Cap. 4 – O resgate do soldado Lyons

Camus suspirou longamente. Fazia uns dois minutos que estava parado enquanto os outros lhe encaravam suplicantes. Em sua cama, Aiolia tremia muito e gemia coisas indecifráveis. Os lábios do grego estavam roxos e ele ardia febril. Shura, a seu lado, de quando em quando colocava um pano encardido molhado na testa do amigo, tentando em vão aplacar a febre.

– Ele está muito mal, rapazes. Precisamos fazer alguma coisa logo. Mesmo que isso signifique a saída do Aiolia... – pontuou o espanhol, visivelmente abatido, ao lado do amigo.

– Filho da puta de Saga! Não consigo acreditar que ele não vai deixar o Olia ter atendimento médico... isso já é demais! – resmungou Milo indignado, dando um chute no vazio.

Camus suspirou mais uma vez e encarou os amigos. Seu olhar era pesado e triste. – Bom, mas o Major não deixou. E não devemos deixar o Aiolia ir embora por causa disso também. – disse, levantando-se e vestindo o jaleco. – Eu vi que tinha penicilina no armário do Dr. Tatsumi. Vou invadir a sede e roubar os remédios.

– Por que logo você, Brigitte? Posso saber? – perguntou Milo com as mãos na cintura.

– Ah, não vai começar agora, Milo! – disse Másquera entre os dentes.

– Milo, corre-se o risco de ser expulso, compreende? Eu sou o líder, a responsabilidade é minha, eu vou! – afirmou o francês terminando de se vestir.

– Ai, ai, Amelie, você está levando a sério demais aquilo sobre grandes poderes trazerem grandes responsabilidades... – comentou Milo rindo de canto de boca. – Eu vou com você! – completou, já se preparando psicologicamente para correr mais uma vez os cinco quilômetros colina acima.

– Posso saber por que você quer vir comigo, Milo? – perguntou Camus meio enfezado em ter de agüentar o inglês metido a seu lado.

– Ah, não vai começar você também, Camus! Fora daqui os dois! E tragam o maledeto remédio, senão juro que mando os dois pro inferno só com meu pensamento! – berrou Másquera saindo do sério.

Camus e Milo se olharam e engoliram em seco: o italiano parecia estar falando sério. Com um mudo aceno de cabeça, Camus deu a ordem e ele e o companheiro puseram-se a correr. Naqueles dias, parecia que estava se tornando cada vez mais freqüente para aqueles jovens terem de correr contra o tempo.

– Em momentos como esse, Milo... – disse Camus correndo, com a respiração meio ofegante. – eu gostaria de correr à velocidade da luz.

– Em momentos como esse, Camus... – respondeu Milo em meio à respiração entrecortada. – eu agradeço por não estar sozinho. – continuou e sorriu, olhando para o outro. Surpreendentemente até para o inglês, Camus sorriu de volta.

Os dois passaram correndo e não perceberam o casal que se escondia perto da sede falsa da base.

– Major, isso é mesmo necessário? O Aiolia parece estar muito mal... – afirmou Shina com a voz meio preocupada.

– Em momentos como esse, Sargento... – começou o Major. – é que as pessoas se superam e dão valor ao que realmente importa. Sim, é preciso, Ofidiuus. E não me olhe com essa cara, eu não seria tão cruel a ponto de deixar o Aiolia correr risco de morte... mas agora vamos aguardar aqui e ver no que dá, sim? Caso seja preciso, nós agimos. Certo? – disse Saga olhando nos olhos da menina.

– Certo, Major... O Senhor está sempre certo... e é isso que me irrita! – comentou Shina arrancando um sorriso de seu superior.

-X-X-X-

Milo e Camus chegaram até o galpão da triagem e pararam dois segundos para respirar. Observaram o ambiente: aquele mesmo galpão de concreto úmido em que estiveram dias atrás. Não havia porta de entrada, somente uma passagem que dava diretamente na mesa da Sargento D'Aguias. Sem mais delongas, e sem trocarem uma única palavra, entraram. Não contavam, porém, com o que viram lá dentro: uma grande e pesada porta de metal impedindo a passagem para as outras salas do galpão.

– Calma, Camus, não precisa ficar aí todo preocupado não... – disse Milo.

– Quem disse que eu estou preocupado? – perguntou Camus meio enfezado.

– Você coçou a cabeça e suspirou. Você só faz isso quando fica preocupado. Está se tornando previsível, francês! – riu o inglês, jogando a cabeça para trás.

– Ora seu metido! Lógico que eu estou preocupado! O que você quer que eu faça com essa porta? Assopre e derrube? – ironizou L'Aquaire.

Milo gargalhou. – Nossa, Camus, lobo mau! – riu-se o inglês, imitando um lobo.

"Ignore-o Camus! Ignore-o!", pensou o francês. Lançou ao companheiro aquele olhar gelado de indiferença que era uma de suas características mais marcantes. – Pois bem, Milo, então me diga você como vamos fazer para passar por essa porta, já que minha idéia de assoprar e derrubar foi sumariamente rejeitada. – afirmou Camus.

– Tem certeza que você é francês? Eu poderia jurar que você saiu diretamente das profundezas da Sibéria! – disse Milo encarando o outro nos olhos. Camus nunca desviava o olhar de ninguém, mas havia algo no inglês que fez com que ele subitamente se interessasse pelo chão sujo do salão da triagem. Milo sorriu. – Mas pode ficar calminho, tá? Eu sei onde a D'Aguias guarda as chaves... – completou Scorpio. Caminhou até a mesa da Sargento, abriu sua gaveta e pegou de lá um enorme molho de chaves. – Agora só falta descobrir qual dessas aqui é a certa... – disse o inglês meio sem jeito.

"Ah, então é isso, Milo? Suas escapadas noturnas são pra ver a D'Aguias?", pensou Camus mordendo o lábio inferior. – Nossa, que intimidade com a Sargento, hein, Milo? – perguntou o francês.

"Isso, boca grande... quero ver você se explicar pro homem agora! E toca apelar pra ironia e o sarcasmo, como sempre", pensou o inglês. – Ih, Camus, é uma longa história... tudo começa quando um homem e uma mulher se olham e se acham mutuamente atraentes... aí então eles começam a trocar olhares, o que é chamado flerte. Todo flerte pode acarretar em noites calorosas de sex--

– Calaboca, Milo, já entendi! – disse Camus interrompendo o outro. – E me passa cá essas drogas de chaves! – completou, tomando chaveiro das mãos do inglês.

– Cruzes, francês! Eu hein? – disse Milo soltando um gritinho.

– Calaboca, deixa eu achar a chave certa... – disse Camus. – Deixa ver... essa aqui... não... essa aqui... não... essa aqui... hum, também não... – dizia Camus enquanto ia tentando todas as 597 chaves que Milo lhe entregara. O inglês caminhava pelo espaço reduzido, enfadado, observando o ambiente. Então seus olhos encontraram um artefato que o fez abrir um lindo sorriso.

– Oh, Camus! – disse Milo batendo nas costas do amigo.

– Agora não, Milo! Não vê que estou ocupado? – respondeu o francês sem sair da posição em que estava. – Essa daqui... não... essa daqui... não... essa daqui... também não...

Milo suspirou, revirando os olhos. – Oh Camus, por que você não tenta essa daqui? – disse o inglês, balançando uma chave em frente aos olhos do outro.

– Mas o quê...? – perguntou Camus encarando a chave, que tinha um papel amarrado em que se lia "porta de entrada". Encarou Milo com os olhos crispando, arrancando uma risada do outro. – Onde você arrumou isso? – perguntou o francês, colocando a chave na fechadura e sem resistência abrindo a porta.

– Tava em cima da mesa da Sargento Marin... – respondeu Milo. – Agora vamos logo antes que o Olia piore!

– Ora seu... – murmurou Camus entre os dentes. Os dois entraram no corredor frio de concreto e fecharam a porta, que rangeu atrás de si.

– Nossa, esse lugar me dá medo! Credo! Tudo tão escuro... – pontuou Milo, que seguia atrás de Camus.

– Calaboca, Milo! – resmungou o francês, tateando a parede, procurando em vão se orientar.

– Ai, Camus... tô falando que tô com medo! – afirmou Milo, aumentando a voz.

– E eu estou falando pra você calar essa maldita boca, Milo! – respondeu Camus sem se alterar. Fechou e abriu os olhos seguidamente, tentando acostumar-se à falta de luz. – Como sou burro, deveria ter trazido a lanterna... – pensou alto o francês.

– Deveria mesmo... não tô vendo absolutamente nada... – completou o inglês. O corredor era grande e gelado, e o breu em que se encontrava causava calafrios. Inconscientemente, Milo agarrou-se à cintura de Camus.

– Que isso, Milo? – indignou-se o francês.

– Ai, Camus, não tô vendo nada e não quero me perder de você... que saco! – respondeu o inglês. Se a luz estivesse acesa, Camus poderia notar as bochechas do outro ficarem tão vermelhas que caso alguém espetasse uma agulha espirraria sangue. "Ai, que raiva desse francês metido!", pensou Milo ao sentir suas faces queimarem.

– Tá bom, se segura em mim... se isso te fizer parar de me encher o saco... – respondeu Camus. – Agora, eu só quero ver a gente achar a sala do Tatsumi... – pontuou o francês.

Continuaram andando assim por um bom tempo. Camus seguia à frente, tateando a parede. Milo seguia logo atrás de si, grudado em sua cintura. De repente, do nada, Camus estancou. Milo, que não esperava por aquilo, não conseguiu parar e acabou grudado no francês que, nesse exato momento, acendeu a luz. Iluminados e grudados um ao outro: assim estavam os dois.

Fiat Lux! – murmurou Milo, estático.

– Milo... – disse Camus.

– Sim? – sussurrou o inglês no pé da orelha do outro, fazendo Camus arrepiar.

– Quer por gentileza me soltar? – pontuou Camus com uma expressão séria, se livrando do abraço do inglês, que sorriu meio sem graça.

Se separaram e, andando apressados, percorreram todo o corredor. Pararam em frente à porta de número 54. Que, claro, estava trancada.

– Droga! – murmurou Milo. – Me dá aqui essas chaves, Camus! – disse, tomando o chaveiro das mãos do outro. – Deixa ver... essa daqui... não... essa daqui... não... essa daqui... huuum também não... – ia dizendo Milo enquanto tentava todas as chaves.

"Ai, se há um Deus no céu, por favor, dai-me paciência...", pensou o francês. Suspirou e revirou os olhos. – Milo... – disse, batendo nas costas do inglês.

– Você não vê que estou ocupado? – respondeu Milo sem sair de sua posição.

– Infeliz, tem números nas chaves... por que você não tenta a chave 54? – perguntou Camus meio enfezado.

– Nossa, Bri, como você é inteligente! – afirmou Milo fazendo graça quando a porta abriu facilmente.

– Bri? – resmungou Camus entrando na sala e acendendo a luz.

– Sim, de Brigitte... – respondeu Milo sentando-se em cima da mesa do Dr. Tatsumi.

– É, eu já estava até estranhando que você estava me chamando de Camus... – pontuou o francês. Coçou a cabeça e suspirou, observando o armário.

– É que não tem graça quando não tem ninguém olhando... – respondeu Milo. Escorregou descendo da mesa. – Que foi, Bri? Não sabe como abrir o armário, é? – perguntou ao aproximar-se do francês.

– Exatamente, essa droga está trancada... – pontuou L'Aquaire. – E o que aconteceu com o Camus? – perguntou o francês, virando-se para trás. Deu de cara com Milo, que o observava bem de perto.

– Bem, é que agora ficou engraçado de novo... – respondeu o inglês, rindo de canto de boca.

"Ignore-o, Camus. Ignore-o!", repetia o francês para si mesmo, como um mantra. – Será que dá pra me dar espaço, Milo? – disse entre os dentes.

– Ah claro, francês, desculpa... – respondeu Milo afastando-se do outro.

Camus tirou o jaleco da farda, ficando novamente com aquela camiseta regata. Passou uma das mãos pela cabeça, e o movimento traçou linhas em seu braço. "Nossa, o homem é uma aula de anatomia...", pensou Milo com os olhos vidrados no francês. L'Aquaire pegou o jaleco e enrolou em sua mão. "Afe, que lugar esquisito esse... tava um frio, de repente tá um calor que minha nossa!", pensou Milo, olhos ainda vidrados no outro. O líder afastou-se um pouco do armário, e de repente deu um belo de um soco na porta, espatifando todo o vidro no chão. "Uau...!", pensou Milo, continuando a encarar, vidrado, ao francês.

Ai! Merde! – exclamou Camus sacudindo a mão.

Milo balançou a cabeça, obrigando-se a sair daquele surto momentâneo. – Que foi, Camus? – perguntou preocupado ao ver que o jaleco tinha uma mancha vermelha.

– Cortei a mão! Uffff! – gemeu o francês, sentando-se na cadeira do médio. Desenrolou devagar o jaleco. – Merde! – exclamou encarando a mão, que jorrava sangue.

– Nossa, Camus, deixa eu ver isso aqui. – disse Milo tomando a mão do francês nas suas. – Que corte feio... – pontuou. O inglês pegou no armário espatifado um pano, umas gazes e um vidro de álcool. Segurou novamente a mão do francês e derramou o líquido sobre o ferimento.

Vas te faire foutre, anglais d'enfer! (1) – gritou o francês.

– Não entendi nada, mas sei que você me xingou. Paciência, pequeno, eu sei que arde mas precisamos limpar isso aqui... – disse Milo ternamente, limpando o sangue com a gaze.

"Pequeno?", pensou o francês, sem entender muito bem o que aquilo queria dizer. "Uma gíria pra chato, talvez... acho que preciso tomar mais algumas aulas de inglês...", tornou a pensar.

"É impressão minha ou eu acabei de chamar o Camus de pequeno?", perguntou Milo para si mesmo. "Nããããããooo, deve ser coisa da minha cabeça...", pensou. Terminou de limpar a mão de Camus, fazendo um pequeno curativo. – Pronto, Bri! Novinho em folha pra sair por aí socando armários de vidro novamente... – disse o inglês, segurando a mão do outro e encarando-o nos olhos que, por um momento, deixaram de ser gélidos como de costume, brilhando intensamente. Ficaram uns minutos estáticos nessa posição, até que Camus foi retirando sua mão machucada aos poucos, murmurando um "merci, Milo".

– Huuuum, acho bom pegarmos a penicilina então... – disse Milo, visivelmente sem graça.

Oui, bien sûre! (2) – respondeu Camus meio que tentando recobrar o jeito impassível de sempre. E se perguntando o que tinha sido tudo aquilo.

Pegaram dois vidros de remédio e saíram correndo de lá. Devolveram o molho de chaves onde o haviam encontrado e, sempre correndo, voltaram ao alojamento.

– Major, não vamos mesmo ajudar? – perguntou Shina assim que os dois passaram voando por ela.

– Não, Sargento. Pelo contrário. Acabo de ter uma idéia ótima. O Aiolia vai ser o primeiro a tocar o sino, Ofidiuus! – murmurou Saga entre os dentes, com um brilho fora do comum em seus olhos.

"Nossa, às vezes ele consegue até me assustar...", pensou a menina encarando seu superior, que se mostrava visivelmente alterado.

– Vamos, Sargento! Vamos preparar uma surpresinha pra nossos convidados... – murmurou Saga, tomando a menina pela mão e arrastando-a morro abaixo.

-X-X-X-

– Arre, que eu já estava me preparando pra ir atrás de vocês, seus putos! – exclamou Shura assim que Camus e Milo adentraram o alojamento.

– Nossa, o que aconteceu com o "muito obrigado, amigos, por terem se arriscado e trazido o remédio até aqui... "? – perguntou Milo ironicamente.

– Uxo, então vocês trouxeram o remédio? – perguntou Aldebaran com uma voz preocupada.

– Sim, Tauros, aqui está! – respondeu Camus entregando a penicilina para o companheiro.

Madre de Diós, gracias! – exclamou Shura. – Olia, hermano, toma isso aqui... – murmurou, pegando o comprimido e um pouco da água de seu cantil. Másquera, sentado na cama ao lado de Aiolia, ajudou o grego a ficar sentado, e Shura fez com que o doente tomasse o remédio.

– Bom, acredito que agora só nos resta mesmo esperar... – murmurou Shura, cobrindo Aiolia que batia o queixo desesperadamente.

– Que horas são? – perguntou Másquera, espreguiçando-se e coçando os olhos.

– Uma e dez da manhã! – respondeu Aldebaran.

– Puta que o pariu, tamo ferrado! – completou Másquera. – Vamo dormir, cambada, porque daqui a pouco vêm os dois caídos do inferno acordar a gente...

– Às vezes eu te acho tão angelical, Másquera! – ironizou Milo, arrancando um grunhido do italiano e risos preocupados de seus companheiros.

Assim, aos poucos, todos se dirigiram a suas camas. Másquera, que dormia no mesmo beliche que Aiolia, ficou encarregado de chamar os outros caso o grego piorasse durante a noite. Tentariam dormir, ao menos durante aquele tempo que restava. Rezavam para que a penicilina fizesse efeito até que o Major e a Sargento chegassem acordando-os para mais uma missão. Murmurando um "boa noite, rapaziada!", Aldebaran desligou a luz débil da lamparina, e o alojamento foi abraçado pela escuridão.

-X-X-X-

Camus ouviu alguns barulhos acima de si, como se Milo estivesse se revirando na cama. Ouviu o inglês grunhir qualquer coisa, sentar-se no beliche, revirar abaixo de seu travesseiro. De repente, uma luzinha fraca veio da cama do outro, e os barulhos cessaram.

– Milo? Tá acordado? – sussurrou o francês.

– Estou Camus... não consigo dormir... – respondeu o companheiro.

– Também não... – tornou a murmurar Camus.

– Sobe aqui! – disse o inglês.

– O quê? – perguntou Camus.

– Sobe aqui, vem cá! – pediu o inglês.

– Fazer o quê? – disse Camus.

De repente, uma cabeça loira apareceu do lado de Camus, que continuava deitado. – Vem cá, Bri! Vamos conversar! – pediu Milo.

Camus riu. – Tá, tá, Milo... – deu-se por vencido. Desceu de sua cama e escalou o beliche, sentando-se ao lado do amigo. – O que você está fazendo? – perguntou o francês.

– Matando saudades... se acomoda aqui... vem ver... – murmurou o inglês. Camus se ajeitou ao lado de Milo, os dois com as costas apoiadas na parede de madeira onde o beliche ficava encostado. Segurando a lanterna, Milo pegou uma caixinha e abriu. Dentro havia uma série de fotografias.

– Quem são? – perguntou Camus segurando uma foto de um casal sorridente.

– Meus pais! – respondeu Milo. – Minha mãe não é linda? – disse, orgulhoso, apontando para uma senhora de cerca de quarenta anos, morena e de corpo esbelto.

– É, é linda sim... – comentou Camus. – São um belo casal... – completou. Para Milo foi imperceptível, mas Camus falou aquilo com uma certa tristeza na voz.

O inglês pegou outra foto da caixinha e sorriu. Suspirou baixinho. – Nossa, que saudade... – disse, passando a foto para Camus.

– Quem é essa menina linda do seu lado? – perguntou o francês, olhando para a foto de dois lindos jovens de cabelos loiros compridos e olhos claros, que vestiam roupas pesadas e coloridas de inverno. Havia muita neve, e os dois posavam em frente a um prédio bem antigo. Decididamente, alguma cidade medieval européia. Um dos jovens era Milo.

– Essa menina é meu irmão, Camus! – gargalhou Milo.

– Eu, bem... hã... me desculpa Milo, mas é que... – o francês, sem graça, tentava arrumar uma desculpa.

– Camus, provavelmente ele tomaria sua confusão como um elogio... e sim, ele é lindo! Simplesmente deslumbrante... – riu-se o inglês.

– Ele é... como vou dizer... ele é...? – embaraçou-se ainda mais o francês.

– Gay? É sim! Isso te incomoda? – perguntou Scorpio.

– Sendo sincero, Milo, não sei... – respondeu L'Aquaire encarando a foto. – Até que vocês se parecem... – disse.

– Isso sim é elogio! Ele é lindo, e eu pareço com ele: logo eu sou lindo também! – riu o loiro.

– Você sempre distorce tudo o que eu falo... – aborreceu-se Camus. – Se fosse por essa lógica, você também poderia chegar à conclusão de que você parece uma menina!

– Xeque-mate, francês! Dessa vez você me venceu... – riu Milo. – Muita gente diz que somos parecidos... mas não somos irmãos de verdade, sabia? É só por causa do cabelão...

– Não são irmãos de verdade? – perguntou Camus, e parecia realmente interessado nas palavras de Milo. Este, por sua vez, parecia estar adorando aquele interesse do francês.

– O Afrodite... – começou Milo.

– Afrodite? Quem no mundo tem nome de Afrodite? – espantou-se o riuvo.

– Será que eu posso contar a história? – perguntou Milo fingindo-se de bravo. Camus fez um aceno de cabeça indicando que ele deveria continuar. – Pois bem, quando eu tinha quinze anos, meus pais receberam um intercambista em casa. Ele era sueco e tinha um nome cheio de consoantes, impronunciável. Por mais que eu tentasse, não conseguia dizer o nome dele! Ele era dois anos mais velho que eu, e fazia um sucesso absurdo na escola... sempre foi lindo, o Dite! Daí que as meninas o apelidaram de Afrodite, por sua rara e delicada beleza... todos em casa começamos a chamá-lo assim. O Dite passou um ano conosco e se tornou meu verdadeiro e querido irmão. Ele voltou várias vezes pra Inglaterra, e eu fui muitas vezes para a Suécia. Hoje em dia, ele mora em Paris... sim, francês, em Paris! – prosseguiu, rindo. – Essa foto é da vila de Bergen, a cidade natal do Dite. Nós nos apresentamos a todos como irmãos de verdade. Ele é a pessoa em quem eu mais confio nesse mundo, pra quem sempre recorro. Pra mim ele é meu irmão e eu o amo demais! Faz tanto tempo que não o vejo... tenho tanta saudade... tem tanta coisa que eu queria conversar com ele... tanto pra perguntar... – contou Milo, e seus olhos brilharam mais do que o normal, indicando lágrimas que lutavam para não ser derramadas.

– Deve ser bom ter alguém assim... – comentou Camus mais para si mesmo do que para o outro.

– Assim como? – perguntou Milo.

Camus suspirou. Nunca falava daquelas coisas com ninguém. Na verdade, era uma pessoa tão naturalmente sozinha que não admitia nem para si mesmo que nenhum ser humano é uma ilha. Entretanto, naquela noite, sentiu uma vontade meio incontrolável de conversar com Milo. Não sabia como, até porque nunca tinha pensado naquelas coisas antes. Mas, quando se deu por si, já dizia coisas que por muito tempo ficaram tão abafadas que nem ele as reconhecia dentro de si.

– Uma pessoa em quem confiar. Alguém pra te apoiar, te elogiar quando você fizer a coisa certa e te xingar quando fizer a errada... – começou a dizer Camus, ainda encarando a fotografia. – Eu fui muito cedo para o colégio militar, Milo. Por causa da morte da minha mãe, sabe? Logo depois meu pai morreu... meu tutor era bom, mas era acima de tudo um militar, sempre exigindo disciplina, ordem... acho que eu nunca tive um amigo de verdade nessa minha vida... e pra te ser bem sincero eu nunca achei que isso me fez falta. Mas você falou do seu irmão de um jeito agora que me fez parecer que ter uma pessoa assim deve ser muito bom... – completou Camus e desviou seu olhar da foto, virando-se para Milo. – Que foi? Tá me olhando de um jeito esquisito... – comentou o francês.

– É que você falou mais agora do que nos últimos dias somados! – afirmou o inglês.

– Acho que eu falei mais agora do que durante o ano passado inteiro... (3) – murmurou o ruivo. – Mas deixa pra lá, não quero mais falar disso não...

"Mas eu quero! Você nem parece ser esse francês metido falando desse jeito... me parece mais alguém carente que precisa de colo... e Deus, me deu uma vontade imensa de te dar colo, Camus!", pensou Milo. "Minha nossa, o que é que eu estou pensando?", tornou a dizer Milo para si mesmo, balançando a cabeça e apertando os olhos, como que para afastar aquelas vontades. Pegou a foto e suspirou. – Nossa, que saudade! – murmurou, resolvendo não forçar seu companheiro. Afinal, aquilo tinha sido mais do que o suficiente em se tratando de Camus.

– Quando você vai ver seu irmão de novo? – perguntou o francês.

– Sei lá! E agora não tô falando do Dite... tô falando do meu cabelo. Ai que saudade de minhas lindas madeixas loiras! – disse Milo sorrindo de lado. O inglês, sempre que acuado por alguma razão, recorria ao sarcasmo e à ironia. O que fatalmente o levava a sorrir daquele jeito maroto de canto de boca.

"Que sorriso lindo! Irritante, mas lindo!", pensou Camus. Sorriu também. – Se eu te mostrar uma coisa, promete que não fala pra ninguém? – perguntou.

– Nossa, a Brigitte vai me contar um segredo... prometo! – riu-se Milo, beijando os dedos em sinal de promessa.

Camus desceu do beliche, revirou suas coisas e voltou segurando um papel contra o peito. – Oh, você prometeu! E se você rir eu juro que te mato! Já que eu pareço que vim da Sibéria, juro que te congelo! – ameaçou Camus.

– Depois disso, se eu contasse pra alguém eu seria maluco... – riu-se o inglês. – Deixa eu ver! – pediu. Camus estendeu o papel para Milo (que agora pôde notar que era uma fotografia). O inglês encarou aquela foto e seu maxilar teria despencado no chão se não fosse preso ao crânio, tamanha a admiração do moço pelo que viu. A foto mostrava Camus, vestindo calça jeans, tênis e camiseta, algo por si só incomum. O francês aparentava ter uns quinze anos. O cenário era a Pont Neuf, em Paris, e o jovem estava com os dois cotovelos apoiados no pequeno muro atrás de si. Dois bateaux-mouches, um indo e um vindo, cruzavam o Sena: mais parisiense, impossível. O jovem retratado encarava a todos com olhos azuis extremamente gélidos mas ao mesmo tempo sensuais, vibrantes. Porém nada disso se comparava à grande surpresa da foto: os cabelos de Camus, lisos e ruivos, caíam numa cascata por trás de suas costas.

Milo abriu e fechou os olhos várias vezes. "Puta que o pariu, ele era lindo demais!", pensou. Virou-se para o francês, que lhe olhava com aqueles mesmos olhos gélidos e ao mesmo tempo sensuais que foram tão bem retratados na foto. "Correção, ele é lindo demais!", tornou a pensar. Passou as mãos pela cabeça, limpando uma gota de suor que teimou em se formar rente ao cabelo loiro. "Ai que calor!", pensou novamente, sentindo seu rosto queimar.

– Milo, você está bem? Você está estranho... – disse Camus.

– Estou, mas é que... é que... mas é que... – balbuciava Milo.

– Mas é o quê, homem? – perguntou o francês.

– Ai, desculpa, Camus, mas é que nunca te imaginei desse jeito aqui... – respondeu o inglês apontando para a foto.

– Isso foi numa época em que eu resolvi que ia deixar de ser militar e virar pintor em Montmartre (4). Pra você ver como é a vida, Milo, até a gélida Brigitte aqui teve seus surtos de adolescente rebelde... – ironizou Camus, apontando para o próprio peito.

– Confesso, Bri, que agora você me surpreendeu... mas me diz, como te deixaram fazer isso? – perguntou Milo, curioso.

– Não deixaram. Mas eu insisti e meu tutor, que é muito influente, mexeu os pauzinhos e me deu uma licença de seis meses... que eu ainda renovei por mais três. Mas aí no fim das contas vi que queria mesmo era ser militar e voltei pro colégio... esse período foi simplesmente apagado do meu prontuário. Essa foto é o único vestígio de minha rebeldia... – sorriu o francês. – E você é a primeira pessoa pra quem eu a mostro.

Milo engoliu em seco. – Agradeço a confiança, Camus. – foi a única coisa que conseguiu dizer. "Milo, seu idiota... diga alguma coisa inteligente por favor!", pensou meio desesperado.

– Te mostrei essa foto pra te dizer que eu também sinto bastante saudade do meu cabelo comprido. Eu adorava! E nunca fiz tanto sucesso com as mulheres como naquela época! – riu o ruivo. – Mas ouça a voz da experiência, mon ami: você vai sobreviver! – sorriu Camus. – Mas agora vamos dormir, ou ao menos tentar dormir. Falei demais, me expus demais e logo pra você... eu nem gosto de você! – completou, batendo de leve no ombro do amigo.

O francês desceu do beliche e se deitou. Fechou os olhos e adormeceu. Acima de si, Milo virava de um lado para o outro. Entregue a seus pensamentos e a sensações estranhas que teimava em abafar, por fim o sono o venceu.

-X-X-X-

– Ah, Sargento, isso vai ser deliciosamente cruel! – murmurou Saga para sua assistente. Seus olhos brilhavam e ele sorria de um jeito estranho: parecia estar fora de si.

– Eu acho que a gente mata um dessa vez... – comentou Shina. – E não é força de expressão! – completou.

– Sargento, eu preciso da Senhora dessa vez. Por favor, o que eu farei agora e durante esse dia todo será realmente cruel e desumano. Mas preciso da Senhora! Não posso deixar que fraqueje! Posso contar com a Senhora, Sargento? Posso contar com você, Shina? – perguntou o Major encarando a menina no fundo dos olhos.

– Sempre, Major! Sempre, Saga! – respondeu a moça.

A um aceno de cabeça, os homens do Major invadiram o alojamento, tomando o cuidado de não fazer o menor barulho. A um novo aceno, encapuzaram e amordaçaram os seis homens, impossibilitando-os de gritar. Os recrutas se debatiam e foi preciso muita força para imobilizá-los. Jogaram-nos num furgão que foi dirigindo rápido pela estrada de terra, sacolejando muito. Por fim, ainda amarrados e encapuzados, foram jogados em um lugar em que a areia do chão era úmida e o se podia sentir o sereno cortar os ossos. O único barulho que se ouvia era o bater das ondas e o repicar insistente de um sino ao longe. Impotentes, aos recrutas somente restava aguardar.

-X-X-X-

Muito longe dali, e alheio a tudo o que estava se passando, um jovem de cabelos loiros compridos chegou em casa. Jogou a bolsa no sofá e foi até a cozinha. Pegou um copo d'água e sorveu todo o líquido de uma vez só. Jogando o cabelo para trás, espreguiçou-se preguiçosamente. Caso houvesse alguém assistindo à cena, com certeza essa pessoa depois diria que tinha sido a cena mais bela que havia visto em toda sua vida. O jovem ligou o rádio e uma música lenta começou a tocar. Ele sorriu. Caminhando a passos largos até seu quarto, despiu-se e vestiu uma calça de seda: um pijama. Prendeu os cabelos e ligou o computador. Aguardou alguns segundos até que estivesse conectado e digitou um endereço qualquer na barra de ferramentas. "Você tem um email". Sorriu, pois era justamente a possibilidade daquele email que o fez ligar o computador. Leu a mensagem num misto de alegria e raiva. "Ora seu burro! Às vezes eu acho que tenho que fazer tudo por você...te dizer tudo, até mesmo o óbvio!", pensou o moço. Levantou-se, pegou sua mala e organizadamente começou a arrumá-la. Enquanto isso, pegou seu telefone sem fio e discou um número que sabia muito bem de cor. Do outro lado, uma voz sonolenta o atendeu.

– Shun, sou eu! Desmarque todos meus compromissos pra essa semana, sim? Não quero saber o que você vai falar, te pago pra isso. Eu vou pra Grécia! Sim, sim, ver meu irmão soldado... eu sei que ele é lindo Shun! Sim, Shun, mostro sua foto pro Milo... Shun, seu pervertido! Presta atenção! Cuidado com o Misty: não quero ele se metendo nas minhas coisas, ouviu? Sim, sim... tá... ok... às vezes me pergunto porque te contratei como estagiário... como é que é? É porque você pensa que eu acho que você vai ser eu amanhã? Quanta audácia! E o pior é que é verdade... putz, agora você vai ficar convencido... você era tão meigo e ingênuo quando te contratei... Sim, Shun... Obrigado, Shun... sim, mandarei notícias! Boa sorte pra você também! Até! – dizia o jovem.

Bufou e revirou os olhos. "Onde está o telefone da companhia aérea? Ah sim, está aqui...", pensou. Tornou a discar. – Alô? Quero uma passagem pra Atenas... no próximo avião que você tiver... pago o que for preciso! Se eu posso estar aí em seis horas? Claro que sim! Certo, combinado! Obrigado!

"Milo, agüenta irmãzinho! Aqui vou eu!", pensou ao embarcar com destino à capital grega, cerca de oito horas depois de ter chegado em casa.

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Vai se f&$#&, inglês do inferno!

Sim, com certeza!

Cena inspirada em O Segredo de Brokeback Mountain.

Conhecido bairro boêmio de Paris, em que os artistas se juntam em busca de inspiração e também para vender seus trabalhos.

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A/N: Como sempre, queria agradecer às reviews deliciosas que vocês me deixaram. Amei todas, de verdade! Respondo as reviews pelo site, mas gostaria de deixar minha palavrinha aos que postam anônimos.

Tsuki Torres: Pois é, Camus suado é dose pra qualquer um agüentar. Ainda não foi dessa vez que rolou... será da próxima?

Bia: Você não foi a única que leu Ryan, não, fique tranqüila! Valeu pela review, espero que curta esse capítulo... agora se o Olia ficou bom ou não, só no próximo capítulo vamos saber!

Uotani: Muuuuuito obrigada por comentar! Milo e Camus: não foram feitos um para o outro? E quanto a Shina e Saga... vamos ver no que dá!

Missão Sayuri: Sim, amo Até o Limite da Honra, hehe. Espero que você continue lendo e descobrindo as influências dos filmes aqui... valeuzão!

Próximo capítulo: Presença de Afrodite. Até lá!