Parte 3 - Confronto
Hermione encarou a jovem sentada na sessão reservada do Caldeirão Furado quase incrédula. Exceto pela diferença de idade e pelo olhar embaçado que demonstrava as marcas óbvias de alguém que já sofrera muito, elas poderiam passar perfeitamente por irmãs. Tinham a mesma altura e compleição física. O cabelo volumoso eos olhos castanhos chamavam a atenção. Era quase como se olhar no espelho. Tal situação a intrigou mais ainda.
Em um primeiro momento, ela até se questionou se um de seus pais teria tido alguma aventura que tivesse resultado em uma filha fora do casamento, mas conhecendo sua família, ela sabia que isso não poderia ser verdade. Talvez fosse uma daquelas situações tão estranhas que nem Merlin poderia explicar.
A jovem, ao vê-la entrar no reservado, levantou-se e esboçou um sorriso que traduzia a perplexidade da situação. Ao vivo a semelhança era ainda mais gritante do que na foto do jornal.
— Boa tarde, Srta. Granger.
Paige manteve o tom formal, pois ainda não estava totalmente acostumada com as coisas em sua nova vida. Ela estava livre agora, voltara a trabalhar e estava reconstruindo o que a guerra lhe tomara. Sem família, ela optara por viver definitivamente no mundo trouxa. Evitaria certos constrangimentos, já que ela sempre poderia ser reconhecida como uma mulher de Avalon e isso era o que ela mais queria esquecer. A única lembrança que valia a pena, de tudo o que passara, era a que ela estava prestes a compartilhar...
— Olá, Paige. Boa tarde. Pode me chamar de Hermione. Acho que não nos conhecíamos mesmo, não é? Certamente eu me lembraria caso a tivesse visto.
Hermione a cumprimentou com um sorriso. Não era de maneira nenhuma uma pessoa afetada, e o olhar da mulher à sua frente era o de alguém que precisava de atenção. Ela já vira olhares assim ao longo da guerra e certamente esse era mais um. O que ela nem imaginava era o quanto a sua vida mudaria depois daquele encontro.
— Realmente, nunca fomos apresentadas. Pra ser sincera, até quatro meses atrás eu nem sabia muito bem da sua existência, apesar de conhecer bastante seu primeiro nome. Foi apenas na manhã após a queda de Voldemort que, ao me deparar com a sua foto no Profeta Diário, eu pude compreender algumas coisas. E aí decidi que precisava lhe encontrar.
— Como assim? Conhecia meu nome? Eu não entendo...
Paige suspirou e continuou a fala com a voz serena:
— Calma. Logo você entenderá. Antes, porém, tomei a liberdade de pedir algo ao Tom para bebermos. — Dizendo isso, ela fez um sinal ao bruxo careca e desdentado, que logo se aproximou trazendo uma garrafa de Água de Gilly para ela e uma cerveja amanteigada para Hermione. — Obrigado, Tom — ela disse e voltou seu olhar para a jovem que ainda a encarava.
— Hermione, eu tentarei começar a contar toda essa história pelo começo. Antes, porém, acho melhor mantermos a nossa conversa privada. Abaffiato! — Ela conjurou o encantamento que preservaria o que estava para ser revelado entre elas.
— Apesar de sermos de épocas um pouco distintas, temos algumas coisas em comum. Assim como você, eu fui a primeira bruxa da minha família. Foi uma grata surpresa para os meus pais. Eles já eram bem maduros quando eu nasci, e quando a carta de Hogwarts chegou, a Profª Sprout tratou de explicar tudo a eles. Como não tínhamos grandes recursos, eu utilizei o fundo para os alunos menos abastados para poder estudar. Fui escolhida para a Lufa-lufa e terminei meus estudos dois anos antes de você chegar a Hogwarts. Trabalhava no Beco Diagonal e vivia na parte trouxa de Londres até o dia em que meus pais foram mortos por alguns Comensais da Morte num ataque à minha casa, logo depois do retorno de Voldemort.
Você deve saber que os Comensais tinham o hábito de capturar as jovens após esses ataques para obter seus favores, normalmente por meio da violência. Comigo não foi muito diferente, e me vi, depois de algum tempo, prisioneira em uma casa na Travessa do Tranco, servindo aos clientes preferenciais de Madame Laforet durante esses últimos três anos. Não foi nada fácil, sofri muito, porém tenho que agradecer pela nossa semelhança. Se não fosse por ela, acho que não teria sobrevivido. E foi por esse motivo que precisava tanto me encontrar com você. Indiretamente, você me deu a oportunidade de resistir e reconstruir a minha vida. Você e Severo Snape.
Hermione olhou para a jovem com um misto de consternação e incredulidade. Ao longo da guerra e mesmo recentemente em seu posto no Ministério ela já ouvira várias histórias semelhantes. As ações dos Comensais ante as famílias dos nascidos trouxa eram historicamente conhecidas por sua violência. O que ela ainda não conseguia compreender era onde ela entrava nessa história, ainda mais associada ao nome de Severo Snape. Provavelmente isso estava estampado em seu rosto, pois Paige sorveu um gole da bebida à sua frente e recomeçou:
— Hermione, qual era a sua relação com o Prof. Snape? — ela perguntou realmente interessada em compreender o outro lado da história que ela não sabia.
— Relação? Não existia nenhuma relação. Ele era o diretor da Sonserina e eu uma grifinória. Só isso já era mais que suficiente para que ele me detestasse. O Prof. Snape jamais se aproximava de algum aluno, ainda mais sendo eu a melhor amiga do Harry. Ele era um professor brilhante, é claro, mas extremamente difícil e tirano, jamais fazia um elogio por mais que eu me esforçasse. Vivia me chamando...
— De sabe-tudo insuportável, não é? — Paige a cortou com um meio sorriso. — Vejo que explicar tudo vai ser mais complicado do que eu pensava, mas vou tentar fazer isso da melhor maneira possível.
Após ser capturada, passei quase um ano servindo aos Comensais nos festins que Voldemort organizava. Não sei quanto tempo ainda levarei em minha existência para apagar as atrocidades que aconteciam nesses eventos e quantas vezes desejei realmente morrer. Toda a minha juventude foi roubada por aqueles tiranos, sem contar que não me sobrou nada aqui fora para desejar viver. — Ela deu um suspiro profundo, e Hermione percebeu que seus olhos estavam marejados.
— Logo depois da queda do Ministro, houve um festim muito grande. Mme. Laforet nos alertara que o Lorde das Trevas estava especialmente animado e queria uma festa memorável. Naquela noite ele trouxera um Comensal que, segundo os freqüentadores do lugar, era o seu braço direito e que não costumava aparecer publicamente ao lado dele por causa de seu cargo. O homem estava infiltrado em Hogwarts: o professor de Poções, Severo Snape. Eu fora sua aluna, lógico, mas jamais ousei levantar os olhos em suas aulas e devo ter passado despercebida por ele durante esse tempo.
A nossa função nos festins era a de distrair os Comensais, e uma tática que às vezes nos poupava um pouco era a de embriagá-los. Eu estava em um canto do bar, servindo mais uma dose dupla de Uísque de Fogo para um Comensal de aspecto asqueroso que estava todo entusiasmado por ter escapado da batalha do Departamento de Mistérios ileso. O homem, conhecido no local, era pegajoso e por vezes violento. Eu tentava me esquivar, mas ele era sabidamente um perito com a maldição Império, e com certeza isso era algo que todas nós evitávamos. — Ela fez uma careta, lembrando-se dos detalhes daquela noite enquanto narrava os fatos para sua sósia.
Pensar no homem de hálito acre tentando beijá-la insistentemente, a incômoda barba por fazer arranhando seu rosto e as mãos avançando por sob a blusa numa tentativa de alcançar seus seios ainda lhe causavam asco.
Com os olhos úmidos ela tomou outro gole, e prosseguiu:
— Subitamente, percebi a aproximação de um homem alto, magro, sem as vestes tradicionais dos Comensais, todo de preto, que se dirigiu ao meu suposto acompanhante num tom baixo e grave.
As imagens dele em toda a sua essência inundaram sua memória trazendo um aperto ao seu coração.
— Boa noite, Mulciber. Creio que você já bebeu o suficiente, não? O Lorde está lhe chamando agora. — As últimas palavras ditas num tom tão áspero fizeram o Comensal sair, mesmo que visivelmente contrariado.
— Herr ... eu... já vou... — o homem disse ao se afastar em direção ao salão principal.
— A senhorita poderia me acompanhar? Existe algum local onde pudéssemos conversar sem sermos importunados? — O tom baixo e aveludado seria sempre a recordação que ela teria da voz dele.
O olhar inquieto da jovem à sua frente a tirou de seus devaneios e ela continuou:
— Ele pôs o Comensal para correr porque ninguém ousava desobedecer às ordens do Lorde das Trevas, ainda mais quando proferidas por Severo Snape, e eu acabei sozinha com aquele homem taciturno. A princípio, gelei. A fama do espião de Voldemort corria o submundo bruxo, e se como professor ele já era assustador, você pode imaginar enquanto Comensal, o que eu temia encontrar. O mais estranho, porém, foi que a abordagem dele fora muito diferente dos Comensais que freqüentavam o Avalon. Ele parecia ser um homem fino; os bruxos que utilizavam o local para suas necessidades carnais eram barulhentos, brutos, e nos tratavam com enorme desprezo. Para eles nós só servíamos para aliviá-los das tensões que o trabalho sujo exigia. Senti-me protegida, mesmo sem entender porque ele afastara aquele traste de mim. Ao me perguntar se podíamos ir para outro lugar, eu, com a voz trêmula, respondi que sim e nos encaminhei para a parte dos fundos do estabelecimento, onde ficavam os nossos aposentos e, conseqüentemente, atendíamos os clientes. A festa corria solta e o movimento ainda era baixo nessa parte do estabelecimento.
Enquanto caminhava, eu podia ouvir o farfalhar de suas vestes atrás de mim. Ele não fazia grandes comentários, mas podia sentir o quanto me observava, na verdade, desde a cena no bar. Era um olhar estranho, como se ele estivesse vendo outra pessoa.
A bruxa mais jovem pigarreou, interrompendo:
— Eu... ainda não entendo... Por que...?
— Em breve você entenderá, — retorquiu. — Ao chegarmos defronte ao quarto em que ocupava, abri a porta e permiti a entrada dele. Era um aposento grande, porém simples: apenas um pequeno armário, uma cadeira, um criado-mudo e uma cama de casal. O aposento não possuía janelas para o lado externo da Travessa do Tranco, apenas uma pequena clarabóia no teto onde dava para perceber as mudanças do tempo. Ainda muito sem jeito, dirigi-me ao homem oferecendo-lhe uma bebida, mas ele me interrompeu, sempre me encarando como se não fosse eu quem ele estivesse vendo. No mesmo tom de voz suave e educado, ele perguntou o meu nome, o que respondi ainda sem conseguir articular bem as palavras, pois não era aquele o procedimento usual dos nossos clientes. Educação e delicadeza não faziam parte do perfil dos Comensais, Hermione. Normalmente eles se saciavam e iam embora sem jamais conversar.
Fazendo sinal para o estalajadeiro, ela pediu outra rodada de bebidas e aguardou que ele se afastasse para continuar:
— Em todo o tempo que fui prisioneira, essa foi a primeira vez que alguém me tratou com delicadeza e, até ouso dizer, carinho. O temido Comensal tinha seus encantos e segredos também — disse, dando um suspiro profundo.
Ela se recordou de como ele se aproximou tocando seu rosto com a ponta dos dedos e retirando uma mecha dos cabelos, colocando-a atrás da orelha. O toque dele era macio e os dedos longos e frios. A mão percorrera sua face, envolvendo-a depois em um abraço. Os lábios roçando o pescoço, os pequenos beijos traçando um caminho de fogo até as bocas se encontrarem. Foi um beijo suave, como se ele esperasse há muito tempo por aquilo, mas que aos poucos fora se aprofundando, despertando nela sensações intensas de prazer. A lembrança do gosto dele, da língua forçando passagem em sua boca e corpo, dos carinhos sedentos, mas delicados, era algo que ela não desejava esquecer. Lembrou-se de como se sentira desejada nas mãos daquele homem misterioso. Até que, no momento do ápice, ele a chamara por outro nome.
Olhos distantes, bem como seu coração, Paige encarou a jovem à sua frente e disse:
— Hermione, eu vivi durante esse tempo todo uma linda história de amor, que infelizmente não me pertencia. Por conta da nossa semelhança, eu pude ser para o Severo algo que ele sempre desejou, mas jamais pôde ter na vida real. Eu desempenhei o papel que ele quis todo esse tempo por várias razões. Graças a ele, eu pude me livrar do inferno que era servir aos Comensais. Ele exigiu ao Lorde exclusividade, e dado ao seu posto de confiança, isso foi prontamente atendido e eu não precisei mais ficar à mercê deles. Mas, além disso, eu pude, mesmo sabendo que não era eu quem ele desejava e amava, viver esse sonho.
Espanto era pouco para traduzir a expressão de Hermione. Seus olhos castanhos estavam tão arregalados, como se ela estivesse diante de um bicho-papão. Sua cabeça girava em um imenso turbilhão tentando metabolizar as informações que lhe chegavam de forma tão avassaladora. Severo Snape sentia algo por mim? Como, em nome de Merlin, isso era possível, se ele nunca demonstrara nada? Lógico, Hermione, você se esqueceu quem ele era? Que papel ele desempenhou em toda a guerra? Se ele conseguiu esconder sua verdadeira fidelidade do Lorde das Trevas, imagina se ele não conseguiria esconder seus sentimentos? — Tentando abrir sua mente ao que estava por vir, ela perguntou:
— Você tem certeza disso? Eu... bem, eu não consigo imaginar tal fato. Ele nunca... nunca...
— Tenho, Hermione. Ele jamais deixou que alguém soubesse disso. Acho também que, ao pedir exclusividade, ele também acabou impedindo que alguém nos associasse pela semelhança. Eu mesma só fui desconfiar de certos fatos algum tempo depois. Ele costumava falar seu nome, às vezes nos momentos de prazer, às vezes durante o sono, mas eu também não sabia que se tratava de uma aluna. Às vezes ele citava a sabe-tudo insuportável e eu não compreendia muito bem, desconfiava que fosse um apelido. Pensei que fosse uma bruxa que ele não podia assumir um relacionamento, alguém comprometida. Mas uma coisa é fato. Ele tinha por você muito mais que uma simples admiração. Ele realmente lhe desejava, e se tudo não tivesse terminado da forma que terminou, creio que ele acabaria se declarando. Ele sempre foi um cavalheiro comigo e isso o fazia tão especial. — Sua voz embargou um pouco e ela limpou a garganta antes de continuar seu relato: — Apesar de tudo, ele sempre me protegeu. Foi por isso que no dia seguinte à batalha final, ao ver sua foto estampada no jornal, pude ligar o nome à pessoa e decidi que você tinha o direito de saber os reais sentimentos dele. É a minha homenagem a ele por tudo o que ele me ofertou. Quando eu estava no limite das minhas forças, totalmente desesperançada, ele me trouxe aconchego, afeto e um pouco de sonho também. Nunca alimentei ilusões sobre o papel que desempenhava, mas adoraria que fosse eu realmente a detentora daquele sentimento. Foi importante o tempo que passei ao lado dele, possibilitou-me buscar agora uma nova vida. Ele me deu novamente a capacidade de poder me sentir valorizada. Não me queira mal, mas o que ele sentia por você me fazia acreditar que as coisas poderiam ser melhores.
O desabafo limpara sua alma, ela poderia agora seguir seu caminho deixando para trás o seu passado.
Hermione estava muda, os olhos fixos presos na imagem pareada à sua frente sem saber o que dizer. Seus sentimentos eram muito confusos. Um misto de frustração, tristeza e angústia. Como era possível que em tão pouco tempo seus valores pudessem mudar tanto. O relato de ter sido amada com tamanha intensidade conforme fora dito era um fato novo que trazia um imenso vazio, dadas as circunstâncias. A impossibilidade de viver esse amor em plenitude doía fundo em seu peito, e mais uma vez ela amaldiçoou aquela guerra estúpida. Sorveu o resto da cerveja amanteigada que estava em seu copo, ansiando, na verdade, por algo mais forte. Retornou seu foco para a mulher que também estava perdida em suas memórias. Se ao menos ela pudesse ter sabido antes... ela fora uma das últimas pessoas a vê-lo com vida e nem ao menos pudera lhe dizer adeus como ele merecia.
Faltavam palavras para preencher aquele momento, e ela precisava partir. Talvez andar um pouco amenizasse tudo o que estava sentindo. Deu um sorriso para a bruxa e se levantou.
— Paige nem sei o que dizer sobre isso, seu sofrimento e tudo o mais. Mas agradeço por me contar, sinceramente.
Não guardava rancor dela. Eram cúmplices na perda, teria que aprender a lidar com isso. Sabia que voltaria a falar com ela, mas não agora. Neste exato momento só existia um local no mundo onde ela gostaria de estar, e era para onde ela iria. O túmulo de granito verde em Hogwarts receberia uma visita.
FIM
