Réquiem de Esperança
Capítulo IV – Baka

Disclaimer : Gundam Wing não me pertence, mas sim a Yoshiyuki Tomino.Caso me pertencesse, eu não teria o mau gosto de deixar Heero e Relena juntos no final do mangá (tem um acesso de mal estar só de pensar).

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Aqui estava eu, mirando a pia cheia de pratos sujos. Odiava fazer trabalhos domésticos, mas era a única opção que restara.

A espuma que bailava infantilmente nos copos de vidro me induzia a divagar um pouco. Fiquei um tanto perplexo ao me deparar com aqueles cabelos castanhos soltos, apesar de ser a segunda vez que os visse daquela maneira. Contudo, ainda não consegui entender o motivo de minha surpresa. Não sei se me lembrava alguém... Realmente não tinha certeza.

Decerto que parecera uma garota a primeira vista, porém, com uma melhor análise, não lhe daria mais que dez anos de idade. Aquela curiosidade genuína era infantilmente encantadora, mas extremamente irritante. Se existe algo que prezo ao extremo é a minha privacidade; tentar invadi-la é assinar o próprio testamento.

Tinha a tarde inteira livre para fazer o que quisesse. Então, constatei que, quando não temos tempo disponível, sempre pensamos em milhares de coisas para realizar quando o obtivermos. Todavia, quando horas intermináveis de puro ócio se desenrolam em nossa frente, simplesmente não sabemos o que fazer com isso.

Recordei-me que já fazia um bom tempo que não praticava exercícios. Vesti minha regata verde e meu short preto e fui dar uma caminhada pelo parque, mas não sem antes deixar um bilhete para Duo, no caso dele acordar.

Por um acaso já mencionei que minha cor favorita era verde ?

Agora que corria por entre as flores, pensei por que diabos estava no parque ao invés da sala de ginástica do prédio. Será que estava a procura de outro maníaco suicida para abrigar em minha casa ? Dei uma sonora risada, atraindo a atenção de algumas pessoas a meu redor.

Sabia que meu senso de humor não era dos melhores, mas não podia evitar.

Notei uma criança que brincava alegremente com um cachorro. Fez-me pensar em quando era pequeno e na minha vontade de ter um bichinho de estimação, alguém que eu precisasse cuidar. Minha mãe negou veementemente, pois o filho perfeito dela tinha de se concentrar somente nos estudos.

Admito que, caso esta atitude dela não existisse, talvez tivesse tomado um rumo completamente diferente em minha vida. Mas isso era irrelevante agora. Precisava focar no jantar de hoje à noite.

Sinceramente, não iria cozinhar para aqueles três nem que minha vida dependesse disso ! Seria muito mais prático pedir algo pelo telefone e ainda explorá-los, fazendo-os lavar e enxugar os pratos. Sim, definitivamente era a melhor opção.

Já estava anoitecendo, seria mais adequado que retornasse para casa. Voltei, contornando a quadra do parque, e esperei pacientemente o sinal fechar para realizar a travessia. Quando ia dar meu primeiro passo, fui alertado por uma voz que chamava meu nome. Uma voz irritante, por sinal.

- Heero ! Aqui ! – o vidro do carro parado a minha frente estava aberto e eu pude ver claramente Relena sentada ao volante.

Meu corpo retesou; por um acaso ela estava me seguindo ?

- Sim, Relena ? – minha voz soou sem emoção.

- Que tal sairmos hoje à noite ? Precisamos resolver nossos negócios e...

- Não posso. – interrompi – E confio plenamente na competência de Trowa para resolver qualquer assunto ligado à empresa.

- Mas algumas coisas devem ser resolvidas apenas por você.

- Não insista. – fui ríspido – Boa tarde.

Saí andando antes que o sinal tornasse a abrir. Será que aquela idiota não percebia que não estava interessado nela ? Bem, pelo menos sabia que Trowa me passaria mais um de seus sermões silenciosos quando soubesse do ocorrido. Pouco me importava. Preferia perder aquele contrato a ter de aturar uma patricinha mimada dando em cima de mim descaradamente.

Cheguei ao apartamento e constatei que Duo ainda dormia. Era incrível como podia ter tanto sono ! Rasguei o bilhete que havia deixado para ele e tomei um banho quente, sentindo os músculos relaxarem gradativamente, e, depois, vesti uma roupa casual. Segui até a sala e conectei meu laptop em cima da mesa, retomando alguns projetos de softwares que ainda precisavam de alguns ajustes.

Pois, mesmo de férias, tempo ainda era dinheiro.

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Abrir meus olhos desta vez não me pareceu tão angustiante... Talvez algo meramente normal.

Fitei o teto impecavelmente branco e tomei consciência de onde estava; meu teto não era branco. Estava na casa de Heero. Os últimos acontecimentos revisitavam meu cérebro apenas para me recordar onde eu estava e porque.

Olhei para a janela aberta e notei que já estava escuro. Por quanto tempo eu havia dormido ?

Ainda me sentia meio vazio com minha última tentativa frustrada. Eu estive tão perto...! Mas era bom retirar cada pensamento deste da minha mente, afinal Quatre viria me visitar e possuía o dom de me ler por completo quando me sentia tão vulnerável como hoje. Segui até o banheiro – de longe a minha parte favorita da casa – e gastei alguns minutos me olhando no espelho. Esta era uma das atitudes que em nada combinava comigo; o único espelho que tinha em meu apartamento era no banheiro e tão pequeno que mal dava para contemplar todo meu rosto.

Minhas bochechas já estavam mais rosadas e meu aspecto era mais saudável; Quatre iria parabenizar Heero por ter conseguido algum progresso tão rapidamente.

Trancei cuidadosamente meus cabelos do mesmo jeito que mamãe fazia quando eu era bem menor. Mamãe... Não, não queria lembrar dela numa hora tão agradavelmente neutra. Sua imagem era o suficiente para me deixar deprimido.

Caminhei lentamente até a porta do quarto e ouvi vozes. Minha curiosidade exigiu que ouvisse a conversa, por mais deselegante que aquilo pudesse ser. Pois, se queriam que ninguém os escutasse, falariam mais baixo, não ?

- Heero, o que você deu para ele comer hoje no almoço ? – ouvi a voz preocupada de Quatre.

- Macarronada. Você me disse que ele gostava.

- Então vamos providenciar algo mais nutritivo para o jantar. O que você preparou ?

- Nada. – Heero deu um grunhido que me pareceu engraçado.

- Sempre fugindo de atividades domésticas... – uma outra voz grave e desconhecida para mim soou.

Se Heero fugia das atividades domésticas, como ele poderia não ter uma empregada ? Como esta casa ainda não estava de pernas para o ar ?

- Poupe-me, Trowa. – meu coração deu um salto; aquela era a voz de Trowa ! – Mas tenho uma pergunta a lhe fazer : o que tanto você fazia a Duo que, mesmo sem conhecê-lo, ele gosta tanto de você ?

Senti minhas bochechas corarem como se eu mesmo estivesse na sala.

- Ele gosta de mim ? Bom saber. – um tom neutro estava marcado naquelas palavras e me senti meio bobo de repente – Quatre me contava muito sobre ele, que era um aluno muito aplicado e que tinha afeição por ele. Então, me senti no direito de agraciá-lo de vez em quando com coisas que ele gostava.

- Que tipo de presentes ? – Heero perguntou e me sentei na cama, um pouco cansado de permanecer em pé.

Vi que meu anfitrião era do tipo questionador. Apesar de não viver constantemente falando, gostava de obter todas as informações possíveis. Mas havia um tom de desagrado na voz dele, algo como mau humor.

- Livros de autores que ele gostava, como Byron e Musset.

- Trowa, eu não acredito ! – a voz de Heero soou tão brava que minhas pernas tremeram – Você não teve coragem de patrocinar um gosto tão doentio !

Doentio ? Quer dizer que era uma pessoa doentia aos olhos dele ? Tive um acesso de raiva, uma vontade súbita de ir até ele e estapeá-lo ! Por que não dizia isso na minha cara ? Não pedi para ninguém acolher uma pessoa doentia !

Sabia, sempre soube que não iria olhar para mim como alguém que devesse ser ajudado... Devia estar fazendo isso só por Quatre ! A vontade súbita de desaparecer daquele apartamento era uma crescente dentro de mim. Como eu pude cogitar a idéia de que ele seria... Absurdo !

- Engraçado, pensei ter ouvido algum dia você dizer que havia gostado muito de Werther... – a voz de Trowa me arrancou de meus pensamentos e me deixou com um sorriso de vitória nos lábios.

Se eu era doentio na opinião dele, ele não ficava tão atrás disso.

- Hn. – o grunhido raivoso de Heero me fez rir um pouco.

Mas já estava na hora de eu dar as caras pela sala.

Abri cuidadosamente a porta e sai do quarto, vendo a sala iluminada. Dei passos mais barulhentos e observei que Heero, sentado no sofá, se virou para me ver. Ao lado dele estava um belo homem moreno de olhos verdes, com uma franja engraçada. E, em outro sofá, estava Quatre.

Aquele moreno me soava tão... Surreal. A sua expressão era de uma neutralidade e indiferença, mas completamente diversa da que Heero ostentava naquele mesmo instante. Era confortante. Aquele olhar me dizia calmamente "Confio em você, Duo.".

Quatre se levantou de um salto quando me viu e correu até mim. Abraçou-me gentilmente.

- Duo, que bom que você acordou ! – olhou em meu rosto – Parece-me bem melhor ! Acho que andam seguindo as instruções médicas !

- Acho que, como um bom médico, deveria dar exemplo. – sorri.

- Deveria mesmo. – fez um tom bravo, mas logo voltou a sorrir – Venha, sente-se, não é bom ficar de pé.

Conduziu-me delicadamente ao sofá, mas fomos interrompidos pelo belo moreno.

- Então você é o famoso Duo. – sorriu discretamente – Sou Trowa Barton, muito prazer.

Trowa estendeu gentilmente a mão para mim e a apertei, encantado.

- Muito prazer, sr. Barton, fico muito feliz em conhecê-lo.

- Por favor, chame-me de Trowa apenas. Quatre me fala tanto de você que parece até que já te conheço há tempos.

- Oh, sim, Quatre também me fala muito de você, sempre coisas boas. – sorri, divertido, ao ver meu amigo loiro corar.

Sentei-me ao lado de Quatre e só então percebi que Heero não havia dado uma única palavra. Olhei para seu rosto sério e soltei um breve sorriso que murchou ao não ser correspondido.

- Finalmente, Quatre, o que vamos pedir ? – Heero falou sem emoção.

- Não sei, precisamos escolher em função do Duo.

- Ah não ! Eu quero comer coisas gostosas ! – fiz um pouco de manha e Quatre sorriu.

- Você sabe muito bem que não deve comer certas coisas.

- Que tal pedirmos comida chinesa ? – Trowa sugeriu.

- Você realmente não acha que eu vá comer aquela porcaria, não é ? – Heero falou.

- Comida chinesa é gostosa ! – repliquei, recebendo um olhar ameaçador.

- São três votos contra um, Heero. – Quatre sentenciou – Vou fazer os pedidos.

Passou um longo minuto silencioso. Estava agoniado, precisava falar alguma coisa !

- Trowa, como você e Heero se conheceram ?

- Foi na faculdade. Estudamos juntos e resolvemos abrir um negócio.

- Vocês dois são tão calados... Nem sei como conseguiram se tornar amigos.

- Você que é tagarela demais. – Heero cortou.

O que havia acontecido para ele estar de tão mau humor ?

- Pronto, o pedido chegará daqui a pouco. – Quatre tornou a se sentar – O que faremos até lá ?

- Não sei, vocês que quiseram vir até aqui, vocês decidam. – Heero falou visivelmente irritado.

Será que ele não gostava de Quatre e Trowa ? Por mais que esta fosse a resposta lógica, não conseguia acreditar nela. Podia sentir que os três se gostavam, apesar de tudo.

- Que tal jogarmos alguma coisa ? – Trowa falou e pude notar um brilho em seus olhos.

- O que, por exemplo ? – falei, finalmente.

- Xadrez ? – Quatre interveio e Trowa soltou um suspiro – Não, Trowa, não vamos jogar cartas.

- Por que não jogamos cartas ? Assim todos poderemos jogar juntos ! – falei e vi Trowa me olhar um tanto agradecido.

- Duo, não dê corda para Trowa ! Ele tem um verdadeiro vício por baralho ! Só não supera a mania irritante que ele tem de fazer malabarismos com laranjas na cozinha !

- Quat... – o tom de Trowa foi genuinamente de censura e sorri.

- Será que você poderia me mostrar seus malabarismos, Trowa ?

Heero lançou-me um olhar confuso e revirou os olhos. O que posso fazer se a criança que vive em mim insiste em vir à tona ?

- Claro, Duo. – Trowa se levantou – Com licença, Heero, vou pegar algumas laranjas na cozinha.

- Hn. – deu um grunhido afirmativo.

- Duo, não sabia que você gostava deste tipo de coisa.

- Ah, circo é uma coisa encantadora. Se ele for bom, acho que vou me divertir bastante.

- Para falar a verdade, eu gosto quando ele faz isso. Mas não quero que ele saiba, ouviu ? – Quatre sorriu e me deu uma piscadela.

Aquela piscadela serviu para desencadear a minha regressão à infância.

Trowa voltou com quatro laranjas e estendeu uma a mim. Colocou-se em nossa frente e começou a jogá-las no ar, fazendo algumas acrobacias com as frutas. Ele era mesmo muito bom ! Soltava risadas quando o moreno fazia algumas gracinhas e arremessei a quarta laranja quando ele pediu.

Quem diria que uma pessoa tão reservada poderia ter tanto carisma ? Se ele não fosse um empresário, recomendaria seriamente o circo a ele. Teria feito muito sucesso.

Continuou com as acrobacias, recebendo muitos aplausos animados meus e de Quatre. Heero assistia a tudo com uma cara de tédio mortal. Seria engraçado se não fosse chato perceber que não se divertia conosco.

Oras, mas que diabos aquele homem tinha afinal ?

Trowa parou apenas quando a campainha tocou, indicando que nossa comida finalmente chegara. Fez uma pequena reverência para nós e foi guardar as frutas. Quatre se levantou e foi atender a porta e me senti responsável por arrumar a mesa. Mas, antes de seguir até a cozinha, permaneci alguns segundos em frente a Heero, que me olhou sem emoção. Franzi as sobrancelhas, tentando pensar em algo inteligente a se fazer, mas acabei desistindo. Dei um sorriso a ele – que, logicamente, não foi retribuído – e fui fazer o que achava que devia.

"Morra sozinho !"

Por que este pensamento insistia em voltar a minha mente ? Será que Heero estava de tão mau humor simplesmente por causa da minha presença ? Talvez estivesse sendo um incômodo maior do que previra. Tinha uma coisa estranha no peito, uma vontade imensa de querer agradá-lo... Algo que só havia sentido uma única vez, pela mamãe. Nem mesmo Hilde e Solo me fizeram sentir isso.

Todavia esperava que este meu sentimento tivesse um destino mais afortunado do que o que tive pela mamãe. Era incrível como minha vida estava mudada em tão pouco tempo. O que não mudara, contudo, era o sentimento ruim que ainda tinha dentro de mim. Ainda tinha um leque de opções para me machucar e quem sabe assim...

- Duo. – senti uma mão apertar meu ombro, arrancando-me de meus devaneios.

Foi então que notei estar parado em frente a mesa já arrumada por mim mesmo, mirando-a como se houvesse um elefante em cima dela. Trowa estava atrás de mim, com a mão em meu ombro, e Quatre vinha se sentar, chamando por Heero. Cheguei a pensar que Trowa pudesse ouvir meus pensamentos pelo tom que me chamou.

Bobagem.

Dei-lhe um sorriso gentil e me sentei ao lado de Quatre. Heero sentou-se a minha frente, ao lado de Trowa, e fez um careta ao ver a comida. Dei um sorrisinho divertido, recebendo um de seus olhares assassinos em troca. Servi-me de uma quantidade generosa e passei a observá-los enquanto conversávamos.

- Relena ligou para mim hoje, Heero. – Trowa falou.

- E o que eu tenho a ver com aquela mulher ? –replicou de mau humor.

Quem era Relena ?

- Ela disse que te encontrou hoje no parque e te convidou para jantar, o que você recusou.

- E recusarei quantas vezes forem necessárias.

- Você quer pôr a perder todo o nosso negócio com os Peacecraft ?

Quase engasguei. Então essa tal de Relena pertencia a família Peacecraft, uma das mais influentes deste país, Sank ? Heero era mesmo uma pessoa muito rica, mais até do que imaginara. Pensando bem, eu já havia visto muitas fotos desta Relena em revistas. Até que não era feia, mas chata... Isso, infelizmente, as páginas não podem retratar com fidelidade.

- Já disse que não me importo, prefiro perder o negócio a ter que sair com aquela mulher maluca.

- Você poderia deixar de ser egoísta e se colocar no meu lugar por breves segundos ? Você pode até querer perder o negócio, mas eu não quero e preciso de você nisso. – a voz de Trowa soou irritada.

Os tons estavam me deixando assustado. A última coisa que queria era uma briga entre os dois. Não gostava de ver pessoas brigando, apesar de às vezes provocar confusões só por diversão. Acabei intervindo.

- Por que você não quer ir ter com esta tal de Relena ? – olhei para Heero, que me lançou um olhar confuso.

- Hn. – soltou um grunhido irritado – Eu a odeio.

- Então é que deveria ir mesmo !

Todos me olharam incrédulos. Acho que a minha linha de raciocínio não estava clara o bastante.

- Deixe-me explicar : se você a odeia, é porque a ama com todo o seu ser.

A cena que se sucedeu foi completamente surreal. Heero quase cuspiu o suco que estava engolindo, lançando-me um olhar assassino como nunca tinha visto antes. Trowa e Quatre caíram na gargalhada e me vi completamente confuso.

- Que idiotice é essa, baka ? – Heero falou completamente irritado.

- Baka ? O que é isso ? – estava confuso.

Mais gargalhadas explodiram de Trowa e Quatre e tive a absoluta certeza de que deveria ter ficado calado. Se olhar matasse, já estaria devidamente esquartejado pelas safiras de Heero.

Não que me importasse. Seria até mais fácil.

- Deixe-me explicar duas coisas, Duo. – Trowa falou – Heero não é daqui, é do Japão. Baka é uma palavra japonesa que significa idiota. Já estou bem acostumado a ela.

- Ah...

O carinho de Heero por mim me impressionava... Mas a palavra era até muito legal – se fosse utilizada só para mim. Uma espécie de apelido carinhoso.

Louco por querer ser chamado de idiota ? Não. Louco por querer receber um apelido carinhoso de alguém que mal conheço.

- E outra : você realmente não iria querer ter Heero e Relena num mesmo ambiente. Haveria manchetes de assassinato no dia seguinte em todos os jornais. – Quatre completou.

- Mas não entendo... O ódio e o amor são a mesma coisa, então ele deveria ir jantar com ela.

Heero desistiu de replicar, apenas me olhando como se eu tivesse uma melancia na cabeça. Acho que ele realmente pensava que eu falava muita besteira. Mas já tinha começado, agora iria até o final.

– Se uma pessoa odeia a outra, é porque tem uma verdadeira obsessão por ela. Se ela não fosse tão importante em sua vida, não a odiaria. O ódio também é uma forma de amor, pelo menos é isso que eu acho. – continuei com meu pequeno raciocínio.

- É um ponto interessante... – Trowa falou – Acho que vou ligar para Relena e contá-lo, ela irá adorar.

- Duo, omae o korosu ! – Heero praticamente cuspiu cada palavra, levantando-se e indo até o sofá.

Essa Relena era tão abominável ? Mas ainda achava que minha teoria não estava correta, afinal toda regra tem uma exceção, certo ? Vendo minha confusão, Quatre sussurrou em meu ouvido.

- Ele disse "Eu vou te matar". E vá lavar a louça enquanto o distraímos, certo ? Será seu exercício por hoje.

Assenti e fui fazer o que fora pedido. Quatre ainda me tratava feito uma criança. Confesso que até gostava, mas a falta de confiança às vezes me irritava. Afinal, eu sabia ser responsável quando queria.

Estava feliz de ter finalmente conhecido Trowa. Ele era mais legal do que pensava e ficava orgulhoso de Quatre ter encontrado alguém que o merecesse. Também tinha um pouco de inveja. Quem iria se interessar por alguém como eu, esquisito e melancólico ? Ainda estava para nascer o louco ou a louca que iria se apaixonar por mim.

Não, o sexo da pessoa não me importava. Apenas o sentimento.

Senti meus olhos lacrimejarem. Eu estava fazendo tudo errado de novo. Droga ! Por que esta maldita vontade de agradar estava nascendo justo agora ? E por alguém que sequer conhecia direito ! Será que o fato dele ter me salvado, de ter me ajudado quando achei que ninguém o faria, tinha mexido tanto comigo ?

Contudo, tudo o que fazia apenas o irritava. Mais uma vez. Merda, uma lágrima estava escorrendo dos meus olhos. Não poderia voltar para lá de olhos vermelhos. Vamos, Duo, vamos focar em um assunto mais feliz. Que assunto feliz ? Péssima idéia... Seria melhor cantarolar uma música qualquer. Sim, esta definitivamente era uma idéia melhor.

- Fly me to the moon and let me play among the stars... Let me see what spring is like on Jupiter and Mars...(1)

Cheguei até a sala e vi Heero sentado desconfortavelmente no sofá enquanto Quatre e Trowa trocavam um beijo apaixonado, em pé.

Inveja. Sempre inveja.

Quando pararam, notaram-me em pé na porta da cozinha. Quatre sorriu.

- Duo, querido, Trowa e eu precisamos ir. Descanse direitinho e evite sair da cama amanhã. Você sabe o que deve fazer, você também é um médico.

Pelo menos ele reconhecia.

- Sim, Quat, pode deixar. – ele veio em minha direção e me deu um beijo na testa – E foi um prazer conhece-lo, Trowa.

- O prazer foi meu. – bagunçou minha franja e passou o braço pelos ombros de Quatre – Cuide-se, criança.

Mostrei minha língua a ele, que sorriu. Fechei a porta para eles e segui até Heero, ainda sentado no sofá. Fiquei em pé a sua frente e tentei adivinhar seus pensamentos. Inútil. Mais parecia uma muralha de gelo.

- Posso fazer alguma coisa por você, Heero ?

- Nunca mais mencione o nome de Relena. Isso será o suficiente, baka. – falou sem emoção.

- Gostei do apelido. – sorri.

Ele tornou a me olhar como se tivesse uma melancia na cabeça. Mas eu havia realmente gostado daquela palavrinha. Soava-me como se Heero estivesse sendo honesto comigo. Sem cuidados especiais, apenas o que realmente achava de mim. Idiota.

- Se não quer nada, boa noite então.

Comecei meu caminho até o quarto que me fora dado quando sua voz me parou. Voltei-me para ele.

- Se não sabia o que é baka, você sabe o que é Shinigami ?

A imagem de Hilde sorrindo e me chamando de Shinigami pela primeira vez passou pela minha mente. Estávamos naquele maldito parque, eu e ela... Foi no dia em que ela me apresentou ao Solo como um amigo. E no dia em que me apaixonei por ela.

Mas ela era boa demais para mim. Foi impossível ter raiva quando ela e Solo começaram a namorar meses depois. Fiquei muito feliz por ela, sempre radiante, provando-me que ele realmente a fazia muito feliz. Era o que me bastava.

Não sei quanto tempo fiquei parado, mas notei que Heero me fazia uma discreta careta.

- Sim, eu sei. Deram-me este apelido e disseram o que significava. Mas não conheço o seu idioma natal. – falei um tanto distante, o que acho que ele percebeu.

- Amanhã de manhã eu terei de sair para resolver umas coisas com Trowa. Não faça nada que eu não vá gostar.

- Pode deixar. – bati continência e seus olhos me sorriram.

- Pode ligar o ar-condicionado se quiser. E boa noite para você também, baka. – falou a última palavra de maneira pausada.

Sorri e voltei ao meu quarto. Senti que, no fundo, ele ainda queria me agradar um pouco. Não havia mandado tudo às favas, afinal. Mexi nas minhas coisas, tentando achar meus pijamas, e acabei esbarrando meus dedos em algo friamente metálico. Puxei-o e pude admirar o crucifixo que minha mãe usava quando era viva.

Tive uma estranha vontade de colocá-lo em meu pescoço. Era como se eu pudesse senti-la me protegendo, mesmo apesar de ela me odiar. Mas, afinal, ódio não era o próprio amor ? Mamãe devia ter me amado a sua própria maneira... Um jeito bizarro, mas gostava de acreditar que, no fundo, ela me amava.

Então deixei que aquela cruz me envolvesse e me desse um pouco de paz. Soltei meus cabelos e me dirigi até o espelho para penteá-los. Engraçado, estava parecendo uma cópia de mamãe. Mas por que insistia tanto em pensar nela hoje ?

Vesti minha calça e minha blusa de moletom e liguei o ar-condicionado. Fechei as cortinas – um maldito hábito que adquiri com o tempo – e me deitei na cama macia. Coloquei um par de meias brancas confortáveis e me enfiei debaixo das cobertas. Precisava saber o que faria quando saísse da casa de Heero, mas não tinha a mínima vontade de fazer isso. Apenas pequenos planos sobre o que fazer no dia seguinte corriam pela minha cabeça.

Dei uma última olhada nas duas flores que jaziam no vaso. Meditação e grandeza da alma, certo ?

- Baka... – murmurei baixinho e adormeci, sorrindo.

Continua...

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N/A : Bem, acho que estou começando a pegar o jeito da coisa... Entendendo como escrever em primeira pessoa funciona. Finalmente ! Eu realmente espero que a fic esteja agradando, de verdade mesmo. Este foi um capítulo sem muitas referências, diferente do anterior. Bem, quanto ao brilho nos olhos de Trowa quando falou em jogo... Sei lá, ele tem cara que gosta de jogar cartas – e fazendo apostas.

Gostaria de mandar beijos especiais a Celly, Litha, Lira Belacqua, Anne e Perséfone. As respostas das reviews estão lá no meu blog, chibi ponto weblogger ponto com ponto br. Muito obrigada e mil beijos ! E lembrem-se : reviews são sempre bem vindas !

Nota :

(1) "Leve-me até a lua e me deixe brincar por entre as estrelas... Deixe-me ver como a primavera é em Júpiter ou em Marte." Trecho da música "Fly me to the moon", cantada por Frank Sinatra. Curiosidade : é o encerramento de Evangelion.