Um abraço quente...
-Sei o que está pensando! – Shina esboçava um sorriso abobado de quem quer mostrar ter conhecimentos sobre segredos ocultos.
-Creio que não. – Camus respondeu com distante ar de indiferença, não queria conversar com ninguém, mas não destrataria a moça, esperava que ela se tocasse e despachasse.
O que não ocorreu.
-Pois acredito que o Senhor deve estar se sentindo massacrado pela mediocridade dos participantes. Tão centrados em sua importância e nem reconhecem que são apenas peões a serviço de inteligências superiores, podendo ser trocados a qualquer momento! – Deu uma resposta mais enfática e desdenhosa do que imaginava, mas viu a apatia de seu interlocutor e esperava fazê-lo falar.
-Jamais teria essa espécie de pensamentos mesquinhos, cara Shina – estava chateado com a moça, geralmente ela demonstrava, pelo menos às vezes, bom senso. Indignava-o ser tão mal interpretado. – todos eles são, para mim, parceiros. Já que a empresa não sobreviveria apenas comigo. - Se Milo o escutasse falando assim se surpreenderia. Mas Camus realmente possuia inteligência e bom senso. Algo que seu jeito casmurro sempre deturpava.
-Então por que o silêncio e o afastamento dos outros na festa? – Ela não desistia. E cada tentativa parecia aumentar a irritação do diretor de engenharia e automação da produção.
-Tinha pensamentos bem mais agradáveis... em belos olhos... – olhos como anil de um arco íris no crepúsculo, onde dia e noite se fundem num mistério delicado que enche o coração de desejos. Sim, aqueles olhos eram poesia.
-Camus! Faça-me conhecer a felizarda! – Sorria, mas desagradava-se ao estremo em descobrir que Camus podia admirar alguém, e ainda ficar tão distraído imerso em divagações! Seus pensamentos logo formulavam o ataque que faria à provável rival para retirá-la dos pensamentos de seu adorável patrãozinho.
-Sabia que diria algo assim – disse num sorriso irônico sem paciência, apenas Shina não notava que a conversa desagradava Camus imensamente – Mulheres não diferenciam apreciação de amor. E nem mesmo trata-se de uma mulher, minha cara. É Milo.
-Oh! Milo? Aquele desajeitado? Puxa Camus, como seria um jantar nos restaurantes que freqüenta? Teria que ensiná-lo a até mesmo dobrar o guardanapo! – O ciúme da moça esbarrava em grosseria. Imperceptivelmente os lábios do francês se crisparam em desagrado.
-Sim Shina, infelizmente, nem sempre belos olhos acompanham fineza e elegância – Percebeu suas próprias palavras como sendo um corpo estranho em sua fala. Apesar de saber ser verdade, não queria aceitá-las. Não em Milo. Exceções... Elas confirmam a regra, não? Certamente a maneira como foi tratado mais cedo pelo rapaz o irritou, porém, não conseguia formular nenhum argumento contra o loiro, voltando contra si mesmo o erro do diálogo atrapalhado. A expressão do rosto moreno não abandonava suas reflexões.
Um burburinho no qual distinguia seu nome várias vezes chamou sua atenção. Suspirou quando viu de quem se tratava.
-(...) sim não há nenhuma voz mais bela! Foi Camus que me ensinou a cantar inclusive, me ajudou quando quis entrar para o coral de Viena. Sabiam que até Mozart cantou nele? Era nencessário cantar em uma peça de balé de que participava no Bolshoi e Camus firmou o possível para que eu cantasse na melhor escola! Mas ele cantava melhor do que todos os meus professores! - Rindo percebeu seu protetor, eram primos e o ruivo ajudava em sua educação quando os pais estavam ocupados em negócios. Não mentia, de fato Camus possuía o timbre raro de um barítono afinado. Sua voz doce e grave tinha conquistado os maestros de Viena que sempre ansiavam pela perfeição. Entretanto não gostava de ter sua vida discutida tão publicamente, nem ver seus gostos, tão íntimos, serem dissecados em uma festa cheia de colegas de trabalho.
-Cante para nós Camus!!! - Diante do pedido muitas cabeças se dirigiram ao françês esperando a aprovação de uma idéia que Hyoga achara exelente.
-Declino do pedido, meu pequeno Hyoga. - Apesar de o garoto ser mais alto do que ele próprio sentia que nunca deixaria de ser uma criança, mesmo com mais de dezoito anos.
-Ah que isso Camus! Você é um mestre! E cantar é algo tão fino e nobre! Encantou até mesmo chefes de estado! Lembra daquele príncipe que se apaixonou por você? A noiva dele...
-Não vejo motivo para tal primo. - atalho o garoto antes de terminar a frase. - Se assim desejar faça-o você, mas não me diga que é por ser nobre e fino, por que até papagaios cantam, mesmo sendo animais irracionais! - Irritado. Muito irritado, apesar da expressão séria e comedida, sentia ímpetos de esganar o pestinha. Jamais admitia que tocassem em sua vida pessoal, principalmente em um ambiente de trabalho. Ainda que fosse uma confraternização o ambiente era, essencialmente, de trabalho.
Milo observava a confusão de longe com um sorriso divertido. A história do tal príncipe confirmava suas suspeitas. E a resposta do diretor ao próprio primo condizia perfeitamente com a imagem que tinha daquele homem de terno risca de giz soberbamente elegante. "Ridículo! Sempre procurando um jeito de rebaixar as pessoas... Tudo bem que esse Hyoga é um chato mimado que por tudo corre pra mamãe, mas o que ele disse foi praticamente chamar o moleque de irracional... O que ele não deixa de ser, claro, mas não precisa falar assim na frente de todo mundo... "
Milo observou que Aiolia estreava palavras meigas com Marin. Talvez a noite fosse longa e resolveu não bancar o vela esperando carona do amigo. Decidiu ir embora, apesar de conversar com muitas pessoas não sentiu um prazer verdadeiro nas conversações, elas serviram mais para passar o tempo. Poderia dançar, mas a música era lenta e estava sem companhia e sem saco para conquistar uma. Aquela festa fora pura perda de tempo. "Ganhava mais ficando em casa... o que estou fazendo aqui?"
Despediu-se discretamente do amigo e se foi.
Contabilizava mentalmente a quantia que tinha na carteira (não muito por sinal), e quanto mais ou menos daria a corrida de táxi (isso por que não tinha mais ônibus).
Chegaria em sua casa, e se a mãe estivesse acordada (quando ele saía para festas ela geralmente esperava, já havia aprontado antes e desde então ela ficava sempre atenta) conversaria um pouco, pra não cansá-la, tomaria um banho, leria os e-mails dos amigos (muitos, não dava pra ler todos, às vezes, mas via quem mandava e respondia assim mesmo, o interessante era manter o contato já que correntes e informações de pobres meninas desaparecidas reapareceriam se encaminhasse a mensagem para todos da sua lista, não o interessavam.) E se deitaria, fingindo dormir, pra sentir o suave beijo que a mãe sempre lhe dava antes de ela mesma se render ao sono.
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Ao voltar os olhos pra festa, Camus viu pessoas dançando, outra bebendo e conversando. Um clima ameno de diversão estava presente, mas o salão parecia vazio. Faltava algo. Mas, na realidade relutava em assumir pra si mesmo que o que faltava, na verdade, era alguém...
Subitamente aquela aglomeração de pessoas, a que chamavam festa, perdeu o sentido. O melhor seria ir embora. Não via motivos para permanecer ali. E havia motivo antes? Ah sim havia! (Ninguém diga Milo, por favor!) Tinha que estar ali pelos colaboradores, mostrar que era acessível (embora ninguém tenha o achado mais acessível nem um instante sequer, nem agora e, desconfiavam, nem em outra vida) se confraternizar. Mas já fizera mais do que o suficiente. Era hora de ir.
Iria em seu Bugatti (feito quase artesanalmente, sem contar o dele, só havia mais uns seis no mundo todo...) de 600 HP de potência que fazia 300 Km/h em 10 segundos de aceleração. Apreciava carros, gostava de ouvir o ronco sereno do motor e sentir a velocidade tocando-o. Quando guiava se sentia senhor de si e da sua vida, estava no controle. E não repartia esses momentos com ninguém.
Chegaria em sua casa, e tomaria um suco de laranja natural enquanto procuraria um bom livro pra relaxar em sua biblioteca, que pela quantidade de estantes de mogno de lei dispostas graciosamente em torno de um ambiente bem iluminado (tanto de dia quanto de noite, sem dúvida obra de um arquiteto internacional) teria, pelo menos, uns três mil exemplares. Sentaria em seu sofá modelo divã de couro próximo à janela, bebericando o suco e lendo, ao mesmo tempo. Hábito que mais de uma pessoa acusou como nocivo, mas que simplesmente apreciava.
Em seu quarto, antes de ser deitar, se poria a admirar as estrelas em um telescópio de curto alcance, porém bem nítido, os melhores para amadores. Gostava principalmente de diferenciar a constelação de aquário no céu noturno. Aquelas estrelas contavam mais histórias do que todos os livros da humanidade. Filosofava sobre elas. A imagem que agora chegava podia ser de uma estrela a milhares de quilômetros. Sua luz que viajando milhares de anos pelo universo mostrava aos olhos fascinados de Camus uma visão do passado, pois a mesmo poderia já ter desaparecido, algo que viajaria mais alguns milhares de séculos até atingirem olhos novamente.
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Iria... Chegaria... O futuro do pretérito nem sempre acontece...
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O motorista de um táxi não viu um caminhão de combustível que atravessava a perpendicular. Dirigir à noite era sempre mais tranqüilo, porém, sempre mais fácil errar por excesso de confiança.
Em seu instinto de sobrevivência, inconsciente, o motorista desviou a parte da frente do carro, deixando todo o impacto com a traseira do veiculo.
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Camus dirigia tranquilamente, não queria testar os limites da aceleração agora, viu uma pequena confusão formada. Observando melhor via que era um acidente. Mais alguns bêbados certamente. Não era da sua conta. Mas talvez não tenha ninguém para socorrê-los tão tarde, afinal quantas horas eram? Qual seria o próximo carro a passar? Maldizendo sua consciência parou e desceu a fim de verificar os estragos. Talvez não fosse útil em um socorro efetivo, mas sempre poderia dar um conforto.
A situação não era boa. Havia um ferido, tem um homem em estado de choque. Sim, sim é o motorista. Não fala coisa com coisa. O outro motorista parece bem também... Quem é o ferido então? Ah sim, um rapaz no banco de trás? Ok! Vejamos o que teremos. Lembrou-se do suco e da biblioteca lhe esperando, não estava muito disposto ver seres destroçados, eles atrapalhavam o sono voltando com suas imagens sangrentas. Examinou. Uma mecha de cachos louros ensangüentada...
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-Aiolia, viu o Milo?
-Sim Mu, ele já foi.
-Que pena, ia oferecer carona, o bairro dele é caminho pro meu. E, sei lá, senti uma coisa estranha, talvez fosse melhor ele ter ido comigo...
- Ué Mu, como assim?
-Ah... Esquece...
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Descompassado, seu coração não o deixava pensar. Precisava ajudá-lo rápido. Mas não sabia o que fazer. Chamar ajuda. Nunca é bom tocar no ferido. Isso! Ligou o número desejado, nem sentindo as teclas sob seus dedos. Deu todos os dados que podia à insistente garota do outro lado da linha, quase o exasperando.
-Temos um ferido, em ESTADO GRAVE, é preciso mais para mandar uma ambulância?
-Claro que não senhor, mas poderia estar me falando o nº. do seu cpf?
-Pra que isso?
-Apenas rotina, para estar nos ressalvaguardando de trotes senhor. – Compreendeu que seria melhor dizer tudo que ela queria, talvez viessem mais rápido. Metódico, tinha todos os números de seus documentos guardados na memória. Passou para a garota e finalmente desligou. Agora não havia mais nada além de esperar.
Nesse instante viu que o carro mais à frente vazava combustível, e havia algumas fagulhas elétricas no carro onde estava o moço. Em uma questão de tempo o contato entre os dois faria o carro explodir. Olhou para os lados, não encontrou nenhum extintor.
Pensamentos incoerentes povoam sua mente, em sua atroz imaginação aquele belo rosto era destruído para sempre.
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Onde estaria o seu menino? Nem em suas maiores bebedeiras deixava de avisar quando atrasava. Preocupava-se. Era um direito seu, preocupar. Ele sabia disso. Faria um belo sermão! Hunf, ele iria ouvir, ah se ia! E até colocaria de castigo! Ainda podia, claro que podia! Mas antes faria um leitinho caramelado pra ele... A noite estava tão fria...
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Desesperou-se.
Não suportava esperar! Calculando o tempo em que o mais próximo posto enviaria um resgate, concluiu o óbvio, não chegariam a tempo. Esperava, não ansiava que o rapaz não tivesse nenhuma fratura cervical e decidiu, ele mesmo, retira-lo de lá.
Condoeu-se, mas seria melhor paraplégico do que queimado, avaliando as últimas conseqüências.
Não raciocinava mais. Toda a situação o colocava em um estado super excitado pela adrenalina da proximidade do perigo em uma criatura que nem ao menos estava ciente disso. O desejo de salvar o outro o fez esquecer completamente de si mesmo.
O tirou de lá. Mas até a gravidade estava contra ele, puxando o liquido pra próximo muito mais rápido do que acharia correto pela segunda equação de Newton. Vai explodir! Mas o que está segurando ele? A camisa... "Ora, ora, saia camisa! Desgruda! Zeus!!! Sai..." A vontade de retirá-la mais rápido fazia o trabalho demorar ainda mais, precisava se acalmar, desse jeito pioraria as coisas. A cabeça loira repousava inconsciente em seus braços. Sorte que ele não havia sido preso nas ferragens fora fácil retirá-lo. Mas não deixaria uma camisa acabar com tudo. Avaliou a situação e viu que estava presa em um amassado do carro, não sairia facilmente, ia arrancá-la dele, mas havia um profundo corte com ela presa lá dentro, poderia fazer um estrado que não tinha condições de dimensionar. Num ato impulsivo apoiou o loiro com um braço e com outro deu um forte puxão no tecido. Sentiu o seu próprio braço deslocar pela força empregada no golpe, não importava mais, havia conseguido. Correu.
Mas uma vez acalmada a mente, não pode deixar de ver com clareza o que aconteceria. Ouviu gritos desesperados do motorista do taxi.
O líquido inflamável encontrou a fagulha. A combustão caminhou de volta até o caminhão. Em seus olhos Camus sentiu refletir a grande esfera amarela que expandia seu diâmetro rapidamente. Sabia o que viria. Somente na hora da morte era possível ter tamanho dicernimento dos fatos.
Olhou o moço em seus braços com carinho, e quando tudo era tão impossível, admitiu tê-lo amado. Pensamentos, que se processavam na velocidade da luz, traçando com triste nitidez, imagens de uma vida que não ocorreu. O amava.
A imensidão amarela de calor infernal se aproximava lentamente aos olhos do françês.
Abraçou Milo com carinho, e seu último pensamento foi protegê-lo com o único recurso que tinha... o próprio corpo.
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Sentiu fios lisos sobre seu rosto e um abraço quente. Gostou.
Ficou com um ritmo diferente dos outros dois capítulos, mas foi necessário para o enredo. pobre Camus! Só assume seus sentimentos quando uma explosão cai na sua testa! Cabeçinha dura não???
Bom, dois esclarecimentos: nunca vi o balé Bolshoi cantando nada, isso saiu da minha cabeça (embora imaginá-los cantando e dançando ao mesmo tempo seja lindo!) é apenas um grupo de balé tradicional da Rússia,
E sim, acho o Hyoga um chatinho! (me desculpe quem gosta!) mas ele matou o Camus né... não tem perdão... U.U
Auf Wiedersehen!!!
