Réquiem de Esperança
Capítulo VIII – Shinigami
Disclaimer : Trowa e Catherine estava treinando arremesso de facas e, por acidente, uma delas acertou em cheio os meus direitos autorais de Gundam... Então, infelizmente eles não me pertencem, mas a Yoshiyuki-san.
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"Le livre de la vie est le livre suprême/Qu'on ne peut ni fermer, ni rouvrir à son choix;/ Le passage attachant ne s'y lit pas deux fois/Mais le feuillet fatal se tourne de lui-même;/On voudrait revenir à la page où l'on aime/Et la page où l'on meurt est déjà sous vos doigts."
Alphonse de Lamartine
"O livro da vida é o livro supremo que não se pode fechar e nem reabrir à sua escolha. A passagem que une não se lê duas vezes, mas a folha fatal gira ela mesma. Gostar-se-ia de retornar à página que se gosta e a página onde se morre já está abaixo de seus dedos."
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A mente humana é algo realmente fantástico.
Sempre, desde que era uma criança, tive costume de fantasiar com acontecimentos agradáveis – ou não. Possuíam tal força extraordinária que pareciam de fato serem reais. E, para mim, sempre foram. Uma espécie de realidade alternativa.
Aquilo era muito mais que uma realidade alternativa. Era um bálsamo para minhas dores. Se prestar atenção, perceberei que minhas memórias infantis mais felizes não aconteceram de fato. E sinto saudade de tudo aquilo que nunca vivi.
Patético ? Insano ? Não, é apenas a minha vida.
Conheci Hilde no meu primeiro dia de universidade. Sabe, às vezes paro para pensar nos motivos que me levaram a escolher a medicina. Apreciação dos assuntos abordados ? Talvez. Uma melhoria de situação financeira ? Quem sabe. Vontade de ajudar os outros sem se importar em fazer auto-sacrifício ? Decididamente.
Hilde possuía uma empatia enorme para comigo e acho que este foi o principal ponto de nossa aproximação. Sempre fui problemático e ela parecia possuir o dom de adivinhar o que se passava dentro da minha pobre cabeça. Ela foi o alicerce principal que me segurou durante o curso – e acabou por morrer antes de concluí-lo. Homenageie-a com louvor em nossa formatura; na verdade, só me graduei porque sabia do grande sorriso que ela ostentaria em sua face.
E foi graças a todo o apoio dela que Shinigami nasceu. E, com sua morte, Shinigami foi encarcerado dentro de mim novamente.
Mas algo me diz que este não era o ponto inicial de tudo... Aonde eu estava ?
"- Duo... Por favor... Ajude-me."
Ah, a voz de Heero. Sim, era aí que eu estava.
Ok, vamos fazer uma pequena pausa para reorganizar meus pensamentos. Heero estava caído em meus braços, quente, e havia acabado de me pedir ajuda. Trowa disse que ele nunca faz esse tipo de coisa. Isso significaria que ele confiava em mim.
Que espécie de ilusão doentia era essa que eu havia me metido ?
Tudo bem que eu me importasse com ele e quisesse reciprocidade, mas minha mente não precisava chegar ao ponto de me pregar uma peça daquelas. Heero jamais me pediria ajuda, oras ! Mas que outra palavra ele teria dito para e confundi-la com "ajude" ?
- Duo, eu... Vou vomitar. – sua voz mais uma vez me arrancou dos pensamentos.
Vômito ? Sendo ilusão ou realidade, minha visão coberta de vômito não era uma das mais agradáveis. Apoiei Heero no meu corpo e segui o mais rápido que pude até o banheiro. Foi exatamente o tempo que ele conseguiu segurar, quase colocando o estômago para fora.
Aquilo definitivamente não era uma ilusão. E o cheiro era bastante desagradável também.
Quando ele terminou, coloquei-o de pé e umedeci uma toalha, passando-a pelo seu rosto. Voltei com ele nos braços e o depositei em sua cama, acendendo a lâmpada para olhá-lo melhor. Ele estava bem mal. Mas como ninguém havia percebido isso ?
Ajoelhei-me ao lado da cama e encostei minha mão em sua testa. Ele estava com muita febre. Senti algo dentro de mim estalar, como correntes sendo quebradas. Velhas engrenagens, praticamente esquecidas, voltaram a girar no meu cérebro.
Sim, aquele era o sinal de que ele queria se libertar. Ele poderia estar voltando.
- Heero, diga-me o que você sente. – falei com calma.
- Dor... Uma dor insuportável. – ele fechou os olhos.
Até agora nada era conclusivo.
- Aponte o local onde dói.
Ele levou sua mão até o quadrante inferior direito do abdome. Estava apontando a fossa ilíaca direita. Febre, vômitos e dor naquele local. As minhas engrenagens estavam girando em torno de uma perspectiva de diagnóstico, mas precisava de mais informações dele.
- Como a dor começou ?
- Difusa... Do umbigo... Começou a doer aí faz umas duas horas... – falava com dificuldade.
- Você comeu alguma coisa hoje ?
- Muito pouco... Estava sem apetite...
Minha cabeça estava a mil. Uma possibilidade se delineava cada vez mais forte. As vozes de todos os meus professores da universidade vinham a minha cabeça, numa tentativa de relembrar alguns detalhes. A adrenalina percorria o meu sangue como há muito não sentia.
Aquilo era muito bom, mas a situação era o completo oposto.
- Heero, vou precisar te examinar um pouco, mas terei de desabotoar sua camisa. Com licença.
Ele não replicou. Minhas mãos desabotoavam vagarosamente sua camisa e as pontas de meus dedos roçavam contra sua pele quente e bem trabalhada. O tronco dele era absolutamente perfeito. Heero era lindo. Deixei minha pele entrar em contato com a dele de maneira quase imperceptível.
Alguém me mataria se eu dissesse que estava me excitando com tudo aquilo ? Não me olhe como se eu fosse um monstro, a adrenalina tem sua parcela de culpa nessa história ! Mas uma voz conhecida dentro de minha cabeça me repreendeu e me fez franzir o cenho.
"Foco, Maxwell ! Você está perdendo o foco !"
Pelo menos aquele chinês serviu de alguma coisa num momento como este.
- Heero, eu vou pressionar aqui, se a dor aumentar, diga.
- Tudo bem...
Empurrei um pouco o abdome para baixo, notando uma certa resistência. Aquilo era mau sinal. Ele fez uma careta de dor, mas, quando aliviei a pressão que fazia, ele quase pulou da cama.
- Duo... Dói muito mais... Piorou...
Sinal de descompressão positivo. Febre. Vômitos. Perda de apetite. Dor iniciada no umbigo e se concentrando na parte inferior direita do abdome. Clang. Todas as engrenagens apontaram na direção mais provável.
Heero estava com apendicite.
Heero estava com os sintomas fazia muito tempo.
Heero estava correndo risco de morte.
Clang duplo. Ele precisava ser levado ao hospital imediatamente ! Necessitava de um centro cirúrgico de urgência.
- Heero, você precisa ser levado até o hospital. – ele soltou um grunhido de desaprovação – Não é hora para discussões. Onde está a chave do carro ?
Tentei soar o mais natural possível, mas falhei miseravelmente. Ele esticou o braço e abriu a gaveta do criado-mudo. Reconheci várias coisas impróprias, como camisinhas, mas rapidamente divisei a chave do carro.
As camisinhas me deixaram um tanto desconfortável, mas o momento não poderia ser mais inapropriado para isso. Coloquei-o em meu colo e saí carregando-o nos braços. Ele continuava de olhos fechados e eu nervosamente apertava o botão do elevador. A porta se abriu e nós entramos.
- Consegue ficar de pé sozinho ?
- Acho que sim.
- Preciso ligar para Quatre... – falei baixinho e ele me estendeu um celular de dentro do bolso.
Sorri agradecido e tentei entrar em comunicação com ele. Inútil. O maldito celular estava fora de área. Devolvi o aparelho fazendo um leve aceno negativo com a cabeça. Ele suspirou.
Passado pouco tempo, apoiei-o e o conduzi até seu carro. Foi então que minha ficha caiu novamente. Heero não estava em condições de dirigir. Por acaso em algum momento eu citei que minha carteira de motorista era inútil ? Porque agora eu iria provar exatamente o contrário.
Um calafrio percorreu a minha espinha. Eu iria dirigir o porsche de Heero ! Não seria nada adequado eu dirigisse um carrão daqueles, ainda mais depois de passar um bom tempo sem encostar num volante. Se eu arranhasse aquele carro, as promessas dele se fariam reais.
Abri a porta e o depositei com cuidado no banco dianteiro, reclinando-o um pouco. Com mais cuidado, prendi o cinto de segurança, recebendo uma careta como resposta.
- Sinto muito, mas você tem um carro que em nada ajuda. Ou queria ir deitado no capô ?
Entrei no banco do motorista e tamborilei com meus dedos no volante. Suspirei. O hospital em que Quatre trabalhava – e era o diretor, por sinal – ficava a poucas quadras daqui. Chegaria suficientemente rápido. Se tudo desse certo, o maldito apêndice de Heero não teria aberto e lhe dado uma bela peritonite, ou ele estaria frito.
Girei a chave na ignição e toquei o carro até o hospital no mais absoluto silêncio. Heero havia fechado os olhos e tinha as sobrancelhas unidas. Aquilo deveria estar doendo pra cacete, não sei porque ele não reclamava. Mania de auto-suficiência, talvez.
Entrei voando no hospital e libertei Heero do assento, colocando-o nos braços e correndo o mais rápido que pude até a emergência. Deixei-o sentado numa cadeira e fui até o balcão.
- Com licença, mas preciso urgentemente levar um paciente até a sala de exames. Provavelmente ele fará uma cirurgia também.
- Sinto, mas todos os plantonistas estão ocupados agora. Aguarde um momento que já os repassarei para um dos médicos.
- Desculpe-me, mas você não me entendeu. – estava completamente nervoso, aquela mulher estava me fazendo perder tempo – Eu sou médico, apenas quero entrar com o paciente.
- Qual o seu nome ?
E isso importava agora ?
- Duo Maxwell.
Ela perdeu mais alguns angustiantes momentos olhando o cadastro do hospital. Depois me olhou com um ar de indiferença.
- Desculpe-me, sr. Maxwell, mas aqui não consta que o senhor é médico do hospital.
- Claro que não sou ! Mas me formei naquela maldita universidade credenciada com este hospital e preciso entrar com o paciente ! – minha voz começou a se alterar e ouvi um grunhido de Heero num ponto atrás de mim.
- Apenas a equipe do hospital pode realizar qualquer procedimento neste ambiente, sr. Maxwell.
- Deixe-me ser mais claro, então. – falava muito alto, completamente alterado – Eu estou com um paciente que tem sintomas de apendicite aguda há quase um dia, o que significa que o quadro pode ter evoluído para uma peritonite. Assim sendo, ele corre sério risco de morte. – gritei – Ouviu bem ? Risco de morte ! Eu não tenho tempo a perder numa maldita sala de espera se eu mesmo posso realizar todos os procedimentos !
- Se continuar a gritar, terei de mandar os seguranças o tirarem daqui.
- A vida de um paciente é tão insignificante para este hospital ? Não se importam que ele morra na sala de espera ? – gritava, completamente exasperado.
Burburinhos irromperam na sala de espera com minhas palavras. A mulher me fitava com um cara de desprezo profundo e a vi acenar para os seguranças. Eu iniciara uma luta contra o tempo com Heero e tudo parecia nos impedir de obter êxito. Ele não poderia perder mais tempo. Estávamos completamente encurralados. Senti a aproximação dos seguranças e me preparei para desferi-lhes golpes que o chinês maluco me ensinara.
A saúde de Heero era mais importante do que aconteceria com meu futuro profissional.
- Duo ! – uma voz feminina peculiarmente familiar me entrou pelos ouvidos e virei a cabeça até o corredor que dava acesso a ala de salas e centros cirúrgicos.
Lá estava ela, de pé, cabelos loiros soltos pelas costas e aquelas inconfundíveis sobrancelhas bifurcadas. Velha conhecida de universidade, minha antiga monitora e que agora viria a calhar.
- Dorothy, eu preciso de um centro cirúrgico e um hemograma imediatamente. – minha voz era mecânica. Os seguranças se afastaram com a intervenção dela.
- Mas do que está falando ? E se acalme, isso ainda é um hospital ! – ela se aproximou de mim e me puxou, levando-me até um canto – O que está acontecendo, Duo ?
- Está vendo aquele rapaz sentado ali ? – apontei para Heero – Ele é um amigo meu e, neste exato momento, pode estar sofrendo de uma peritonite por conta de uma apendicite aguda. Agora me responda : ele pode ter atendimento nesta merda de hospital ?
- Duo, não se exaspere. Você o examinou ?
- Febre, vômitos, falta de apetite, dor na região inguinal direita, sinal de descompressão positivo. O que mais você quer que eu diga, meu registro no conselho de medicina ? – falei sarcástico.
- Ok, eu estou de plantão agora, vou levá-lo para fazer um hemograma e providenciarei um centro cirúrgico. Ele é meu agora, relaxe.
Ela se virou, mas segurei bruscamente seu braço. Se ela pensava que simplesmente ia desaparecer com Heero de minhas fuças e iria operá-lo por mim, estava muito enganada.
Ele havia confiado em mim e não nela. Ele queria que eu o salvasse, fizesse aquela dor desaparecer. Era completamente antiético operar alguém que eu tivesse algum envolvimento afetivo de qualquer espécie, mas eu não ligava para isso. Shinigami não ligava para isso. Heero se orgulharia de mim quando eu o salvasse.
- Você não me entendeu. Eu vou operá-lo, não você.
- Como ? – ela franziu o cenho.
- Aquele idiota confiou em mim e não em você. Sou eu quem vai realizar esta maldita apendicectomia !
- Você não pode, Duo ! Você não faz parte deste hospital !
- E quem disse que estou me importando com isso ? Quem vai fazer esta porcaria sou eu e pronto !
- Você não vai conseguir o acesso.
- Só se você não quiser me ajudar. – falei baixo.
Era a minha cartada final.
- Perdão ?
- Dorothy, me faça entrar como acompanhante. Lá eu assumo e ninguém precisa saber. Seu nome não vai ficar sujo, eu me responsabilizarei se algo der errado.
- Duo, eu não posso...
- Porra, Dorothy ! – ela me olhou alarmada – Não é hora para discutir o meu vocabulário, apenas me deixe fazer a merda da cirurgia !
Ela refletiu durante alguns minutos da mais pura impaciência de minha parte.
- Dorothy... Quebre este galho para mim, ou ele vai morrer ali sentado... E você ainda poderá assistir ao Shinigami.
- Mas você não disse que Shinigami estava preso desde o enterro de Hilde ?
- Assim que eu passar por aquela porta – apontei para o acesso a ala do hospital – tudo será diferente.
- Duo... Se você fraquejar, eu assumo imediatamente a cirurgia.
- Ok.
Aproximei-me de Heero sentado na cadeira e passei a mão pelos seus cabelos.
- Hee-chan, não se preocupe. Shinigami irá tomar conta de você, tudo vai dar certo. – sussurrei em seu ouvido e notei que ele relaxou um pouco.
Ele realmente confiava em mim ?
Rapidamente vi que Heero fora conduzido até uma maca e ouvi a voz de Dorothy dizer a recepcionista que ela estava assumindo o caso, enquanto entrava triunfante naquela ala tão conhecida para mim. Naquele lugar onde realizei meus estágios.
Se Hilde estivesse aqui neste momento, estaria radiante. Afinal, Shinigami havia renascido das cinzas, como a própria fênix.
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A cirurgia tinha se processado inteiramente ao meu comando.
Neste exato momento, encontrava-me sentado num banco do jardim do hospital, mirando o infinito. Por que eu não estava ao lado de Heero ? Ele ainda demoraria muito para acordar, estava sobre o efeito do anestésico.
A cirurgia fora um sucesso, embora não tenha transcorrido tão tranquilamente. Shinigami ainda era bom no que fazia.
Quase suspirei aliviado quando abri aquele abdome e vi apenas o maldito apêndice lá, inflamado e preso pelo próprio corpo a fim de que não houvesse maiores estragos. Decerto que mais alguns instantes de demora e eu teria encontrado uma bela peritonite na minha frente.
Nem ao menos falei com Dorothy depois de encerrada a operação. Ela apenas me disse o número do quarto onde Heero ficaria e saí, alegando que precisava pensar. Na verdade, estava tentando acorrentar Shinigami novamente no lugar. Não haveria mais operações, por mais que cada sucesso que eu obtivesse em uma delas alegrasse Hilde. Aliás, depois que Quatre ficasse sabendo desta que aprontei em seu hospital, nem registro médico eu teria mais.
Hilde... Faz tempo desde que Shinigami nasceu...
- # - Flashback - # -
Esta praça é definitivamente agradável. Gosto quando venho até ela com Hilde para conversarmos, depois de nossas aulas de cirurgia com Quatre. Hoje foi o dia em que, pela primeira vez, eu simulei uma operação e notei o sorriso orgulhoso do professor. Aquele era um ramo muito gostoso de atuar.
A adrenalina do momento, os pensamentos rápidos, as melhores táticas de infiltração para se atingir o determinado objetivo. Não, isso não era a vida de um soldado, mas a de um médico plantonista de uma unidade de emergência. São pouquíssimos segundos que se tem até decidir a melhor maneira de intervir no paciente. E a competência é elemento chave, além da capacidade de se manter frio.
Meu coração não era frio, contudo. Fazia alguns meses que notei algo diferente em mim com relação a Hilde. Seu sorriso fazia meu coração disparar e ficava muito feliz quando recebia elogios da parte dela. Acho que estou apaixonado.
Falando nela, está bem atrasadinha. Mulheres...
- Boo ! – ouvi a voz doce de Hilde atrás de mim e sorri.
- Você não me assusta, bobinha.
- Ah, Duo, assim não tem graça ! – ela se sentou ao meu lado – Mas o que foi aquilo na aula de hoje, hein ? Você ficou completamente estranho quando simulou a cirurgia !
- Fiquei ?
- Sim, parecia outra pessoa. Completamente frio e imparcial, fazia as coisas como se estivesse procedendo algo que dependesse sua vida !
- Isso é ruim ?
- Não, não é ruim porque isso foi somente quando você estava numa situação de risco. É uma vantagem para você. Mas o que me impressionou foram suas lindas violetas.
- Por quê ? – senti que estava corando.
- Elas tinham um brilho diferente. Parecia que você era um deus julgando um mortal. Um deus com o dom de decidir entre a vida e a morte, como se a sua vontade fosse definir se o paciente fosse viver ou morrer. Acho que você tem esta personalidade adormecida dentro de você. Vou chamá-la de Shinigami.
- Shinigami ? O que é isso ?
- É uma palavra japonesa. Significa "deus da morte". É assim que vejo esse seu outro lado. E saiba que gosto muito dele dentro de um centro cirúrgico.
Sorri genuinamente. Senti a adrenalina correr em meu sangue; era a hora de me declarar a ela. Precisava dizer o que sentia. Notei que a expressão do rosto dela mudou completamente e a vi acenar para um rapaz, que se aproximou de onde estávamos. Ela estava bastante diferente; parecia extremamente feliz de encontrá-lo ali. Algo que nunca vi em seu rosto em relação a mim. Senti uma pontada de inveja.
- Duo, deixe-me apresenta-lo. Este é Solo, um amigo meu.
- Prazer, Solo. – sorri e apertamos as mãos.
Olhei mais uma vez para os dois e não senti raiva. Era nítido como água o sentimento que fluía entre os dois. Amor.
- # - Fim do flashback - # -
A minha grande vontade neste momento era a de fumar um cigarro. Dizem que o fumo prolonga o prazer; talvez quisesse prolongar meu alívio. Mas não infectaria meus pulmões jovens e virgens por uma pequena dose de nicotina. Além disso, o local onde estava não poderia ser mais impróprio para isso.
Poderia beber alguma coisa forte, contendo muito álcool. Porém o funcionamento perfeito de minhas faculdades mentais seria bastante importante para quando Quat chegasse. Oh, eu teria de enfrentar uma briga daquelas e, desta vez, sem a mínima chance de salvação.
Eu estava ferrado.
Talvez alguém deve estar se perguntado como Quat descobriria que fora eu quem operara Heero. Muito simples : eu fiz um escândalo na recepção do hospital. Quat sabe que sou obstinado o suficiente para realizar a cirurgia com Heero de qualquer forma. Mas, como disse antes, livraria Dorothy de qualquer culpa.
Todas as minhas atitudes em relação a Heero desde o dia em que o conheci tem sido muito estranhas. A sensação de querer agradá-lo, de fazê-lo sentir orgulho de mim já estava se tornando quase obsessiva. Era dolorosamente decepcionante passar horas a fio lutando com a comida na cozinha para vê-lo chegar em casa e mal comê-la.
Ainda me amaldiçôo por não ter percebido seus sintomas antes. Isso seria o mínimo que alguém pudesse esperar de um médico. A falta de apetite, uma constante mão pousada no abdome, um pequeno mau humor acentuado. Se me importo tanto com ele, deveria ter percebido, oras !
Ele deve ter sofrido durante todo esse tempo. Ele era teimoso, jamais diria que tinha uma dor na barriga. No mínimo pensaria que era somente uma besteira e que logo desapareceria. Isto não está certo. Ele tem que pedir ajuda quando houver algo errado.
Oras, mas quem sou eu para dizer que ele deve pedir ajuda ? Sou o primeiro a não conseguir fazer isso. Porém ele me ajudou mesmo assim. Mesmo sem que eu vocalizasse meu pedido. Parecia ler a minha mente com maestria e perceber exatamente o que eu precisava.
Mais um clang : eu estava apaixonado por ele.
Amor ? Não, amor é uma palavra muito forte. Amor à primeira vista é pura ficção de filmes piegas. Existe uma paixão ou uma atração à primeira vista, jamais amor. Amor é construído ao longo de um tempo. Tudo evolui, possui estágios; esse amor piegas de comédias românticas seria um salto de estágios e isso é contra toda a evolução.
Sabia que mais cedo ou mais tarde isso aconteceria comigo. Sou frágil e me apego facilmente as pessoas. Se alguém demonstra uma preocupação tão grande quanto a que Heero mostrou por mim, irremediavelmente me encantaria por esta pessoa. Eu não queria sair daquele apartamento, mas seria apenas um estorvo para ele.
Preciso reorganizar meus pensamentos. Acho que a idéia do suicídio foi adiada por alguns dias, até a recuperação total dele.
Sim, a idéia suicida ainda existia dentro de mim e a gora com mais força. Afinal, quem poderia me afirmar com exatidão que essa paixão era correspondida ? Muito pelo contrário; ele deveria estar envolvido com alguma mulher, talvez a tal de Relena. Fora que eu não passaria de um coitadinho qualquer, uma criança dez anos mais nova que ele, que precisava de alguma orientação e que depois ele jamais veria novamente.
Uma criança idiota, problemática, medíocre.
Minha auto-estima ? Digamos que ela seja negativa ou inexistente.
Gostaria de poder voltar no tempo. Pararia exatamente naquele dia em que Hilde me apresentou Solo; digamos que esta teria sido a minha melhor época. Notável, para mim, é a diferença entre estar bem e estar feliz. São duas coisas completamente diferentes. Ali estava bem e um tanto feliz por vê-la contente. Os dois eram genuínas almas gêmeas.
Contudo os meses passaram rápido demais. Logo chegou o meu aniversário e, mais uma vez, uma desgraça aconteceu. Daria tudo para vê-la clamar pelo Shinigami novamente. Para sentir seus dedos gentis arrumando a minha trança. Para sentir o calor de seu sorriso, dando-me segurança e afeto.
Talvez eu tivesse sido feliz e só agora estivesse me dando conta do fato. Afinal, dizem que só percebemos que éramos felizes quando tal felicidade não mais existe. São os pequenos detalhes que fazem toda a diferença, são deles que sentimos mais falta. É um olhar de censura, o som de uma risada, um tique nervoso. Estas coisas nos afetam mais do que queiramos ou notamos.
E eram exatamente estas coisas que me faziam continuar vivendo.
No fundo, sabia que estava farto de viver num mundo de sonhos. Tem uma hora que a gente cansa e tenta fazê-los virar realidade. O problema é que as coisas são difíceis, o mundo não é perfeito. E as decepções são bem amargas.
Acha que sou um covarde por preferir a morte ao invés de enfrentar a vida ? concordo plenamente com você.
No entanto, apesar de tudo, não queria morrer sozinho. Adoraria ter alguém que se importasse, que chorasse no meu enterro, que percebesse a minha ausência, assim como sinto a de Hilde e Solo. Porém as pessoas pareciam simplesmente não notar minha presença, elas me ignoravam completamente. As únicas exceções foram Heero – no parque – e Hilde, durante todo o tempo que nos conhecemos.
Ela foi um alicerce para mim, uma base para reconstruir minha vida. Desde o primeiro dia em que nos encontramos, na universidade, ela simpatizou comigo e veio até mim, enquanto muitos torceram o nariz para o esquisito tagarela. Ela era simplesmente fantástica. Pergunta-me se ainda a amava, mesmo ela estando morta ? Não, não.
Estava apaixonado por Heero.
Continua...
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N/A : Hum, talvez daqui em diante eu comece os capítulos com uma citação ou trechos de poesias que se relacionem com o tema do capítulo e/ou da fic. É uma boa cartada. A propósito, eu não entendo muito de francês e a tradução foi de próprio punho, com auxílio de dicionários e tradutores, além do bom senso. Se alguém aí entende de francês, poderia verificar se não cometi nenhum equívoco ?
Primeiramente, queria dizer que detestei do fundo da minha alma a cena do hospital. Eu tinha tudo na cabeça, mas não consegui estruturar os diálogos da maneira que queria. E, quanto a Dorothy, ela tem uma bela cara de enfermeira, hein ? Mas acabou virando médica mesmo...
Gostaria de enviar um parabéns muito especial para a Tina Chan, que acertou em cheio o que o Heero tinha ! Nossa, precisava ver a minha cara quando li a sua review ! Mas comento melhor lá no meu blog, viu ? Mando beijos especiais também para a Litha, Ana Paula, Ophiuchus no Shaina, Megara-20, Kitsune Lina, Shanty, Dorayaki e Perséfone. As respostas das reviews estão lá no meu blog, chibi ponto weblogger ponto com ponto br. Muito obrigada e mil beijos ! E lembrem-se : reviews são sempre bem vindas !
