Na distante Roma...

Os escravos se agitavam continuamente para servir a todos. A mesa estava posta com a quarta iguaria da noite. O vinho não podia se extinguir nas taças dos convivas espalhados pelo salão em debates sobre o divã ou em conversas mais íntimas pelos cantos escondidos do jardim. A festa ia alta, e já se notava sinais claros de embriaguês em alguns que simplesmente não ouviam mais as palavras do sábio Sêleca (1), convidado especificamente para distrair, mas que apenas conseguia chateá-los.

Seus olhos, impassíveis, observavam a cena com lucidez. Sim, seria deles o legado de perseguir os ideais de Roma. Diante de si pairava bêbada e lasciva a alta sociedade do império.

Suspirou, Aiolia, irmão de Aiolos, acabara de tomar uma das servas em seus braços de guerreiro bem respeitado. Eram apenas escravas sem direito de recusa, mas não deixava de ser indelicado iniciar o ritual de acasalamento em plenas luzes. Aiolos o observava em silêncio. A cena era um prato cheio para Saga. O antagonismo entre os dois estava claro, embora se tratassem com fria polidez, o ar amargo das conversações não deixava dúvidas sobre o desejo óbvio de ambos em suceder ao Soberano.

"A roda da vida... samsara... sempre gira" ouvira um dos servos dizer, um indiano que viera na última leva dos mercadores. Era um espécime raro e belo, surpreendentemente sábio e silencioso como preferia. Suas palavras encontraram terra boa em seu coração, pensava nelas continuamente. A vida continuaria. Homens habituados ao poder, imaginam que o mundo nasceu com eles, e quando a existência lhes chega ao fim ficam melancólicos por não terem podido terminá-lo (2). Sentia-se alguém que deixava algo inacabado. Algo que poderia ser destruído com a escolha errada.

Shion, chamado Cezar (3), ponderava entre a Sabedoria e a Força.

Aiolos caminhou para a arcada, de lá era possível ver Roma e toda sua glória dourada pelas tochas de suas vielas estreitas. Desprezava a parcialidade do seu século. Homens com apetites alcoólicos infinitos em suas panças de volume considerável, mulheres e suas tinturas faciais escondendo o tempo que lhes escorria pelos dedos, com vestes bordadas a pseudo-ouro desnudando-se facilmente. Suportava os encontros formais apenas por interesses políticos. Tinha ambições.

Seus devaneios foram interrompidos por uma presença incomum.

- Admirando a noite, ou apenas fugindo do circo? – virou-se e fitou demoradamente aqueles olhos de um azul profundo. Inimigos poderiam se conhecer tão bem quanto amigos. Um problema a mais que esperava eliminar.

- Não compreendo a pergunta, os circos são sempre para se admirar, sem a necessidade de participar deles. – nunca baixar a guarda, os diálogos com Saga sempre tinham o gosto de desafio, qualquer palavra em falso poderia ser revertida em seu próprio prejuízo. Saga riu, jogando a cabeça para trás, num gesto despojado, a cabeleira escura ondulando em suas costas.

- Ora, ora! É de se estranhar ouvir tais palavras de alguém que não se cansa de mostrar a Roma as maravilhosas coisas estranhas da Ásia. O que era mesmo aquilo da semana passada? Uma criatura enorme que nos presenteou com um belo excremento em frente ao fórum? – Sabia que o outro não perderia a oportunidade de ridicularizar suas vitórias no oriente do mundo.

- Meu caro Saga! Um elefante das conquistadas terras asiáticas te assusta? Devemos repensar sobre sua posição então, talvez seja melhor lidar com algo mais pacífico. A Gália pode estar lhe conferindo cabelos brancos. – Aiolos, porém, jamais deixava em branco suas provocações, sempre recheadas de ironia e sarcasmo, eram respondidas na mesma altura, lembrando-lhe de seus insucessos na distante Gália Transalpina. Um verdadeiro caldeirão de lutas onde Roma avançava lentamente. Este, e o fato de seus cabelos estarem mudando de cor, apesar da pouca idade, eram assuntos que Aiolos sabia irritar profundamente o outro.

- Ah não se preocupe com a Gália, creio eu que esteja bem servida com Milo por lá. Talvez a Espanha seja um destino mais interessante não acha? – uma espetada básica em um pormenor que permanecia oculto a todos, menos Saga, claro. Shura era espinhoso demais para que Aiolos pudesse responder com imparcialidade.

- Espanha? Sim, talvez mais interessante pra você, Shion parece ter se divertido com sua companhia na temporada em que estiveram lá, não é? – havia sido um golpe baixo, bem o sabia, mas queria terminar aquele diálogo sem sentido a todo custo. Cezar era sempre um assunto que Saga evitava ao máximo. A expressão deste, antes de escárnio, mudou para uma máscara de polidez, despedindo-se do grego sem resposta para sua insinuação.

Os olhos castanhos voltaram-se para a festa, um visitante exótico acabava de surgir.

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Afrodite estava orgulhoso de sua companhia. O rapaz, recentemente chegado de terras orientais, era um primor! Sabia como os romanos admiravam a beleza e já esperava por aquela reação, aliás, no seu tempo fora considerado o retrato da perfeição. Ainda causava furor mas, na maturidade de seus vinte e três anos, iniciava-se nas intrigas do senado. Sabia conduzir com habilidade uma rede intruncada de influências, usaria quem fosse preciso como instrumento de suas ambições. O tédio na corte era notório e belas pessoas traziam diversão.

Mu, o jovem acompanhante de Afrodite, não se cansava de observar, já meio zonzo, todas as belezas do palácio ainda mais suntuoso que a própria Roma, encarnava o desejo dos homens de imitarem os deuses. Levado a se sentar, notou o clima de expectativa, além de alguns olhares curiosos.

- Chegamos atrasados? – a atenção demasiada sobre si o surpreendeu, conhecia o desprezo dos romanos por estrangeiros. Afrodite apenas riu da sua inocência, era muito jovem para perceber o que acontecia realmente.

- Ora não se importe, mas observe. A Augusta Saori fará sua entrada a qualquer momento e ela gosta de ser o centro das atenções. Diga o máximo de amabilidades que conseguir se ela se dignar a lhe falar.

- Devo bajular?

- Eu diria conquistar – e riu gostosamente da franqueza do rapaz – embora, sim, talvez nem sempre seja verdadeiro, mas deve parecer sincero.

- Não sei se consigo – jamais gostara de mulheres que forçam admiradores, beleza era intrínseca do ser, não poderia exaltar alguém se realmente não visse motivos para tal.

- É melhor conseguir Mu, ou verá, pelos piores meios, que com a imperatriz não se brinca. - ainda não sabia o por que de uma semi camponesa, quase desprovida de atrativos, tivesse tanto poder sobre Cezar. Esse último parecia fazer-lhe todas as vontades, embora permanecesse distante o máximo possível. Se o acaso os colocassem juntos duas vezes por ano era muito.

As luzes foram habilmente apagadas deixando apenas o corredor iluminado frouxamente, a tentativa era instaurar uma aura sobrenatural. A música surgiu suavemente e algumas bailarinas fizeram sua entrada como bacantes em um dia festa nos morros dedicados aos vinhos. Mu estreitou a visão, as moças dançavam admiravelmente, duas na frente com vestidos ricamente bordadas parcialmente transparentes deixavam entrever as formas de seus corpos. No meio com trajes justos trançados a ouro, os seios nus como a nudez dos rituais, cabelos roxos penteados com enfeites de diamantes caindo sobre o colo, movia-se com mais lentidão, sensualmente.

Pareceu vulgar aos conceitos de Mu, mas ao ver a imperatriz concluiu que eram vãs as recomendações de Afrodite. A Augusta era bela, como jamais nenhum superlativo poderia exprimir e seguia mais atrás. Admirou a singeleza de suas roupas, uma túnica azul clara que presa à cintura drapeava-se até os pés, uma modesta tiara de lápis-lazúli e ouro sobre a cabeça contrastando com um rubi pequenino entre os olhos que permaneciam fechados. Encarnava toda a majestade que lhe cabia por seus modos, puros, em oposição à indecência de suas damas que agradavam aos convidados. Mu aprovou essa atitude, uma mulher de imperador deveria se mostrar casta.

As bacantes sentaram-se ao centro para observarem os outros artistas que se apresentariam. Alguns retóricos leram seus épicos, jovens lutadores encenaram batalhas e uma trupe final números de equilíbrio e força em saltos e cambalhotas. Escravos não deixavam que as taças esvaziassem da metade completando-as a todo o momento. Mu não apreciou muito o sabor da bebida púrpura que os romanos tanto gostavam, e sem entender por que, começou a sentir os olhos embrumados e a mente turva. Mal reparou quando a moça de cabelos roxos se sentou a seu lado.

- Estava a imaginar de que terra distante viria alguém com pontinhos na testa...

As palavras da resposta saíram de sua boca sem passar pela mente. Não fazia idéia do que dizia. Ponderou que talvez pudesse usá-la pra se aproximar da Augusta. Teria extrema felicidade se ela lhe dirigisse a palavra.

Cada vez mais confuso, teve um estalo quando a jovem lhe prendeu os lábios com os seus. Estava em um canto mais afastado da festa, não saberia informar como suas pernas o levaram até lá. Sentindo-se enojado pela luxuria vulgar daquele beijo afastou a moça desajeitadamente, pensando que somente conheceria o prazer se algum dia tomasse a bela boca da imperatriz em seus encantos louros.

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Quando percebeu que as atenções se dispersaram, tratou de buscar pelo seu alvo. A indecisão fazia-o necessitar de sua companhia. Reconheceu o porte altivo em uma das sacadas.

Aproximou-se silenciosamente, perscrutando o local para garantir que estavam sozinhos, e enlaçou a cintura do rapaz com carinho. Já era um homem feito, mas ainda exercia sobre si a mesma sedução de quando ainda era um jovem efebo. Sentiu certa resistência logo dissolvida quando afagou o pescoço do outro com os próprios lábios. Conhecia suas franquezas.

- Devia parar com isso... – não pode prosseguir uma boca experiente ainda persistia em fazê-lo suspirar.

- Ora Saga! Será capaz de se negar á mim? – a voz aveludada em um quase sussurro conseguia que o rapaz perdesse suas racionalidades.

- Não... não, me torture com essas insinuações! Sabe que se descobrirem que ainda estamos juntos, só traria vergonha a mim e a você!

- Que não descubram então! – ignorando completamente o ar contrariado do moço, continuou placidamente a provocar-lhe. A situação era mais constrangedora para Saga do que para si, este lhe desejava tanto quanto ele próprio. Portanto não se importava em serem ou não vistos. Apenas não se entregava totalmente a seu amor por que Roma exigia por filhos, e filhos nasciam de mulheres. Relacionamentos duradouros entre homens não eram tidos como bons, porém perdia a vontade de ser perfeito, um semideus, quando avistava aqueles intensos olhos azuis. Nunca conseguiu substituí-lo por nenhum de seus amantes, que não eram poucos. Em determinados momentos temia que Saga usasse toda a sua influencia em interesses duvidosos, em contrapartida não tencionava ser injusto destituindo-o de algum desígnio maior, pois conhecia a capacidade e inteligência do jovem em seus braços. O amante deixava-o confuso. Decidiu por considerar os seus problemas depois, e aproveitar o sabor dos beijos de seu caro companheiro. Partiu de Saga a iniciativa de irem a um quarto reservado, longe de olhares indiscretos.

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Escutou um grito de ódio, sem saber o que fazer procurou fugir de toda a podridão dos costumes daquele povo, queria voltar pra casa. Mas, quem sabe antes ver a imperatriz uma última vez...

Agora, porém, era momento de ir. Virou à esquerda mais uma vez em busca da saída, encontrou outra bifurcação. Ouviu que o seguiam, não era bom sinal. Apressou a fuga perdido em meio ao labirinto de corredores na semiescuridão quando sentiu que algo enlaçava suas pernas, reagiu como pode, sentiu acertar alguém, lembrou-se que Afrodite lhe avisara sobre os servos da Augusta, sob sua proteção, poderiam ser tão poderosos quanto ela. Tarefa difícil conseguir viver pacificamente na capital do mundo. Quem quer que fosse era apenas um e seria possível escapar, correu mais percebendo os passos se acelerarem de igual modo atrás de si. O chão oscilava perigosamente, nunca mais tomaria vinho, se locomover desprovido do senço de equilíbrio era uma arte que desconhecia. Bruscamente um braço o jogou contra a parede com força, mexeu-se com pode até sentir seus pensamentos minarem após um forte impacto na cabeça.

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Capitular para impedir mais mortes. Não era uma escolha fácil. Não se importava com o corpo temporal, havia um motivo maior para a guerra. Mas era um gosto de fel que lhe invadia ao se lembrar das suas hordas de retaguarda. Aquelas que iriam retirar o estado de sítio, esperança de a Liberdade ser vitoriosa, serem rechaçadas impiedosamente pelas legiões romanas. Não podia negar a disciplina e força daquele exército, não o subestimara, seu general é que havia lhe superado, reconhecia.

As visões de uma noite há tempos ocorrida voltaram à sua mente. A Tríade. O infinito, a luz, a liberdade. Eram mais que príncípios, eram fundamentos do universo, pelos quais devia lutar. No monte virgem onde as chamas da fogueira sagrada dançavam iluminando uma noite sem luar, recebera das mãos nodosas do druida, o oráculo de Smertrius. Viu que teria a Guerra e não temeu, a luz estaria a um lado e o infinito do outro. A liberdade à frente indicando o caminho.

Em sua visão dicernia a luz, uma força interior, brilhante como nuvem cósmica. Via liberdade com asas como da águia a voar sem limites. Porém o inifinito não lhe fora revelado, semelhante a um homem, impossível identificá-lo, caminhava a seu lado. Seu destino estava na conformação da Tríade em Unívoca (4), onde então seu espirito se fundiria ao universo, o propósito de sua existência cumprido.

- Vejo que acordou meu caro amigo! Como se sente? - Milo o observava há certo tempo, admirando o belo rosto crispar-se com o rumo dos pensamentos.

- Bem, agradeço a preocupação, mas não sou seu amigo. - flamejantes olhos acobreados fitaram-lhe diretamente, o grego riu-se do ruivo e decidiu cutucar-lhe.

- Mas me é caro! Quanto a ser amigo é uma questão de tempo. - disse sorrindo, ingenuamente talvez, por que acreditava no que dizia.

- Não creio. A amizade só surge entre iguais, e você não chegou ao meu nível. - A surpresa que essas palavras trouxeram, fez calar sua cordialidade.

- O quê quiz dizer? - o olhar reluzindo a ódio. Nenhum homem ousara menosprezá-lo.

- O óbvio. Teria que evoluir muito sua alma para que pudesse considerá-lo como vivente, teria que alimentar seu espirito para considerá-lo como humano, e, então, exercitar muito a inteligência para considerá-lo um homem. - Um ousou.

As palavras se embolaram na garganta, que nunca antes ficara sem resposta. Tinha vontade de gritar, mas nem sabia o que dizer, tão desarticulado estava o raciocínio. Aturdido e raivoso ordenou que trancassem a porta do prisioneiro e não o alimentassem. Não o agrediria apenas por não condizer à sua honra bater em quem não poderia se defender, mas o castigaria. Pro inferno todos os cuidados que tivera para curar os ferimentos, desejava inclusive que cada um deles se abrisse e causasse ainda mais dor ao bárbaro.

A humilhação que sentia era proporcional a um sentimento de perda. Mesmo toda a generosidade que cumulara o ruivo não servira para aplacar aquela lígua ferina. Percebera, no entanto, uma sombra em seus olhos rubros enquanto o observava. Embora todos os esforços do seu orgulho ferido, algo dentro de si fê-lo sentir-se preocupado por tamanha tristeza ocupar um olhar tão belo.


(1) Alusão a Sêneca, uma grande filosofo e poeta, mas que causava um pouco de sono aos seus conteporâneos.

(2) Quisera eu ser o autor de uma frase tão bela! Mas não sou... Créditos devidos à Marice Druon, escritor francês que faz essa conclusão (bem bacana, eu achei) em seu livro "O rei de Ferro". Leiam! Esse rei, não sei por quê, me lembra o Camus. XD

(3) A época da fic é aproximadamente 50 a.c, sem ano específico pois, obviamente, não estou fiel á história, apenas me baseando nela. Cabe lembrar entretanto, que o termo "Agusto Cezar" para denominar os imperadores romanos surgiu com Otavio em aproximadamente 29 a.c.

(4) Nisso aí nem tudo é, de fato, mitologia gaulesa, a 'unívoca', por exemplo, é coisa da minha cabeça, eu apenas gosto dessa palavra, mas ela não tem nada a ver com a cultura dos gauleses. Na verdade é um termo matemático que define uma solução única factível.


Olá!!!

Obrigados (muitos obrigados) a todos que leram e beijinhos carinhosos nas fofinhas que me mandaram reviews! Tentei responder a todos por email dessa vez!

Bom devo dizer-lhes que a fic, na verdade, já está pronta, vai depender de vcs postá-la ou não, afinal tenho que saber se querem ler o final!

Às vezes ninguém quer né?!!! XD

Beijos fofíssimas!!!