Despertares

O leve torpor que acompanha o despertar dominou-o por alguns momentos, sentiu uma fofura estranha sob suas costas, tecidos finos lhe cobriam, e o corpo se apresentou menos dolorido. Resolveu abrir os olhos.

O cômodo feito em pedras era espaçoso, somente o divã acomodaria confortáveis umas cinco pessoas. Os móveis finos e elegantes denunciavam sua origem estrangeira e havia frutas, pães, leite e água dispostos numa mesa à esquerda da porta de madeira tão alta quanto a própria parede. Estava claro e fresco, imediatamente voltou os olhos em direção à claridade, encontrou janelas. Era justamente o que precisava.

- Não pense em pular! Por menos que seu corpo consiga passar através delas, considerando o quanto são estreitas, ainda haveria o inconveniente de estarmos cerca de dez metros acima do solo, há mortes menos dolorosas, garanto-lhe!

O general loiro, que até então não notara no quarto, podia ser muito sagaz às vezes. Dir-se-ia que lera seus pensamentos, mesmo assim levantou-se e conferiu as propriedades da dita janela, o dia estava nublado, muito bonito em sua opinião. Amava o céu de sua terra. As nuvens cinza rajando a abóbada sempre lhe atraíram dando-lhe sonhos. Muito abaixo de sua visão havia tulipas vermelhas onde supôs estar o chão. Realmente não era uma rota de fuga atraente. Observando os detalhes restantes, comentou.

- Os romanos possuem uma maneira extravagante de tratar seus prisioneiros. Eu esperava dignamente por uma clausura rígida. Mas oferecem um embate covarde de vinte homens contra um, para depois tratarem de suas feridas em um lugar escuro e então transferi-los para quartos frescos e altos. Não consigo compreender o motivo desse tratamento, pode me explicar senhor general?

Milo enrubesceu ante o exame racional de suas atitudes despropositadas. Procurou, durante meio minuto, uma resposta que justificasse seu comportamento, não encontrando, decidiu não explicar coisa alguma e simplesmente mudar de assunto.

- Partiremos amanhã, está tudo pronto, espero que descanse o suficiente para uma viagem desse porte. Você é o convidado especial para a cerimônia do triunfo de Cezar.

Com sarcasmo Camus perguntou.

- E como um bárbaro deve agir nessas cerimônias? – Milo, no mesmo tom, respondeu sorrindo.

- Nada demais, apenas morrer. Para glória de Roma!

Camus nada disse. O destino o levava aos lobos assentados sobre a Terra, não negaria assim como também não se entregaria tão fácil à morte, apesar de não temê-la. Todos os homens eram iguais, diante da vida todos morreriam, mas havia o tempo e o lugar certo. E não haveria de morrer diante todos os romanos para glória de alguém, nem adotaria a saída covarde do suicídio. Sabia lutar e na hora certa empregaria sua força já restabelecida. Paciência era uma de suas virtudes.

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Mu ainda sentia-se levemente zonzo quando abriu os olhos. A cabeça doía-lhe e não conseguiu se levantar. Estava preso.

Preso e perdido! O lugar sujo e úmido assemelhava-se a uma masmorra. Devia ser algum tipo de cômodo inferior ao nível de entrada. Ilogicamente imagens de tortura e morte povoaram sua visão e, afobado tentou soltar a corda que lhe prendia, quando finalmente a percebeu sentada à sua frente.

A expressão serena e digna, os olhos do mais profundo anil o encantaram ainda mais. Não estava tão perdido assim afinal. Ou talvez não... De qualquer forma, perdido com a Imperatriz era, na verdade, estar encontrado. Encontrado por algo divino!

-... . – E agora? Não sabia o que dizer! As palavras se atropelavam e empacavam na garganta. Era um idiota! Mas, pudera, com a suprema beleza diante de si perder a fala era o de menos, perder a visão é que seria uma problema!

Mais uma tentativa. Para agradecer! Era um mínimo que podia fazer.

- Bom... obrigado!

Silêncio...

Um friozinho na boca do estomago começou a se formar. Alguma coisa estava errada. Olhando para os lados a verdade caiu-lhe como uma coluna jônica na cabeça. Por que a Imperatriz o visitaria num quarto tão feio e mofado?

Revisando na memória os acontecimentos anteriores ao momento em que foi "apagado" não distinguiu exatamente os detalhes de rostos ou conversas. O olhar anil era severo.

Mu não suportou o peso daquele olhar, inexplicavelmente, seus músculos internos começaram a tremer e, uma veia em sua testa, a pulsar mais rápido.

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Caminhavam há três dias. Ninguém jamais conseguiria explicar por que homens corriam sozinhos até quarenta quilômetros em uma manhã, mas em pelotão não cobriam nem mesmo dez. A viajem se arrastava por um território dúbio onde os postos avançados do Império não haviam conseguido "romanizar" o povo.

Camus conhecia a região. Pertencia ao reinado do príncipe Radhamantys, um saxão que comandava homens cujos escudos eram pintados falcões com sangue das mulheres que não satisfaziam convenientemente ao monarca. O exército dos macabros falcões odiava Camus, assim como as asas brancas nos escudos dos gauleses os odiavam.

Não era seguro atravessar aquele lugar de espadas traiçoeiras onde até as arvores eram imprestáveis e a floresta sombria. Não havia, porém, meio de avisar ao general o risco que corriam. Talvez nem desejasse, afinal na condição prisioneiro preferia os algozes que já conhecia e contra os quais já vencera em outras guerras. Milo inspecionava a legião em toda sua extensão indo e vindo, metóo indo e vindo, metlegiao riam, isco que corriam, talvez nem quisess. s com sangue das mulheres que n entdos finos que lhe cobrdico como sua personalidade guerreira.

Vinte mil pés locomoviam-se lentamente quando um grito agudo se fez ouvir na linha de frente dos comandados. Correu ao local no mesmo instante. Era uma flecha, rústica e envenenada, que acabava de ceifar a vida de um dos seus centuriões mais fiéis. Seus olhos faiscaram de ódio. E antes que pudesse se recompor mais uma era disparada aterrisando a centímetros de seus pés no chão úmido. Logo, uma chuva delas era atirada contra eles. Estavam sendo atacados, e sequer descobriam a posição do inimigo. O lugar era desconhecido e os atacantes se camuflavam nas raízes antigas e nodosas da floresta.

Uivos eram ouvidos, o desconhecido dava margem à imaginação criar terríveis adversários sobrenaturais e o medo se apossava dos corações supersticiosos dos romanos. Milo, esquadrinhando situação, ordenou defesa e armou um contra ataque rápido, agilmente repôs as linhas de frente organizadas, invadindo a área infestada de setas voando envenenadas. Os uivos e gritos se tornaram mais intensos desvendando todo um exército maltrapilho e desdentado, que brandia suas armas enferrujadas confundindo a passagem romana com uma invasão.

Revoltado de perder alguns homens para algo tão imundo, Milo investe pesado contra o desajuntado adversário. Porém, não contava com um número tão grande de bárbaros saxões e refez sua estratégia para circundar os atacantes e anular a ameaça mais depressa, seus soldados bem treinados não tiveram dificuldades em obedecer-lhe.

A batalha travada, no entanto, demorava-se e em certo tempo Milo avistou o cavalo castanho, que transportava o gaulês, morto. No mesmo instante se pôs a perscrutar o local em busca das madeixas ruivas. Um incômodo sutil surgiu quando imaginou que o prisioneiro poderia ter sido atacado, estava acorrentado e talvez não conseguisse se defender.

A estranha sensação cresceu em seu peito sem conseguir definir exatamente por que temia tanto encontrar os incomuns fios escarlates junto ao sangue e corpos revoltos pelo chão coberto de musgo. E cresceu ainda mais em um surdo desespero onde não distinguia mais troncos de inimigos, tampouco escutava o que quer que fosse, com o gládio (1) retalhava furiosamente qualquer coisa que atravessasse seu caminho. Tornava-se insano como jamais situação alguma o tornara.

Um saxão, de olhos esbugalhados e garganta gritante, atacou-o com um machado onde se via a insígnia dos falcões negros, desviou o olhar de sua procura para defender-se do golpe usando o seu scutum, mas o impacto do golpe fê-lo perder o equilíbrio momentaneamente, o suficiente para seu atacante volver novamente ao alto seu machado, porém ágil e forte Milo segurou a lamina com sua espada na mão esquerda e com a direita alcançou seu punhal picando-o certeiramente no coração, quando o corpo inerte tombou ao chão finalmente o viu.

Ainda com as correntes nos punhos, e utilizando-se delas e das pernas para se defender, desferia golpes com rapidez e elegância que nunca havia visto em ninguém. Camus segurava a espada do inimigo à sua frente com as correntes do próprio punho enquanto golpeava com os pés seus pontos vitais logo as girando para trás a fim de golpear o oponente em suas costas. Como uma dança ia se livrando graciosamente de seus adversários, Milo compreendeu por que tantos seguiam aquele homem. Tinha tanta força na mente quanto nos braços, um líder que não hesitaria em construir um novo mundo com a própria vida. No entanto, o ruivo fora reconhecido pelos saxões que agora se empenhavam muito em conseguir sua cabeça como prova de honra diante do príncipe. Mais de três oponentes se acumularam sobre o gaulês, que vislumbrou uma das espadas longas dos saxões traçando uma trajetória em sua direção. Calculou, nos milésimos em que os pensamentos se processaram, que não haveria como se livrar do sabre à sua frente, a maça por trás a tempo de evitar o golpe. Que fosse! Morreria lutando. E, menos de um átimo após a conclusão do raciocínio escutou o barulho metálico de duas armas se chocando.

Surpreso, viu o gládio romano trafegar pelo espaço em instantes e decepar braço, espada e ombro de uma só vez. O autor da manobra que lhe salvara a vida sorriu faceiro através dos olhos azuis e tornou a se concentrar na batalha. Costa com costa, juntos lutavam e mutuamente se defendiam.

Rapidamente um círculo de corpos se amontoou ao redor e Camus considerou pasmo, que pela primeira vez via alguém num nível de luta igual ao seu. Sempre fora demasiadamente superior a todos os guerreiros que conhecera dentro e fora de sua tribo, e alimentava o sonho de encontrar um bom cavaleiro com quem pudesse dividir as responsabilidades da resistência gaulesa. Entretanto não esperava que dentre todas as possibilidades fosse um romano que se encaixaria em seus altos padrões, uma pena. Embora não deixava de ser interessante batalhar ao lado de alguém assim. Era tudo obra do destino, os homens, até mesmo os romanos, eram apenas homens afinal. Lutavam entre si e se uniam contra um inimigo comum.

Quando os últimos, e poucos, saxões decidiram por manter a vida e fugiram o sol já se punha no horizonte e seus raios vermelhos prestavam tributo aos mortos do dia. O cheiro ocre de sangue e suor emanava da umidade da velha floresta. Milo virou-se para seu recém companheiro observando suas vestes manchadas de vermelho realçadas pelo poente ainda mais castanho. Camus fitou-lhe de volta. Um acerto mudo de admiração recíproca que apenas uma luta vivida lado a lado seria capaz de propor. Por um instante foram apenas dois e protegeram a vida um do outro.

Os soldados recolheram os despojos da guerra, armas e peles que seriam úteis na travessia do território sombrio. Milo ordenou que montassem acampamento mais adiante, a fim de se livrarem dos mosquitos e das pestes.

Quando os soldados, já estabelecidos, tomavam sopa tranquilamente, Milo decidiu por fazer sua ronda, ser cumprimentado pelos rasos e averiguar o estado das acomodações. Encontrou Camus atrelado a uma barraca na extremidade direita do acampamento próxima a um precipício. Sentando-se ao lado do prisioneiro, quedou-se a observar o céu que tanta atenção recebia do gaulês. A noite sem lua, descortinava toda a gama dos pontos luminosos do céu. As estrelas falavam, descreviam e previam. Mistérios do profundo universo refletindo-se nos olhos do homem ao seu lado.

- Onde aprendeu a lutar assim? – Sem dúvidas que estava admirado pela habilidade do gaulês, ainda mais pela sua bravura. Não o vira lutar na guerra da Alsácia.

- Como todo guerreiro da minha terra aprende. Lutando.

- Isso eu imaginava – Milo o fitou irritado, não era possível que ele sempre o fizesse de idiota – me referia a como foi realizado seu treinamento.

- E foi exatamente isso que respondi. Não sei como é em Roma, mas na Gália não há escolas de lutas. Aprendemos na prática, por força de tantos desejarem nos invadir e oprimir nosso povo.

O romano, surpreso, não soube o que responder. Realmente havia escolas para o exército do império, e o restante das tropas era composta por mercenários. Lutavam por dinheiro, e não havia responsabilidades por eles. Mas, considerando o caso da Gália, concluiu que deveria ser torturante. Cada invasão uma destruição. Não poderia supor todos os descaminhos a que foram obrigados. Talvez Camus fosse tão bom por justamente ter aprendido da pior maneira. Observando o ar distante do moço tentou visualizar sua infância, como seria sua mãe, como a teria perdido. Talvez ela o acarinhasse antes de dormir como a sua. Ou como perdera quem quer que fosse da sua lista de amados para se empenhar com tanto ardor em uma causa sem chance. Havia dignidade e honra em seus modos, lutava por altos ideais, porém, qual seria a motivação era a dúvida a que se retinha.

O grego, não muito dado a consolações ou a imiscuir-se na vida alheia, simplesmente o soltou da barraca e conduzindo-o pela mão atravessou o acampamento. Do lado oposto havia uma nascente de água, estreita, porém conveniente para um banho, digamos bem desejado. Não notou olhares em sua direção. A lua exercia efeitos alucinógenos em sua percepção física do ambiente, andava como num sonho, apenas sentia a pressão mais forte e distraída da mão que segurava.

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Mu não suportou o peso daquele olhar, inexplicavelmente, seus músculos internos começaram a tremer e, uma veia em sua testa, a pulsar mais rápido.

Abaixou a cabeça e fechou os olhos, numa atitude infatil.

- Espero que saiba o que fez!

De onde vinha aquela voz grave? Um belo timbre de tenor, mas não havia homens ali... Rapidamente levantou a cabeça, quem tinha entrado? Procurou pelo quarto à caça do intruso.

- Eu estou falando com você!

Sentiu os olhos arregalarem. Se estivesse de pé certamente cairia de tanto sentir suas carnes se desfalecerem.

- Quem é você??? – Mu perguntou num berro inquisidor.

- A questão é: Quem você acha que sou? – o outro disse meio enfadado, como se já esperasse por aquilo.

Toda a segurança que possuía na pergunta anterior se esvaiu. E, sem certeza, respondeu.

- A Imperatriz. (?)

- Eu pareço ser umA imperatriz? – falou incrédulo com tamanha falta de percepção.

- Bom, parece sim! – Mu disse meio irritado.

- Eu agradeço pelo teor de elogio que contém sua resposta, mas, começando pelo óbvio, uma Imperatriz não pode ser homem, não é?

- ... ora... com aquelas roupas cheias de véus... voce é meio magro, daí as formas não... o cabelo... Ora voce parece uma mulher! – tom mais alto – de longe, pelo menos... – tom mais baixo.

Não podia crer que seus sentidos o enganassem tanto!

- Compreende agora por que estamos perdidos? E por que estamos sendo caçados para morrer o mais rápido possível?

Absolutamente não compreendeu a fala do interlocutor loiro. Devia ser um jogo, e estavam, com certeza, brincando com ele. Tinham que estar! Afinal, o que fizera de tão errado?

A pergunta devia estar muito bem escrita na sua testa para que o loiro dissesse:

- Você disse "que somente conheceria o prazer se algum dia tomasse a bela boca da imperatriz em seus encantos louros".

- ... . – Interpretando erroneamente as palavras do rapaz, sentiu-se vermelho de vergonha. Embora não se lembrasse de ter dito nada parecido, talvez tenha pensado, apenas isso! Mas o moço loiro não precisava se ofender! – Eu pensei que você fosse uma moça! Eu não quis ofendê-lo, na realidade não tenho o gosto dos romanos... de ficar com rapazes... mas, pra mim, era uma moça... compreenda...

Balançou suavemente seus longos cabelos dourados, levemente irritado, levemente decepcionado, e respondeu um pouco mais brusco do que desejava:

- Não é esse o problema! Você disse que me preferia em detrimento da imperatriz, na frente da Imperatriz! – e num fio de voz – Na frente de Saori, que não descansará enquanto não tiver nossas cabeças arrancadas do corpo. Ouça, ela vive de mimos e elogios, você a rejeitou! Empurrou e não aceitou seu beijo, você assinou sua sentença de morte, e citando a mim assinou a minha também.

- Você não vai morrer! – ainda estava incrédulo.

- Saori já matou duas escravas esta manhã, unicamente por que elas viram que você não a quis!

Mu quedou sem falas. Não era possível. Morrer pela vaidade?


(1) Gládio: espada curta romana. Mais eficiente que as longas espadas saxãs por que geravam golpes mais rápidos. Não se sabe bem porquê seu uso foi abandonado.

Eu sei que tá meio atrasada a atualização, mas só tive coragem de postar hoje, e rápido, senão perco o restinho dela que sobrou...

Apesar da fic tá pronta, eu leio milhões de vezes cada capítulo e sempre mudo, milhões de coisas até ficarem do jeito que imaginei. É dificil passar as coisas da cabeça pro papel.

Então...

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