04.

"-Vem."

Loki abriu os olhos, num salto. A luz do sol invadia o quarto pela janela, se deitando sobre o corpo esguio que adormecia ao seu lado.
Suspirou, colocando a mão sobre a franja molhada de suor. Que sonho.
Esfregou os dedos, tentando se desfazer do suor. Passou a mão uma segunda vez, as pernas já se deslocando para fora da cama, os pés sentindo o leve frescor do assoalho de madeira... era cedo, e tudo parecia mais fresco.
Pés. Mãos. Corpo.
Estava em sua forma Kakusei.

-Loki... -kun...

Ele aperta os olhos com força, tentando refazer em sua mente toda farsa daquela noite. O cheiro, o leve ronronar, a mente pálida dele, ele estava nela, perdido nela, buscando por ela quando deu por si, no fim da noite, que ela estava completamente dentro dele.
Ele se volta para ela, trêmulo. Até onde?
Não.
O sabor que lhe deteve a boca não ultrapassou as barreiras mais fértis que a ingênua miko pôde imaginar. Sua sorte, talvez, fora a delicada ignorância de Mayura sobre os fatos e seus pormenores. Tocara seu corpo como quem toca uma boneca, sem desmanchá-la ou feri-la, abrindo-se apenas entre seus contornos e formas.

-Da...kedo...

Loki respirou fundo, dando as costas para o corpo que começava a se mexer. Mas.
Bufou, abaixando a cabeça, cerrando os olhos com força.
Logo, era apenas um menino.

-Hum?
-Ohayo, Mayura.

Ele sorriu o seu sorriso mais infantil e discreto, de pé ao lado da cama, de pijamas longos e riscados. Observou lentamente aqueles braços num espreguiçar manhoso, a boca abrindo-se descarada num bocejo fundo, os dedos dos pés lutando contra os lençóis, numa luta injusta e perfeita para cada manhã... perfeita.
Mayura inclinou o rosto em sua direção, num sorriso largo de quase lhe fechar os olhos, saudando no seu tom mais que habitual:

-Ohayo! Loki.

Mas ela parou, com os olhos trêmulos e a voz mais seca sobre os lábios.

-...-kun.

A boca tremia num respirar forte e angustiado, o peito palpitando forte sob o tecido. Aquele mesmo olhar, contido e mudo, roubando seu sorriso.
E o pobre deus trapaceiro sequer conseguia entender.

-Mayura, você está bem?

Ela piscou forte, fingindo um sorriso amarelo.

-Hai.

Ela apertou os olhos em sua direção, se levantou e correu em direção ao banheiro.
E tudo que o deus do Caos ouviu então foi o bater da porta, tímido.

Loki desceu para o café, encontrando um esfomeado Thor em sua mesa junto a Yamino, que sorria largo ao ver sua comida tão bem saboreada.

-Ohayo gozaimasu, Loki-sama.

Cordial como sempre, Yamino lhe ajeitou a cadeira, os talheres e a louça. Notou o silêncio inquieto do pai atrás daquele sorriso, mas resolveu não intervir. Sabia, claro, quem havia passado a noite em seu quarto, e ainda que não pudesse ter pensamentos maliciosos, compreendia melhor que o mesmo os sentimentos do deus trapaceiro.
Mas infelizmente, Thor não possuía tal delicadeza.

-E então, Loki... como foi com a Daidouji?

Loki se limitou a erguer as sobrancelhas, dando uma olhadela rápida e seca para o deus trovão, voltando então a fitar insistentemente para a porta da sala de jantar.

-Mayura está demorando, não acha, Loki-sama?

-Hai. - respondeu, num tom vazio e apático.

-O que você andou aprontando, hein, Loki? Não esqueça que a Daidouji é só uma ningen! Você não teve sequer consideraç.

Mas Thor sequer terminou sua frase, engolindo em seco suas últimas palavras diante de um olhar ameaçador vindo do deus trapaceiro. Calou-se, enfim, assustado. Alguma coisa havia acontecido, e era mais sério que qualquer outra aventura que o deus do Caos tivera em Asgard. Justiça, ele pensou. Depois de ter tantas deusas e ninfas aos seus pés sem jamais se importar de verdade, Loki havia caído nas mãos de uma humana infante.
De repente, os olhos verdes piscaram, e se viraram, arregalados, para a porta.
Yamino soltou um leve sorriso, determinado a ignorar momentaneamente o nervosismo com que deus e ningen se olhavam.

-Ohayo, Mayura-san. O café já está pronto.

Ela piscou os olhos com força, se virando para o jovem amigo.

-Arigatou, Yamino-san... mas eu tenho que correr para o templo antes de ir para a escola. Papa deve estar preocupado.

Yamino olhou de soslaio para Loki, que mantinha os olhos fixos agora no chá que gelava.

-Mas Daidouji, e o café? Yamino se superou hoje!

-Arigatou, Narukami-kun. Mas tenho que ir! Ja ne, minna! Ja... Loki-kun.

-Ja.

Loki respondeu, num tom seco e mergulhado no interessante movimento de seu chá dentro da xícara. Por um instante, Yamino pensou ter visto Mayura hesitar o pé para trás, com a boca entreaberta numa palavra que por fim, nunca saíra.
E ela saiu, correndo pelo corredor.

-Estarei no meu quarto, e não quero ser incomodado.

Loki se levantou, sem mais palavras, se dirigindo para a escada.
Yamino e Narukami se entreolharam, espantados.
Mas ninguém percebera, até então, a presença daquele gracioso cãozinho, que tinha como pai e irmão os deuses do Ragnarok, e se chamava, com honra, Fenrir.

-Hunf, brigas de casal a essa hora da manhã...

-Você acha mesmo, Onii-san?

-Em que mundo você vive, sua serpente desmiolada? Você está cansado de saber a razão do Daddy ficar aqui... e está óbvio que um dos dois percebeu isso também.

Fenrir arrancou mais um pedaço de seu filé, engolindo com vontade.

-E quem você acha que seja, Onii-san?

Narukami e Yamino olhavam para o pequeno cãozinho com espanto e admiração, como se contemplasse um gênio raivoso a devorar, magnificamente, sua comida.

-Isso eu não sei, sua anta!

Fenrir esticou as patas, rosnando levemente para aqueles olhares curiosos sobre ele. Engoliu seu último pedaço com vontade.

-Mas vou descobrir.

E saiu, com o rabinho marrom e saltitante, para se postar de guarda na porta do quarto do seu adorado pai.