RECOMEÇANDO
A coragem de Shion
Mu enfiou a chave na tranca e girou-a. De imediato ela emperrou, fazendo com que o historiador usasse um pouco mais de força para abrir a porta.
- O que foi? – Perguntou Camus enquanto tirava a chave do seu AP do bolso da calça.
- A fechadura está viciada. Estranho.
O francês e o grego se entreolharam desconfiados e foram para perto do trio. Quando Mu entrou e ligou a lâmpada precisou se segurar. Não só havia uma ausência de prisioneiro, como sua casa estava completamente pisunhada.
O tibetano respirou fundo e finalmente anunciou:
- Spica fugiu.
Shaka foi o primeiro a meter a cara pra dentro, seguido de Aldebaran, Camus e Milo. O último deu um longo assovio:
- Será que ele demorou muito pra fazer isso?
Camus se aproximou do sofá. Depois se virou para Milo:
- Quanto tempo você demoraria?
- Eu? Hum... Contando com o tempo de raciocínio... Uma hora no máximo.
- Essa eu quero ver. – Sibilou Aldebaran cruzando os braços.
- Certo. Hum... Ele estava sentado desse jeito, não? Olhando para a porta. – Sentou-se no sofá. – Mãos amarradas pra trás e corpo totalmente amarrado. Hum... Mas aí... Ele é pequeno e habilidoso. Nada o impede de se jogar do sofá e tentar ficar de pé.
- Isso é óbvio, apesar de ter sido um baque feio. Mas ele ainda estava amarrado, amordaçado e trancado.
- Calma... Eu to pensando. Hum... Se fosse eu... Teria ido até a cozinha pulando. – Disse pulando como se estivesse amarrado por cordas invisíveis. Todos o seguiram. – Porque é aqui que tem facas.
- Mas você ainda ta preso e amordaçado. – Aldebaran lembrou mais uma vez.
- Calma, a gente chega lá. Hum... Ele primeiro precisa tirar o esparadrapo da boca...
- Então você não achou nada na cozinha. - Camus sorriu.
- É. Mas eu aposto que ele tentou vir pra cá. Só depois que ele pensou... Ah... Já sei! O banheiro!
Milo foi pulando até o banheiro tentando ser fiel ao ocorrido com Spica enquanto todos o seguiam sem deixar de achar a cena no mínimo engraçada.
- E "Legal!" A porta do banheiro estava só encostada. Ele entra, pula até o chuveiro e usa o corpo para girar a torneira. A água cai e ele coloca a cabeça para amolecer o esparadrapo. De vez enquanto passa o rosto pela parede e volta a molhá-lo, até que a mordaça amolece e ele a afasta com a língua. Molha mais o rosto até a poder abrir a boca. Claro, isso deve ter demorado pacas.
- Isso mostra a minha casa pisunhada. – Comprovou Mu.
- É claro, esse processo o deixou agoniado e estressado. Mesmo porque o esparadrapo ainda ficou grudado nele, só não cobria mais a boca.
- Certo, Milo. Mas ele ainda está amarrado. – Lembrou Shaka.
- Calma, eu não sou computador, ta? Ah... Eu me jogaria cansado no sofá agora, mas acho que ele não fez isso.
- Errado. – Camus ajoelhou-se perto do sofá, sem sequer olhar para Milo. – O sofá está molhado.
- É. Meu sofá. – Lamentou-se Mu.
- E se fosse eu... Acho que voltaria à cozinha.
- Tem que ir pra lá pulando, Camus. – Gracejou Aldebaran. – Senão não convence.
- Aff... Certo.
O francês colocou as mãos pra trás e tentou simular Spica. Milo começou a rir descaradamente da cena o deixando sem jeito.
- Eu já estaria nervoso o suficiente. Desesperado. Seria capaz de tudo. Se vocês chegassem agora seria meu fim. Eu só tinha uma chance.
- Nossa! Vejo que você entrou no clima! – Disse o grego entretido.
- Merci. Bien, chegando à cozinha, eu encontraria um fogão elétrico. Me agacharia e usaria a boca para girar a válvula e o queixo ou a língua para apertar o botão. Me debruçaria de lado sobre a boca ligada, que foi uma das da frente, e deixaria o fogo queimar a corda. Claro, fiz isso encostando a parte do braço para não tocar fogo na regata preta.
- Mas isso queimou o braço dele! – Aldebaran exclamou surpreso.
- Como eu disse, ele estava desesperado.
- Tenho que dar uma medalha de persistência para o rapaz. – Confessou Mu olhando fixamente para o fogão.
- Se metade dessa persistência fosse usada para o bem... – Lamentou Shaka.
- Certo, a corda esquenta. O braço dele está queimando, mas ele agüenta, até que a corda arrebenta e ele se solta. – Finaliza chutando uns pedaços de corda perto do fogão. – As mãos dele ainda estavam amarradas nas costas, mas, como Milo disse, ele é pequeno e habilidoso. Facilmente passou as mãos por baixo das pernas pondo-as para frente do corpo e voltou a colocar sobre o fogo até que pudesse ser arrebentada. Quando se soltou desligou rapidamente o fogão. Estava livre.
Todos ficaram calados.
- Nossa... A Fuga. – Sibilou Milo surpreso.
- Nem me fale. Hum... Bem. - Shaka andou até a sala e todos o seguiram. – Para destrancar as janelas é fácil. Basta mudar a chave. Creio que ele reparou nisso, mas...
O indiano abriu uma das janelas (Estava destrancada) e meteu a cabeça para fora.
-... Será que ele fugiu por aqui?
- Bem. A janela ta destrancada. – Milo falou descansando a mão no ombro do amigo e metendo a cabeça pra fora da janela. – Mas acho que ele desistiu da idéia ao ver a altura. O rapaz tava nervoso, mas é muito medroso.
Todos ficaram parados, em silêncio e de braços cruzados. Ninguém tinha uma resposta.
Até que Aldebaran viu o telefone e bateu na própria testa.
- Bingo!
- Quê? – Tanto Mu quanto os outros viraram a cabeça sem entender.
- Ele ligou pedindo ajuda, gente!
- Ah... Grande Aldebaran! Como não pensei nisso antes!
- Aperte na tecla redial e vamos ver pra quem ele ligou! – Camus praticamente exigiu.
Shaka pegou o telefone e apertou na tecla. Chamou, chamou, até que...
"Pizzaria Maranelo, boa noite?" Ouviu-se a voz da atendente e o indiano desligou imediatamente.
Todos ficaram o encarando. Esperando uma resposta.
- Alguém aqui conhece uma pizzaria Maranelo?
Houve um silêncio. Todos tentaram se manter sérios. Cruzaram os braços e abaixaram a cabeça prendendo o riso.
- Bem, não restam dúvidas de que ele usou o telefone. – Concluiu Mu rindo. – Ligou pedindo ajuda e para não deixar pistas discou para a pizzaria. Assim só saberemos para onde ele realmente ligou no final do mês, quando chegar a conta do telefone.
- E o porteiro? Deve ter interfonado para cá. – Sugeriu Shaka.
- Spica atendeu e mandou seu "salvador" subir.
- E não podemos perguntar o nome?
- Deve ter dado um nome falso, mas que o jovem entendesse.
Mais silêncio. Milo deu outro longo assobio:
- Tenho que tirar meu chapéu pra esse agori. Quando Shun disse que ele daria um jeito de fugir é porque ele realmente daria um jeito de fugir.
- Ele conhece a peça. – Rematou Camus passando suavemente os dedos pelos cachos do grego. – Aliás, Shaka, aproveite a tecla redial e encomende uma pizza, que tal?
- Quem te viu que tem vê! – Brincou Milo sorrindo encantadoramente para Camus.
- Eu topo! – Concordou Aldebaran sentando-se no sofá. – Ih, Mu, isso vai acabar cheirando a mofo daqui pra amanhã.
- Vou dar um jeito. – Respondeu o tibetano sentando-se ao lado do amigo. – Shaka, a idéia da pizza é ótima. Pode ligar. A gente racha a conta.
- Certo.
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Longe dali, Hyoga chegava em casa com a prima no colo, que ria e segurava as muletas em uma das mãos.
- Você é mesmo louco! – A italiana se remexia no colo do primo. – Eu poderia dar um berro! Aí todos os vizinhos iriam ouvir!
- Você duvidou que eu te carregasse. Pois bem, ninguém duvida de Alexei Hyoga Yukida.
- Certo. Me larga agora. Não no chão!
- Então onde? No sofá?
- Hum... Não. Aproveite e me leve para o meu quarto. Pelo menos me poupar em andar.
- Abusada.
Hyoga andou até a porta do quarto de hóspedes e usou o corpo pra abaixar a alavanca. Ao entrar acabou se desequilibrando num suéter jogado no chão e tombou na cama com a prima.
- AAAH! – Caiu e sentiu o corpo pesado do russo em cima do seu. – Hei, seu aproveitador!
Hyoga não conseguiu se conter. Começou a rir descaradamente, enquanto rolava para sair de cima da prima, mas ainda deitado na cama. Estava de peito pra cima.
- Ninguém mandou você rir não.
- Eu devo está com muito sono mesmo. Tropecei num pedaço de pano.
A italiana se sentou na cama:
- Não. Você tropeçou no meu suéter favorito.
- Tão favorito que está jogado no chão.
- Nem vem. Você tem aquele péssimo hábito de apertar a pasta de dentes pelo meio. – Curvou-se para cima do primo.
De repente Hyoga parou de rir. Reparou que a italiana estava muito próxima a ele. Os cabelos verdes caíam pelos seu rosto como cortinas e o olhar se assemelhava ao de uma cobra pronta para devorar sua presa. Sim. Shina tinha uma beleza tão venenosa quanto a de Milo talvez.
A garota não resistiu, e sem esperar mais colou seus lábios nos do primo num beijo mais do que ousado. Colocou seu corpo por cima do dele enquanto sentia as mãos do russo massagear suas costas e os lábios se entreabrirem deixando a prima explorar cada canto de sua boca. Um calor subiu o corpo de ambos, mas a reação foi totalmente diferente. Shina avançou mais no primo, mas este teve uma repentina descarga de consciência e a afastou imediatamente, saindo da cama num salto.
- Ar! Hyoga!
- Nunca... Mais... Faça... ISSO! – Falava tentado tremer menos e suar menos frio.
-...
- Da próxima vez que fizer isso você vai EMBORA! Entendeu?
E saiu do quarto batendo a porta enquanto seu coração estava a mil.
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As horas se passaram como devem passar.
Já havia se passado da meia noite. Shiryu e Shunrey trocavam beijos e abraços dentro do carro, estacionado perto de um prédio batizado de "Áries Place". O segurança deslizava as mãos pelos braços dela até chegar às costas, fazendo uma leve carícia, e avançava de tal modo que já estava com a maior parte do seu corpo no assento do passageiro. Ele com a camisa abotoada pulando três casas, e ela com os cabelos já soltos.
A chinesa suspirou e se afastou lentamente do namorado.
- Tenho que ir.
- Tem certeza que não quer que eu te deixe na sua casa?
- Não. Já são duas da madrugada, June deve estar dormindo. Prefiro perturbar meu irmão agora. Ele vai entender.
- Ou vai me decepar.
- Não fale assim. Ele gosta muito de você. – Deu mais um beijo no segurança. – Me liga.
- Ta certo.
A garota saiu e fechou a porta do carro. Acenou quando o Dragão foi embora e afastou uma mecha de cabelos para trás.
Foi numa fração de segundos que tudo aconteceu. Quando Shunrey virou-se para ir até o prédio, dois homens a cercaram, um deles com uma arma apontada para o seu ventre.
- AR!
- Calada se quiser ficar viva. – Sussurrou um.
- Vai andando e disfarça.
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Shion andava apressado por aquelas bandas. A pele mais branca que de costume, os cabelos bagunçados, olheiras fundas, rosto suado... Precisava chegar o mais rápido possível numa farmácia. Tremia. Não estava em condições de dirigir. Quase sumia no casaco preto e no cachecol.
Sentia suas forças indo embora e uma vontade de virar tudo naquele bairro lhe contorceu, que nem fez em sua casa.
Parou de andar. Abraçou o próprio corpo e olhou para os lados como se estivesse sendo perseguido. Queria voltar para casa, mas lá parecia um inferno. Logo os vizinhos notariam. Sua carreira profissional estava em jogo.
Foi quando seus olhos bateram numa mocinha que andava apressada demais junto a dois sujeitos, que olhavam para os lados desconfiados. Por fim dobraram em um beco sem saída. Shion permaneceu olhando aquela cena. Aquilo provavelmente era um assalto... Ou coisa pior.
Uma parte sua teimava em seguir os sujeitos, outra se acovardava. Alguém andando por aquelas bandas, boa coisa não tava fazendo.
Balançou a cabeça, achando a idéia de salva-la absurda. Era melhor ir à farmácia.
Deu dois passos. Sua consciência pesou. Voltou a olhar para trás.
- Dane-se. Vou morrer de um jeito ou de outro mesmo.
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Shunrey chorava baixinho enquanto era levada para algum lugar qualquer. Quando se viu tendo que entrar num beco, se desesperou:
- Não...
- Passa logo a bolsa e os anéis. – Ordenou um deles.
A nutricionista obedeceu.
- Ótimo, boneca. Agora sem fazer um ruído, tira logo a roupa.
- Não...
- Quer levar bala por acaso?
-...!
Shunrey começou a chorar. Ajoelhou-se e colocou as mãos na lateral da cabeça. Aquela seria a hora de levar um tiro. Teria que encarar a morte de frente.
- Não faz por bem faz por mal! – Um dos homens passou a arma para o colega e se aproximou da moça pegando-a pelo braço.
- ME SOLTA! AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!
- CALADA! – O outro destravou o revólver, mas antes que pudesse atirar, alguém o golpeou violentamente na cabeça usando uma pedra das grandes. – AR!
O outro só viu quando o colega caiu desacordado no chão, e antes que pudesse correr para pegar a arma, viu o psiquiatra com ela em uma das mãos e uma pedra em outra.
- Vai atirar, é? – Desafiou o bandido colocando Shunrey na sua frente, como escudo humano. – Tenta, desgraçado!
- Se escondendo por trás de uma mulher? Que decepção.
Shion descarregou o revólver deixando as balas rolar pelo chão, em seguida o colocou no bolso interno do casaco.
- Vamos fazer isso da maneira antiga. Ou você não é homem suficiente?
O bandido jogou Shunrey no chão e avançou com tudo em cima de Shion, acertando bem no seu rosto, quase o jogando no chão também. E antes que o psiquiatra pudesse raciocinar, lá veio ele com mais outro. Teve que reagir por impulso, e depois de pelo menos cinco golpes se levantou e acertou um soco no queixo do agressor. Jogou-se com tudo em cima dele, fechou o punho e socou seu rosto descontroladamente, tanto de raiva quanto de medo que aquele sujeito voltasse a se levantar. A parte da raiva estava mais ou menos localizada no sangue que saía de seu nariz.
De repente parou ofegante. Tirou a arma de dentro do casaco e mirou bem no rosto do sujeito. Ainda tinha uma bala no tambor.
Shunrey fechou os olhos. Só se ouviu o disparo.
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- Tudo bem? – Shion se agachou perto da garota, que ainda chorava.
Num gesto impulsivo, ela o abraçou. O psiquiatra sorriu e retribuiu o abraço.
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Prédio Áries Place. Dohko estava acordado, na verdade estava tentando dormir. Dificilmente tinha insônia, mas quando resolvia ter... Era um martírio.
De repente o interfone tocou.
- Mas... Quem será a essa hora? – Olhou o relógio no criado-mudo. Quase uma da madrugada.
Ligou a luz do corredor e atendeu.
- Sim. ... Shunrey! ... Claro, mande-a subir!
Aquele mau pressentimento invadiu o peito do chinês e quando abriu a porta quase teve um surto. Sua irmã mais nova estava em lágrima e suava frio.
- Shunrey!
- DOHKO! – Ela se jogou nos braços do irmão se debulhando em lágrimas.
Demorou a perceber que Shion era o homem que estava do lado da irmã, e só depois notou o quanto o psiquiatra estava acabado.
- Ela está bem agora. – Shion tentava explicar, sem conseguir disfarçar a surpresa ao ver Dohko ali de pijamas. – Foram uns assaltantes que a pegaram, mas creio que não perturbarão ela novamente.
- S.Sim... Obrigado por trazê-la. E.Entre, por favor.
Shion pensou seriamente em recusar. Ainda tremia e temia em destruir outro apartamento, mas aceitou. No fundo ainda encontrava forças para continuar aquela guerra interior e queria ver o estado do seu rosto. Dohko guiou logo a irmã para a sala, sentou-a no sofá e buscou um copo de água com açúcar pra ela enquanto Shion sentava-se numa poltrona e tentava relaxar. Ainda suava frio.
- Tome, Shunrey. Céus... Mas o que estava fazendo à essa hora fora?
Shunrey espremeu os lábios e voltou a chorar.
- Ta. Tudo bem. Depois você me conta. Beba.
Shion suspirou e por um tempo passou a admirar o chinês cuidando da irmã mais nova enquanto tentava se manter calmo. Se pudesse provavelmente estaria se descabelando desesperado, tentando saber o que realmente aconteceu. Ao pensar nessa possibilidade Shion riu para si. Era muito engraçado ver seu paciente tentando manter o controle emocional.
O advogado acariciou os cabelos da irmã e foi novamente até a cozinha. Dessa vez voltou com uma toalha com a ponta molhada.
- Tome. – A voz de Dohko assustou Shion.
- Como?
- Use-o para aparar o sangue. Seu nariz...
- Quero meus remédios. – Falou quase ofegante, mas ainda sim em tom de exigência.
- Heim?
- Quero eles... Preciso deles...
Shunrey levantou lentamente a cabeça e mirou o irmão. Dohko levantou-se.
- Mana, tome um banho, vista um roupão e descanse.
- Ta... – Murmurou ela limpando o rosto.
- Vá para o meu quarto. É maior e mais confortável.
- Não...
- Mana. – Ele segurou suavemente seus braços. – Eu sei o que estou falando. Vá para o meu.
-... Certo. Boa noite.
A garota fez uma pequena reverência com a cabeça e se retirou. Shion ainda respirava pesadamente e cobria o rosto com uma das mãos. Incomodava-se com Dohko o vendo naquele estado.
- O que aconteceu com seus remédios, heim? Eu sei que os joguei fora, mas você comprou mais.
- Eu os joguei fora. – Disse quase num sussurro. – Preciso deles...
Dohko emudeceu. Então o psiquiatra se livrou dos próprios remédios e agora estava passando por uma crise de abstinência.
- Ah... Certo,tudo bem. Eu tenho uns antidepressivos aqui. Não meus, claro. Odeio isso. São dos meus pais e eles deixam aqui sempre que vêem da China.
- Por favor...
O chinês andou apressado até o banheiro e abriu a porta do espelho. Procurou entre os vidros, derrubando alguns, e pegou um vidrinho cheio de comprimidos pretos e outro com um líquido aquoso e incolor.
- Tome. – Ofereceu os comprimidos a Shion, que engoliu uns três ou quatro de uma vez. – Só vai devagar. Isso vai acabar te matando.
- Não pedi sua opinião. Salvei sua irmã. Está me devendo.
- Eu sei. E sei ser grato.
O chinês se dirigiu até a cozinha e voltou com dois copos pequenos, cheios do líquido incolor. Um em cada mão. Ofereceu um para Shion:
- Tome. Beba.
- O que é isso?
- Água de Melissa. Um calmante natural. Eu vou levar este para a minha irmã. E apare o sangue do seu nariz.
Havia algo na voz de Dohko que o influenciava a tomar certas atitudes, não sabia explicar o que era. Ainda tremia, sua testa suava, mas sentia-se estranhamente bem. Bebeu então a Água de Melissa.
- É melhor você dormir aqui hoje, doutor Kay. Não vai conseguir voltar pra casa nesse estado... Ainda mais à essa hora.
- Não se incomode.
- Prefiro me incomodar. Se você morrer eu serei mandado para um psiquiatra mais chato ainda.
Shion sorriu, balançou a cabeça e bebeu o resto da água:
- Tudo bem. Passarei a noite aqui então. E por favor, não estamos no consultório. Meu nome é Shion.
- Certo então.
Deu meia volta e caminhou até o quarto.
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Voltando ao prédio Santuário, no apartamento de Mu, a pizza já havia sido devorada, e agora se presenciava uma conversa junto a umas cervejas, muitas cervejas, e uns refrigerantes. Na verdade tratava-se de um jogo em que se dizia uma frase e as pessoas tentavam adivinhar a qual filme ela pertence. Em suma: Não tinham nada pra fazer.
E Mu ainda ganhava com dezoito pontos de vantagem.
- Vamos lá. Minha vez! – Aldebaran levantou a mão como se pedisse atenção. – Vamos lá. Duvido que acertem. "Se eu posso causar cicatrizes, talvez possa evitá-las." Ou mais ou menos isso.
- Essa é difícil. – Camus se encostou mais no sofá, estava sentado ao lado de Milo, que estava inclinado para frente.
- Há! É fácil. – Se gabou Mu entrelaçando os dedos. – Efeito Borboleta.
- Ceeeerto! – Comemorou o brasileiro.
- Dá-lhe Mu! – Brincou Milo. – Ta abalando geral!
- Deixa de graça, Milo! Agora é sua vez. – Brincou Shaka.
- Certo, certo. Essa é REALMENTE difícil! Duvido que consigam. Adeus os "Alô, Clarice" da vida.
- Quer parar de enrolação e falar logo?
- Certo. Lá vai, heim! "Capitão, oh meu capitão."
- Sociedade dos poetas mortos! – Responderam todos em coro, quase gritando.
- Caramba! Achei que só eu sabia essa!
- Na verdade eu me admiro que VOCÊ saiba essa, Milo. – Provocou Shaka. – Que foi? Deu um tempo nos filmes pornográficos?
- Ah, nem vem não, Buda. Se bobear você só sabe o "Você se esqueceu de mim, Simba".
A risada foi geral, nem mesmo Camus se conteve. Milo se levantou e estendeu os braços comemorando a vitória sobre Shaka, que não conseguia um jeito de revidar.
Quando o grego voltou a se jogar no sofá agiu de modo impulsivo, aninhou-se na curva do pescoço de Camus e deu-lhe um leve beijo perto da orelha.
Aí as risadas cessaram.
- Peraí. – Aldebaran encarou a cena perplexo. – Vocês estão juntos ou isso é uma afinidade exacerbada nunca antes vista?
Camus corou. Agora oscilava entre uma vontade de fuzilar Milo e outra de se jogar pela janela por ter proposto o convite da pizza que acarretou nas cervejas.
O jeito foi falar a verdade.
- Hum... As duas coisas, mon ami. Espero que não se importem.
"Ah, não, que isso..." foi o que deu pra ouvir dos três. Camus se afastou de Milo e massageou a fronte. Depois o mirou:
- Je suis fatigue.(1)
- Entaxei. (2) – Virou-se para os moradores da casa. – O papo tava bom, mas a gente já vai.
- Que pena. – Falou Mu com sinceridade. – Tava divertido.
- Passem aqui amanhã então. – Convidou Shaka. – Eu vou à joalheria e preciso de alguém com bom gosto.
- Ô, Buda... Claro que eu topo.
- Estou falando do Camus.
Camus sorriu enquanto Milo cruzava os braços e mostrava a língua, como se fosse uma criança de dez anos. Shaka riu vitorioso por ter revidado a brincadeira do Rei Leão.
- Kalinixta.(3) – Despediu-se o grego.
- Bonne nuit.
A dupla acenou e foi embora.
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No corredor do apartamento Camus pegou a chave e antes de abrir aporta sentiu as mãos de Milo segurarem a sua cintura. Tentou ignorar o frio na barriga, mas pareceu impossível com a respiração do grego na sua nuca.
- Já não basta nossos amigos saberem agora você quer que o resto do prédio saiba?
Milo detestou o comentário e afastou-se de Camus como se tivesse abraçado uma serpente.
- Posso saber qual é o problema em alguém descobrir a verdade? – Desafiou o terapeuta.
- Eu tenho direito de não querer que saibam, não tenho?
- Ah, claro. Isso vai fazer mal pra imagem do "Orgulho da Família Diderot", não é? Saber que tem um filho bissexual que tem caso com o melhor amigo!
- Se falar mais uma palavra eu não respondo por mim.
- Como se você se garantisse numa briga. – Pegou a chave da mão de Camus e abriu rapidamente a porta. Tremia de raiva. – Pronto. Assim os vizinhos não escutam os detalhes. – Fechou a porta.
-...
- É assim que você quer, não é? Tudo bem, tudo maravilhoso. Em quatro paredes somos amantes e lá fora você faz papel de bom moço! É muito cômodo pra você, não é?
- Acha que é fácil! – Camus acabou se alterando. Um dos motivos por "detestar" Milo era que só ele tinha esse dom. – Pra você pode ser, mas pra mim não é!
- Posso saber qual é o mal de ficar comigo?
- Todos! Pra começar você é um homem! HOMEM! É ESSE o mal!
A raiva de Milo subiu à cabeça:
- VOCÊ ESTRAGOU UMA NOITE SÓ PORQUE DESCOBRIRAM QUE ESTAMOS JUNTOS, MXXXX!
- MILO, CALE-SE!
- NÃO ME CALO NÃO! CHEGA! FIZ SEU JOGUINHO, MAS TÔ CANSADO! VOCÊ NÃO ME ACEITA! NÃO ME AMA PXXXX NENHUMA! SE ME AMASSE NÃO FARIA A CENA QUE FEZ!
- VÃO NOS TRATAR DIFERENTE, MILO! ACORDA PRO MUNDO! PÕE UM POUCO DE SANIDADE NA SUA CABEÇA OCA! VOCÊ PENSA QUE O MUNDO É ESSE ROMANTISMO TODO, MAS NÃO É! VIVEMOS EM SOCIEDADE QUERENDO OU NÃO! NÃO QUERO QUE SAIAM QUE ESTOU COM VOCÊ!
- VOCÊ NÃO TEM OPINIÃO, ISSO SIM! É UM TELEGUIADO! FOI CRIADO ASSIM E VAI MORRER ASSIM! UM BURRO! UM ANIMAL DE CARGA QUALQUER!
- PRA VOCÊ É FÁCIL FALAR! NÃO TEM FAMÍLIA NEM NINGUÉM! SE EU SOU UM TELEGUIADO VOCÊ É UM LARGADO NO MUNDO SEM A MÍNIMA NOÇÃO DO QUE É A VIDA!
Milo fechou os punhos e engoliu seco. Camus a sua frente já estava vermelho de raiva.
- Eu te odeio, Camus.– Falou seco tentando conter as lágrimas coléricas.
Camus sentiu algo entalar em sua garganta. Fechou os punhos e abaixou a cabeça, tentando conter a respiração enquanto Milo se trancava no quarto.
- Ótimo. Entre pro grupo.
Continua...
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S'il vous plaît, não me matem. A estória continua, certo? XD
Eu estou cansado (Em francês).
Okay. (Em grego).
Kalinixta (Boa noite).
Ah, e agori é rapaz em grego. É que eu esqueci de colocar a enumeração e fiquei com preguiça de ajeitar.
