustus iria ter, já que ele foi capaz de se alternar da depressão mais profunda à negação da realidade mais completa.

Por outro lado, já era tarde da noite e ele teria um dia cheio pela frente, tendo que organizar as escalas dos plantões do hospital. Diabos, ele não podia deixar o seu colega naquele estado deplorável sozinho neste lugar, pensava consigo mesmo, mas um misto de prudência e egoísmo próprio o motivava a retornar para sua casa.

Primeiro, porque era impossível conversar, explicar ou consolar Faustus no estado mental em que ele se encontrava. Depois ele sabia que desde os tempos de colégio, que por trás daquele exterior frágil e desamparado, se escondia uma alma obstinada, que somente acreditava naquilo que lhe dissesse respeito. Depois, de qualquer forma, ele não era nenhuma criança e tinha os seus pais e parentes para lhe prestar ajuda no que fosse necessário.

Mas, antes que fizesse menção de ir embora, é precisamente Faustus que lhe dirige a palavra.

- Krause, meu velho amigo e colega, aliás, o ÚNICO que tive até hoje... Por tudo que é sagrado, poderia me fazer um favor? - Diz humildemente Faustus, com um olhar denotando respeito e reconhecimento. Bem diferente do desdém delirante do momento em que fora surpreendido queimando seus objetos pessoais, bem como os pertences do casamento. Ou da fúria exaltada seguida de abatimento profundo de agora a pouco.

- O que foi, Faustus? - Indaga Krause, tão curioso quanto surpreso, ao notar que a conversa mudara de rumo.

- Depois de amanhã, eu devo... voltar a trabalhar! Por favor, diga à minha secretária para re-agendar as consultas que foram canceladas! Poderia fazer este favor ao seu pobre amigo?

- Faustus... Eu... O problema é que... - Hesita Krause, ao recordar mentalmente que ele próprio assinara a licença médica de Faustus, de duas semanas e prorrogável por mais duas, se fosse necessário. Um outro médico havia sido designado para substitui-lo nas cirurgias e consultas já marcadas. Sem falar que ele próprio considerava que era mais prudente deixar Faustus longe das "garras" do diretor do Hospital.

- Eu.. eu vou superar isto, Krause! Por mais doloroso que seja, tudo vai ficar bem! Eu Prometo... - Torna a insistir o jovem médico de compleição pálida, como que subitamente recuperado de sua crise depressiva.

- Ok. Vou ver o que é necessário para você voltar à ativa. Agora, com sua licença, eu preciso voltar para minha casa.

Depois de um rápido abraço, Krause volta para o seu carro e parte. Mas não antes de notar que um vizinho furioso começasse a reclamar para Faustus do incômodo causado pelo súbito fogaréu no jardim.

Sua mente estava tentando ainda assimilar o significado das palavras de Faustus. Seria um indicativo de uma tentativa desesperada para esquecer a tragédia através do trabalho? Ou o começo da aceitação dos fatos? De qualquer forma, ele teria um dia longo pela frente...

Por mais que conhecesse de perto a realidade da morte e das perdas que ela acarretava, Krause ainda optava pela vida. E não abriria mão do caminho que escolhera.

FIM DO CAPÍTULO 5

Escrito por: Calerom.

Londrina., 28 de Agosto de 2006.