Herança Egípcia

Capitulo VII – Entendendo o Passado

Mansão Winner:

Quatre levantou-se pouco depois das sete da manhã. Na verdade, mal pregara o olho desde que se recolhera. Havia deixado o hotel onde os outros estavam hospedados pouco depois da meia-noite, quando Rashid viera buscá-lo, e durante todo o percurso a sua casa vários pensamentos o atormentavam, dentre eles a relação de Duo e Heero em relação aos túmulos encontrados no sítio arqueológico. Havia alguma coisa sobrenatural agindo neles, e contra eles; disso tinha certeza. Já fazia muito tempo que não sentia essa sensação estranha percorrendo-lhe o corpo, como se o alertasse da vinda de algo terrível. A mesma sensação que o acometêra quando seus pais haviam morrido.

Arqueologia sempre fora uma paixão, alimentada por seus pais, que haviam sido brilhantes arqueólogos, embora tivessem tido uma vida profissional breve, interrompida subitamente por um acidente ocorrido em uma escavação da qual participavam, quando tinha apenas oito anos de idade.

Um terremoto nos arredores de Kaifha, soterrou a eles e mais dois ajudantes, quando uma das paredes que analisavam veio abaixo. Se não estava enganado, eles procuravam o que muitos chamavam de espelho das almas. Segundo antigos papiros, tal objeto fôra criado pelos deuses a fim de ver a alma daqueles que escolhiam como faraó. Dizia-se até que o espelho era capaz de mostrar a verdadeira alma de cada indivíduo, bem como sua ligação com outras almas. Dizia-se que este era capaz de mostrar se duas almas eram gêmeas ou não. Não haviam dados concretos de que tal objeto realmente existira, mas seus pais haviam morrido porque acreditavam na existência dele. E desde esse dia havia se dedicado a encontrar o espelho, mas esta havia se mostrado uma busca inútil até então.

Pelo menos era o que pensava, até que chegara em casa na noite anterior e, fôra avisado de que recebêra um telegrama de um antigo ajudante de seus pais, que agora trabalhava como antiquário numa cidade próxima de onde ficavam as escavações. Ficara surpreso em saber que o mesmo já o procurava à algum tempo; na verdade há alguns anos, desde que se mudara para o Cairo. Mesmo com o avançado da hora entrara em contato com Abdul, e o que o mesmo lhe contara era realmente surpreendente, para não dizer oportuno no momento. Se o que Abdul lhe dissera fosse verdade; de que encontrara o espelho das almas, talvez pudessem solucionar parte do que estava acontecendo com Duo e Heero. Porque algo lhe dizia que esse era parte do caminho que eles tinham a percorrer. Combinara de encontrar Heero e os outros nas escavações, mas talvez o estudo do novo túmulo pudesse esperar, precisava antes, falar com os dois amigos sobre o espelho das almas, e convencê-los de que tal artefato era verdadeiro, e lhes seria de grande ajuda.

Quatre deixou um recado no celular de Heero, uma vez que ainda era muito cedo para acordá-lo; só esperava apenas que o amigo visse o recado antes de sair para as escavações. Suspirou cansado. Colocou o telefone no lugar, e olhando para o céu, percebeu que este lhe parecia estranhamente escuro, embora o sol já brilhasse forte.

- Que Alá me ajude.

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Hotel Narshida – 10:25hs:

Duo acordou sentindo-se maravilhosamente satisfeito e protegido. Olhou para o rosto de Heero que ainda encontrava-se adormecido e um sorriso brotou em seus lábios, diante do que haviam vivido juntos. As lembranças das sensações dos toques do egiptólogo em seu corpo fizeram-no tremer ligeiramente, acabando por acordar o japonês, que deu um meio sorriso diante da visão à sua frente. Os olhos de Duo brilhavam, completando com perfeição o rosto corado e parcialmente coberto pelos fios longos e sedosos. Haviam feito amor como se sempre houvesse sido assim, e sentia que de certa forma isso era uma verdade irrefutável.

Deslizou os dedos pelo rosto do outro, afastando uma mecha com cuidado, levou-a até seu rosto e aspirou o perfume suave, deliciando-se com a maciez dos fios que escorriam por seus dedos. Nunca em sua vida algo parecido havia acontecido, à vontade de protegê-lo e mantê-lo para sempre em seus braços era quase que impossível de ser ignorada. De alguma forma a poucas horas atrás, Duo havia acordado em seus braços, e os vestígios em seus corpos indicavam claramente que haviam se entregue um aos braços do outro, embora as memórias deste fato não fossem claras para nenhum dos dois.

E mesmo quando isso deveria de certa forma assustá-los e afastá-los, serviu apenas para que voltassem a se amar, e dessa vez manter nítida em suas mentes os momentos ardentes que tivessem juntos. E mesmo que seu único pensamento fosse o de permanecer ali e esquecer o resto do mundo lá fora, ainda precisavam buscar respostas, e estas não viriam facilmente até eles, se não se propusessem a ir buscá-las.

- Temos que nos levantar não é?

Duo não tinha dúvidas de que precisavam deixar o quarto. A manhã já estava alta, e tinham coisas importantes a resolver, mesmo que a vontade de ambos fosse a de permanecer ali; alheios a tudo que não fosse a presença um do outro. Podia ver nos olhos de Heero que era inevitável para ambos ignorarem suas vontades e levantarem; sabia que tinham que voltar às escavações e verificar o túmulo que haviam encontrado juntos, mesmo que não desejasse fazê-lo. Ainda assim, não conseguia ignorar os fatos, e a vontade de saber como eles seriam e agiriam a partir de agora, uma vez que haviam dormido juntos. Havia sido muito fácil entregar-se à paixão, quando a mesma estava presente; não que a mesma houvesse desaparecido por completo ao se completarem um no corpo do outro, mas depois de amornada a paixão, sentia-se um pouco envergonhado de perguntar como seriam dali em diante. Seriam amantes ou deveriam agir como se nada houvesse acontecido?

Heero podia ver claramente as dúvidas nos olhos de Duo. Ele mesmo não sabia ao certo o que fazer, embora sentisse que havia apenas um caminho agora. única questão era se Duo estava disposto a percorrer tal caminho em sua companhia. Entretanto, tais dúvidas não poderiam ser respondidas antes que obtivessem as respostas ainda pendentes. O que realmente eram um para o outro? O que eram as visões e fatos inexplicáveis que pareciam apenas querer uní-los? E outra; o que era aquilo que o visitara em sua casa, e estivera nas escavações pouco antes de encontrarem o túmulo com a nova inscrição?

- Acho que deveríamos conversar, mas...

Duo sorriu, não permitindo que Heero continuasse, embora tivesse certeza de que fôra o medo de ouvir o que tinha a dizer que o fizera interrompê-lo.

- Não é o momento, é?

- Não. Eu... posso apenas posso dizer que... teremos tempo. E haverão outros momentos como esse.

- Verdade!

- Eu prometo.

Duo sorriu e aconchegou-se ao peito de Heero ao ouví-lo afirmar de que voltariam a estar juntos dessa forma, e que mesmo que o japonês não houvesse sido direto em suas palavras, o que acontecêra não havia sido algo passageiro entre os dois. Sentiu o beijo suave no alto de sua cabeça e suspirou, sentindo-se em paz; como há muito tempo não se sentia. Sentou-se na cama, tendo o cuidado de esconder a parte debaixo de seu corpo.

- Acho que os outros já devem estar preocupados conosco. Que horas devem ser agora?

Heero procurou pelo relógio, verificando que passava um pouco das dez da manhã. Riu ao dar-se conta de que era a primeira vez que permanecia tanto tempo na cama; mas dada à companhia, apenas um louco levantaria-se tão cedo.

- São quase onze horas.

- Quatre deve estar louco, imaginando onde estamos.

- Bem, ele poderia ter batido em minha porta que obteria sua resposta.

- De fato. Eu... acho melhor voltar... a meu quarto e trocar... de roupa.

Heero concordou. Levantando-se, tomou os lábios de Duo entre os seus, antes de jogar-se novamente na cama, tampando os olhos com um dos braços. Duo sorriu diante da gentileza de Heero ao notar que ele sentia-se embaraçado com a própria nudez. Levantou-se, recolheu a roupa e vestiu-se rapidamente, antes de escapar pela varanda, em direção a seu quarto.

Heero abriu os olhos a tempo de ver Duo sumindo pela varanda que fazia comunicação com os quartos deles e do de Sally. Deixou o conforto do leito indo a direção ao banheiro tomar uma ducha, precisava aprontar-se e ir para o sítio; tinha certeza de que os outros já deveriam estar lá. Mal entrou, e ouviu alguém batendo à porta. Enrolou-se em uma toalha, foi em direção à porta e abriu-a.

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Quatre olhou para Heero e suspirou aliviado, por ainda encontrá-lo. Havia chegado a poucas horas, e até o momento não conseguira falar com Duo, que não atendia ao telefone e nem a porta. Temia que algo houvesse acontecido ao amigo, decidiu-se então por procurar Heero e perguntar se poderia usar a varanda deste e ir até o quarto de Duo verificar se o mesmo estava bem. Ainda se lembrava de que quando Duo recolhêra-se, parecia cansado e perturbado e isso o deixara preocupado, lembrando-o do quê havia acontecido a Heero e Duo no sitio arqueológico que os deixara estranhos.

- Quatre!

- Pelo que vejo não viu meu recado.

- Na verdade acabei de levantar.

- Eu falei com Trowa e Sally e expliquei que íamos a outro lugar, então eles seguiram para as escavações e eu fiquei aguardando que acordassem.

- Que lugar?

Quatre explicou por alto aonde iam e o porquê. Heero encarou o amigo durante alguns segundos. Se o que ouvira fosse verdade, o artefato em si deveria estar em um museu; mas segundo o que Quatre lhe dissera, era um antiquário que detinha o espelho, o objeto era sagrado e um artefato de família guardado a gerações, e como tal era dever dele mantê-lo seguro de olhos não preparados. Como estudioso sabia que não deveria dar tanto crédito a tais fatos, mas nas ultimas semanas já havia visto e sentido muita coisa para desconsiderar fatos, apenas porque não conseguia explicar.

- Eu vou tomar um banho e saímos então. Porque não avisa Duo?

- Duo! O que houve com Maxwell?

Quatre sorriu diante do tom quase carinhoso com que Heero proferira o nome do amigo. Heero grunhiu algo inaudível, e caminhou para o banheiro, ignorando a pergunta maliciosa de Quatre. Afinal não sabia como Duo se sentiria se dissesse o que havia acontecido entre eles.

Quatre viu Heero seguir para o banheiro e permaneceu ainda algum tempo, olhando para o quarto, podia sentir varias coisas ao redor, e deu um meio sorriso antes de encaminhar-se para o quarto do amigo.

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Duas horas depois:

Duo desceu do veículo olhando ao redor. Parecia uma ruela como outra qualquer e se o amigo não lhe houvesse dito que iam ver um antiquário duvidaria muito de que houvesse realmente algum por ali. Seu olhar encontrou o de Heero e este sorriu ligeiramente, corando quando o egiptólogo tomou-lhe a mão carinhosamente, puxando para entrarem na loja. Havia compartilhado com Quatre o que acontecêra entre eles e as circunstancias de como havia acontecido. Ficara feliz por Quatre não julgá-lo, e sim apoiá-lo e incentivá-lo a investir na relação com Heero; mesmo que tudo houvesse acontecido de maneira estranha e conturbada. Sentia-se um tanto confuso e temeroso, mas o fato do japonês, ter pego sua mão na frente de Quatre o fez acreditar que talvez fosse possível uma relação entre eles, e que ele era importante para Heero, e não apenas um mero passatempo.

Entraram no antiquário, sendo recebidos imediatamente por um homem de estatura mediana e aparência forte. O mesmo sorriu assim que viu Quatre, abraçando-o e murmurando algo em árabe, antes de apresentar-se a eles.

- Eu sou Abdul Hassad, bem-vindos a minha humilde loja. Quatre avisou-me que viriam.

- Abdul, esses são Duo Maxwell, um amigo e Heero Yuy, amigo e colega de trabalho.

- Muito prazer. Venham o espelho, encontra-se nos fundos.

Abdul levou-os até um quarto fortemente trancado. Assim que a porta se abriu, todos se sentiram estranhamente perturbados. Haviam diversos outros espelhos ao redor, mas apenas um transmitia uma sensação estranha a primeira vista. O mesmo encontrava-se disposto no meio do quarto, cercado por outros espelhos de diversos tamanhos e formatos.

- Esse é o espelho das almas que, segundo as lendas, foi criado pelos deuses.

Ficaram em silêncio durante alguns segundos, apenas observando o espelho, que deveria medir quase três metros de altura e dois de largura. Quatre podia sentir uma forte sensação emanando do espelho, era algo completamente perceptível a pessoas sensíveis como ele. Sabia que a pessoa que criara o objeto a sua frente era possuidora de infinito poder. Sentia-se imensamente feliz por finalmente ver o objeto que seus pais tanto se dedicaram a encontrar, afinal ambos haviam dedicado anos de pesquisa e de suas vidas em busca daquele objeto, e o mesmo encontrava-se a sua frente neste momento. Quatre voltou-se para Abdul, que sorriu; compartilhando silenciosamente da alegria que o jovem árabe sentia, sabia o quanto os pais dele haviam se dedicado naquela busca, e haviam perecido sem nunca vê-lo.

- Eles ficariam felizes por você tê-lo visto.

Quatre meneou a cabeça em acordo. Sim, eles ficariam felizes em saber que o espelho existia, e que ele o vira. Esticou o braço a fim de tocar o espelho, mas a voz de Abdul despertou-lhe da estranha sensação que o envolvia, e o impelia a querer tocar a superfície fria do artefato.

- Quatre, há outra coisa que quero lhe falar.

- Claro.

Quatre piscou, lançando um último olhar para o objeto antes de seguir o antigo ajudante de seus pais para fora do quarto.

Heero viu Quatre seguir o antiquário e voltou-se para o amante, que no momento encontrava-se em frente ao espelho tentando ver algo através deste.

Duo olhava para o espelho, que lhe parecia um espelho comum, apenas a armação em volta lhe parecia extravagante demais; fora isso não via no que ele poderia ser diferente dos outros ao redor. Segundo o antiquário que estavam visitando, ele era capaz de mostrar a alma das pessoas, apenas postando-se à frente dele, e até o momento nada havia acontecido.

- Viu algo de interessante?

- Não... acho que o espelho em meu quarto é tão eficiente quanto esse.

Heero riu e olhou para o reflexo dos dois; para ele também não havia nada de diferente. Acreditava que Quatre havia sido enganado quanto àquela história; estava ponto de discutir o fato com Duo, quando a imagem do espelho começou a esmaecer, dando lugar a outras duas pessoas, parecidas com eles, mas com vestes e aparência um pouco mais jovem.

Duo ofegou ao ver a imagem deles mudar para as pessoas que nos últimos dias apareciam em seus sonhos. O jovem de longos cabelos castanhos dourados e olhos ametistas como o seu, e o rapaz um pouco mais alto com os cabelos castanhos achocolatados e olhos azuis cobalto como os do egiptólogo a seu lado.

Heero piscou diante das duas figuras, e mediante o fato delas estarem estendendo a mão para eles. A imagem atrás deles era a mesma do quarto, com os mesmos espelhos à volta e o tapete sob seus pés, apenas as duas figuras destoavam, uma vez que não deveriam estar ali e sim o reflexo dele e de Duo. Viu quando o americano ergueu a mão para tocar o reflexo do rapaz que tinha os olhos da mesma cor que os seus, e inconscientemente, ergueu a sua. Algo dentro dele impelia-o a imitar o gesto e tocar a figura de cabelos longos e olhos da cor de ametistas. Quando seus dedos se tocaram através do espelho, pôde ouvir apenas um sussurro, antes que sua mente fosse tragada pela escuridão.

"Lembrem-se"

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3.059 a.c cidade de Mênfis

Sibun olhou-se no espelho analisando, seu reflexo. Mesmo sendo tão jovem já compreendia muitas coisas, dentre elas era que sua aparência causava diferentes reações nas pessoas, e sua posição como filho do faraó parecia não agradar aos outros meninos da escola, tornando-o uma pessoa solitária, e sem amigos. Tocou os cabelos longos, imaginando o porquê de sua mãe insistir em mantê-los tão compridos. A maioria das mães mantinha os cabelos dos filhos curtos, menos a sua. Gostava deles, eram parecidos com o de sua mãe, mas odiava seu comprimento, uma vez que lhe dava apenas mais motivos para implicarem com ele. Terminou de arrumar-se rapidamente e deixou o quarto sem ser visto, sabia que em poucos minutos sua mãe viria ter com ele, mas antes precisava fazer uma coisa.

Percorreu o curto caminho até o corredor que o levaria a seu destino, mas ao dobrar o mesmo, viu sua mãe em companhia de uma das escravas. Olhou ao redor e escondeu-se rapidamente num canto, até que ambas passassem, não poderia ser pego, agora que estava tão perto. As duas passaram, certamente caminhando em direção a seu quarto. Sorriu ao notar que havia conseguido despistá-las. Deixou seu esconderijo e caminhou apressadamente, entrando desapercebido no aposento de seus pais. Há algumas semanas atrás, seu pai havia-lhe dito que lhe daria um belo presente por sua nova idade e mal conseguira conter a excitação em saber o que lhe seria dado.

Pelo que se lembrava, uma festa suntuosa estava sendo preparada para dali a alguns dias, e em exatamente três dias, já seria considerado um homem, e não mais um menino, não que houvesse alguém que quisesse convidar, embora soubesse que certamente todos os que sempre implicavam com ele pelas costas de seu pai estivessem presentes. Afinal, a maioria era de súditos do faraó, todos pertencentes a famílias nobres. Sibun deixou os pensamentos de que não desejava uma festa, para fazer o que havia se proposto quando dirigiu-se até o quarto dos pais. Olhou em todas as direções, imaginando onde seu presente pudesse estar. Rapidamente começou a vasculhar o quarto à procura do lugar onde supunha, estaria seu presente de maioridade. Após alguns minutos encontrou uma pequena caixa em meio alguns panos. Abriu-a ansiosamente, maravilhando-se ao deparar-se com a bela peça.

Sibun estava observando a faca, esculpida em marfim e pedras coloridas, quando sua mãe apareceu; vestida em seus trajes brancos, cinto e braceletes de ouro, e os cabelos longos cobrindo suavemente os ombros pálidos. Olhou dentro dos olhos da mesma cor que os seus e viu uma suave repreensão neles. Sabia que não deveria ter entrado sem permissão, e nem remexido nas coisas de seu pai. Mas estava curioso... o quê, segundo sua mãe, era seu único defeito.

Inia olhou para o filho que a encarava com receio. Por certo por ter sido pego fazendo o que não deveria, e com a prova do crime em mãos. Ainda assim sorriu, caminhando até ele e acariciando os fios longos e claros do cabelo de seu único filho.

- Isso deveria ser um presente.

- Eu...

- A faca, seu pai mandou fazer para você, mas não deveria tê-la encontrado mocinho... ainda é muito jovem para brincar com ela. Ainda faltam dois dias para seu aniversário, e é quando você a receberá. Como um sinal de que já é um homem. Agora coloque-a no lugar, temos que sair.

Sibun depositou a faca no lugar em que a encontrara, e voltou-se para sua mãe, que o aguardava com uma das mãos estendidas.

- Aonde vamos mamãe?

- Ao templo, oferecer tributo aos deuses.

Sibun segurou a mão que lhe era extendida, indagando o motivo de irem ao templo de Amon novamente. Não estavam em nenhuma data religiosa, ou época de nenhum tributo ao deus a quem serviam. Sua mãe havia-lhe explicado que eles eram servos de Amon, e como tal, deviam a ele tudo o que tinham. Desde as roupas, ao alimento, animais e escravos. Por isso era costume oferecer sacrifícios a ele. Em honra e devoção. Mas pelo que se lembrava faziam poucos dias que eles, juntamente com seu pai haviam ido ao templo de Amon oferecer-lhe tributo. Então porque estavam indo novamente?.

- Porquê?

- Esqueceu-se de que dia é hoje?

Sibun balançou a cabeça suavemente fazendo sua mãe rir e acariciar-lhe o rosto com carinho; embora parecesse um tanto quanto triste.

- Não se lembra que todos anos, dias antes de seu aniversário, temos de ir a um... determinado templo e oferecer oferendas?

Sibun procurou lembrar-se, mas tudo era um tanto quanto vago em sua mente, ainda assim balançou a cabeça em entendimento. Se sua mãe dizia que iam, então não havia porquê duvidar dela.

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Menés observava com olhos críticos a nova leva de escravos trazidos do sul. Apesar de ter servos para executar essa função, às vezes gostava ele mesmo de determinar o que cada um deveria fazer em seu reino; principalmente àqueles que trabalhariam servindo-os dentro do palácio. Muitos ainda eram muito jovens, talvez bem mais que seu único filho. Sorriu ao lembrar-se de seu herdeiro. Sibun havia nascido a pouco mais de cinco anos, e em alguns dias, segundo os costumes já seria considerado um homem; mesmo que a seus olhos este não se encontrasse apto a enfrentar as adversidades da vida. Mesmo já estando sendo treinado para isso.

Seu filho possuía uma doçura que não deveria ter. O que atraia a simpatia e a inveja de muitos, o que acabou por torná-lo um tanto arredio; o que era influenciado por sua esposa que mantinha-o sempre junto de suas asas, protegendo-o em excesso. Sabia que muitos não gostavam de Sibun pelo simples fato dele ser o futuro faraó. Via isso nos olhares das crianças, quando estas não estavam junto a seus pais. Lamentava o fato do filho não possuir amigos. Mas faraós nem sempre tinham amigos, e esse era um fardo que Sibun deveria entender, saber enfrentar, e aceitar desde pequeno.

Sibun possuía uma beleza peculiar. De si puxara muito pouco, apenas alguns traços quase que imperceptíveis. Da mãe puxara o tom acobreado dos cabelos longos, que Inia insistia em manter, e os olhos claros e raros em um menino. Uma contradição em muitos aspectos. Primeiramente os olhos, que eram capazes de mostrar tão claramente a gama de emoções que sentia, embora na maioria das vezes houvesse apenas fragilidade espelhada neles. Pelo que se lembrava das histórias contadas por seu pai, mesmo quando pequeno, seus olhos demonstravam força, e era essa mesma força que gostaria de ver refletida nos olhos de seu único filho.

Raras foram às vezes que o vira olhar duramente para alguém. Na maioria das vezes Sibun simplesmente abaixava a cabeça e recolhia-se em algum canto. Outro fato era que; apesar de pequeno, seu menino não parecia temer a morte. Na verdade, era como se a mesma o acompanhasse desde pequeno, pois não foram poucas às vezes em que seu filho se defrontara com eventos que poderiam causar-lhe a morte, e a mesma não o tomara para si. Mas levara a outros em seu lugar. Como o que acontecêra à poucos dias atrás; quando um escravo morreu ao ser picado por uma serpente, que se encontrava no jardim do palácio, no momento em que Sibun por lá brincava.

Tais pensamentos foram cortados quando seu olhar encontrou um menino de olhar azulado e feroz. Tão denso e escuro como a própria noite. Encarou o menino, que o encarava diretamente sem nenhum receio de sua posição. Era esse tipo de olhar que gostaria de ver nos olhos de Sibun. Mas não o mesmo ódio que sentia vir do garoto, que deveria ser apenas um pouco mais velho que seu menino. Ainda assim, era o tipo de olhar que tinha certeza não seria tão facilmente sobrepujado. Menés gesticulou para um dos servos que separassem o menino de olhos azuis escuros e cabelos revoltos para que servisse dentro de sua casa. Talvez o colocasse a serviço de sua esposa ou de seu filho. Um presente, para que Sibun começasse a comandar desde cedo, e entendesse sua posição como herdeiro do trono, quando os deuses decidissem levá-lo para os campos de Iaru.

Acompanhou com o olhar o menino ser levado, sabendo que o mesmo seria lavado e instruído, antes que começasse de fato suas obrigações. Durante os poucos segundos em que seguiu o garoto com os olhos, algo dentro dele pareceu alertá-lo quanto a posição que o mesmo deveria ocupar. Por alguns segundos o fato de que talvez não devesse permitir que seu filho entrasse em contato com o escravo ressoou em sua mente; mas o mesmo desapareceu tão rapidamente quanto veio, ao ver seu filho correr em sua direção, seguido por sua esposa e um dos escravos.

- Papai!

Menés abraçou o filho que se jogara em seus braços r rodopiou com ele, ouvindo a risada cristalina do menino. Esta soava como música a seus ouvidos. Olhou nos olhos do filho, vendo toda a alegria que este sentia, e olhou para a esposa sorrindo-lhe. Haviam ansiado tanto por um filho, que quando o mesmo chegara instituíra três dias de festa, pelo seu nascimento, mesmo que alguns dos sacerdotes dissessem que o nascimento dele havia ocorrido em um momento não muito propício. Alguns ainda viam com maus olhos o nascimento de seu herdeiro, dizendo que o menino havia nascido sob a proteção do deus errado.

Sibun nascêra numa noite sem lua, quando os astros encontravam-se na posição em que muitos acreditavam ser um mau presságio. Alguns, menos supersticiosos, diziam que as crianças nascidas nesta época seriam imunes a morte, vivendo sob a proteção de Anúbis, o senhor dos mortos, e como tal deviam obediência à ele. Entretanto, todos em sua casa serviam a Amon. Até mesmo Inia, que ao casar-se com ele deixara de adorar a Hátor, a deusa do céu e das mulheres, e passara a adorar Amon. E com seu filho não seria diferente, embora soubesse que Inia, todos os anos, no mês de nascimento de Sibun, oferecia tributos ao deus chacal. Nada tinha contra, uma vez que Sibun nascera sobre a proteção do mesmo. Entretanto não gostava daquilo, mas não queria que a ira do deus do submundo, e juíz dos mortos, caísse sobre sua casa. Não seria prudente desafiar os deuses, ainda mais um tão poderoso quanto Amon.

- Aonde vão?

Inia curvou-se diante de seu marido, sorrindo fracamente; não poderia dizer em voz alta aonde iam, muitos poderiam se opor, e não desejava trazer problemas a Menés, contando-lhe aonde iriam, mesmo que este soubesse cada um de seus passos.

- À fonte no limite da cidade meu senhor.

Menés meneou a cabeça em assentimento, mesmo ciente de que certamente eles iriam a outro lugar. Por certo no que estivera pensando há poucos instantes.

Sibun olhou para sua mãe e depois para seu pai; e então voltou o olhar na direção dos homens e mulheres que encontravam-se enfileirados a poucos metros deles. Nunca os havia visto antes. Talvez fossem novos escravos. Embora não entendesse por que precisavam de tantos. Pareciam estar sendo separados, pois alguns seguiam na direção de onde haviam vindo, enquanto outros eram dirigidos para fora do pátio e alguns poucos permaneciam no mesmo lugar.

Menés colocou o filho no chão, olhando para o escravo que sempre a acompanhava quando ia com Sibun para além dos limites da cidade. Sabia que os veria novamente apenas no cair da tarde e não desejava que se demorassem mais, ou acabariam por retornar apenas à noite. Tão logo foi solto, Sibun segurou a mão de sua mãe e seguiu-a em direção aos portões do palácio, virando-se apenas para dar adeus a seu pai que lhe sorria ternamente.

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Um transporte já os aguardava do lado de fora do palácio; bem como a oferenda a ser oferecida ao deus, e os mantimentos para que pudessem ir e voltar. Levariam pelo menos três horas para atravessar a cidade e chegar ao templo, que ficava além da fonte, nos limites de Mênfis. Seguiram o trajeto, atravessando a cidade, sob os olhar dos habitantes que se curvavam a eles à medida em que avançavam para seu destino. Havia se passado um pouco mais de três horas antes que alcançassem o templo escondido e afastado da cidade principal. Pouco depois de iniciada a viagem, Sibun começara a passar mal, devido ao cansaço e tiveram que parar até o menino sentir-se melhor. Poucos sabiam que após a fonte de Akhar, existia um templo.

Na verdade, se não fosse pelo escravo que a acompanhava, certamente ela jamais cumpriria com sua palavra ao deus que lhe permitira ter Sibun. Kebech surgira poucos dias após o nascimento de Sibun, dizendo ter sido enviado para que ela cumprisse com a promessa feita ao senhor dos mortos. Fôra ele quem a levara ao templo da primeira vez, e a acompanhava todos os anos, quando era chegada a época de oferecer tributo a Anúbis.

Desceram diante do templo, detendo-se por alguns instantes para observarem a entrada do mesmo. Sempre que ia ao templo de Anúbis, imaginava quem o teria erguido. Menés erguera o templo de Amon bem no centro da cidade, onde todos podiam ir cultuá-lo. O templo de Anúbis possuía em sua entrada duas grandes colunas, e por entre elas uma longa escadaria que dava para um pátio cercado por colunas de igual tamanho. Passaram pela fonte no centro do pátio e seguiram além, onde havia uma outra escadaria que dava para um salão onde, dentro dele; havia uma gigantesca estátua de Anúbis com um altar a seus pés, onde deveriam ser colocados os tributos.

O escravo acendeu uma tocha e colocou-a nas mãos de Sibun, que ficou observando sua mãe e o escravo aproximarem-se do altar e colocarem um bezerro por sobre ele, e em seguida derramar algo em cima. Inia virou-se para o filho e sorriu fazendo sinal para que se aproximasse com a tocha. Sibun caminhou até eles, mantendo a tocha longe do altar e olhando sua mãe.

- Querido, você deve acender o altar.

Ele se aproximou e jogou a tocha dentro do altar. Em segundos o local começou a arder em chamas. Sibun afastou-se quando as chamas aumentaram, consumindo o bezerro; mas sua mãe segurou-o pela mão, fazendo-o sentir seu suave cheiro de flores. Olhou ao redor, vendo inscrições por toda a parede. Era a primeira vez que reparava no templo, mas não era a primeira vez que se sentia desconfortável. Sentia como se vários pares de olhos os observassem de algum lugar. Instintivamente apertou a mão de sua mãe e aproximou-se ainda mais dela. Ainda não sabia qual era o deus a que estavam honrando, pois algo o impedia de erguer os olhos e ver qual era estátua que encontrava-se à frente deles. Recriminou-se por isso, pois seu pai sempre lhe dizia que ele era o futuro faraó, e como tal deveria ter coragem para enfrentar qualquer coisa, então. Tudo o que tinha de fazer era erguer a cabeça, e saberia qual o deus. Uma vez que lhe fôra ensinado sobre cada um deles. Estava pronto de levantar a cabeça para a estátua, quando sua mãe o chamou.

- Querido, preste atenção. Você já fez seu pedido?

- Pedido?

- Sim, sempre que ofertar alguma coisa, você deve agradecer ou pedir algo. Lembre-se dos ensinamentos que aprendeu na escola. Ou não deseja nada?

- Eu...

- Sibun você não pode deixá-lo esperando, logo o fogo apagará e se você não pedir, como ele lhe atenderá?

Sibun ficou olhando o fogo e balançou a cabeça. Não sentia vontade de pedir algo àquele deus que não sabia, e nem queria saber quem era. Inia abraçou o filho, acariciando seus cabelos, enquanto entoava uma canção que o fazia sentir-se aquecido por dentro; embora parecesse uma prece. Sibun estava tendo dificuldades em manter a mente atenta, pois começava a sentir-se sonolento. Seus olhos foram fechando, e a voz de sua mãe diminuindo, até que não mais a ouviu. Inia deu um sorriso triste antes de murmurar ao escravo que deveriam voltar. O mesmo tomou o menino desacordado nos braços.

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Três meses depois:

Sibun corria, afastando-se cada vez mais do palácio. Havia querido escapar da vigilância de sua ama e ir ao mercado pessoalmente comprar um presente de aniversário para sua mãe. Para isso aguardou pacientemente o melhor momento, e escondeu-se numa das carroças que haviam trazido alimentos pela manhã, e que deixariam o palácio assim que descarregassem. Desceu apenas quando a mesma parou num lugar que lhe era totalmente desconhecido. Notara os olhares das pessoas diante de suas roupas limpas e de tecido fino, indicando sua posição nobre, mas sentia-se tão feliz por poder andar sozinho que não se ateve ao fato de que tal aventura poderia ser-lhe perigosa.

Andava distraidamente, observando tudo ao redor com alegria e inocência, até que alguns minutos depois, acabou por esbarrar em dois meninos que eram filhos de um dos conselheiros de seu pai. Estes sempre o atormentavam, e sabia que dessa vez não seria diferente, ao notar o sorriso sarcástico no rosto de um deles, antes que o mesmo o agarrasse pelo braço. Teve tempo apenas de chutá-lo antes de correr, tentando inutilmente fugir deles.

Sentia medo, e sabia que ninguém poderia ajudá-lo, pois estava longe da proteção do palácio e ninguém sabia de sua aventura. Lágrimas toldavam sua visão e acabou esbarrando em alguém, antes de virar em uma esquina e acabar em um beco sem saída. Tudo que pôde fazer foi encolher-se no final do beco, antes que seus perseguidores o alcançassem, caminhando lentamente até ele. Sibun procurou refrear as lágrimas, mesmo que estas se recusassem a permanecer no lugar.

- Você vai se arrepender principezinho.

- Nem seu pai ou os guardas do palácio podem te ajudar agora.

Sibun encolheu-se diante das palavras cuspidas com rancor, e temeu pelo que lhe aconteceria, dizendo inutilmente que eles não poderiam feri-lo sem que seu pai viesse a saber.

- Vocês não podem tocar em mim.

- Isso é o que você pensa.

Os meninos partiram para cima de Sibun, fazendo-o levantar e espremer-se ainda mais contra a parede à suas costas. Pensou em gritar por ajuda, mas quem o ajudaria ali? Fechou os olhos, esperando seu destino, quando uma voz fria o fez estremecer, fazendo-o abrir os olhos e ver quem era a mesma..

- Por que vocês não procuram alguém do tamanho de vocês para implicarem?

Sibun encolheu-se novamente, procurando ver por entre as pernas de seus perseguidores, sentindo seu coração acelerar ao ver um menino, possivelmente um pouco mais velho que ele. Os cabelos castanhos escuros, meio desgrenhados olhos azuis escuros e profundos, que continham uma expressão fria que jamais vira antes. O outro menino vestia uma saia bege até a altura dos joelhos e possuía braceletes em ambos os braços.

- O que você quer escravo?

- Não deveria meter-se no assunto dos outros.

O escravo olhou para a figura encolhida no final do beco, vendo-o encará-lo com os olhos manchados pelas lágrimas. não tencionava seguÍ-lo, mas quando o filho do faraó esbarrara nele, e notou os outros dois meninos que o seguiam, não conseguiu impedir-se de ver o que tencionavam fazer.

- E vocês não deveriam importunar o garoto.

- E você pretende fazer o quê quanto a isso?

- Hn

O escravo deu um ligeiro sorriso e partiu pra cima dos outros, que ficaram surpresos, uma vez que não esperavam que um menino menor que eles, tivesse a coragem de enfrentá-los.

Apesar de pequeno, sabia que possuía força e agilidade, o que lhe permitira derrotar em pouco tempo seus oponentes, que fugiram correndo. Virou-se, olhando para o herdeiro do Egito que encontrava-se com as roupas sujas e os cabelos soltos, encolhido no canto chorando. Observou-o durante algum tempo, ponderando se o deixava lá ou aproximava-se dele. No fim decidiu-se pela segunda alternativa. Aproximou-se, e agachando-se na frente do outro, usou do mesmo tom frio de antes.

- Eles já foram. è melhor você ir agora e não voltar a andar sozinho por aí.

Sibun levantou os olhos e encarou seu salvador por alguns instantes, mergulhando na íris de um azul intenso, e sentindo seu peito aquecer. Os olhos do outro menino reluziram por alguns segundos, diante da cor exótica dos olhos do filho do faraó. Pareciam duas ametistas. Sem saber porquê, levou uma das mãos ao rosto do menino, e por um instante o mesmo se assustou e se afastou, fazendo com que o outro refreasse sua mão, para logo em seguida enxugar as lágrimas que caiam do belo rosto.

Sibun sentiu o toque quente e atirou-se nos braços do outro, chorando compulsivamente, fazendo com que o outro ficasse petrificado por alguns instantes. Levou apenas alguns segundos antes que abraçasse o filho do faraó, afagando-lhe os cabelos, enquanto sussurrava-lhe palavras de conforto.

- Shhhh... está tudo bem, não deixarei que ninguém lhe faça mal. Não chore.

- Eu... eu... tive... tanto... tanto medo.

- Está tudo bem agora.

Sibun afastou-se e concordou, balançando a cabeça. Viu o outro menino levantar-se e estender-lhe a mão. Timidamente aceitou-a, sentindo-se aquecido diante do toque tão comum, mas que o fizera corar no mesmo instante.

- Venha... vou acompanhá-lo até o palácio.

Sibun sorriu ao saber que o outro o acompanharia até em casa. Assim não precisava temer encontrar os outros dois pelo caminho; pois tinha certeza de que o menino a seu lado o manteria seguro. Caminharam lentamente um ao lado do outro, mesmo que o certo fosse o escravo andar a dois passos atrás dele. De vez em quando olhava para ele de soslaio, virando-se rapidamente quando o menino o pegava encarando-o. Procurou arrumar suas vestes que estavam um pouco sujas, e ajeitar os cabelos que haviam se soltado enquanto fugia. Podia notar o olhar dos outros sobre si, e a forma como o outro menino ignorava os olhares com o olhar frio. Ele era diferente dos outros. Sabia que não era a primeira vez que o via entre os outros escravos; ainda assim era difícil admitir que ele era um deles. De certo não se portava como um. Os garotos haviam dito o que ele era, mas este não parecia ser muito mais velho que ele.

- Porque me ajudou?

Ohry olhou para o menino que procurava ignorar, desde que ajudara. Na verdade, ele mesmo não sabia porquê o ajudara. O menino era filho do faraó, e por causa dele, ele e sua família, eram escravos. Seus tios trabalhavam nas minas, enquanto ele trabalhava na cozinha do palácio. Mas ao vê-lo correndo, sendo perseguido, e encurralado pelos outros meninos, muito maiores que ele, não conseguira dar-lhes as costas. O medo era evidente em sua voz e sabia que o menino não seria capaz de se defender.

- Você parecia precisar de ajuda.

- Ah... o... obrigado.

Ohry olhou para o menino que parecia envergonhado. Sibun chutou uma pedrinha invisível, torcendo as mãos diante da resposta curta e fria. Por algum motivo queria saber mais sobre o escravo a seu lado, mas não sabia como perguntar sem parecer enxerido. Seus pensamentos foram interrompidos pela voz fria do outro, que estranhamente parecia aborrecido com ele.

- Não deveria andar por ai sozinho. Pode não ter a mesma sorte novamente. Não são todos que apreciam à você ou sua família.

Sibun arregalou os olhos ao ouvir o menino falar rudemente. Seus olhos encheram-se de lágrimas no mesmo instante e tentou não chorar; abaixando a cabeça para que o outro não visse.

Ohry praguejou mentalmente por ter sido tão ríspido. Não queria que o filho do faraó voltasse a chorar. Mas não havia dito nenhuma mentira quanto ao fato de que nem todos gostavam do faraó e sua família. Era perigoso o menino andar sozinho pela cidade.

- Desculpe, não queria ser tão ríspido. Mas não deve andar sozinho Sibun, não é seguro para o filho do faraó.

- Você sabe meu nome?

Ohry deu um meio sorriso diante da surpresa do menino. Quem na cidade não conhecia o filho do faraó mesmo que de longe? Ele parou surpreso ao ouvir o menino perguntar-lhe algo.

- Quê!

Sibun parou e olhou confuso para o menino. Havia feito uma pergunta simples, mas o menino o olhava como se tivesse feito algum tipo de ofensa. Será que o havia ofendido de alguma forma?

- Eu perguntei o seu nome. Você sabe o meu, mas eu não sei o seu.

O escravo piscou, permanecendo em silêncio por alguns segundos. Porque ele ficara tão surpreso com a pergunta? Olhou para Sibun, que ainda aguardava uma resposta, e pôs-se a andar novamente, fazendo o menino correr a atrás dele, permanecendo com a cabeça abaixada. Notou que estavam próximos ao palácio e parou. Não desejava ir além, afinal havia escapado de seus afazeres naquele dia, e não tinha a menor pretensão de voltar, ainda mais quando viu que os guardas vinham correndo na direção deles, acompanhados por uma mulher que deveria ser a pessoa que cuidava de Sibun. Virou-se para ir embora, mas deteve-se ao ouvir a voz de Sibun soar esperançosa, ao fazer a pergunta:

- Você não vai me dizer seu nome?

Ele suspirou, e respondeu sem nem ao menos se virar, colocando-se logo em seguida a caminho da vila de escravos onde morava.

- Ohry.

Sibun sorriu, mesmo que o menino não pudesse ver. Deixou ser abraçado por sua ama, ignorando as perguntas que esta lhe fazia, mantendo seu olhar no garoto que ia embora. Viu quando os guardas adiantaram-se para pará-lo e temeu por sua vida

- Não... deixem-no ir. Ele me ajudou a voltar para casa.

Os guardas se detiveram, vendo que o escravo nem ao menos havia parado, mas simplesmente continuara seu caminho. Sibun sorriu e deixou-se levar para dentro do palácio. Em seu coração havia apenas uma resolução. Encontraria Ohry novamente, e seriam amigos. Tinha certeza disso. Seu coração lhe dizia isso, e ele acreditava que pudesse ser possível.

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Duas semanas depois:

Ohry encontrava-se na cozinha, tentando esconder-se de Sibun, embora soubesse que seria impossível fazê-lo por muito tempo. Na verdade, estranhava o fato do filho do faraó ainda não ter ido atrás dele, como sempre fazia após sua refeição matinal. Desde que o havia ajudado e o faraó havia descoberto o fato, o mesmo ordenara que ficasse a serviço de seu filho. Não podia dizer que detestava completamente a companhia do príncipe, uma vez que suas função resumia-se a acompanhar o herdeiro aonde o mesmo desejasse ir. Entretanto, era quase que impossível manter o mesmo calado.

Mesmo ignorando-o, tratando-o mal, Sibun parecia não se importar. Na verdade isso parecia apenas incentivá-lo a querer manter contato com ele. Estava terminando de reunir os legumes, quando sentiu o habitual silêncio na cozinha, e sabia muito bem o porquê. Seus olhos ergueram-se a tempo de ver o príncipe correr na sua direção, sorrindo como se ele fosse algum tipo de brinquedo ou doce. Suspirou cansado, notando que os olhares dos demais escravos voltaram-se imediatamente para os dois, quando Sibun parou a sua frente.

- Vamos à cidade?

Ohry ignorou o príncipe, virando-se para procurar alguma coisa para fazer, quando uma pequena mão segurou-o pelo braço. Virou-se, sabendo o que encontraria e amaldiçoando todos os deuses pelo nascimento de Sibun, que o encarava com os olhos marejados por ter sido rudemente ignorado. Sem escapatória, ouviu-se respondendo ironicamente a Sibun, que não parecia nem um pouco perturbado pelo tom irônico de sua voz, ou pela mensura sarcástica que fizera.

- Como desejar majestade.

Sibun sorriu, mesmo diante do tom sarcástico de Ohry, torcendo os lábios ao vê-lo curvar-se diante de si, indicando que ele fosse na frente,e que o seguiria conforme os costumes. Sibun olhou ao redor, notando que todos os observavam, e abaixou a cabeça envergonhado, antes de seguir em direção à saída, sendo seguido relutantemente pelo escravo.

Deixaram o palácio, seguindo como sempre, para o mercado da cidade. Sibun olhava de vez em quando para o escravo que evitava olhar em seus olhos e amaldiçoou-se por ter sido tão afobado novamente. Sabia que Ohry detestava quando adentrava a cozinha, correndo em sua direção e chamando-o para irem a cidade, o que ocorria geralmente todas as manhãs. Mas não conseguia evitar. Seu primeiro pensamento todos os dias ao acordar, era o de ver Ohry e fazê-lo ser seu amigo. Mal conseguia comer direito, antes de correr para a cozinha, onde sabia que o encontraria.

Não havia avançado muito desde que se conheceram; e agora duvidava que poderia fazer o escravo tornar-se seu amigo. Ohry estava começando a estranhar o silêncio. Ele os vinha acompanhando desde que deixaram o palácio. Estavam andando a esmo há quase uma hora, e Sibun não havia dito ou feito nada do que normalmente fazia; como falar pelos cotovelos ou fazê-lo tentar sorrir, ou tentar persuadí-lo a acompanhá-lo em alguma brincadeira. Notou que caminhavam para o templo de Amon e suspirou cansado. Parecia que os pés de Sibun sempre o levavam para lá.

Sibun mal notara que estavam no templo de Amon, até que ambos sentaram a sombra deste, nas escadarias na parte de trás do templo. Suspirou fortemente, reunindo toda a coragem que estivera juntando desde que haviam saído do palácio. Virou-se para Ohry, vendo que o escravo mantinha o olhar em algum lugar dentro do templo atrás deles.

- Podemos ser amigos?

Ohry voltou sua atenção para Sibun assim que ouviu a pergunta idiota. O que ele tinha na cabeça para perguntar tal coisa? A raiva e frustração dos últimos dias, pareceu aflorar em cada poro de seu corpo, e ele se ergueu, deixando que sua voz fizesse o mesmo.

- Amigos! Você sabe quem eu sou?

- Ohry!

Ohry deu um riso irônico diante da resposta inocente. Como Sibun podia ser tão inocente diante de certos fatos? Eles pertenciam a classes diferentes e isso jamais mudaria. Mesmo que os deuses interferissem, ele sempre seria um escravo e Sibun; o filho do faraó.

- Eu sou um escravo. E você é o herdeiro do faraó. Herdeiros não brincam com escravos. Você deve ter outros amigos com quem brincar.

Sibun abaixou a cabeça remexendo a terra com a ponta do pé. Ele não tinha amigos. E os meninos que queriam brincar com ele, não gostavam dele, apenas o suportavam por causa de seu pai.

- Eu não tenho com quem brincar. Os outros meninos não gostam de ficar comigo e quando o fazem, me suportam apenas por causa de meu pai. Não que eu deseje a companhia deles, mas eu... eu gosto de estar com você.

Ohry olhou para o menino, vendo-o morder o canto dos lábios. Sabia que Sibun fazia isso sempre que estava triste ou com medo. Praguejou, pensando no porquê era tão difícil afastar-se dele. As palavras de Sibun o tocaram.. Mesmo em posições diferentes, não podia negar que se sentia bem na companhia dele. O sorriso sempre claro. A voz tão inocente. Mas aainda assim, não podiam mudar as leis da vida, ou o destino; dado pelos deuses. Procurando não soar tão ríspido, tentou novamente fazê-lo enxergar que seria impossível ter o que desejava.

- Nós não podemos ser amigos Sibun.

- Porque? Eu não entendo..

- Porque você é o filho do faraó e eu sou um escravo, e nunca seremos nada mais do que isso. Acho melhor esquecer isso e voltarmos.

- Mas...

- AGORA!

Sibun levantou-se assustado diante do grito. Tentou afastar as lágrimas que mancharam seu rosto. Sentia seu corpo todo tremer, e nunca odiou tanto uma pessoa como odiava Ohry naquele momento. Queria apenas que fossem, amigos, nada além disso. Procurou enxugar as lágrimas gritando com Ohry que não pareceu nem um pouco abalado com suas palavras.

- Eu odeio você!

- Acho que posso conviver com isso.

Sibun saiu correndo, seguindo na direção oposta a do palácio. Não queria voltar para casa. Em sua mente, o fato de ser filho do faraó era o motivo pelo qual Ohry não gostava dele, e não o desejava ser seu amigo. Correu sem direção durante um bom tempo, deixando-se cair nas areias junto a um pequeno oásis, quando suas pernas não mais o obedeceram. Não fazia a menor idéia de onde se encontrava e nem queria saber. Não fazia diferença mesmo. Ohry nunca seria seu amigo, ainda mais depois de dizer que o odiava.

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Ohry viu quando Sibun correu na direção oposta à cidade, o que significava que não seguia para casa. Seu coração doeu ao lembrar das palavras ditas, carregadas de ódio. Mesmo que tivesse dito que poderia conviver com aquilo, não tinha plena certeza de que o conseguiria, sabendo que Sibun o odiava realmente. Olhou para o templo atrás de si, decidindo entrar e orar a Amon, implorando por esclarecimento. Havia aprendido a cultuá-lo por causa de Sibun, que dizia que Amon sempre os ouvia. Ajoelhou-se diante da figura imponente de um homem com a cabeça de um carneiro. Não soube dizer quanto tempo permaneceu ali, mas sentiu-se mais calmo ao levantar. Ficou dividido entre voltar ao palácio ou seguir pelo caminho que Sibun corrêra. Seu coração dizia-lhe para ir por ele, que Sibun ainda não retornara para casa e por certo não saberia fazê-lo sozinho e a muito que a manhã já estava alta.

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Sibun encontrava-se deitado junto à fonte. Havia molhado o rosto nela e bebido de sua água fresca; ainda assim seu coração pesava, e as lágrimas não o deixavam. Apoiou o rosto na pedra abraçando-a como se isso fizesse a dor diminuir. Ficou a imaginar se Ohry viria atrás dele, ou se simplesmente voltaria para o palácio, deixando-o sozinho. Não saberia voltar para casa sozinho, pois não fazia idéia de onde estava. Ofegou assustado quando uma figura pôs-se a sua frente. Não conseguia ver quem era por causa do sol, até que a mesma agachou-se à sua frente.

Ohry havia andado por vários minutos, sendo guiado apenas por seu coração. Estava perdendo as esperanças de encontrar Sibun, quando ao longe divisou um pequeno oásis escondido e nele uma pequena figura encolhida. Começou a correr, torcendo para que fosse o jovem príncipe e que o mesmo estivesse bem, ou jamais se perdoaria.

Quando reconheceu as roupas, e viu os pequenos ombros sendo sacudidos pelo pranto, alegrou-se e entristeceu-se ao mesmo tempo, afinal o havia encontrado, mas o mesmo ainda chorava pela sua estupidez. Viu o olhar de medo quando o mesmo ergueu os olhos marcados pelas lágrimas e não o reconheceu, para logo em seguida, ao colocar-se agachado à frente de Sibun, ver refletido nas ametistas a sua frente, alegria e esperança.

- Perdoe-me. Eu quero ser seu amigo

- M... mesmo?

Sibun viu Ohry concordar e jogou-se nos braços do escravo. Sorriu diante das palavras de consolo e desculpas, embora estas fossem desnecessárias. Eram amigos agora, e o seriam por um bom tempo, tinha certeza disso. Com muito custo Ohry afastou Sibun de si, e enxugou as lágrimas que ainda manchavam o rosto do jovem príncipe.

- Vamos voltar ao palácio, todos devem estar preocupados com você.

Sibun levantou-se com ajuda de Ohry. Segurando na mão do escravo que o olhou estranhamente antes de sorrir. Ohry sabia que não seria nada fácil, mas o contentamento perfeitamente visível nos olhos de Sibun, compensava qualquer dificuldade que eles tivessem que vir a enfrentar; e sabia que estas viriam com o tempo.

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Cinco anos depois:

Sibun parou assustado, sentindo sua respiração parar ao ver os dois guardas que faziam a ronda. Podia ouvir seu coração ressoando em seus ouvidos no silêncio da noite; mas não se deteria até chegar ao lugar do encontro. Já faziam dias que ele e Ohry não se viam, tudo por causa de seu pai, que não aceitava o fato dele ser amigo de um escravo. Já faziam cinco anos, desde o dia em que Ohry aceitara sua amizade, e não houvera um único dia desde então que não tivessem que lutar para manter viva essa amizade. Seu pai fôra o primeiro a ser contra, mandando Ohry para as minas, de forma a afastá-los um do outro. Sua mãe também fôra contra, embora o acobertasse sempre que ele escapulia e ia até a vila dos escravos para vê-lo.

Já havia perdido a conta dos castigos, reprimendas e surras que levara por desobedecer a seu pai, mas isso apenas fazia-o querer ainda mais a companhia do escravo. Era com ele que reclamava sobre seus deveres como herdeiro do trono; era com ele que dividia as alegrias de suas conquistas na escola. Ohry conhecia seus sonhos; seus medos; seus defeitos; e não o condenava ou censurava por eles. Respeitava-o, apoiava-o e consolava-o quando precisava. Sibun correu até a parede norte, movendo com cuidado o bloco por onde passaria. Não tinha muito tempo, antes que os guardas voltassem. Passou e recolocou o bloco no lugar correndo em direção ao rio. Estava tão preocupado em escapar para ver o amigo, que não notara que alguém o seguia de longe.

Ohry olhou para o céu estrelado, perguntando-se se Sibun havia recebido seu recado. Havia aguardado uma resposta até à tarde, mas não recebera nenhuma, ainda assim decidira ir para local onde havia dito que encontraria o amigo. Sentiu suas costas protestarem diante da dor. Trabalhar nas minas não era nada fácil, ainda mais com um imbecil chicoteando suas costas a cada vez que parava para respirar ou enxugar o suor. A verdade era que deveria estar descansando, mas precisava ver Sibun, e desejar-lhe boa sorte na prova no dia seguinte. Já vinham treinando para ela há algum tempo, embora não se vissem há cinco dias, por causa do faraó.

Há três semanas, quando Sibun contara em uma de suas escapadas, que teria uma prova de combate corporal, e que seu mentor o deixava mais nervoso do que ensinava, oferecêra-se para ajudar o amigo. Claro que ele entendia muito pouco sobre as lutas ensinadas na escola que Sibun freqüentava, mas havia assistido às aulas particulares do amigo, e lido os livros que Sibun lhe deixara. Devia muito ao jovem príncipe; afinal se não fosse por ele jamais teria aprendido a ler, ou teria tomado gosto pelas ciências, coisa que Sibun detestava com todas as forças, apesar de ser um bom aluno. Tinha vezes em que ficava pensando quanto tempo ainda poderiam se ver antes que realmente provocassem a ira do faraó.

Não havia sido fácil, principalmente para ele, manter a amizade com Sibun. Mas a cada vez que o amigo vinha até ele com um sorriso, mesmo após um surra, não conseguia voltar atrás em sua decisão de ser amigo dele.

Ohry ouviu um ruído e levantou-se, pronto a defender-se ou correr, caso necessário. Os anos de trabalho nas minas lhe conferiram um pouco de massa muscular e força extra. Não era qualquer um que era capaz de derrotá-lo numa luta justa. Seus olhos suavizaram ao ver o ofegante amigo chegar e cair nas escadas, morto de cansaço da corrida do palácio até ali.

Sibun sorriu ao ver Ohry em pé e pronto a enfrentar qualquer coisa. Sabia que Ohry, apesar de jovem era capaz de derrubar um homem com o triplo de seu tamanho. Nunca se cansaria de ver o amigo lutando, este transmitia tanta força e beleza. Sibun corou diante de tal pensamento, não deveria pensar em como Ohry ficava belo lutando. Eram amigos e meninos, mesmo que já houvesse visto outros meninos fazendo coisas que deveriam ser feitas com meninas.

Ohry estranhou o fato do amigo ter ficado vermelho mas nada comentou; simplesmente sentou-se ao seu lado, empurrando um pequeno embrulho para as mãos de Sibun.

- O que é isso!

- Abra e veja.

- Meu aniversario já passou.

- Eu sei disso, não é um presente de aniversário idiota.

Sibun fez um muxoxo diante da ofensa, embora soubesse que Ohry não o estava ofendendo realmente; era apenas uma forma de fazê-lo calar a boca. Sorriu, abrindo o pequeno embrulho maravilhado com a pequena miniatura dele mesmo, feita em madeira.

- Ohry... é... lindo... foi você quem fez?

Ohry balançou a cabeça antes de ter um Sibun agradecido em cima dele abraçando-o. Sibun sabia que Ohry tinha habilidades como artesão, e apesar de seu pai ter permanentemente proibido Ohry de exercer essa função, este havia encontrado um meio de fazer Ohry ter aulas com um dos artesões do palácio. Em troca de algumas moedas, uma vez por semana o artesão ia à casa de Ohry ensiná-lo sem o conhecimento do faraó. Claro que a principio Ohry havia se negado a aceitar as aulas, mas não fôra difícil convencê-lo. Tudo o que precisou fazer foi chorar, e dizer que havia feito isso na melhor das intenções, e que ele nunca aceitava nada vindo dele. Ficava feliz em saber que seus esforços haviam valido a pena e a prova estava li em suas mãos. Sem pensar no que fazia Sibun levou seus lábios até os de Ohry, beijando-o suavemente e agradecendo o presente.

- Obrigado, guardarei com carinho.

Ohry não soube precisar exatamente o que havia acontecido. Tinha apenas a sensação de que algo macio e quente tocara seus lábios por alguns segundos. Olhou para Sibun que corara, tendo a certeza de que seu rosto possuía a mesma coloração.

Sibun afastou-se rapidamente, abaixando a cabeça e murmurando um pedido de desculpas. Embora a sensação quente que o preenchêra ao tocar os lábios de Ohry, ainda o aquecesse por dentro.

Ohry meneou a cabeça, sentindo-se incapaz de dizer algo quanto ao que havia ocorrido. Não era totalmente inexperiente. Já havia beijado e ido além com algumas garotas e até garotos, mas nenhum deles havia-lhe causado a estranha sensação de familiaridade e desejo de algo mais, que o breve contato com os lábios de Sibun haviam lhe causado. Balançou a cabeça diante de tal pensamento. Nunca, em nenhum momento deveria ter tais pensamentos em relação a Sibun. Amizade era o máximo onde poderia ir sem colocar a vida de ambos em risco.

- Está tudo bem, apenas não torne a fazer isso.

- Desculpe.

Sibun sentiu algo partir-se dentro do peito, mas obrigou-se a ignorar. Ohry tinha razão. Não gostaria nem de pensar no que poderia lhes acontecer se a amizade deles evoluísse para outra coisa. Tinha certeza de que seu pai mandaria matar Ohry e o mataria logo em seguida; e lá no fundo sabia que seria incapaz de continuar vivendo sem Ohry a seu lado, mesmo que ainda não entendesse o porquê de sentir-se assim em relação ao amigo. Sabia que seus sentimentos por ele eram mais fortes que para com seus pais.

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No dia seguinte:

Sibun sentia-se exultante. Havia se saído muito bem na prova. Na verdade fôra o melhor da turma. Tivera que conter a vontade que tinha de ir atrás de Ohry nas minas e partilhar com ele sua alegria, pois não queria trazer problemas para o amigo. Seu pai andava estranho desde de manhã. Mal falara com ele, dizendo que tinha algumas coisas importantes a tratar e não poderia dar-lhe atenção, nem desejara boa sorte na prova; apenas recomendara que não passasse pela praça à tarde. Até mesmo sua mãe estava esquisita. Ela havia ido a escola buscá-lo, juntamente com alguns guardas, coisa que raramente fazia; e obedecendo as ordens de seu pai não queria que passassem pela praça da cidade, caminho este que os deixaria no palácio bem mais rápido.

Sibun viu algumas pessoas correndo e viu que havia uma pequena movimentação na praça da cidade. Podia notar que algumas pareciam chocadas, e sussurravam palavras de como podiam fazer algo tão terrível. Aproximou-se para ver o que as teria deixado tão chocadas, e ignorou os chamados de sua mãe e dos guardas. O que viu o fez levar as mãos a boca e contrair o estômago fazendo-o ter náuseas. Não era possível. Ohry estava acorrentado a uma viga de madeira e suas costas sangravam enquanto era chicoteado; e apesar de suas costas estarem em carne viva, não emitia nenhum som. Nenhuma lágrima caia de seu rosto, era como se não estivesse ali.

Sibun aproximou-se atordoado. As lágrimas caiam de seus olhos, enquanto olhava para o amigo que abriu os olhos e encararam Sibun. que não deveria imaginar que na noite anterior havia sido seguido pelos homens do faraó. Mal colocara os pés em casa e fôra levado para a prisão, permanecendo lá até a tarde do dia seguinte, quando foi levado a praça para ser açoitado. Ficaram encarando-se diante, do silêncio de todos, até que Sibun olhou para o homem que açoitava Ohry. Não podia deixar que continuassem a ferí-lo. Quando resolveu tomar uma atitude, sua mãe o impediu:

- Sibun, não.

- Como pôde deixar fazerem isso com ele?

Ela já sabia que Menés faria algo do tipo. Ele lhe contara que Sibun e Ohry estavam mais ligados do que deveriam para um escravo e seu senhor, entretanto não quis acreditar que seu marido faria realmente algo tão terrível, como açoitar uma criança um ano mais velha que seu filho.

- São ordens de seu pai.

- Meu pai!

- Sim Sibun, alguém contou a seu pai que os viu juntos. Ele os viu se beijando.

Ela começou a puxar Sibun. Não desejava tratar de tal assunto ali na frente de todos, não era segredo para ninguém em Mênfis que Ohry e Sibun mantinham uma amizade não condizente aos costumes. Sibun tentava em vão voltar para perto de Ohry, gritando para que o soltassem. Precisava ajudá-lo. Era por sua causa que Ohry estava sendo punido. Os guardas agarraram Sibun e carregaram-no à força até o pátio do palácio. Inia caminhava rapidamente. Precisava conversar com o filho acêrca das atitudes de Menés antes que pai e filho se encontrassem. Mas quando viu uma das criadas correndo até eles, sabia que isso não seria possível.

- Senhora, o faraó a está procurando.

- Lia, leve Sibun para os aposentos dele. Eu falarei com o faraó.

- INIA!

- Meu senhor...

Lia curvou-se perante o faraó que se aproximava a passos rápidos, e com o semblante carregado. Inia puxou o filho para trás de si, temendo pelo quê via nos olhos do marido.

Sibun olhou para seu pai, que estava vestido com as melhores roupas. Ele apenas as usava quando queria mostrar sua posição ou recebiam convidados. Sua cabeça estava coberta com um pano branco, que ia até a altura do ombro, preso a uma tiara de ouro, com um rubi ao centro. A saia branca até a altura dos joelhos e um colar trabalhado em ouro em volta do pescoço da grossura de um palmo, caindo até o meio do peito. Os olhos castanhos escuros olhavam diretamente para ele, e depois para a esposa, ao exigir respostas quanto ao paradeiro de ambos.

- Onde estavam?

- Perto da fonte meu senhor.

- Da fonte ou da praça onde para onde o escravo foi levado?

- Meu senhor, não...

Menés voltou-se para o filho que o encarava com lágrimas nos olhos.

- Disse que não fosse até lá hoje Sibun, e você não me obedeceu não é?

- Menés, ele não pretendia desobedecê-lo, mas...

- Não pode encobrir os atos de seu filho. Ele já tem idade suficiente para saber de suas responsabilidades, e conhecer o seu lugar. O que ocorreu ontem não deve voltar a se repetir.

- Porque fez isso?

Menés olhou para o filho surpreso diante de seu tom de voz; vendo-o encará-lo com ódio, tudo por causa do escravo. Ele ignorou a pergunta, sentindo-se desconfortável diante de seu olhar. Deu-lhe as costas e ignorou as palavras de ameaça que seu filho proferiu ao vê-lo partir.

- Se ele morrer... considere-me morto, pois não serei mais seu filho.

- Sibun!

Inia olhou para o filho com carinho e o abraçou, mesmo que este tentasse evitar seu abraço. Jamais vira Sibun agir dessa forma, e sabia que Menés jamais seria capaz de comandar os atos de Sibun no que se referisse a Ohry. Era tarde demais para cortar os laços fiados pelo destino, pois o que havia crescido entre eles ficaria apenas mais forte a cada vez que tentassem separá-los.

Sibun sentia seu peito arder de ódio. Jamais sentira tal sentimento... e com tamanha força. Seu coração parecia sangrar, e tudo o que conseguia pensar era em ajudar Ohry e fazer seu pai pagar por feri-lo. Inia se afastou, olhando em seus olhos, e limpando com a barra do vestido as lágrimas que escorriam pelo rosto do filho.

- Você se preocupa com ele não é?

- Ele é meu amigo.

Inia sorriu tristemente diante das palavras do filho. Era tão claro para ela o que os dois ainda não haviam descoberto por si mesmos. Havia notado, há cinco anos atrás; quando os dois retornaram tardiamente de um passeio, o cuidado com que Ohry tratara seu filho ao despedir-se dele, e a forma com que os olhos de Sibun brilharam quando o escravo não recusara seu abraço entusiasmado ao se separarem. Menés tentara inutilmente separá-los, mas isso não os impedira de se encontrarem escondidos e fortalecerem os laços de amizade que haviam firmado. Tinha ela o direito de dizer a Sibun o que fazer em relação a Ohry? Poderia ela ignorar seu coração, que dizia-lhe que não era certo separá-los? Mesmo que seu coração lhe dissesse que deveria apóia-lo não poderia fazê-lo, não neste caso. Precisava, assim como Menés, afastá-los. Sabia do que seu marido era capaz, e temia pela vida dos dois.

- Sibun... você não pode ser amigo de um escravo. Ainda mais dele.

- Por que?

- Você ainda é muito jovem para entender. Obedeça a seu pai e afaste-se de Ohry.

- Ohry é...

- Diga-me que fará isso. Que não vai provocar a ira de seu pai.

Sibun calou-se. Não adiantava dizer a sua mãe que Ohry era importante demais para ele. Não que pudesse obedecê-la, ainda assim não era capaz de ignorar o apelo em seus olhos. Ela nunca lhe pedia nada em troca, então porque não lhe dar o que pedia, mesmo que fosse uma mentira para acalmar seu coração?

- Eu... prometo

Inia sorriu, abraçando Sibun, que mantinha o olhar na direção da praça. Mesmo que houvesse prometido, seu coração jamais cumpriria tal promessa. Ohry o havia ajudado diversas vezes. Havia compartilhado com ele os ensinamentos de seu povo. Eram amigos. Gostava de Ohry de uma forma especial que não conseguia explicar. Jamais o abandonaria. Mesmo que tivesse que ir contra seus pais, o faria por Ohry. Deixou-se ser levado para dentro do palácio, permitindo que seus pensamentos voassem até Ohry, e no que poderia fazer para ajudá-lo.

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Algumas horas depois:

Sibun passara boa parte do tempo recolhido em seu quarto. Havia conseguido informações com alguns escravos que conheciam Ohry e sabiam da amizade que tinham. Ficou sabendo que este fôra levado para a vila dos escravos e seria medicado e cuidado por um dos escravos. Sabia que seus passos estavam sendo vigiados, mas não faltaria para com o amigo. Separou os melhores ungüentos e remédios; estava disposto a ir até ele, e mesmo que voltasse arrastado cuidaria dos ferimentos do amigo. Ficaria com ele o tempo que pudesse. Arrumou sua cama de forma que parecesse que estava dormindo. Com a ajuda de um dos escravos, conseguiu misturar na bebida do guarda da porta de seu quarto um sonífero que pelo que sabia manteria-o desacordado por algumas horas, ou pelo menos tempo o suficiente para que conseguisse sair. Não estava preocupado como faria para voltar.

Aguardou alguns minutos e saiu, passando pelo guarda adormecido. Passou pela cozinha, parcialmente apagada àquela hora da noite, cobriu-se com um capuz, e entrou no cesto de roupa suja que seria levado pelos escravos para serem lavados no leito do rio. Sabia que os guardas não revistavam os cestos, por isso não foi difícil passar por eles na entrada. Podia sentir a carroça sacolejando, até a mesma parar a poucos metros da vila dos escravos. Sibun desceu, agradecendo os dois escravos por terem-no levado-o até ali. Viu-os partir e esgueirou-se por entre as vielas até chegar a casa onde Ohry morava sozinho; desde que os tios haviam morrido com a peste. Aguardou alguns instantes até ter certeza de que não havia nenhum guarda, e bateu na porta, ouvindo passos até que a mesma fosse aberta.

Assim que a abriram entrou rapidamente. Retirou o capuz, diante do olhar surpreso de um senhor. Sibun correu os olhos pela pequena habitação, divisando o corpo de Ohry deitado num pequeno tapete. Ignorando o ancião, ajoelhou-se ao lado do amigo tocando suavemente as feridas em suas costas; começando a soluçar. Sentiu o aperto em seu ombro, e o sorriso bondoso do senhor que lhe abrira a porta. Procurou refrear as lágrimas e saber como o estado do amigo.

- Como ele está?

- Melhor... mas com um pouco de febre.

- Foi minha culpa.

- Não meu jovem, você não tem culpa por serem amigos.

- Mas.. se eu não fosse o filho do faraó... isso jamais teria acontecido com ele.

O velho sorriu, incapaz de refutar tais palavras. Sibun enxugou as lágrimas. Retirou um embrulho de dentro da capa, e da forma como lhe fôra ensinado, preparou o remédio que abaixaria a febre, sendo ajudado pelo velho que fez com que Ohry bebesse o remédio. Durante a noite ambos revezaram-se em cuidar dos ferimentos de Ohry e refrescar seu corpo para que a febre cedesse. Já era quase de manhã quando Ohry abriu os olhos desde que fôra trazido para casa, e a primeira visão que teve foi a de Sibun, dormindo junto a si.

- Ele passou a madrugada toda acordado, cuidando de você.

Ohry olhou para o senhor que se tornara amigo de seus tios assim que estes foram trazidos para Mênfis como escravos. Ergueu com dificuldade a mão, roçando-a gentilmente no rosto adormecido de Sibun que suspirou, e sorriu suavemente em seu sono. Deveria saber que Sibun encontraria um meio de ir ter com ele. Sabia que o amigo possuía um coração puro e leal, capaz de desafiar os deuses se preciso fosse.

- Ele é especial.

Ohry sorriu diante das palavras ditas com cuidado pelo velho, que se levantara deixara-os a sós. Ficou observando-o por alguns segundos, até que o mesmo abriu os olhos, e sorriu ao vê-lo acordado. Em seu coração havia apenas uma certeza; a de que Sibun era muito mais que especial. Bem mais do que poderia sonhar querer.

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Dois anos depois:

Sibun correu até o campo onde sabia que encontraria Ohry. Seu pai estava visitando a província vizinha, o que lhe permitia escapar com mais facilidade da supervisão dele e dos vigias que deixara para seguir seus passos. Antes de partir, seu pai havia deslocado Ohry para cuidar da ceifa dos grãos antes que o inverno chegasse, juntamente com alguns escravos. O campo era bem afastado da cidade, quase duas horas de caminhada e uma hora de corrida, mas isso não o impediria de confessar o que o estava atormentando há dias. Era quase final de tarde, e sabia que não deveria haver muitos escravos por lá. Seria o momento ideal para contar a ele. Esperava apenas que fosse compreendido.

Ohry estava enxugando o suor do rosto. Suas costas o estavam matando. Havia perdido a conta de quantas sacas de grãos havia colhido até o momento. Olhou ao redor, vendo que era o único que estava adiantado em seu trabalho. Também era o único que não havia parado até o momento. Estava cogitando uma parada, quando viu uma figura conhecida correndo em sua direção. Um sorriso involuntário surgiu em seu rosto, diante da visão de Sibun correndo no meio do campo. Os cabelos soltos, balançando ao vento. Há dias que tentava ignorar a voz que dizia que Sibun se tornava mais belo a cada ano, bem como a que dizia que sentia algo mais que amizade pelo filho do faraó. Os anos em que eram amigos, o fazia sentir-se mal por ter pensamentos mais íntimos em relação a Sibun, uma vez que ele não parecia notar sua agonia. Suspirou, imaginando o que Sibun desejava dessa vez, e sentou aguardando que o mesmo se aproximasse.

Sibun parou de correr assim que se aproximou de Ohry. Seu coração parecia que iria sair pela boca, mas estava feliz por encontrá-lo. Procurou respirar pausadamente, de forma a normalizar a respiração descompassada, causada pela corrida puxada. Olhou para a pequena tigela de água oferecida por Ohry, sorvendo o conteúdo rapidamente, quase engasgando-se no processo.

Ohry riu ao ver Sibun engasgar-se com a água, molhando boa parte da túnica branca que usava, embora a mesma já se encontrasse molhada pelo suor.

- Então... a que devo a vista?

Sibun respirou fundo diante da pergunta. Já se sentia melhor e capaz de respirar calmamente; embora a coragem que o acompanhara desde que deixara o palácio parecia ter se evaporado. Ainda assim colocou-se à frente de Ohry sorrindo, embora seus olhos tivessem fraquejado antes de responder. Não sabia ao certo qual seria a reação dele quanto ao significado de seu presente.

- Eu pedi que me ensinassem. Queria algo que simbolizasse o que eu...

Sibun mordeu os lábios para impedir-se de dizer que havia aprendido a dançar para demonstrar seus sentimentos a ele. Ohry olhou para Sibun diante do tom rosado que cobriu seu rosto. Certamente ele estava escondendo algo. Podia ver um ligeiro lampejo de medo em seus olhos e perguntava-se o que poderia ser. Ver que algo atormentava Sibun causava-lhe um sentimento de posse. Há tempos sabia que o sentimento que nutria pelo filho do faraó já não era mais o de amizade, e que era inadequado e impossível de ser correspondido uma vez que era um escravo. Procurando ignorar o que sentia, obrigou-se a perguntar:

- O que aprendeu?

- Uma dança... m honra ao aniversariante.

Ohry estreitou os olhos diante do que ouvira. Sempre no seu aniversário, Sibun inventava algo para dar-lhe de presente, mas ele nunca dançara, e pelo que sabia, apenas as mulheres o faziam e por dois motivos bem distintos.

- Apenas as mulheres dançam Sibun.

- Liana disse que eu poderia dançar; se fosse para uma única pessoa.

- Sibun...

Ignorando o que Ohry iria dizer, Sibun começou a cantar como Liana o havia ensinado, e seus quadris começaram a mover-se suavemente de acordo com sua voz. Ele ergueu os braços, movendo-os como se fossem serpentes, enquanto suas mãos rodavam suavemente, procurando deixar os dedos levemente arqueados e movendo-os de acordo com os quadris. Começou a inclinar o corpo para trás mantendo a perna direita esticada para frente, enquanto flexionava a esquerda de forma arquear o corpo um pouco mais, fazendo seus cabelos tocarem o chão, antes de aprumar-se novamente e serpentear ao redor de Ohry que parecia hipnotizado.

Ohry não sabia como reagir à dança. Esta era erótica, e possuía um único significado. Mas teria Sibun conhecimento disso? Mesmo que quisesse, seus olhos não conseguiam desviar-se de Sibun e da forma como o mesmo se movia. Sentia como se fosse um pervertido devorando com os olhos as formas do amigo, que não deveria ter a menor idéia do que estava fazendo. Ou teria?

Sibun sorriu intimamente ao ver como os olhos de Ohry o seguiam, ele estava certo ao imaginar que o escravo poderia sentir-se da mesma forma que ele. Há alguns meses que havia descoberto que amava Ohry de uma maneira muito mais profunda do que amizade, e mesmo que fosse completamente ignorante no assunto sabia que o que sentia dentro de si ia além de amizade. Estava tão perdido em seus pensamentos que mal notou que Ohry havia se levantado. Apenas percebeu, quando o mesmo o segurara pelo braço. Seus olhares se encontraram, mergulhando um no outro. Seu corpo tremeu ligeiramente, e estava ponto de perguntar se Ohry não havia gostado, quando sentiu os lábios dele sobre os seus, num beijo que apenas conhecia em seus sonhos.

Ohry não foi capaz de impedir-se de tomar Sibun em seus braços e beijá-lo. Sentiu os braços do príncipe rodearem seu pescoço, enquanto o corpo macio moldava-se ao seu com perfeição. Os lábios de Sibun eram macios e quentes, e ele desejou entrar neles e conhecer seus recantos mais profundos.

Sibun sentiu a língua de Ohry tocar seus lábios e apartou-os, sentindo-o adentrar sua boca com fome e desejo. Agarrou-se a ele com paixão, acompanhando-o no frenesi que comandava seus corpos. Podia sentir as mãos fortes e calejadas de Ohry apertando-o contra si, fazendo-o sentir a força de sua masculinidade. Gemeu dentro do beijo, sentindo que desmaiaria, tamanha a gama de sensações que o assolava.

Ohry apartou o beijo ao sentir que Sibun começara a tremer em seus braços; dando-se conta de que haviam se deitado no meio da palha, e nem saberia dizer quando ou como o mesmo havia acontecido. Deleitou-se diante do rosto corado de Sibun. Seus lábios estavam entreabertos e vermelhos. Acariciou com cuidado o rosto dele, vendo as ametistas olharem-no com amor. O mesmo que sabia estar refletido em seus olhos.

- Eu... te... te amo Ohry... bem mais que um amigo.

- Eu sei... e te amo da mesma forma.

Sibun sorriu abraçando-o, enquanto chorava; sofrêra tanto, imaginando que Ohry não compartilhava do que sentia. Que ele o rejeitaria e teria nojo dele. Deixou-se ficar ali nos braços de sua alma gêmea, certo de que a partir daquele momento os deuses estariam contra os dois, mas os desafiariam para estarem juntos um do outro. Mesmo que isso os levasse a morte.

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Duas semanas depois:

A lua estava brilhante; o céu coberto de estrelas. Adorava sentir a brisa tocar-lhe o rosto, mas não mais do que sentir as carícias dele. Suas mãos fortes e calejadas, pelo trabalho escravo. Pensava nele, já que não podia vê-lo, sem levantar ainda mais a ira de seu pai. Pensava que o que sentiam era errado. Ele era o filho de um faraó, e o outro um mero escravo. Estava distraído, sentindo a brisa da noite, que balançava por seus cabelos soltos; por isso não notou o olhar de uma figura escondida no muro a observa-lo... venerando a beleza de seu rosto, e sabendo que jamais poderia tê-lo completamente para si.

Sibun caminhou até sua cama. Passaria mais uma noite em claro, pensando em Ohry. Olhares de longe era tudo o que podiam fazer. Seus passos eram vigiados a todo instante. Jamais poderiam estar juntos sem que soubessem. Seu pai procurava, a todo custo, evitar que se encontrassem. O único lugar, e a única hora em que tinha a liberdade de seus passos, era à noite; em seu quarto. Enquanto pensava, uma lágrima caiu de seus olhos.

- Não é justo. Por que Amon, não eu posso ficar ao lado dele? Não é justo sermos separados apenas por ele ser um escravo.

Sibun encolheu-se na cama, abraçando o travesseiro contra o peito e fechando os olhos. Uma figura subiu pela pilastra, que dava acesso à janela do jovem príncipe, chegando a varanda do quarto. Parou e observou por alguns instantes a figura encolhida por sobre a cama. O invasor caminhou até ela e sentou-se, acariciando os fios de cabelo do belo rapaz. Sibun levantou os olhos, assustado. Quem estaria no seu quarto àquela hora? Foi com surpresa que encontrou Ohry observando-o. O filho do faraó levantou-se e jogou-se nos braços do escravo, sendo acolhido por este. Então como se despertasse de um sonho, Sibun se afastou.

- O que está fazendo aqui?

- Eu não pude evitar. Eu tinha que vê-lo; tinha que tocá-lo.

- Não, você deve ir. Se meu pai o encontra, vai mandar matá-lo.

- Eu não temo seu pai Sibun. O que temo é não poder estar a seu lado, não poder tocar seu rosto. Eu não pretendo desistir de você apenas porque sou um escravo.

Sibun levantou a mão e tocou o rosto de Ohry, acariciando-o. Sentiu a pele sob seus dedos, e lembrou de quantas vezes desejou poder tocá-lo. Fechou os olhos, sentindo o toque de Ohry em seu rosto. O cheiro, o toque, a sensação... a quanto tempo ansiavam poderem se tocar novamente, dessa forma? Sem que ambos percebessem, seus rostos aproximaram-se. O instinto e a saudade falavam mais altos, mas então Sibun se afastou, sobre o olhar atordoado de Ohry.

- Não! Vá embora.

Ohry olhou por alguns instantes e levantou-se da cama. De repente Sibun sentiu-se frio e se abraçou. O escravo sabia que o príncipe amava-o da mesma forma que ele, mas iria embora, mesmo sabendo que o outro não desejava realmente sua partida.

- Se isso for o que quer, eu irei.

Sibun viu o escravo caminhar em direção a janela. Ele iria embora como havia pedido. Sabia que se o deixasse ir, não o veria tão cedo, e não era o que queria. Amava Ohry, desejava-o, assim como sabia ser desejado pelo escravo. Sibun se levantou e correu, abraçando o escravo por trás, quando o mesmo já se preparava para descer.

- Não! Fique? Esqueça o que eu disse. Eu te amo Ohry, e também não vou desistir de você.

- Sibun...

Ohry virou-se, ficando de frente para Sibun. Acariciou o belo rosto, tomando os lábios dele entre os seus.

Sibun abraçou-se a Ohry com força, segurando-se em seus braços para buscar apoio, na medida em que aprofundavam o beijo. O escravo segurava-o pela cintura, pressionando-o contra o próprio corpo. Ele começou a beijar o pescoço do herdeiro do Egito que gemia; esfregando seu corpo contra o do escravo. Ohry passou seu braço por trás dos joelhos do outro jovem, pegando-o no colo e carregando-o de volta para a cama.

Sibun segurava o rosto de Ohry, beijando-o por todo o rosto. Foi depositado sobre a cama, em meio aos lençóis brancos. O escravo inclinou-se por sobre o príncipe, recomeçando a beijá-lo e deslizando suas mãos pelo corpo macio do rapaz que ofegava.

- Eu senti tanto a sua falta. Falta dos seus carinhos. Dos seus beijos.

- Eu também senti sua falta, Sibun. Falta de seu corpo junto ao meu. Falta de seu perfume. De sua voz.

Sibun segurou o rosto de Ohry em suas mãos; olhando para os olhos que tanto o encantavam. Havia tomado uma decisão: entregaria ao escravo seu bem mais precioso. Acariciou o rosto dele com carinho, enquanto lágrimas caiam de seus olhos.

Ohry enxugou as lágrimas de Sibun com as mãos. Não gostava de vê-lo chorar, ou de vê-lo sofrer. Faria qualquer coisa por Sibun, até mesmo perder sua vida, apenas para tê-lo para si.

- Ohry, eu quero que me ame. Que tome meu corpo como se fosse seu. Assim como fez com meu coração.

Ohry olhou com surpresa para Sibun ao ouvir seu pedido. Não havia nada que mais desejasse. Ainda assim precisava ter certeza do pedido feito com tamanha paixão.

- Sibun, você tem certeza?

Sibun sorriu diante da pergunta. Sabia muito bem o que se passava pela cabeça de seu amor. Entretanto, nada o faria mudar de idéia quanto a isso. Era o certo a fazerem. Já haviam esperado demais por esse momento.

- Sim, eu tenho, e quero que seja o meu primeiro e único.

- Eu te amo, Sibun.

- Eu também te amo, Ohry.

Suas roupas ganharam o chão, e Sibun arrepiou-se ao sentir o corpo de Ohry tão próximo. O contato quente de suas peles era algo novo para ambos. Nunca haviam ficado nus completamente um para o outro, e embora a vergonha fosse grande, ansiavam por este momento há muito tempo.

- Você é tão belo... muito mais que em meus sonhos.

- Ohry... me faça seu...

Ohry acariciou as pernas pálidas, ajeitando-se entre elas. Beijou o pescoço macio, deixando que seus lábios, o relaxassem o suficiente para não lhe causar muita dor. Quando fôra vê-lo, não imaginava que teria tal presente em suas mãos. Sabia que Sibun tinha medo, embora o desejo de que se completassem estivesse sempre presente em seus encontros noturnos. Posicionou-se, forçando a passagem pelo canal estreito e despreparado. Sentiu-o retesar o corpo diante da dor, que seria inevitável. Olhou para os olhos claros e manchados pelas lágrimas, vendo-o olhá-lo com confiança e forçou-se mais contra ele, arrancando-lhe um gemido de dor.

Sibun sentia como se seu corpo estivesse sendo rasgado, mas não se deteria. Seria de Ohry como desejava seu coração. Mordeu o ombro daquele que agora tornaria-se seu amante, procurando abafar seus gemidos de dor.

Ohry afagou o membro de Sibun, forçando-se mais um pouco dentro dele. Seu ombro ardia e sabia que teria marcas, mas não se importava com elas. Tudo que tinha em mente era o fato de Sibun estar junto a ele.

Alguns minutos se passaram até que Ohry se sentisse completamente dentro de Sibun. Deixaram que seus corpos se acostumassem a união, antes que pudessem de fato alcançarem juntos o prazer.

Sibun sentia uma ligeira ardência, bem como algo quente escorrendo por suas nádegas, tinha certeza de que sangrava, mas sabia que isso era um preço baixo diante do que viveriam juntos em seu leito.

Ohry olhou nos olhos de Sibun, tomando seus lábios, antes de retirar-se e voltar lançar-se no corpo quente do agora seu amante.

Sibun ofegou diante do ligeiro desconforto, que durou apenas alguns segundos, antes da dor dar lugar a uma sensação nova e desconhecida. Em pouco tempo, gemidos e sussurros preencheram o quarto, ganhando a noite. Mãos, lábios e corpos, ambos tornaram-se um só, e juntos, alcançaram um paraíso só deles. Os amantes estavam tão rendidos um nos braços do outro, que não notaram a mulher que os observava. Não vendo uma lágrima rolar de seus olhos.

Inia havia se levantado para ver o filho. Omesmo havia se recolhido após mais uma discussão com Menés, carregada de ofensas e gritos. O último castigo imposto por Menés por conta dos encontros escondidos do filho com o escravo deixara-o transtornado. Ele tencionava mandar Sibun para outra cidade e casá-lo o quanto antes com alguma princesa de algum reino vizinho. Menés ao ouvir o próprio filho dizer que morreria antes de casar-se com alguém, apenas para que o faraó se visse livre do incômodo de vê-lo em companhia do escravo, que pelo que diziam os outros no palácio havia se tornado amante do príncipe, havia levado Menés ao extremo fazendo-o levantar a mão contra o filho na frente de todos.

Mesmo assim os olhos sempre tão plácidos, estavam carregados de uma estranha e atordoante força. Temia pelo que estava sendo despertado em seu menino, e embora soubesse que isso se devia a convivência com o escravo, sabia que a mesma era alimentada pela incompreensão de Menés, quanto ao fato de que ele jamais poderia separar os dois. Entretanto não esperava presenciar a cena que acontecia no quarto do filho. Esperava encontrá-lo chorando e sozinho em seu leito e não entregando-se ao escravo em sua própria cama. Debaixo da casa de seu pai. Não pôde impedir-se de chorar pelo infortúnio que cairia sobre eles. Era demais para seu coração. Não queria nem imaginar o que o marido faria se descobrisse que era verdade o que os outros escravos diziam. Que seu único filho deitava-se com o escravo.

Inia retornou a seu quarto silenciosamente. Não queria que Menés notasse sua ausência, viesse atrás dela e descobrisse o que acontecia debaixo de seu teto. Deitou-se no leito junto ao marido, pedindo a Amon que tomasse conta de seu filho e do escravo que tomara por amante. Sabia que problemas maiores haveriam de vir sobre eles. O pacto que fizera anos atrás com o deus dos mortos, estava para ser cobrado em pouco tempo, e nada poderia fazer para mudar isso.

- Que Amon me perdoe e ajude.

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Três meses depois:

Ohry tentava inutilmente consolar seu amante, Sibun havia acabado de retornar de Ácio, depois de dois meses longe. As notícias que trazia não era das melhores, mas sabiam que isso aconteceria. O casamento de Sibun dali a três meses não o agradava, mas nada podia fazer para impedí-lo. Era um escravo que se apaixonara pelo filho do faraó, e mesmo que Sibun o tratasse como um igual e não visse distinção entre eles; perante a sociedade, nunca seriam iguais. Seu coração doeu diante das palavras que ouvia, mas obrigou-se a confortá-lo da maneira que podia.

- Mas não posso me casar com alguém que não amo... meu coração pertence somente a você Ohry.

- Eu sei meu amor... mas não chore, não quero vê-lo chorar.

- O que vamos fazer? Eu prefiro a morte à não estar a seu lado.

- Shhhhh... Estaremos sempre juntos, mesmo que se passem os séculos, nos encontraremos novamente. Eu prometo a você Sibun.

Sibun olhou dentro dos olhos do amante, meneando a cabeça em acordo. Encontrariam um jeito de ficarem juntos, mesmo que tivessem de fugir para estarem a sós, e viverem seu amor. Faria-o por Ohry. Não se casaria apenas porque seu pai ordenara. Não podia comandar seu coração. Continuaria a obedecer a seus planos e fingir que ele e Ohry não mais se encontravam e que aceitava de bom grado o destino que ele lhe era confiado.

- Estaremos juntos; mesmo depois de nossa morte.

- Sim meu amor.

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Tempo presente:

- Aceita um pouco de chá, mestre Quatre?

- Adoraria Abdul.

Quatre sentou-se, sorrindo diante do suave cheiro do chá de flores de laranjeira que Abdul lhe oferecia.Sempre fôra apreciador de uma boa xícara de chá, habito este adquirido por intermédio de sua mãe, que sempre o tomava em sua companhia. Estava a ponto de perguntar o que Abdul queria lhe falar quando ouviram dois baques surdos, como algo caindo no chão. Quatre sentiu algo agitar-se dentro de si e se levantou, seguindo até o quarto onde Duo e Heero haviam sido deixados, sendo rapidamente seguido por Abdul. Assim que viu seus corpos no chão, correu até os amigos. Os dois pareciam presos em algum tipo de transe, pois seus rostos encontravam-se banhados de suor. Seus olhos mexiam-se rapidamente por sob as pálpebras fechadas e murmuravam palavras inteligíveis. Algo o fez olhar para o espelho e ele teve o rápido vislumbre de duas figuras que lhe sorriam, antes de desaparecer. Olhou para Abdul que parecia tão surpreso com o que via quanto ele. Não sabia o que havia acontecido aos dois. Nos poucos segundos em que os deixara a sós diante do espelho, esperava apenas que de alguma maneira pudessem ter uma parte da resposta que buscavam. Entretanto, já não tinha tanta certeza de que gostaria de saber o que estava acontecendo.

Continua...

Agradecimentos a Dhandara pela revisão.

Agradecimentos a mami Evil que é tudo de bom, e não me deixa desistir. A ela meus sinceros sentimentos. Mami, te adoro; mesmo que a gente não tenha se visto (falado, teclado) muito, saiba que você tem um cantinho especial no meu coração.

Gente, milhões de desculpas pela demora, mas andei com problemas sérios nos últimos meses e não encontrava forças para escrever nadinha de nada. Nem sei se o que escrevi tá legal, mas sabe como é né, a gente posta assim mesmo.

Bem, agradecimentos a todos que me mandaram reviews e peço mil desculpas por não ter respondido. Um dos motivos foi o fato de não estar muito legal de saúde, e outro porque esse negócio de baixar crack para programa enche nosso pc de vírus, mas a gente não consegue parar, e outra porque meu servidor de email simplesmente deletou muitas mensagens.

Então se não for pedir muito às pessoas que me mandaram emails fazendo perguntas sobre as minhas fics, poderiam mandar novamente? Eu terei o maior prazer em responder, principalmente à uma menina que me fez algumas perguntas sobre Lábios de Sangue. Não sei se ela lê essa fic, mas se esse aviso chegar até você, por favor; eu quero responder a seu email. Então mande-o novamente ok!

Abraços a todos os fãs, e pode deixar que mim vai continuar a escrever. Pode demorar um pouco, pois escritor é feito de carne e osso, e não tem peça de reposição.

No mais, aguardo comentários.