02.

Ele abriu os olhos, um leve cheiro de lavanda invadindo suas narinas. Tinha se virado durante a noite, fazendo o rosto se afundar entre aqueles cabelos longos e rosados. Suspirou, voltando a fechar os olhos, naquela mesma posição.
De repente ouviu um barulho peculiar. Um resmungo, mais fundo e grave. Abriu os olhos, observando agora o corpo esguio deitado à sua frente. Parado, tranqüilo. Ele sentiu-se aliviar os ombros, quando veio mais um ruído. Será que Mayura roncava? Decidiu levantar os olhos, para observar seu rosto e boca. Nada. Dormia feito pedra. Até que um novo ruído lhe saltou da boca, ainda mais grave e seco. Não era um ronco, nem murmúrio... ela apertava a mão contra o travesseiro, o rosto se afundando de leve, os olhos se contraindo suavemente... e aquele som, saltando entre os lábios num gesto quase mudo e discreto.

Ela folgou as pernas, se virando, quase trombando com o deus trapaceiro.

Loki se deitou novamente, olhando fixamente para as expressões que saltavam da face da menina. Ela respirou fundo, soltando o ar com força, entreabrindo a boca... os olhos de Loki a seguiam como se hipnotizados. Ele apertou os olhos, chamando toda a atenção de sua mente - e corpo - para o sonho que Mayura estava tendo. Ela apertou a mão uma vez mais, os lábios entreabertos tremeram num som mais abafado. Loki engoliu em seco, sentindo o próprio corpo respondendo ao leve gemido da ningen. Ele respirou fundo, e um aroma mais acre lhe tomou total consciência, vindo do corpo dela.

Um arrepio correu seu corpo, fazendo o menino deus tremer, com os olhos presos sobre ela. O cheiro acre do seu corpo se misturava ao doce lavanda de seus cabelos, numa mistura exótica e indescritível, atiçando cada sentido do deus trapaceiro.
Ele a olhava com intensidade e cuidado, notando cada movimento, sons, ar.
Que tipo de sonho ela?

-...i-kun.

Loki sentiu os olhos arregalarem-se ainda mais. Não ouvira o nome! Apenas um suspiro e o carinhoso -kun no final. Quem estava lá? Quem estava roubando dele aquele cheiro dela? Aquele suspirar dela? O gemer, o querer da pele? O suspiro roubado dela.
Ele fechou os olhos, respirando pausadamente.
Sabia que a amava, mas não daquele jeito. Ela fora sim, sua razão de ficar no Mundo dos Homens mas... não! Nunca sentira paixão. Sabia que a amava como um pai, como um amigo. Como o detetive menino Loki-kun amava sua linda e única assistente feminina.
Não tinha, em absoluto, nenhum outro interesse além de sua felicidade e zelo.
E era por isso mesmo, que devia saber quem estava em seus sonhos!

Fechou os olhos, tocando com os dedos de leve sua testa e a dela, invocando dentro deles os sonhos da menina.

-Mayura...?

Um par de olhos rosados se abriu sobre ele, esparramados sobre a face assim como os cabelos espalhados na cama.
Ela fez uma cara de bico, o olhando com intensidade.

-Você é injusto. Nunca diz quem é.

-Eu nunca digo?

Loki olhou à sua volta, procurando o dono da voz. Estava parado em uma porta, com Mayura olhando para ele. Mas como poderia! Ela estava falando com ele mesmo?

-Não. Você só diz meu nome.

Ele viu uma sombra passar por ele, uma sombra inconstante e disforme, hora grande, hora pequena, atravessando para fora do quarto.

-Mas você não quer lembrar de mim, Mayura. Toda noite eu venho, e quando é manhã você me esquece.

Ela se senta sobre a cama, os cabelos jogados sobre o ombro. Ela fecha os olhos, evitando olhar para a porta.

-Gomen ne, Loki-kun...

Ela voltou os olhos opacos para a porta, os arregalando num instante.
Havia alguém ainda ali.
Olhos verdes que a fitavam trêmulos e hesitantes.

-VÁ EMBORA!

Ela gritou, seus braços se apertando contra o corpo. Ela balançava a cabeça negativamente. Encolhia-se, pouco a pouco, contra o encosto de ferro da cama.
Loki a olhava, seus pés seguindo até ela sem nenhuma ordem ou permissão. Apenas pensava no seu grito, sua sombra ali, sobre ela... quantas vezes? Quanto tempo ela devia...? Devia ser muito doloroso, e confuso, para a mente dela. Não era estranho que ela jamais se lembrasse dos sonhos.

-Eu estou aqui, Mayura.

Ele sussurrou, se sentando ao lado dela na cama.

-Por quê! Por quê é você quem está aqui, Loki-kun!

Ela o indagava com os olhos mareados e inquietos, o devorando por dentro.
Ele tremia os lábios, abrindo a boca num gesto mudo, quieto.
Não havia nenhuma palavra.

Sentiu a mão apertar o travesseiro ao lado de seu rosto, com força. A respiração dela encostava-se à sua pele, quente. Sentiu seus dedos escorregarem pelo rosto, até seus cabelos.
Não dormia, nem acordava.
O deus trapaceiro e a ningen eram reais, dentro do próprio sonho.

-Por quê, Loki-kun?

Os olhos rosados e mareados, o sufocando por dentro e fora, com o rosto caído de lado se deixando tocar pela mão pequena, o cheiro, o tremor dos lábios, repetindo aquela mesma pergunta tão sem resposta, tão inevitável.

-Por quê... Loki...-kun.

Ela fechou os olhos, com força, forçando-se contra o sonho. Mas os abriu de novo, sentindo o leve roçar de dedos contra sua pele.
Os olhos verdes e sérios pousavam sobre ela, como se soubessem de tudo e tivessem tudo dentro deles. Ele tinha uma resposta. Ele queria dar a ela uma reposta. Uma única resposta, pousando quieta sobre ela.
Então eram lábios, caindo sobre os dela. Tocando, com pudor e medo, a boca trêmula da ningen. Ele tocou os lábios dela com os seus com força, exigentes. Ele tinha uma única resposta e era esta. Passou os dedos entre as mechas de cabelo, puxando ainda mais seu rosto contra o dele, os lábios se entreabrindo puxando ar, a língua se arriscando entre os lábios, dentro da boca, uma contra a outra. E um leve roçar de dedos sobre sua nuca.

Um arrepio lhe despertou, o fazendo abrir os olhos sobre ela.

Mayura havia erguido uma das mãos até sua nuca, brincando com os dedos entre os fios finos de cabelos que ali despontavam.
Ela apertou a mão, as unhas arranhando-lhe a pele de leve, a boca dela ainda tão próxima e saliente. Loki segurou um gemido entre os dentes, olhando para a menina à sua frente. Ao mesmo tempo assustada, Mayura mantinha os olhos fixos e carinhosos sobre ele.
Ela o queria, e o amava.
E o pior de tudo, é que simplesmente não lhe importava a forma em que ele se apresentava para ela.
Pelo menos não ali, em seus sonhos.