O dia seguinte veio com um aspecto fúnebre, esquisito e desanimado. Anna ainda estava deitada na cama de seu quarto, os olhos esverdeados fixos no teto subterrâneo completamente pensativa. Não conseguira descansar naquela noite, passando horas acordada e ponderando sobre sua decisão. Achou irônico porque passou boa parte de sua vida procurando tirar a vida do próprio pai e ali, agora, depois de ouvir as palavras proferidas por V, resolveu questionar-se. Até o dia anterior tinha certeza absoluta que queria matá-lo, mas esbarrou-se com o pensamento de se deveria fazê-lo. Querer é diferente de poder ou dever. Tinha que admitir que as palavras de V fazia sentido, mas isso contrariava tudo o que Anna sempre buscou. Ia contra cada promessa feita a si mesma e para sua falecida mãe.
Ele era o responsável por tudo o que aconteceu e mudou o rumo de sua vida para sempre. O desgraçado que matou, mesmo que indiretamente, sua amada mãe e a fez passar por dolorosas torturas e submetida à rato de laboratório e brinquedo. Ele era o seu pai.
No entanto, se nada tivesse acontecido, teria Anna conhecido V? Teria se tornado a mulher forte, madura e convicta que era hoje? Teria encontrado, conhecido e sentido amor como o que sentia por V? Provavelmente... Aliás, dificilmente. Então, o que decidir? Matá-lo como punição e conclusão de sua vendeta particular, tornando-se um monstro igual ao de seu pai... Ou deixá-lo vivo como uma estranha forma de agradecimento, além de mostrar ser melhor que ele e não viver com o peso de tê-lo assassinado? Novamente, o que decidir?
Seus atos eram imperdoáveis, mas as dela eram uma dádiva.
"O que decidir?", pensava repetidamente.
Um pulo e Anna estava de pé, resmungando de dor ao ponto de quase voltar à cama. Ainda sentia as consequências de tortura em cada parte do corpo. Demoraria para se recuperar por completo mas, até lá, deveria tomar mais cuidado e não se movimentar de forma tão brusca ou rápida demais.
Havia tomado a decisão. Agora era só procurar por V na Shadow Gallery.
V estava sentado na poltrona com um livro aberto nas mãos na sua habitual leitura silenciosa. Anna parou para admirar a tranquilidade com que ele fazia sua leitura e a concentração que possuía. Era como um pó mágico do esquecimento nela que já nem recordava-se do que fora fazer ali. Porém, quando ele baixou o livro, fechando-o sobre seu colo, viu que sua presença havia sido notada. Como sempre.
Pacientemente, V aguardou pela aproximação da jovem, um tanto ansiosa para saber sobre a decisão que tomara. Ele parecia tenso, havia alguma coisa que estava deixando o vigilante preocupado ou inquieto por mais que disfarçasse e sua máscara ocultasse.
Anna encheu os pulmões de ar e deu um suspiro baixo e longo antes de aproximar-se dele. O rosto dela era impassível de expressões, mas seu interior um caos de pensamentos e emoções. Parou em frente ao V, de pé, com as mãos impacientes pendendo em cada lado de seu corpo.
- Foi bastante difícil, mas finalmente tomei a minha decisão sobre o que fazer, V. - disse ela devagar, pronunciando cada palavra cuidadosamente. - E isso está acabando comigo.
A máscara virou-se em direção à Anna.
- Anna, há algo que é preciso que saiba. - ele retrucou antes que pudesse saber sobre a decisão dela. - Aconteceu um imprevisto, se assim posso dizer...
Ela franziu o cenho em total confusão e sem entender o que V queria dizer com aquilo. O que havia acontecido que não notara e, o mais incrível, não soube até então? Encontrou-se de repente trêmula e algo similar a dor atacar o seu coração. Não entrava exatamente em pânico porém algo parecido.
- Um imprevisto? Que tipo de imprevisto? - falava rápido demais, atropelando as palavras. - V, o que houve?
- Sente-se, querida. - pediu ele com delicadeza, pegando a mão dela com a sua enluvada. Assim que Anna obedeceu, sentando-se hesitante ao lado do mascarado, continuou. - É com pesar que digo isso, minha querida, mas o seu pai cometeu suicídio poucos minutos após o amanhecer. Quando entrei na cela, encontrei-o desfalecido segurando um papel...
V fez uma pausa para que ela pudesse digerir a informação que estava passando. Sabia que era uma notícia difícil e sentia-se imensamente triste por ver sua amada Anna passar por tanto sofrimento como aquele. Seu coração recebeu uma flechada de dor quando assistiu a expressão facial dela mudar de confusão para uma careta. Um mísera lágrima no cantinho do olho direito da morena.
-... Uma carta destinada a você, Anna.
- Suicídio? - o tom de voz dela era uma tonalidade acima de um sussurro.
Ele assentiu com a cabeça lentamente, ainda segurando a mão de Anna que começou a ficar histericamente trêmula. Simplesmente não podia acreditar naquilo que estava ouvindo, aquela ridícula verdade que era contada. Não, Anna negava-se a acreditar que seu pai, aquele bastardo sádico e egocêntrico, ter tirado a própria vida daquela forma. Era mais um de seus caprichos ou orgulho demais para não ser morto por ela. Devia ser isso. Tinha de ser.
O único problema era a onda de confusão de pensamentos e emoções que começou a arrastar Anna para um modo inconsciente, incapaz de mover-se naquele momento. Estava em estado de negação.
Fúria. Ódio. Raiva. Decepção. Tristeza. Luto.
Arrependimento.
- Isso é algum brincadeira, V? Alguma mentira que está inventando para evitar qualquer que seja a minha decisão tomada? - perguntou ela de forma acusadora, despertando-se de seu estado de choque.
- E qual decisão você tomou? - ele retrucou rapidamente com uma pergunta.
Um silêncio mórbido reinou tão repentinamente que ambos remexeram-se inquietos em seus lugares. Aquela simples pergunta pareceu tão pesada de significado, tão estranhamento violente. Anna perdeu o ar de seus pulmões, virando-se a cabeça para desvirar-se do olhar daquele sorriso congelado. Abriu a boca um momento, ainda sem fitá-lo, mas nenhuma palavra ou som saiu de lá.
Puxou a mão que V ainda segurava e curvou seu corpo para frente, apoiando os cotovelos nas coxas e enterrando o rosto em suas mãos. Agora sim parecia desesperada ou em pânico.
- Eu ia... - começou, baixinho. Estava envergonhada do que tinha, de fato, decidido. - Matá-lo.
O que V sentiu naquele momento foi uma mistura de decepção e compreensão. Suas palavras não foram suficiente para mudar a ideia de vingança de sua Anna. No final, para ele, sua amada carregaria o peso da culpa nos ombros o resto da vida.
V suspirou longamente e moveu a cabeça para o lado, fechando os olhos por trás daquela máscara de verniz.
Ela, por outro lado, estava imensuravelmente envergonhada e arrependida daquela decisão. Deveria ter decidido perdoá-lo. Agora via que deveria ter sido a sua primeira decisão. Não conseguia mais se lembrar o que a levou a desejar matá-lo até pouco tempo antes de saber que seu alvo cometera suicídio. Descobriu que no fundo, bem profundamente em seu âmago, seu ser, seu coração e alma, não queria realmente matá-lo. Anna queria o pai de volta. O de antes. Aquele que costumava abraça-la e fazer cafuné na cabeça antes de dormir, com direito a canção de ninar. Só queria que esse John Blake voltasse para ela e a abraçasse novamente, que a aconchegasse em seus braços e dissesse que tudo estaria bem.
Nunca mais teria essa chance novamente porque ele se fora, e não de agora. Não haveria, nunca mais, abraços e cafunés, amor e carinho paterno. Restaria somente suas lembranças que a despedaçava lentamente por dentro. Sentia falta dele e de sua mãe. Queria os dois de volta. Queria vê-los mas... Oh, Anna, como ela desejava estar junto de seus pais. Seu pai, John, e sua mãe, Katheryn.
- Não... Eu deveria perdoá-lo. Perdoá-lo... Perdoá-lo! - ela dissera, os olhos úmidos, e com a voz trêmula.
Lágrimas transbordavam descontroladamente os olhos verdes de Anna. Tremia e soluçava enquanto chorava. Há muito tempo não se permitiu derramar uma lágrima sequer.
Compadecido, V envolveu-a com seus braços fortes e puxou-a para mais perto, afagando seu cabelo para acalmá-la. Queria afastar as dores e os males daquela que tomou seu coração. Uma solitária lágrima escapou de um dos olhos de V, surpreendendo-o porque pensou não ser mais possível chorar.
Ambos choravam.
O tempo que se passou era indefinido com Anna e V abraçados até que ela estivesse calma. Beirava entre a mudança do horário matutino para o vespertino, a dois dias do Natal.
- Posso vê-lo? - perguntou ela, finalmente mais calma.
Anna estava com a cabeça repousada no peitoral robusto de V. Ele havia se inclinado para trás no sofá para que ela pudesse parcialmente deitar-se por cima. O clima parecia menos tenso e mais fúnebre.
- Oh, não, minha querida. - começou, afagando-lhe os cabelos castanhos com carinho. - Presenteei seu pai com um digno funeral viking pouco depois de seu falecimento. Não gostaria de vê-la sofrer mais ainda ao vê-lo como estava.
Ela não disse nada, apenas assentiu vagarosamente com a cabeça e suspirou. Não sabia exatamente o que sentir, se era culpa e tristeza ou raiva e alívio por tê-lo finalmente morto. Que irônico, não é? Até pouco tempo atrás a decisão dela seria matá-lo com suas próprias mãos. O pagamento de tudo de ruim e ilícito que ele fez quando vivo... e ela sentia culpa e tristeza por seu pai ter morrido mesmo que não por suas mãos. Há um grau elevado de certeza que se Anna o tivesse matado o peso da culpa seria imensurável. As palavras de V estavam certas. Ela conviveria com aquilo até o último suspiro se tivesse assassinado-o.
Será que V sentia tal peso? Talvez fosse algo que jamais chegasse a saber. Uma pergunta sem resposta pois ela não responderia à ela.
"A vingança habita corações vazios. Se instala com permissão. Destrói, então, como um furioso furacão. É igual veneno, corrói por dentro. Fere o próximo mas... Dilacera quem o sente."
De modo cabisbaixo, Anna livrou-se dos braços fortes de V e levantou-se, dirigindo-se em completo silêncio para o seu quarto na Shadow Gallery. Preocupado, V a acompanhou com o olhar sem nada a dizer também.
"Talvez minha querida Anna necessite de um tempo sozinha para ponderar sobre os acontecimentos." pensou ele, no momento que ouviu a porta de madeira ranger, fechar e ser trancada à chave.
Esses dois dias de luto que se sucederam após o falecimento de John Blake, pai de Anna, foram lúgubres e silenciosos. O moradores do esconderijo subterrâneo mal trocaram palavras além das essenciais e comuns do dia a dia. E, naquela manhã pacata de natal, Anna acordou disposta apesar de ainda carregar sentimentos de confusão dentro de si.
Não era um trabalho muito difícil demonstrar luto por seu pai, pois a cor preta já fazia parte de seu guarda-roupa, mesmo que, naquela altura de confusão interna, não sabia se deveria mesmo prestar luto por ele.
De repente o ressoar melodioso do piano de V ecoou por toda Shadow Gallery. Estaria ele começando a tocar piano?
Curiosa, Anna vestiu, rapidamente, um short cinza com uma camiseta preta, e saiu de seu quarto de forma cautelosa até a sala de estar e mais ampla, deparando-se com uma enorme e bem enfeitada árvore de natal. E não somente isso, toda a Shadow Gallery tinha enfeites natalinos onde quer que se olhasse. O último e grande fator a ser observado era V.
V encontrava-se sentado diante do piano, no início de uma música de seu repertório, não natalina, aparentemente concentrado.
- "Quando a dor cortante o coração maltrata, e triste gemidos ferem nossa alma - começou ele subitamente, recitando uma rima de Shakespeare com tom animado enquanto tocava piano. - apenas a música e seus sons de prata, rápido nos trazem outra vez a calma!".
Anna esperou que V terminasse de tocar após se sentar ao lado dele com um sorriso contente e de agradecimento no rosto. Era uma música cheia de vivacidade e harmonia boa. Mal sabia ela que o título da música era "I love you".
Infelizmente, o tempo passou mais rápido com o deleitar daquela melodia. Despertada de seus devaneios, Anna virou a cabeça e encontrou a máscara voltada para ela, encarando-a. Ruborizou as maçãs do rosto com o peso que sentia do olhar do vigilante e baixou o olhar para as teclas brancas do piano.
- Feliz natal, querida Anna.
- Como você trouxe aquela árvore e enfeitou isso sem eu notar, V? - indagou ela, curiosa, voltando seu olhar para a máscara outra vez.
Uma risadinha nasal veio de dentro da máscara.
- Tive que abusar de um pouco de sonífero no vinho que tomaste ontem para ter segurança de preparar o local com enfeites natalinos, pequena. - explicou ele, divertido com toda a situação. - Com você, minha donzela, adormecida profundamente, não tive preocupação com a árvore e todo o resto. Apenas queria fazer deste dia algo especial para você.
Um rápido pensamento de V tendo trabalho de carregar um pinheiro para o subterrâneo, pô-lo de pé e depois enfeitá-lo quase a fez cair na risada. Aliás, não deu para resistir. Anna começou a rir. Era impossível imaginar o mais temível e mortífero vigilante, terrorista e anarquista como ele com esforço e trabalho com uma árvore de natal. Um evento cômico.
Incomodado e surpresa com tal reação, V ficou de pé e cerrou os punhos de frustração.
- Posso perguntar o que há de engraçado para você estar rindo?
Anna não respondeu, simplesmente parou de rir, olhou para a máscara de V, e voltou a gargalhar que lagrimejava. Há tempos não ria daquela forma aberta, tão espontânea. Na verdade, há anos não se permitia rir, sorrir. Aquilo fazia-a esquecer-se da confusão que sentia sobre o que deveria pensar sobre o suicídio de seu pai. Resolveu que deixaria toda essa história para trás com parte de seu passado obscuro.
Tudo havia acabado para ambos. Todos aqueles que V e Anna ansiavam para matar estavam enterrados a sete palmos na terra... ou por aí em forma de cinzas, como seu pai. Agora iriam começar uma nova vida sem vingança, dor e ódio em seus corações. No entanto, não sabia o que o futuro lhes aguardava.
- Oh, desculpe-me, V, mas imaginá-lo carregando uma árvore lá de fora até aqui - começou porém se interrompeu com outra risada. Após se recompor um pouco, tentou continuar. -é muito engraçado. Eu deveria estar acordada para tirar uma foto ou filmar isso...
V sentiu a ira tomar conta de todo o seu ser até que começou a rir junto dela. Realmente, ele mesmo nunca pensou que fosse fazer isso na vida, esforçar-se para trazer um pinheiro, sozinho, para dentro de sua Shadow Gallery. Parando bem para analisar aquilo viu algo de engraçado, cômico.
Agora os dois riam em gargalhadas altas. E assim ficaram por um tempo. Não quando os músculos do abdômen começaram a doer que parecia ter feito inúmeras abdominais.
- Tenho um presente para você. - disse, V, parando de rir de repente. - Quero que o uso esta noite, pequena.
- E o que seria o presente? Pelo modo como fala, chuto que é alguma roupa. - ela retrucou. - Se for um vestido, hm, não sou fã de vestidos, mas por você eu uso.
O vigilante deu uma risadinha e desapareceu pelo corredor, deixando Anna sozinha. Ficou bastante curiosa agora em relação ao misterioso presente dele, mas tinha quase certeza que seria um vestido. Era muito previsível. Bom, pelo menos, em romances como os quais já lera na vida, isso era comum.
Como se fosse proposital, V só voltou vários minutos depois, fazendo com que Anna andasse de um lado para o outro em total impaciência e curiosidade. Quando o viu, fuzilou-o com um olhar furioso que, ao descer, encontrou uma caixa avermelhada semelhante ao vinho, pequena e quadrada, adornada por enfeites de um vermelho vivo, nas mãos do vigilante.
Um breve sorriso apareceu nos lábios de Anna e não tardou a ter a caixa em mãos, curiosa para saber o que ele havia lhe preparado como presente. Assim que abriu a caixa, no suspense de saber o que era, com o peso do olhar de V nela, o rosto de Anna foi tomado pela surpresa.
Havia um colar de prata dentro, daqueles que se abrem para guardar alguma foto especial.
Nenhum dos dois falou alguma coisa. V apenas gesticulou com a mão, incentivando-a a pegar o colar e abrir para ver seu conteúdo interno. Quando Anna o fez, deparou-se com uma pequenina foto de sua família, anos atrás, junta e feliz como bem se recordava. O outro espaço, por sua vez, estava em branco.
- Por que o outro lado não contém foto alguma? - perguntou ela, erguendo o olhar curioso para fitar as orbes vazias e negras da máscara.
- Para que fique a seu critério de escolha a segunda foto a ser mantida sempre consigo. Uma segunda foto especial.
Ela voltou a olhar para o colar e abriu um largo e singelo sorriso. Seria sim, uma foto especial. Era o melhor presente que Anna poderia ter ganhado na vida. Tão pequeno e delicado, mas tão cheio de lembranças e significado. E encarou o vigilante novamente.
- Sua.
A posição da cabeça de V alterou-se minimamente. Terá sido de surpresa ou comovido pela resposta dela?
- Perdão?
- Será uma foto sua. Uma foto especial, não é? Você é especial para mim, V, desde o começo.
Um longo silencio alastrou-se pelo recinto como um perfume impregna uma roupa, um ambiente. Olhavam-se sem proferir nenhuma palavra, tomados, ambos, pela emoção, pela significância daquele momento. Um espaço físico vazio entre Anna e V frustrou ambos de uma forma tão profunda que, ao mesmo tempo, mexeram alguma parte do corpo para aliviar a tensão. A pergunta de porquê o clima, de repente, ficara tão pesado pairou no ar, sem resposta. Palavras empacadas na garganta doíam, urravam para serem ditas.
De repente, música lente e romântica começou a soar. V havia programado sua máquina para rodar a música depois um tempo, planejando um diálogo que, aparentemente, não saíra como o esperado. Isso o enjoou um pouco, como se tivesse levado um soco certeiro na boca do estômago.
Anna, por sua vez, sorriu levemente, erguendo o olhar, que fora desviado nesse tempo, novamente para as orbes frias da máscara. Um olhar sereno, profundo e cheio de sentimento. Com passadas lentas e normais, cortou a distância que os separava até que estar a centímetros do corpo do vigilante, obrigando-o a inclinar o queixo para baixo para fitá-la nos olhos através de sua face de porcelana. A moça levou as mãos até os limites da máscara, no intuito de retirá-la.
- N-não... - gemeu o vigilante, apertando as mãos calejadas de Anna.
- V... Por favor...
Ele estremeceu. A ideia de tirar a máscara perto dela já o incomodava bastante, fazê-lo novamente com ambiente iluminado o apavorava. Tinha medo de que o rejeitasse assim que visse seu rosto desfigurado. Assim que visse a aberração que acreditava ser. Todavia, por algum motivo interno, permitiu que ela prosseguisse.
Vendo que tinha passagem permitida, Anna desamarrou os laços de couro que mantinham firma a máscara no rosto de V. Em seguida, com cuidado, removeu-a por completo.
O rosto dela era quase completamente queimado tal como sentira através do tato da outra vez. Os olhos de uma cor única de azul. A pele de cor avermelhada e esbranquiçada seguindo os desenhos das cicatrizes e desnivelamento na superfície. O deslumbre da dor sofrimento que V passou no passado. Da solidão. Da tristeza. Da vingança.
Outra vez o silêncio alastrou-se no local e V estava cada vez mais tenso, quase apavorado por estar tão exposto. Quis afastar seu olhar do dela, virando o rosto mas sentiu outra vez a pele macia e quente de Anna em sua pele. As mãos dela cobrindo-lhe as bochechas em conchinhas para obrigá-lo a manter o olhar no dela.
- Eu te amo. - disse ela, baixinho, com um sorriso e olhar sincero. - V, eu... Eu o amo tanto.
Cada letra, cada consoante, sílaba, vogal... Cada som proferido por aqueles lábios delicados foi como uma facada em seu ser. Doíam mas ao mesmo tempo o causava comoção e espanto. Causada por uma dúvida tão terrível que chegou a pensar que ela estivesse mentindo sobre seus sentimentos por pura pena. Pura compaixão. Porém olhou-a tão profundamente nos olhos, buscando um resquício de mentira, vendo que a verdade havia sido dita que não sabia mais o que fazer. O chão já não o sustentava mais.
V caiu de joelhos e Anna ajoelhou-se à sua frente.
- Você... Por que? Mas... como é possível amar um monstro tão horrendo como eu?! - bradou ele, escondendo seu rosto nas próprias mãos, curvando-se.
- "Aquele que leva a vida a caçar monstros deve cuidar de si para não tornar a si mesmo um monstro. E quando se olha tempo demais para o abismo, o abismo lhe retorna o olhar." - recitou ela, baixinho no ouvido de V, abraçando-o, consolando-o. - V, você não é um monstro. Para de olhar para o abismo de sua mente. Não procure lá embaixo o que na verdade não existe. Não se deixe levar assim.
Ele bagunçou a cabeça negativamente, negando tal fato. Negando tal realidade. Era difícil de acreditar por mais que desejasse. Por quase toda a sua vida acreditou ter tornado-se um monstro horrendo e cruel, sem emoções, sem esperanças de nada, sem rosto. Então, o vigilante começou a soluçar.
Estava chorando.
- Shh...
Anna levantou o rosto dele, segurando-o pelo queixo, e aproximou seu rosto até que ficasse tão perto que poderia sentir a respiração e o hálito de hortelã de seu amor. Fitando-o uma vez nos olhos, dando-lhes mais um sorriso, beijou-lhe os lábios com carinho. Um beijo frustrado. Um beijo de amor verdadeiro.
De início, V não fez nada, transformou-se numa pedra mas aos poucos foi cedendo até retribuir aquele beijo com ardor e com desejo. Lágrimas ainda lhe escapavam os olhos mais agora eram lágrimas de alívio, de felicidade por se sentir aceito. Era só isso o que faltava para se sentir assim: o rosto exposto num ambiente iluminado. Envolveu-a com os braços fortes e musculosos, inclinando-se para frente para deitá-la no chão devagar, encaixando-se entre suas pernas femininas.
Afastou os rostos e, olhando-a, olho no olho, disse, sorrindo:
- Também a amo, minha donzela. Amo-a com todo o meu coração, todo o meu ser. Amo-a mais que um ser humano é capaz de amar, capaz de suportar tanto amor, querida Anna.
E lá, com declarações e beijos e abraços, música tocando ao fundo, eles fizeram amor. V tomou-a ali mesmo no chão, consumando o ato. A demonstração carnal do amor atrás do encontro de dois corpos. Um amor que não poderia ser vivido por mais ninguém. Um amor eterno e além da vida.
- Irá me amar para sempre, V?
- Sim, meu amor, por toda a eternidade.
