Cap. 3 – O Fogo e o Gelo
Fazia um tempo frio e úmido naquela segunda madrugada de Grécia. Era mais ou menos 4:30 da manhã, pelos cálculos de Másquera, e já fazia bem uns quarenta minutos que aguardavam em pé por algo que não faziam a menor idéia do que poderia ser. Haviam sido acordados da mesma maneira simpática da noite anterior, no mesmo horário um tanto quanto inconveniente. Correram mais uma vez subindo e descendo as colinas até chegarem à enseada de treino, onde o Major Saga os instruíra a esperar. De pé. Ao relento. Com frio. Com fome. Com sono. Em silêncio.
– Hã, rapazes... alguém faz alguma idéia de onde foi parar o Major? Ou a Sargento? – sussurrou Aldebaran.
– Quieto, Taurus. O Major mandou que ficássemos quietos! – repreendeu Camus.
– E você faz tudo que os outros mandam, é? – perguntou Milo meio contrariado.
– Quando esse "os outros" é meu superior direto, com certeza! – replicou o francês. – Fiquem quietos que isso deve ser mais um teste!
– T-t-t-t-tenho f-f-f-f-frrrrrio... – murmurou Aiolia batendo o queixo. – M-m-m-minha ffffarda ainda está-tá úmida de onttttem... – tremia o grego.
– O Olia ainda vai pegar uma pneumonia... – comentou Másquera. – Isso não está certo...
– E eu que fiquei orgulhoso por ter sido indicado pra esse programa... ah, se eu soubesse... – suspirou Shura. – Olia, guenta firme, hermano!
– Será que dá pra vocês calarem a boca? – ordenou Camus, contrariado.
– Ui, a Brigitte ficou nervosa! Gente, chamem a Nasa porque deve ter um ET dentro do francês: ele estressou! – riu-se Milo, divertindo-se com o fato do francês estar pouco a pouco saindo do sério.
– Mon Dieu! – exclamou Camus, dando uma bufada. – Ah, se Monsieur le Lieutenant-Colonel Sagittaire soubesse que eu ia ter de agüentar vocês não teria me indicado pra vir pra cá...
– Quem é essa, Brigitte? Tua mãe? – perguntou Milo já às gargalhadas. Os recrutas, que até então tinham permanecido em posição de descansar, resolveram relaxar e fizeram uma pequena rodinha, gargalhando também.
– Pra sua informação, Milo, Monsieur Sagittaire foi meu tutor legal até eu atingir a maioridade, uma vez que minha mãe morreu quando eu tinha oito anos e meu pai quando eu tinha dez... – respondeu Camus de supetão, para logo depois se arrepender de ter dito algo tão pessoal, tão íntimo, justamente para aquele grupo que deveria comandar. "Af, esse sujeitinho insuportável consegue mesmo me tirar do sério! Até falar o que não posso eu falo... patience, Camus, il faut toujours avoir de la patience!", pensou o francês para si mesmo.
Milo engoliu em seco. "Puta, que bola fora!", pensou, entristecido. – Ãhn, desculpa Camus... eu não sabia... foi mal mesmo, cara! – disse, pousando de leve uma mão no ombro do líder.
– Pense sobre suas atitudes, Milo. Às vezes uma de suas brincadeiras idiotas pode acabar ferindo alguém... – disse Camus, afastando a mão do inglês. – Não é o meu caso, pois eu não dou a mínima pra nada disso. Aprendi desde cedo que melindres e sentimentos são coisas para pessoas fracas e que nas forças armadas somente há lugar para os fortes. – continuou, o olhar mais gelado do que nunca.
– Pô, Camus, já pedi desculpas... – retrucou Milo com uma voz bem triste, olhando para baixo. – Foi mal!
– É exatamente sobre isso que estou falando, Milo. Veja o papel de idiota que você está fazendo, todo chateado. Não é esse o tipo de soldado que eu quero pro meu grupo! – pontuou Camus. – Recomponha-se, homem!
– Aaaaaaaaah, Amelie Poulin de quinta, agora você foi longe demais! Seu grupo? Fala sério... – disse Milo aumentando e bastante o tom de voz.
– Foi você mesmo quem me indicou como líder, Scorpio! Agora não vai ficar aí chorando, né? Ora francamente, que espécie de soldado é você? – respondeu o francês já meio que se desfazendo de toda a calma e frieza de costume.
– Ora seu sujeitinho asqueroso, antes de ser soldado eu sou homem e tenho culhões, ao contrário de você que tem esse sangue de barata! – replicou o inglês dando dois empurrões em Camus que, como não esperava por aquela reação tempestuosa, desequilibrou-se e por pouco não se estatelou no chão.
– Paaaaaaaaaaaaaaaaaaaaarem! Que palhaçada é essa aqui? – clamou Aldebaran, colocando o corpanzil entre os dois. – Que coisa mais ridícula!
– Tem razão, Deba, eu me exaltei! – disse Milo meio envergonhado – Mas convenhamos que a Brigitte tira qualquer um do sério! – completou, virando a cara para o francês.
– E depois eu que provoco... – grunhiu Camus e foi se posicionar do lado oposto a que estava o inglês. – E em formação, todo mundo! – ordenou.
Os homens obedeceram à ordem do líder do pelotão, mas se sentiam incomodados com aqueles desentendimentos constantes entre Camus e Milo. Entendiam que o sucesso do grupo dependia do equilíbrio de força entre os dois. Sabiam que dali para a frente as provas seriam cada vez mais difíceis, e que o Major e a Sargento dariam o máximo de si para que todos os seis tocassem o maldito sino que repicava teimosamente contra o vento.
Milo, na extrema esquerda da fila, ao lado de Aldebaran, sentia as veias do pescoço pulsarem e o sangue ferver. O coração batia mais rápido do que o normal, e os punhos se cerraram. Apertou os olhos com raiva. Vivia uma espécie de guerra interna: ao mesmo tempo que odiava o francês do fundo de seu coração, por ser tão frio, calculista e distante, tão irritantemente perfeito, maldizia-se por ter dito aquilo sem pensar, por ter feito tudo aquilo sem pensar. Agora, não sabia bem o fazer ou como agir com o francês, e de uma estranha maneira se importava e muito com aquilo. Sem entender muito bem o porquê, parecia que precisava ser melhor do que Camus, que precisava fazer com que o outro notasse sua presença. "Que merda, Milo! Que merda!", era a única frase coerente que povoava seus pensamentos naqueles instantes.
Camus, à extrema direita, ao lado de Másquera, já tinha recomposto a pose impassível de sempre, embora suas pálpebras latejassem insistentemente. Sentia uma raiva enorme, uma raiva que nunca havia sentido antes. Se pudesse, esganava Milo com suas próprias mãos sem hesitar. Adoraria ver o inglês implorar por sua vida. Esboçou um meio sorriso pensando na cara de Milo pedindo pelamordedeus que o deixasse viver, mas logo depois fechou-se em copas novamente. Ele, que era sempre tão organizado, tão analítico, já havia percebido que havia algo no inglês que o tirava do sério. Aquele cinismo todo, aquele humor britânico, aquele sorriso de canto de boca, todo o conjunto da obra o incomodava. Maldizia-se por perder o controle tão facilmente quando encarava o outro, e não podia acreditar que tinha contado sobre sua família daquela forma grotesca. "Que merda, Camus! Que merda!", pensava o francês para si mesmo.
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– Nossa, Major, rolou o maior arranca rabo lá agora! – disse a Sargento Ofidiuus, tirando o binóculo dos olhos e encarando o homem a seu lado.
– Mesmo? Deixa eu adivinhar... Milo e Camus? – perguntou o superior.
– Exatamente, Major! Acho que os dois vão causar problemas para o Batalhão... se continuarem se desentendendo assim, vão começar a querer se sobressair um às custas do outro, numa batalha individual que pode levar o grupo a perder! – arriscou-se a dizer a menina.
– Pode ser, Sargento. É um cenário possível, mas ainda acho muito cedo para dizer que é isso que vai acontecer com certeza. Me passa o binóculo! – disse Saga, pegando o instrumento com a menina e observando os seis recrutas que, a esse momento, estavam perfilados em posição de descansar. – Vê, Sargento, a situação parece estar sob controle agora... O que você precisa aprender, minha cara, é que um grupo não é composto somente por duas pessoas. Másquera, Aiolia, Aldebaran e Shura não permitirão que Milo e Camus coloquem tudo a perder! – pontuou o mais velho.
Horas antes, o Major Saga e a Sargento Shina, após acordarem os recrutas e levá-los novamente ao local de treinamento, haviam abandonado os homens ali, instruindo-os a aguardarem sem se mexer ou se comunicar. Dirigiram-se então ao alto de uma das colinas que protegiam a enseada e puseram-se a vigiar o comportamento dos soldados. Shina anotava tudo: quanto tempo demoraram para se mexer e conversar, quem tinha sido o primeiro a quebrar a regra, arriscando até uma leitura labial e rascunhando prováveis diálogos.
– Repare bem, Ofidiuus. Não é só de treinamento físico que eles precisam. Numa situação de guerra, por vezes o terror psicológico é imensamente maior do que a agonia física. Eles têm de estar preparados... Inclusive para quebrar regras. L'Aquaire é um excelente estrategista, e sua frieza e capacidade analítica são essenciais nesses momentos mais tensos. Entretanto, o francês tende a se prender demais às regras, e às vezes é preciso quebrá-las para sobreviver. Essa é uma lição que ele tem de aprender com os outros, especialmente com Milo! – explicou Saga.
– Entendo, Major. E sei que ninguém faz terror psicológico como você! – sorriu Shina, dobrando o caderno com a caneta apoiada na espiral.
Saga riu. – Ah, Sargento... Você me acha um carrasco, não é mesmo? – perguntou.
– Acho sim, Major! E é por isso que eu gosto tanto do Senhor! – riu a menina. – O que aguarda nossos recrutas hoje? – perguntou.
– Digamos que Camus e Milo terão uma oportunidade única de resolverem suas diferenças na primeira aula de luta corporal! – afirmou o Major, sorridente.
– E a aula vai ser ministrada por quem eu estou pensando? – perguntou a Sargento.
– Ãh-hã! – grunhiu Saga afirmativamente.
– Que lindo! Mal posso esperar pra ver! – sorriu Shina e seus olhos brilharam.
– Sua pequena sádica! – exclamou o Major rindo e apertando o nariz da menina com o dedo indicador.
– Ah, eu adoro vê-los sofrer, confesso... – riu Shina.
– É por isso que eu te treino pra me substituir, Sargento. É exatamente por isso! – pontuou o Major e a menina estufou o peito, não fazendo a menor questão de esconder o orgulho de ser a escolhida de Saga. – Mas venha, vamos voltar pra sede, comer alguma coisa e preparar tudo para a aula de mais tarde... deixemos nossos amigos aí, eles têm muito de conversar... precisam de um tempo pra se conhecerem e tentar se entender! – completou Saga.
Os dois companheiros se esgueiraram pelo mato até o outro lado do morro, onde um motorista os aguardava com um pequeno carro elétrico, desses usados em campos de golfe. Nas laterais do veículo lia-se a sigla OTAN.
– Bom dia, Cabo! – cumprimentou Saga ao jovem que guiava o carro. Foram dirigindo por caminhos tortuosos, até que chegaram à sede da base. Não aquele lugar bolorento que os recrutas conheciam, mas uma base que ficava do outro lado, um prédio enorme com instalações as mais modernas possíveis. – Ah, quando os recrutas virem a verdadeira base... – riu o comandante.
– Isso tudo é necessário, Major? Eles precisam mesmo ficar alojados naquela coisa horrorosa? – perguntou a Sargento Shina.
– Minha cara, não há luxos na guerra... e eles pr-- – ia falando Saga, mas foi interrompido.
– Já sei, Major: eles precisam estar preparados pra tudo! – completou a moça, arrancando um sorriso de seu superior.
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– D-d-d-deba, fffffffffrrrrrio! – reclamou Aiolia tremendo muito.
– Quer saber? Cansei disso! Vamos sair daqui e esperar no coberto, pelo menos até amanhecer! Antes que vocês morram de pneumonia! – ordenou Camus.
– Ah, até que enfim a Amelie Poulin tomou uma atitude em prol do grupo! Gostei de ver, Brigitte! – exclamou Milo, enquanto os seis recrutas caminhavam para a cozinha de madeira podre.
Aiolia, batendo o queixo, passou pelo sino e o encarou com medo nos olhos. O vento gelado atravessava a farda úmida cortando seus ossos e os repiques do sino causavam ainda mais calafrios em sua espinha.
– Calma, Olia, não vai ser o frio que vai te tirar do jogo não, hermano! – disse Shura batendo nas costas do companheiro, adivinhando os pensamentos que assombravam o grego.
– É, Olia, fica tranqüilo que falta pouco para amanhecer... daqui a pouco o sol nasce e o dia fica mais quente, você vai ver! – completou Másquera.
Os seis jovens se acomodaram em volta da rústica mesa de madeira, sendo que Aldebaran e Másquera se colocaram cada um de um lado de Aiolia, esforçando-se para aquecer o amigo, cujos lábios já estavam meio roxos.
– Ah, tudo o que a gente precisa é de uma bebida quente! – pontuou Milo.
– E posso saber onde você vai conseguir bebida quente agora, inglês? – perguntou Camus encarando o outro.
– Ah, Brigitte, nós, os ingleses, somos conhecidos por nosso apuradíssimo bom gosto... e também pelo hábito de tomar chá às cinco horas, não é mesmo? – disse Milo sorrindo de canto de boca e vasculhando sua mochila. Tirou tudo de lá de dentro: material de higiene, binóculo, bússola, comunicador, e toda a série de parnafenalha militar. No fundo da bolsa, meio escondidinha, uma caixinha de chá. – Ah-há! Sabia que resgatar você da mochila destruída valeria a pena, chazinho! – exclamou, abraçando a caixinha e arrancando gargalhadas dos companheiros, até de Aiolia. O único que não se mexeu, claro, foi Camus. Milo virou para o francês e lançou-lhe mais uma vez aquele sorriso cínico de canto de boca que lhe era tão peculiar.
"Ai, como esse sorriso me irrita!", pensou Camus. – E posso saber como o senhor vai fazer chá aqui, hein? – perguntou Camus, encarando Milo de maneira desafiadora.
– Deixa isso comigo! – exclamou Shura e se levantou. Andou rápido até um dos armários mal cheirosos da cozinha e pegou uma vasilha. Correu para o mar e encheu o recipiente de água, a fim de verificar se estava furado sem desperdiçar uma única gota de água doce. Voltou correndo para os companheiros e tirou seu cantil de sua mochila, despejando um pouco de seu precioso líquido na vasilha, sacudindo e esvaziando logo depois, a fim de limpar a água do mar. Despejou o resto da água de seu cantil na vasilha e foi novamente para a cozinha, a fim de acender o fogão e ferver a água. – Meeeeeeerda! Não tem fósforo! – gritou de lá para os companheiros.
O olhar de decepção de todos, em especial o de Aiolia, que apesar de todo o esforço dos companheiros ainda tremia, foi desesperador. Milo sorriu e sem dizer uma única palavra se levantou dali e foi para o mato que havia atrás da casa improvisada. Voltou trazendo duas pedras, alguns galhos e folhas secas, que despejou embaixo da mesa. Deu a volta pela casa mais uma vez, trazendo agora uma pedra grande. Meteu-se embaixo da mesa e arrumou os galhos em cima da pedra grande, depositando as folhas secas por cima de tudo. – Oh Deba, faça-me um favor, sim?
– Pois não, Uxo! – respondeu Aldebaran.
– Fique de pé em frente à mesa para tentar impedir ao máximo o vento de chegar aqui! – pediu Milo. Aldebaran arrastou o corpanzil até a frente da sacada, obedecendo à ordem do inglês.
– Ah, muito bom! – sorriu Milo. Ainda agachado embaixo da mesa, pegou as duas pedras pequenas e esfregou uma na outra umas três vezes, até que finalmente uma faísca fez as folhas pegarem fogo. Com as duas mãos protegeu o fogo e soprou devagar, alimentando a chama até que esta se tornasse uma pequena labareda. – Shura, traz a água! – pediu. O espanhol trouxe a vasilha e Milo depositou-a por sobre o fogo, juntando os saquinhos de chá, saindo logo depois de sua incômoda posição. Ficou de pé e fitou os amigos, que o olhavam com verdadeira admiração.
– Quanta habilidade, Milo! – exclamou Másquera. – Gostei de ver, vamos tomar chá... – comemorou o italiano.
– Ah, sabe como é, Másquera... eu sou o mestre do fogo! – gabou-se Milo.
– É um exibido, isso sim! – pontuou Camus fazendo um gesto de desdém – Todo mundo que tenha feito um curso de sobrevivência na selva sabe fazer isso...
– O Yves Saint Laurent pelo contrário é o mestre do gelo... por isso que a gente vive brigando... – disse Milo virando o rosto para trás a fim de olhar o francês. O inglês lançou o olhar mais sarcástico que pôde para o outro.
– Cuidado hein, Uxo? Já ouviu dizer que os opostos se atraem? – comentou Aldebaran sem pensar. Os outros cinco companheiros ficaram meio sem jeito, e Milo e Camus olharam para o brasileiro como se fossem matá-lo com o olhar. Se Taurus não fosse tão moreno os outros perceberiam que suas faces pegavam fogo, tamanha a vergonha. "Que comentário infeliz pra se fazer em meio a soldados!", pensou o fuzileiro naval.
– Ah, gente, alguém pode me passar o chá? – pediu Aiolia quebrando o gelo.
– Claro, Olia! – respondeu Shura abaixando-se e pegando a bebida que já fumegava. Como não havia copos ou canecas disponíveis ali, foram bebendo todos na chaleira mesmo. Deram a maior parte do conteúdo a Aiolia, que começou a se sentir melhor assim que a bebida quente desceu por sua garganta, aquecendo seu corpo.
Ficaram alguns minutos em silêncio, apreciando o chá. Aos poucos, os primeiros raios de sol da manhã tingiram de dourado o mar azul turquesa. Os jovens teriam apreciado a beleza única daquela enseada escondida se não estivessem tão preocupados com o que poderia lhes estar esperando para aquele dia. O sumiço do Major e da Sargento os estava incomodando demais.
– Cacete, onde se meteram os dois carrascos? – perguntou Shura.
– Não faço a menor idéia... – respondeu Másquera.
– Nessas horas que eu me pergunto porque raios me meti nessa vida... – murmurou Milo.
– Eu no meu caso não tive muita escolha não. Precisava de um trabalho e do Green Card, e as forças armadas são o único caminho para atingir esses objetivos para um jovem como eu nos EUA... – murmurou Aldebaran. – No começo não gostei, mas confesso que me adaptei e estou cada vez mais ciente de que pertenço mesmo à Marinha dos EUA!
– Meu caso foi diferente... Venho de uma família de militares, e meu pai praticamente me obrigou a entrar para o Ejército de España! – comentou Shura. – Uma vez lá resolvi que era mesmo meu lugar e fui subindo de posição, me destacando, e agora cá estou...
– Ah, eu tive que brigar com o babbo para entrar para a Aeronáutica! Cresci numa vila perto de Florença e tinha uma base da Força Aérea lá. Eu todo dia dava um jeito de passar por debaixo da cerca quando era moleque, os pilotos já até me conheciam e me mostravam a cabine dos jatos... aquilo tudo me fascinava. Aí não teve jeito, fiz dezoito anos e entrei pra escola de oficiais... meu pai quase me matou porque queria mesmo que eu tocasse o negócio da família... mas eu não tenho vocação pra açougueiro não! – disse o italiano.
– Não sei porque mas acho que você tem tudo a ver com açougue, Másquera! – riu Milo tirando o italiano do sério.
– Minha história é mais parecida com a do Másquera... – começou Aiolia, já bem melhor. – Também era fascinado por aviões quando era moleque, a idéia de voar à velocidade do som me encantava! Aí entrei pra Aeronáutica. A diferença é que meus pais me apoiaram... E você, Milo? Como veio parar aqui? – perguntou o grego.
– Ih, é uma longa história, Olia. Ao contrário de vocês eu fui um adolescente meio rebelde... aprontei várias, várias mesmo. Mas chegou um momento que eu cansei daquela vida que eu levava, cansei de tudo, e quis tomar um jeito... Isso sem contar o fato de desafiar meu pai, que sempre foi um antimilitar extremado... meu avô morreu na II Guerra e deixou ele, meus tios e minha avó desamparados, passando fome. Meu pai sempre culpou as forças armadas por isso... e minha rebeldia não o atingia muito... aí resolvi mesmo entrar para o Exército de Sua Majestade... o que eu não fazia idéia era de que iria amar essa vida! – contou Milo. – E você, Brigitte? Não vai contar sua história não? – inquiriu Milo.
"Ai tava demorando...", pensou Camus. – Não acho que isso seja necessário... – respondeu.
– Ui, gente, que segredo terrível esconderá a Brigitte Bardot que não quer nos contar? – desafiou Milo, ficando de pé com as mãos na cintura, encarando os olhos gélidos do líder do grupo.
Camus ia abrir a boca para responder à pergunta. Ou para xingar Milo, não se sabe. Mas de repente o barulho da corneta da Sargento Shina se fez ecoar pela praia, seguido dos berros do Major Saga pelo megafone.
– Sabe de uma coisa? Esses dois conseguem ser ainda mais insuportáveis que você, Amelie! – sussurrou Milo para o francês e saiu correndo bem a tempo de não ouvir toda a sorte de impropérios pelos quais Camus lhe chamou.
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– Posso saber quem deu ordens para os Senhores saírem da posição de alerta? – perguntou Saga rodeando os seis recrutas perfilados em posição de sentido. Um silêncio constrangedor invadiu o local, sendo quebrado somente pelo bater das ondas e pelo insistente repicar do sino ao longe.
– Fui eu, Senhor! – respondeu Camus já se preparando para um castigo. Ou até para ser expulso da missão.
– L'Aquaire, o Sr. desobedeceu minhas ordens! Que coisa feia! – disse o Major sarcasticamente. – Pode pagar cem flexões. Agoooooora! – ordenou.
"Mon Dieu de la France, será que eu consigo?", pensou o francês para si mesmo, tirando o jaleco da farda e ficando somente com uma camiseta branca regata que todos usavam por debaixo dos uniformes. Deitou-se no chão e começou a fazer as flexões, ritmado, enquanto a Sargento Shina procedia com a contagem. Os companheiros de caserna observavam, e Saga parecia disposto a fazer com que Camus pagasse o castigo até o fim. Os músculos dos braços do francês retesavam-se a cada movimento, marcando as linhas de um contorno perfeito. A medalha de identificação batia na areia úmida, e as faces brancas aos poucos foram sendo tingidas de vermelho pelo esforço. De seu cabelo ruivo escorriam gotas de suor que desciam até encontrar a junção do pescoço e do ombro do homem másculo e forte.
"Ai, que de repente ficou calor aqui!", pensou Milo sentindo-se queimar por dentro. Maravilhado, observava os movimentos perfeitos de Camus. "O homem é forte, nossa! E não parece...", tornou a pensar para si. Acompanhou com o olhar uma das gotas de suor do ruivo a escorrer-lhe pelo pescoço e ombro, descendo logo depois pelo braço. A camiseta regata, empapada de suor, colou-se ao corpo do jovem Camus L'Aquaire, revelando contornos perfeitos. Contornos estes que Milo já vira na sala do médico e mesmo no alojamento. Mas nunca assim, dessa forma tão... sensual. Mordeu o lábio inferior com força, arrancando uma gotícula de sangue, como que para afastar pensamentos indesejados.
– Noventa e nove, cem! – contou Shina.
– Levante-se, L'Aquaire! – ordenou o Major. Camus se levantou e com o braço direito secou o suor do rosto. Tomou o jaleco das mãos de Shura, que gentilmente o havia segurado, vestindo-o logo em seguida. Ainda com a respiração entrecortada, juntou-se aos companheiros, prostrando-se ao lado de Milo, que lutava contra si mesmo para não olhar para o francês de canto de olho, no que foi vencido várias vezes.
– Pois bem, seus recrutas desobedientes... bando de molengas... vamos ver se a aula de hoje é capaz de ensinar alguma coisa pra vocês... se bem que eu acho difícil... – começou Saga. – Sargento, por favor, chame o instrutor! – ordenou o comandante e a menina saiu correndo. – Essa eu quero só ver... – murmurou Saga andando de um lado para o outro.
Algum tempo depois, Shina veio chegando acompanhada por uma pessoa que definitivamente os recrutas não esperavam ver ali. E, a julgar pelos olhares que as duas figuras trocavam entre si, ficava claro que havia uma grande rivalidade entre elas.
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– Sargento D'Aguias, que presença fantástica! Veio ter aula com a gente? Eu vou adorar lutar com a Senhora... – disse Milo adiantando-se um pouco e cumprimentando a menina, que sorriu.
– Sr. Scorpio, queira voltar para seu lugar! – disse a menina rindo sarcasticamente. – Eu não vim ter aula... eu vim dar aula! – completou, e todos os recrutas, inclusive Camus, olharam-na cheios de surpresa. – Agora quero que se sentem todos de frente para mim!
Ainda estavam na praia, e agora o sol estava cada vez mais quente. Se antes era Aiolia quem estava incomodado pelo frio, agora era Camus quem sofria com o calor. Observavam incrédulos a Sargento Marin, que quieta lhes olhava de maneira indecifrável.
– Ai, Major, eu sei que ela é boa, mas não suporto a D'Aguias! – comentou Shina com Saga, os dois a uma distância suficientemente boa para que ninguém os ouvisse.
– Você tem é inveja dela, Sargento! Ela é a melhor instrutora de luta que temos! Até eu apanho da D'Aguias se não tomar cuidado... – respondeu Saga e Shina fechou a cara. – Mas sei que você também a admira, Sargento, confessa. Hoje mais cedo você ficou toda excitada porque eles teriam aula com ela... ela é boa! E ela morre de inveja de você porque eu te escolhi e não a ela, do mesmo jeito que também te admira pelo mesmo motivo. Ai, se eu não explico tudo... – completou o Major.
– Major, às vezes o Senhor consegue ser mais metido que o Milo! – respondeu Shina meio emburrada, arrancando uma gargalhada sincera do comandante.
– Vamos, Sargento, vamos nos aproximar e assistir de camarote... – disse Saga e a menina sorriu. Por mais que Shina odiasse Marin, tinha certeza absoluta que ela daria uma boa lição nos soldados.
Saga e Shina se aproximaram dos outros. Os recrutas, sentados, observavam a Sargento, que sorria sarcástica. A um aceno de cabeça de Saga, Marin começou a agir. – Taurus, venha até aqui. Preciso dar uma demonstração!
Aldebaran se levantou meio sem jeito, coçando a cabeça. Colocou-se do lado da menina e a desproporção de seu enorme corpanzil de mais de 2 metros de altura com o da esguia garota de menos de 1,70m era algo visivelmente absurdo.
– Taurus, me ataque! – ordenou Marin.
– Não posso... – murmurou Aldebaran.
– Ataque, estou mandando! – ordenou a moça mais uma vez.
– Tá... – disse o americano meio sem jeito. Foi correndo para a menina e tentou desferir um golpe sem força. Mas qual não foi a surpresa de todos quando Marin, ágil, pulou desviando-se do golpe e caiu agachada no chão, usando uma das pernas para dar uma rasteira em Aldebaran que, por não esperar por aquilo, foi de cara na areia. D'Aguias mais que depressa colocou um joelho em cima das costas do homem, com uma das mãos prendendo os braços dele e com a outra sobre seu pescoço. – Vejam vocês, minha mão esquerda pode pressionar a aorta de Taurus e matá-lo com um só golpe. Lição número um, rapazes: nunca menosprezem um oponente! – disse Marin saindo de cima de Aldebaran e ajudando-no a se levantar.
– Nossa, que mulher! – comentou baixinho Aiolia com Shura, passando as mãos pelos cabelos.
– Muito bem, vamos ver agora o que vocês sabem fazer: Aiolia e Shura, Aldebaran e Másquera, Milo e Camus. Vamos lá, lutem. Quero ver! – ordenou a Sargento D'Aguias.
– Adoro mulheres dominadoras... – murmurou Milo para a menina, que olhou para ele com cara de poucos amigos.
– Ai, Milo, calaboca! – disse Camus.
– Ah, qualé, Brigitte! – respondeu Milo.
– Ora seu... – tornou Camus já não mais se controlando. Partiu pra cima de Milo com tudo, dando um forte soco no olho direito do inglês.
– Brigitte! Que coisa mais feia! – exclamou Milo passando uma das mãos em seus olhos. Avançou no francês munido de toda a raiva contida e abafada no peito.
Braços e pernas e troncos se embolaram de uma forma que não se sabia distinguir onde estava Camus e onde estava Milo. Rolaram na areia, tentando se atingir de todas as formas possíveis, brigando, arrancando sangue um do outro. As duas outras lutas acabaram relativamente rápido, com vitórias de Aiolia e Aldebaran. Mas Camus e Milo continuavam se engalfinhando. As respirações entrecortadas pelo esforço, as mãos que agarravam um ao outro firmemente. As pernas que se contraíam em força. Os abdomens que se retesavam. Os lábios que às vezes tocavam sem querer o corpo um do outro. Os suspiros pelo esforço. O arrepio que percorria os corpos. Uma cena meio dantesca, cheia de areia, suor e sangue.
– Seu metido! – gritava Milo.
– Seu fanfarrão! – respondia Camus.
– Ai, ai, melhor intervir antes que isso vire uma luta de mil dias... – disse a Sargento D'Aguias, indo de encontro aos dois e meio que arrastando Milo, obrigando-o a sair de cima de Camus. – Acho que foi empate! – constatou a menina.
Camus e Milo se encaravam com olhos crispados e vermelhos. Tinham as faces vermelhas pelo esforço e roxas pelas pancadas. Milo cuspiu um pouco de sangue no chão, esfregando a boca logo em seguida e lançando para Camus um olhar de mais pura raiva. O francês fez a mesmíssima coisa, olhando Milo da mesma forma perturbadora.
– Major, o Senhor ainda acha que isso vai dar certo? – murmurou Shina para Saga, que somente pousou uma das mãos sobre o ombro da garota e sorriu.
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O resto do dia transcorreu normalmente, entre lutas em dupla, exercícios físicos debaixo de chuva gelada, comida bolorenta e ameaças de morte de Milo para Camus e de Camus para Milo. Finalmente o sol se pôs e os bravos recrutas puderam ir para o alojamento, onde tomaram banho gelado (o que rendeu muitos impropérios de Aiolia) e se puseram a dormir. Todos menos Milo.
"E lá vou eu de novo", pensou se esgueirando sorrateiramente, deixando o quarto e correndo aqueles malditos cinco quilômetros de subida até a sede da base. Chegando lá, encontrou D'Aguias indo embora. Sorriu e comentou com a menina sobre a aula, parabenizando-a. Conseguiu a chave com a ruiva e acessou um dos computadores.
Dite, irmão,
Você ás vezes me tira do sério com esse seu jeito de dizer as coisas sem dizer de verdade. Acho que entendi seu recado, embora ache de coração que você está errado. O treinamento é bem puxado, e estou cheio de hematomas no meu rostinho lindo devido a socos daquele francês empertigado (fiz dupla com ele na aula de luta). Mas também deixei umas boas marcas nele, ah se deixei! Mas eu fiz uma merda tão grande com ele que tô com a consciência pesada até agora... acredita você que fiz uma piadinha sobre a mãe dele e o cara é órfão de mãe desde os oito e de pai desde os dez anos? Aí fui pedir desculpas e ele veio com um papinho de que "sentimentos são para fracos e as forças armadas só têm lugar para os fortes". Bah! Brigamos... Bom, que novidade, né? O que eu mais faço aqui é brigar com a Brigitte, é meu passatempo predileto. Só que fiquei com dó dele hoje... além da merda que eu falei o francês ainda foi obrigado pelo Major carrascão a fazer cem flexões. Coitado! Deve estar todo dolorido... ainda mais depois da surra que eu dei nele. Tsc... enfim... deixa eu voltar pro alojamento porque preciso dormir, amanhã os insuportáveis do Saga (o Major) e da Shina (a Sargento chaveirinho dele) vêm cornetar a gente às duas e meia da manhã. Sim, você não leu errado: às duas e meia. Bom, tô com saudade mesmo, Ditezinho! E seu cabelão, como tá? Era parecido com o meu. Ai que saudade do meu cabeloooooooooooooooooooooooooo.
Abçs,
Uxo.
Enviou a mensagem, desligou o computador, trancou a sala e depositou a chave na gaveta da Sargento D'Aguias, numa série de movimentos que já estavam se tornando habituais para ele. Correu de volta para o alojamento e ia entrando pé ante pé, quando notou a luz do lampião a gás acesa.
– Onde você estava, imprestável? – perguntou Camus encarando Milo de maneira gélida.
– Fui arejar, não estava conseguindo dormir... mas o que foi? – perguntou o inglês assustado por ver seus amigos todos de pé àquela hora.
– O Aiolia está com febre... o Shura foi falar com o Major e o filho da puta do Saga disse que o Olia só terá atendimento médico se tocar o maldito sino! – disse Másquera visivelmente atordoado.
Milo olhou para a cama do grego e viu que Aiolia tremia. Os lábios do amigo estavam roxos e ele batia os dentes. Dizia coisas sem nexo, delirava. Entre o muito que disse, um nome foi possível distinguir: Marin.
– Xiiiiiiiiiiiiiiii, o Olia ta gamadão na D'Aguias, pelo jeito... – riu Milo.
– Isso lá é hora pra piadinha besta, Uxo? – retrucou Aldebaran e Milo encarou o chão envergonhado.
– Tem razão, Deba, foi mal. Brigitte, o que a gente vai fazer? – perguntou Milo virando-se para Camus.
O francês suspirou, meio derrotado. "Quoi faire?", pensou, sentando-se em uma das camas e coçando a cabeça, apoiando o queixo com a outra mão. Olhou para os outros que lhe encaravam suplicantes. "Que fazer?".
-X-X-X-
A/N: Muuuuuuuuuuuuuuuuito obrigada pelas reviews! Muito obrigada mesmo! Fico tão feliz de ver que alguém além dessa insana que vos fala gosta da idéia de ver esses dois como soldados... Agora, preciso dizer que essa foi a última atualização "a jato". Agora as coisas vão ficar mais corridas pra mim... mas não deixo de escrever isso aqui por nada!
Próximo capítulo: O resgate do soldado Lyon.
As reviews assinadas eu respondo através do site mesmo, mas queria deixar uma palavrinha pra duas pessoas que postam anônimas.
Bia: que bom que você gostou! Ta aqui a atualização! Espero que aqueça mais seu coração, hehe. Valeu mesmo!
Tsuki Tores: Cá está a continuação. Espero que você goste!
