Vampiros e yaoi e uma escritora suicida. Que tal?


RÉQUIEM PARA LEON

(Yuka)


"Jetzt stehst du da an der Laterne

Hast Tränen im Gesicht

Das Feuer nimmst du von der Kerze

Die Zeit steht still und es wird Herbst

Sie sprachen nur von deiner Mutter

So gnadenlos ist nur die Nacht

Am Ende bleib ich doch alleine

Die Zeit steht still

Und mir ist kalt"

"A luz da lanterna ilumina

Seu rosto em lágrimas

Você toma o fogo da vela

O tempo pára e é chegado o outono

Eles falavam apenas de sua mãe

Tão impiedosamente é apenas a noite

No fim, resta-me a solidão

O tempo pára

E tenho frio"

(Seemann, Rammstein)


"Eu vou atirar-me ao fogo"

As folhas caiam lá fora num início do que seria o outono, agradável e doce outono. E chovia, mas só dentro de mim e do quarto. Eu trazia uma vela nas mãos e outras mais dominavam o ambiente que era meu quarto, e o rosto de Leon era um Grito¹ mais assustador que o original.

Um ritual seguia durante todos aqueles dias desde que conheci Leon como um de nós. Eu era desperto pelo pôr-do-sol e assistia a despedida de seus últimos raios da janela pequena e coberta de veludo do meu quarto. Despregava o veludo por um momento para ver o que restava do sol. Então me vestia com o preto surrado e seco, o perfume amadeirado, os sapatos eternamente no mesmo número, os cabelos orgulhosamente longos, cheios e penteados. Saia para caçar, rápido como uma lebre, traiçoeiro e impiedoso como uma serpente. Tinha aquelas três horas só para mim, para seduzir, tomar e matar como sempre. Clássico e clichê. Então voltava para meu apartamento e deixava a porta destrancada, ou então uma janela aberta. E ele vinha mergulhado na calça jeans e na jaqueta vermelha que escondiam maravilhosamente a época em que tinha sido concebido. Mergulhado na luz da lua e os cabelos castanhos cobertos de sereno, um sorriso velado no rosto. Nos olhos sempre aquele fogo azulado e incomum que eu aprendera a respeitar. O sangue trazia cor a sua face de marfim polido.

Passávamos juntos, noite após noite, mergulhados num romance literário moderno qualquer, ou lançando comentários ácidos sobre o mundo, pintando, compondo, visitando soturnamente uma galeria de arte. E mais comumente andávamos sem rumo pelas ruas iluminadas da cidade, braços atados, conversando sobre a noite ou sobre o nada. Ou nos instalávamos nos telhados mais altos para ver o céu e as formigas de néon lá em baixo, ou simplesmente permanecíamos no sofá cor de oliva do apartamento, trocando impressões e ainda olhares, e toques cálidos sempre terminavam em risadas ou no redentor e ameaçador silêncio.

Sentíamo-nos totalmente tomados por uma alegria, uma nostalgia e o sabor acre de coisas caseiras que não tínhamos em vida.

E o tempo passava. E tecíamos o tempo conforme nos era conveniente, escrevendo histórias que encheriam livros e mais livros e talvez alguns cadernos, e talvez hoje alguns computadores também. Mas o tempo passava. E éramos tão vulneráveis a ele quanto qualquer mortal.

Vivemos numa calmaria típica dos lagos por alguns anos, anos tantos que perdi a conta. Descobríamos-nos, descobríamos um ao outro e descobríamos o mundo. O mundo, e este mundo é o que nos trouxe a desgraça aos poucos, um câncer roendo pedaços da vida por onde passava. O mundo nos fazia perguntas, e nós não sabíamos as respostas. Fazíamos perguntas ao mundo e ele ria.

De onde viemos?

Para onde vamos?

Por que somos filhos de Deus se matamos nossos próprios irmãos?

Quem foi o primeiro?

Quem será o último?

Deus?

E ele ria, balançava a cabeça num gesto mudo de afirmação e zombaria, e nada dizia.

Eu não me importava. Não sabia as respostas nem queria saber. O que importava, se eu estava vivendo? Divertia-me com as reações do mundo a minha existência, e as minhas reações quanto à existência de tudo que vive. Descobria e formulava, mas nunca tinha nada definitivo. Era bom pensar, agir e viver assim, como se pudesse fazer qualquer coisa e depois minha mãe estaria em casa como álibi de minha falsa inocência.

Leon era diferente.

Ele precisava de um apoio, de algo para acreditar e seguir, como quando era humano. Vi as imagens de santos no seu quarto e as velas que acendia na igreja toda sexta-feira, e o crucifixo que trazia vez ou outra no pescoço. Era um devoto, mais que isso, era quase fanático. E tudo isso vinha abaixo quando eu perguntava onde estava Deus. Ele tremia e repetia:

"Deus?"

"Nós somos Deus, Leon" eu mesmo respondia numa voz calma, e a expressão de confusão no seu rosto da primeira vez que eu disse isso me fez querer abraçá-lo e dizer que era mentira. Mas só expliquei os fatos como eu via: "Se nós somos a imagem e semelhança Dele, logo nós somos Ele. Está escrito no seu livro sagrado" e apenas isso. Era tão obvio que chegava a ser revoltante, e ele balançava a cabeça derrotado pela minha conclusão pagã e incerta. Mas a resposta estava ali.

Ele queria mais do que aquilo. Queria a resposta para todas as suas perguntas, e perguntas para todas as coisas que sabia e aprendera com o tempo. E o tempo, o maldito aliado do mundo, consumia de seus olhos toda a vontade de viver, sabendo que era dependente de algo que não conhecia feito se é dependente de uma droga.

Nunca vou entender o motivo que o levou a chegar a meu apartamento, naquela noite, e pedir que eu ficasse com ele em silêncio, no sofá oliva. Há tempos ele estava estranho, distante, mas isso acontece com qualquer um que alcança a idade que alcançamos. Éramos fracos, tínhamos de beber todo o dia, mas éramos quase tão velhos quanto os quadros de um museu. Permanecemos no sofá por uns instantes antes que ele se inclinasse e pedisse devagar, sussurrando em meus ouvidos como uma pomba. Dizia que queria provar-me o sangue e da mesma forma deixa-se tomar, e tudo aquilo do começo outra vez.

"Como se nós fossemos humanos" ele disse "Como se nós pudéssemos fazer isso tudo" e eu me derreti com a voz esquiva e melancólica de sino que ele tinha, e o arrastei para o quarto de janelas cobertas de veludo. Acendi as velas com as mãos, com a mente inebriada, manipulando um fogo inexistente. Tudo acabava em sangue. Sempre culminava em sangue.

E depois de tudo sentamos frente a frente, eu com uma vela nas mãos para iluminar nosso círculo, ele ereto como uma estatua de sal à minha frente. Então afastou a vela, colocando-a no chão, enrodilhando-se no meu colo como um gato, pousou um beijo em meus lábios e sussurrou com aqueles arrulhos fortes e sinuosos que eram sua voz:

"Eu vou atirar-me ao fogo"

E como lutei contra esse fato tão óbvio. Porque era óbvio que todo o desespero estampado em seu rosto culminasse em Leon atirar-se no fogo. Mas fui egoísta com sua dor, não queria. Simplesmente não podia suportar a imagem que meu cérebro formava: os cabelos castanhos em chamas, o rosto transformado numa massa cinzenta e disforme. Mundano demais. Cruel demais.

Gritei com ele. Falei-lhe coisas absurdas, mas que de alguma forma defendiam tudo que eu sentia e achava. E ao invés de gritar também, ao invés de ameaçar e cerrar os punhos e respirar ruidosamente, como fazia quando discutíamos, ele tomou-me a mão e a levou ao próprio rosto. Uma lágrima solitária passou por entre meus dedos. Depois mais uma, tintas de sangue. E ele começou a falar. Falou de tudo que havia visto, ouvido e sentido. Que não valia mais a pena resistir a tanto por nada, a ver tudo escorrer de suas mãos e não poder escorrer junto, a se esconder. E mais coisas que pra mim não faziam sentido, mas para ele era tão vital quanto o sangue.

Então saímos de casa, depois de limpar suas lágrimas e esconder a luminosidade da vela que transformava seu rosto numa escultura. Caminhamos de braços atados pelas ruas semi-iluminadas, no que seria nossa última caminhada. Ele me falava sobre o outono, docemente sobre o outono enquanto as folhas caiam sobre nós. Falava da queda, e então do fim, e daí do renascimento das coisas depois disso. Era um ciclo. Nós participávamos de um ciclo vicioso parecido, mas que não remetia a vida nenhuma. Simplesmente alimentava a nossa. E ele falava do outono e da noite, e da bondade dela em nos acolher como uma mãe fria e distante. Amava a noite, e eu o amava.

Eu sei por que ele fugiu, só não consigo entender. Despedimos-nos naquela noite, seria naquela noite mesmo. Por isso aquela coisa toda, o gosto amargo de sangue e suor tinto na minha boca. Acompanhei-o até o lugar, a grade fogueira no meio do parque da cidade. Era só alimentá-la com um pouco de álcool e faíscas, e as labaredas subiam para beijar a lua.

Ajudei-o a acender a fogueira, beije-o mais uma vez. Pedi que desistisse. Ele sorriu e disse que eu não insistisse naquilo. Permaneci ali, sem querer ver, mas vendo. E ele manteve os olhos fixos no fogo alto por um momento, então em abraçou, escondendo o rosto na curva do pescoço. Por Deus, ali estava o sofrimento todo que eu queria evitar desde tê-lo conhecido. Éramos fracos, mas Leon era de uma fraqueza e vulnerabilidade espantosas. Uma criança. Então ele voltou e me beijou outra vez, e pediu que eu fosse embora.

"Você não precisa ver isso. Por Deus, nunca pediria que visse isso" e seu rosto e sua voz estavam mergulhados numa calma tão plena que eu senti vontade que sumir mesmo.

Disse que queria se despedir da terra, daquelas árvores todas, do vento, da mãe noite. E quando o dia estivesse surgindo, quando o sol desse seus primeiros passos, entraria no fogo e no sol. Queria que fosse completo, pleno. E mais: queria ver a luz do sol pela última vez.

Fiquei com ele até onde pude, e quando meu desespero e minha dor e todo o pesar chegaram ao auge me despedi, passando-lhe uma compreensão que não tinha. Ele sorria, um sorriso velado e oculto como quando surgia pela janela. Deu-me sua jaqueta, sem dizer nada, outro abraço. E mergulhado na escuridão fui embora, sem olhar para trás, e tranquei-me no quarto. O cheiro adocicado dele ainda estava lá, e isso me matava. Mas logo a manhã chegou, e com ela o sono e a certeza comprimida de total solidão. Outra vez a solidão. Adormeci envolto em tecido vermelho e perfume de canela.

Na noite seguinte fui até a clareira fumegante e colhi as cinzas, que pareciam prata em pó. Guardei-as por um tempo junto ao peito, e então lancei tudo ao mar. A lua parecia sorrir feliz e melancólica como sempre. Coloquei seu caixão e uma lápide com seu nome na parte que era da minha família no Cemitério Nacional, e logo em seguida destruí tudo aquilo². Mais fúnebre para que? O tempo estava parado, eu não sentia mais nada. Tudo não passava de registros e fatos num livro qualquer que eu devia ter lido quando criança.

Um fato: Leon atirou-se ao fogo. E isso faz tanto tempo, tanto tempo... tempo.

Restam-me agora as noites escuras de velas escassas ou apagadas, o sofá oliva desbotado. Restam-me as galerias vazias e o céu nublado, livros em branco, silêncio. Os filmes em cartaz, quando assisto, não vejo, absorvo apenas uma parcela de culpa, de alegria plena e talvez um mínimo retorno de meu amor-próprio. Recuperação depois da dependência química da paixão.

Leon atirou-se ao fogo. Fato. Mundo. Crueldade.

E sobram-me suas dúvidas e a jaqueta vermelha.

E sobra-me a solidão do veludo que cobre minha janela.

E sobra-me o sorriso velado estampado a fogo na retina.

E sobra-me o frio.

Frio...

Sinto frio, frio siberiano da madeira e do pó e da cinza.

Frio...

Sinto frio...

... e talvez eu busque o calor do fogo também.


FIM


1 - referência ao quadro O Grito, de Much.

2 - quem lembrar de onde é esse déjà vu ganha um saca-rolhas xD


Talvez aqui comece minha sessão "Crônicas Vampirescas", não digna de Anne Rice (mulher má, não me deixa escrever fanfics com os gostosos dela T.T), mas factível pela minha mente perversa e pervertida.

Bom? Ruim? Mais ou menos? Caquinha de formiga? Comentários xD


© Idéias Originais (?) de Yuka - 04 de Outubro de 2006