Capítulo IX
Shion ouvia atentamente a narrativa de Saga. Não parecia surpreso, apenas um pouco preocupado.
Para explicar como soubera os planos do outro cavaleiro de Gêmeos, Saga teve de relatar como os dois haviam começado a ter contato, omitindo apenas os sentimentos que nutriam um pelo outro. Agiu como se fossem simples amigos.
- ...E ele não se conformou com sua indicação, pois achava que se eu... - ficou um pouco sem graça ao ter de dizer a hipótese. - fosse escolhido como Mestre do Santuário, nós poderíamos conversar pessoalmente.
Shion apenas ouvia, às vezes fazendo sinal para que Saga prosseguisse. Quando o jovem terminou a narrativa, o Grande Mestre permaneceu em silêncio por um longo momento, analisando a situação. Imaginava se os dois rapazes haviam descoberto ou ao menos desconfiavam que eram irmãos. Ainda com ar pensativo, olhou para Saga e após hesitar de forma imperceptível, disse:
- Sabe no que isso implicará, não, Saga?
- Eu... posso imaginar, senhor.
- Os planos que Kanon alimenta consistem em um crime. Ele não pode mais permanecer no Santuário.
- Ele será exilado?
Shion assentiu com a cabeça.
- Para... a prisão do rochedo? - as palavras saíram fracas, como se lhe causasse esforço pronunciá-las.
- Receio que sim, Saga de Gêmeos.
Saga respirou fundo, tentando manter a calma e a vontade de chorar.
- Mestre, eu quero levá-lo até lá, com sua permissão.
"Se este é o destino dele, então quero que me odeie. A mim e apenas a mim."
oOo
Ele estranhava a ausência e estranhava o silêncio. Tentava acreditar qua Saga precisava de um tempo para pensar na proposta e então, certamente aceitaria. Kanon não duvidava dos sentimentos do amigo para com ele, e portanto, estava certo de que Saga escolheria o caminho que os fizesse ficar juntos.
Naquela noite, não dormiu direito. A ansiedade era praticamente incontrolável. Precisava ouvir uma resposta positiva.
Amanheceu, trazendo um belo sol num céu sem nuvens. Era um dos dias mais belos que se assistia em Atenas. Em Gêmeos, entretanto, a magia do sol não alcançava os dois jovens, que permaneciam nervosos.
Saga abriu a caixa de sua sagrada armadura e após soltar um suspiro hesitante, vestiu-a. Olhou para as duas faces do elmo, sem realmente entendê-las. O rosto ficou parcialmente oculto ao colocar o elmo, deixando-o com uma falsa sensação de segurança. Seguiu para a entrada do templo, onde um soldado de confiança de Shion já o esperava.
- Senhor, terei de vendá-lo. - disse o soldado, mostrando o tecido preto em suas mãos. - São ordens do Grande Mestre.
Saga assentiu com a cabeça e tirou o elmo, deixando-se vendar. Seria possível que nem mesmo naquele momento ele veria o rosto de Kanon? Voltou a vestir o elmo e acompanhou o soldado, que o conduziu pelo braço.
A caminhada não durou muito e quando pararam, o soldado avisou que Saga podia tirar a venda, o que ele prontamente fez. Hesitou antes de levantar o olhar e quando o fez, deparou-se com a fachada do templo de Gêmeos.
- Mas o que...?
Estariam brincando com sua cara? Caminhar para voltar ao ponto de partida? No entanto, ele sabia que havia outra possibilidade: a de que aquele fosse o outro lado do terceiro templo. Na verdade, só podia ser isso, uma vez que sentia com mais intensidade o cosmo de Kanon ali.
Continuou olhando a fachada do templo, se atentando especialmente para o símbolo no alto da entrada. Logo, porém, já não via mais nada do que estava em sua frente. O pensamento se voltara para a última conversa que tivera com o amigo.
"- Saga, eu disse que encontraria uma solução, e encontrei.
Saga não confiava que pudesse haver uma solução, mas se prontificou a ouvir. Talvez existisse uma chance remota que ele não notara.
- Ignore seus escrúpulos e ouça exatamente o que devemos fazer."
- Senhor, pode ir adiante. - disse o soldado, parado um pouco distante de Saga.
- Eu esperarei aqui. Não tardará até que ele apareça.
"Conforme Kanon narrava, as imagens se formavam na mente de Saga.
- Será noite, nós ocultaremos nossos cosmos e seguiremos até a sala do Mestre. Faremos o possível para não nos esbarrarmos no caminho, pois isto poderia desviar nossa atenção e acabariam por sentir nossas presenças fora do templo.
Iremos escondidos, pela escadaria secreta e ao chegarmos lá, entraremos juntos, ainda com nossos cosmos ocultos – teremos de fazer o possível para mantê-los invisíveis. Temos duas opções: conversar com Shion até que ele mude de opinião quanto a nos manter separados...
- Eu não creio que isso seja possível. - disse Saga.
- Eu também não, o que nos leva ao plano B. Nós pegaríamos os mestres de surpresa e os atingiríamos, ao mesmo tempo. Sem tempo de se defenderem eles não resistiriam ao nosso poder.
- Está falando em matar os mestres Shion e Ares? - perguntou estarrecido.
- Sim. E então nos livraríamos dos corpos e assumiríamos o posto deles. Ninguém iria saber.
- Ninguém além de Athena. Isso é terrível Kanon, não podemos matá-los, são cavaleiros de Athena assim como nós dois.
Kanon fingiu não ouvir e prosseguiu.
- E dessa forma, outros não passariam pelo mesmo que nós. Não enquanto governássemos o Santuário. Teríamos poder para mudar tudo isso que está errado. Estaríamos juntos, Saga.
- Mas... e Athena?
- Esqueça Athena! É a mim que você ama e ela deve respeitar isso! Você tem duas escolhas: uma que é em prol do que sentimos um pelo outro e outra que o manterá apenas com esse maldito dever para com uma deusa que você nunca teve prova de existir. O que vai escolher?
- Eu preciso pensar, Kanon.
Kanon não respondeu, mas Saga compreendeu o silêncio. Ele esperava uma resposta."
A saída mais correta, no fim das contas, era falar com Shion. Foi o que Saga decidiu, sem dizer nada para Kanon. Não haviam se falado desde então.
E agora cá estava o cavaleiro de Gêmeos, parado em frente ao outro lado do templo geminiano. O lado obscuro, habitado por aquele que revelara possuir sentimentos obscuros também. Não demorou para que Saga avistasse a silhueta que se desenhava na escuridão, aos poucos se tornando clara. Se deu conta de que tremia e olhou para o chão, respirando fundo, tentando recuperar o controle.
Voltou a erguer o olhar para a entrada do templo e encontrou o olhar surpreso de Kanon, que se refletiu no seu próprio. Não sentiu forças para se mover ou falar, era como se lhe houvessem tirado os sentidos.
"Isso só pode ser uma ilusão criada por alguém.", pensou Kanon.
"Ele é... igual a mim."
oOo
Continua...
