# Esse capítulo é dedicado à Mo de Aries, que fez a gentileza de se expressar sobre o texto.


Destinados

02 - Luz, Sentido e… Palavras

O monge entrou na cela silenciosamente, chegou-se até a cama humilde, sem confortos, e admirou a criança que dormia. Os cabelos louros, ligeiramente compridos, quase chegando aos ombros claros, a face serena e tranqüila, um pequeno ponto rubro no meio da testa demarcando o Ajna[8]... parecia realmente um ser divino. Levantou uma das mãos para tocá-lo, no intuito de despertá-lo; estava quase na hora do sol raiar.

- Estou acordado.

O monge assustou-se e encolheu a mão, afastando-se com a cabeça baixa. Indicou a bandeja com o desjejum que trouxera, deixada na pequena mesa de madeira ao lado da cama. Tão silencioso quanto entrara, saiu após fazer uma pequena reverência. Embora já 'cuidasse' da criança há algum tempo, jamais se acostumaria; tão jovem e tão longe de ser como uma criança normal.

O garoto loiro sentou-se na cama. Nenhuma palavra. A porta da sua cela se fechou deixando tudo na escuridão. Seus olhos permaneciam fechados, sempre fechados. Desembaraçou-se dos rotos lençóis e desceu da cama. Lavou-se com a água em uma jarra que estava em um canto do pequeno quarto. Silencioso foi até uma antiga arca de madeira de onde retirou um sari branco, vestindo-se. Só então foi comer. Fez tudo no mais absoluto silêncio, sem abrir os olhos; nunca os abria. Estava acostumado a esse mundo de silêncio físico, era dentro de sua mente, de sua alma onde se encontravam as palavras que precisava; as palavras, a luz e os sentidos.

Descalço, retirou-se do quarto andando lentamente pelos corredores escuros. Ele dormia sozinho, privilégio raro no monastério, mas ele era diferente, era o que lhe diziam e ele sabia ser verdade, o que não amenizava o vazio que sentia.

Seu mundo consistia muito mais no que havia dentro de sua mente, dentro de sua alma, do que nas coisas físicas ao seu redor. À exceção do monge ancião, raramente falavam com ele, e nunca o tocavam; quase como se não existisse o mundo físico a seu redor.

Aqueles que cruzavam seu caminho faziam reverências respeitosas, respondidas com um suave curvar da pequena cabeça loira sem nunca diminuir seu passo suave e infantil. Fora das extensas paredes de pedra, o céu começava a ser tocado pela Aurora. Não era o céu cinzento clareando, dentro de sua mente eram as cores da energia do sol que começavam a atingir aquela parte da atmosfera, pintando um cenário etéreo completamente diferente do visto pelos olhos físicos.

Seus passos se tornaram ligeiramente mais rápidos, pequenos e delicados, condizente com alguém também pequeno e delicado. Que, no entanto, carregava um poder maior que a compreensão do mais velho e sábio dos monges.

Ele podia abrir os olhos, precisava se concentrar o suficiente, dissipar e espalhar sua energia com calma. No entanto, não tinha porquê fazer isso. Ele já vira o suficiente daquele lugar, daquelas ruelas de pedra sujas e poeirentas, daquelas construções do monastério que lhe pareciam enormes, tão imponentes quanto sufocantes… Através de seus olhos físicos tudo parecia triste e desolador, cinzento. Ele preferia ficar encarcerado, vendo o mundo com os olhos de dentro, onde havia mais cor e mais vida.

Os cânticos dos monges faziam o ar brilhar e espiralar, variando em cores e brilhos de acordo com os o que era pedido ou agradecido. Ele podia sentir cada uma delas ecoando através dos seus sentidos e muito além deles, tingindo com cores celestiais cada palavra como se fosse sagrada e apenas destinada aos deuses.

Ele preferia assim: ver o mundo em brilhos e cores, em energia, mesmo que não fosse o real palpável. Era ainda muito pequeno, pequeno demais, sem treinamento, sem um guia para lhe ensinar que aquele mundo dentro de si, o mundo de seus sentidos, era tão ou mais palpável que o físico.

Bem no centro do pátio do monastério havia uma grande estátua de pedra, se ele dependesse de seus olhos para enxergar ele teria que levantar muito a cabeça para poder ver a face de Guanyin emoldurada por seu muitos braços[8]. Como os do pequeno garoto, os olhos da divindade estavam cerrados.

Quando a pequena criança loira parou a frente da estátua fez-se um súbito e alien silêncio em todo o monastério; era um ritual matinal feito desde que a criança começara falar e fora capaz de recitar suas primeiras orações. Shaka deixou que sua energia entrasse em contato com aquele símbolo de compaixão, com aquelas inúmeras mãos que deveriam proteger todos os seres, com os inúmeros olhos que deveriam olhar através do mundo e deixou que aquela voz ecoasse dentro de seu pequeno ser. Uma oração, em forma de cântico espiralou para fora de seus lábios, cheia de cores e significados, entoada por uma voz única e bela que fazia com que todos os presentes se sentissem abençoados. Era só uma criança, mal chegava aos seus quatro anos, ainda sim, todos aqueles monges tinham ciência de sua proximidade com os deuses e muitos acreditavam que ele fosse a encarnação de um deus.

Quando terminou ele fez uma pequena reverência para a estátua e retomou seu caminho, com seus passos pequenos, para o templo principal. Aos poucos o silêncio foi preenchido novamente com os cânticos rotineiros.

Shaka andava devagar, não tinha pressa de chegar ao templo. Nunca tinha...

(Continua…)


Diana Lua
Diana C. Figueiredo

Escrito em: 11 e 12/03/2004 - Publicado: 16/02/2017
Última revisão: 23/02/2022


Notas:

[7] Ajin é o chakra frontal, também conhecido como terceiro olho.

[8] É uma divindade associada à compaixão. Guanyin é a abreviação de Guanshiyin que significa "Aquele que percebe o som do mundo". Eu descrevi especificamente a versão com mil braços (embora as estátuas dessa versão não tenham de fato mil braços ;p) que serviriam para proteger todos os seres vivos, essa versão também tem mil olhos que servem para ver todo o mundo. Por curiosidade, na china há uma estátua dessa divindade com 99 metros de altura toda dourada, fica no templo de Guishan.


# Eu sei que o capítulo está muito pequeno, mas eu já tinha demorado muito (estava travada na minha fic de GW) e o restante desse capítulo estava uma confusão, só no rascunho e com umas referências a fic original que eu realmente não me lembro bem (faz muito tempo). Então decidi postar essa parte assim, até porque está bonitinho... Aí organizando esse restante eu posso juntar com outra parte e creio que no próximo eles vão se conhecer no Santuário.

Então, o que acham do Shaka pequeno?