O tempo
Com as mãos crispadas no portãozinho pintado de branco em um bairro de classe média da cidade, ela observava a rua atentamente. Talvez esperasse que o filho brotasse do chão ali mesmo. Esperanças insanas sempre atormentam corações angustiados. A mãe de Milo não sabia explicar o nó dentro de si que tremia, devia ser isso que as pessoas chamavam de aperto no coração, mas não queria entender a mensagem que gritava anunciando que havia algo muito errado.
Milo era pra ela mais do que um filho, era a própria razão da sua existência. Depois de um estrupo absurdamente cruel tivera um aborto e perdera o útero. A violência do ato deixou marcas ainda mais profundas na alma, não suportava qualquer contato masculino, e, acreditava, perdera a capacidade de amar. Quis desistir de tudo, apenas não teve chance de realizar o intento de encerrar a sua passagem pela terra. No fundo acreditava que nem mesmo desaparecendo conseguiria eliminar toda sua dor. Foi pouco tempo depois que encontrou um bebê, enrolado em trapos ensangüentados na esquina de uma rua da periferia. Provavelmente abandonado logo após o parto. A criança já estava fraca e morreria, caso não recebesse cuidados imediatos. Constatar que havia seres tão ou mais feridos e frágeis do que si mesma fê-la sentir um desejo de acalentar e compartilhar do sofrimento da criaturinha. E decidiu cuidar dele, seu raio de sol em meio inverno tenebroso, mas às vezes pensava que, na verdade, era aquela pequena alma que dela cuidava protegendo-a da insanidade. Portanto, não saberia viver sem seu pequeno Milo, que estava demorando muito pra chegar.
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O intendente notou a casa vazia. Não havia ninguém ali, o patrão devia passar a noite fora, incomum no caso dele. Camus era muito caseiro, raramente saía, e muito mais raramente ainda passava a noite fora, algo que com um ano e meio de serviço ainda não havia visto. Mas sua obrigação era cuidar da casa e não do dono, que apesar de bondoso com os empregados, não tinha alguém para preocupar-se dele.
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Sentiu uma dor profunda no lado esquerdo do tronco, que o despertou de uma dormência desconexa, quis gritar, mas mudou de idéia, abrir a boca daria muito trabalho. Mãos ágeis o colocavam em uma maca. Todo o desconforto gerado pelas costas em carne viva entrando em contato direto com o instrumento de trabalho da equipe de resgate, se traduziu em uma angustia tão intensa que preferiria a própria morte. Porém, a dor trouxe alguns benefícios, segundo seus cálculos analíticos que continham um realismo mórbido, podia pensar. E se pensar era possível, chegou a duas conclusões óbvias: primeiro, contrariando suas expectativas anteriores, não estava morto; segundo, se estavam resgatando a ele com certeza estariam prestando socorro a... MILO! Pelos céus! Como ele estaria? Quis abrir os olhos para poder visualizá-lo, mas havia uma coisa macilenta e pesada em cima deles que não obedecia a seus comandos. Tentou mexer os braços e tatear por ele, ou pelo menos abrir os olhos à força, em vão! Sabia que tinha braços (ou não?), mas não conseguia acessá-los! Desesperava-se, precisava ajudar Milo, afinal como ele estaria? Será que... Não! Não queria raciocinar sobre todas as estatísticas e probabilidades que lhe afirmavam a impossibilidade de uma pessoa sobreviver a um acidente de carro e uma explosão em um só dia. Os cabelos vermelhos espalhados por todo lado, davam uma conotação ainda mais triste ao corpo que todos acreditavam estar desacordado.
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Na pequena casa do portão branco, a mão delicada que segurava as barras finas se sobressaltou com um barulho agudo vindo da morada. Correu casa adentro para atender o telefonema. O que escutou deve ter sido realmente assustador. A mulher, em estado de choque pela notícia, saiu pela rua, desesperada, na maior velocidade que seu corpo frágil proporcionava, e sequer reparou que estava de camisola e chinelos. Tudo que conseguia pensar era em seu filho, seu Milo.
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Em algum ponto da empresa, um homem cruza as mãos abaixo do queixo com desprazer, teria que pensar sobre a situação que o telefonema lhe trouxera. Afinal, perder o sobrinho (e seu melhor executivo) não era uma opção interessante. Ele estava a alguns passos de fechar um acordo com a China que traria lucros incríveis à empresa. A sua credibilidade no mercado garantia o bom termo do negócio. Entretanto, um acaso realmente incomodo ameaçava seus planos. Quando se aposta no mundo dos negócios, o jogo passa a se tornar um vício. Já não se tratava apenas de dinheiro, considerando que já tinha mais que suficiente, era o prazer de ter uma carta mais valiosa que a do oponente. Mostrar-se forte.
- Shion, acorde! Tome uma atitude, é preciso avisar Marin, Hyoga, os investidores...
- Calma Dohko, eu estou pensando! Ainda não sei o que fazer.
- Comece por avisar seus outros sobrinhos. Eles poderão te dar notícias mais exatas sobre o estado dele.
- Camus está bem, ele não morreria agora, sabe que precisamos de suas habilidades.
- Você está obcecado! Isso não é uma questão de "se esforce bem e viva", foi um acidente, e grave, portanto pode precisar de ajuda, você deve avisar... – não pode prosseguir Shion, irado, respondeu em um tom que não admitia réplicas:
- Não vamos avisar ninguém! A ausência de Camus traria uma instabilidade que não pagarei o pato pra ver!
- Céus! – Dohko ainda tentava argumentar, querendo incutir bom senso às idéias do outro – como explicará a falta do rapaz então?
- Bom... Diremos que ele, apenas, viajou! Vamos transferi-lo pra cá, além de médicos melhores, reforçará a nossa tese, quando estiver bom simplesmente voltará ao trabalho. Ninguém notará nada.
- E o que dirá aos primos dele?
- Ora, meu caro, se quer enganar seus inimigos, comece por enganar os amigos. - sorriu sarcástico e saiu da sala para providenciar a transferência. Dohko sabia que Shion amava seus sobrinhos, mas que abriria mão até mesmo deles em prol de seu sucesso. Suspirou e levantou-se, tudo que lhe restava era seguí-lo e fazer-lhe todas as vontades.
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O ambiente claro demais feria suas retinas ainda sensíveis. Abriu mais os olhos tentando se acostumar com a claridade e adivinhar onde estava. Uma sensação estranha no abdome trouxe à memória os momentos de horror que vivera. O impacto do carro onde estava com outro veículo, a dor intransigente, a explosão, o abraço que lhe trouxe uma aura de proteção em meio à calamidade que passara. Tinha sido tão boa aquela sensação. Seria eternamente grato àquele que, pra ele, agira como um herói. Então era isso, o cômodo todo branco lhe dava a dica que estava em um hospital. A gastura estranha era a dor aplacada, razoavelmente, por algum tipo de anestesia. Mas voltava-lhe a imagem difusa de alguém sobre o seu corpo, cabelos sedosos roçando sua pele ferida como um bálsamo. O rosto, no entanto, ficava envolto em brumas de inexatidão. Não conseguiria reconhecer quem quer que fosse, embora desejasse muito descobrir quem era. Olhar em seus olhos e agradecer-lhe por tudo. Um pensamento sugeriu-lhe que talvez ele viesse visitá-lo.
Quando se acostumou à claridade, observou melhor o lugar onde estava, uma ala comprida com camas enfileiradas de enfermaria. Não gostava de hospitais, quase nunca ficava doente também, sua mãe, que lhe afagava os cabelos, sabia disso. Oh, ela estava ali! Só agora ganhava noção de sua presença. Sorriu, era sempre muito bom saber que havia alguém cuidando da gente. Nem percebeu que a mulher ainda usava a camisola de ontem, quando saiu desesperada em busca do filho que, segundo o telefonema, havia sofrido um grave acidente.
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Segurava nervosamente a xícara de café. Não era possível que Milo ousasse atrasar mais uma vez. Já eram mais de dez horas e o próprio presidente da companhia resolvera supervisionar o treinamento de hoje, por que Camus viajara pra resolver negócios na França ou algo assim, e Milo não aparecia. Aiolia tinha ligado pra celular, pra casa, mas ninguém atendia. Mataria o tratante assim que o visse. Ora essa! E todos aqueles algoritmos que eles ainda teriam que resolver para otimizar as variáveis relacionadas a produtividade da empresa? Cálculo não era o problema, não conseguiam era interpretar o que calcular! Shaka havia tentado uma aproximação, mas Shina não concordara com seu raciocínio. Marin sugerira que recomeçasse todo o levantamento, mas Afrodite quase teve um filho. Daria trabalho demais e, talvez, não resolvesse. O fato é que Milo fazia falta. Voltou à sala e encontrou Shina discutindo com o italiano sobre qualquer coisa idiota que igualmente não daria resultado algum, já estava ficando cansado daquilo.
A porta, que se abriu de repente, o assustou quebrando sua linha de pensamento. June, secretária executiva (que na verdade significava atender telefonemas de todos os executivos) apareceu na porta com o ar carregado de preocupação:
- Vim avisá-los que Milo não virá hoje, ele sofreu um acidente grave de carro, a mãe dele ligou.
A notícia que a princípio causou um silêncio pasmo na sala, afinal o atraso do grego tinha uma justificativa que ninguém queria precisar usar, logo causou o efeito adverso. Imediatamente todos queriam saber mais informações. Como ele estava? Em qual Hospital? Quando foi que aconteceu isso? Quem foi esse desgraçado que não sabe dirigir?
A pobre June que não estava preparada pra uma artilharia tão pesada de perguntas, mal balbuciou o nome do hospital, transferindo pra recepcionista de lá a responsabilidade de saciar a curiosidade deles. Afinal Milo era uma gracinha e essa era uma notícia quentíssima, tinha que contar pra Misty agora mesmo.
June: Misty querido se prepare! Quase que o mundo acabou sabia? É, te digo por que! Sabe aquele novato grego e liiindo? Então quase morreu! Sofreu um acidente de carro coitado! Parece que bateu num caminhão que explodiu depois. É, algo assim...
Misty: Oi Mime! Tá sabendo? Aquele loiro bonitão teve um acidente com uma explosão! É, esse mesmo, o grego novato. Que desperdício né? Será machucou o rostinho dele? Sério? Puxa é mesmo, até parece ataque terrorista...
Mime: Shun! Preciso te contar uma coisa, sabe o grego loiro que entrou há pouco tempo? Então, sofreu uma explosão de tipo um ataque terrorista. Que horrível né? Parece que vai sobreviver... Alguma coisa a ver com a empresa? Será que a gente tá em perigo também?
E assim, como sempre acontece, o assunto foi passando e os fatos mudando de acordo com o interlocutor. Shaka chegou a ouvir uma das versões absurdas sobre Milo ser um agente infiltrado da CIA que tinha sido sumariamente eliminado por uma explosão provocada pela facção terrorista do Hamas, realmente a criatividade humana não tinha limites...
Milo se recuperou rápido. Apesar de muito ferido seus danos não foram vitais, nem mesmo muito grave. Em menos de três semanas já estava de volta ao trabalho. Felizes por sua recuperação, seus amigos o visitaram sempre durante esse período. Shura e Minos, que estudaram com ele, os colegas de trabalho quase todos da equipe, Mu, Shaka, Afrodite, MdM (mesmo considerando que ficou meio minuto, mas ainda assim foi), Aldebaran (levou uma caipirinha escondida, disse que levantaria até defunto com aquilo, Milo tomou e quase virou um...), Shina, torcendo o nariz pra enfermaria, ficou apenas o tempo suficiente para entregá-lo umas flores e uma carta em nome da empresa, assinada por Shion.
Mas faltava ainda ele. Queria que fosse visitá-lo, claro. Talvez pudesse fazer como Shion, uma cartinha. Apenas pra dizer que se importa! Porém nada... Não esperava por aquele silêncio, se informara com os policiais, que realizaram a ocorrência e foram pedir seu depoimento sobre o acidente, e disseram-lhe que não houveram mortos. Então por que seu "salvador" não dera nenhum sinal? Deixou-o, e não se revelara. Estava decepcionado! Não sabia nem quem era a pessoa que mais desejava ver. Camus seu chefe, também não fora visitá-lo e nem mesmo mandara condolências. Julgava conhecê-lo. Enganara-se. Nem por consideração profissional o diretor de tecnologia se rebaixaria a visitar uma enfermaria de hospital. Podia, porém, estar sendo injusto. Se tinha viajado, como lhe disseram os colegas, talvez não soubesse de nada.
Agora estava ali, sentado novamente na mesa oval de madeira bem polida, discutindo novos projetos da equipe com Shion. O presidente da empresa parecia bem empolgado com seu trabalho, vira a falta que sua ausência trouxe aos seus colegas, e o escalara a tentar uma sondagem com uma indústria Chinesa. A conotação dessa atitude sugeria um posto de liderança para Milo sobre a equipe. Uma chance de ouro. O problema, para ele, era que Camus começara a negociação e viajara (não dera notícias desde então), não queria passar sobre a autoridade de ninguém.
- Não se preocupe Milo - Shion disse quando tocou no assunto com ele – Camus está cuidando de outros negócios por nós. Porém, de certa forma ele mesmo estará supervisionando tudo de longe – essas palavras trouxeram uma tristeza indistinta a Milo, Camus sabia de tudo e realmente não se preocupara – e quero que você continue isso. Pode usar o que ele já pesquisou. Está tudo na sala dele, te darei autorização para entrar e pegar o que precisar.
- Mas... na sala dele?
- Sim, lá estará tudo que precisa. – respondeu laconicamente, como que preocupado com algo e não deu chance para respostas. Já que era necessário trataria de trabalhar.
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Abriu a porta. A sala, agora iluminada, era agradável com uma mesa ampla ao centro, um armário de arquivos à esquerda tudo em mogno e um delicado arranjo de flores à direita, compunham um ambiente confortável, ideal para pensar. E possuía um bem que Milo acreditava ser maravilhoso e importantíssimo: Uma grande janela com vista para a cidade. A imagem era linda. Admirou o bom gosto de seu chefe.
Sentou-se na cadeira confortável e começou sua busca pelas gavetas, mais uma vez se viu admirado. Camus era extremamente organizado! Até mesmo os clipes ficavam em caixinhas separadas por tamanho. Observou melhor, sempre percebeu que as pessoas acabam fazendo da mesa de trabalho uma extensão da própria casa com fotos da esposa e filhos, calendários marcando aniversários, porta-lápis personalizados e recadinhos pessoais ,como a data do próximo dentista, colados na tela do computador. Não havia nada disso na sala de Camus, mas em tudo era possível ver sua personalidade, mesmo de forma inconsciente, o ruivo colocara sua marca naquele lugar. Milo sentiu-se constrangido por estar naquela sala sem o seu dono, como um intruso.
Afastou os pensamentos dispersivos e continuou seu trabalho. Até chegar a um compartimento por dentro da escrivaninha, que descobrira por acaso, ao pegar uma caneta caída. Estranhou que houvesse alguma coisa ali. Olhando por fora não era visível. Curioso, afastou a cadeira e se ajoelhou no chão mesmo, percebeu que o compartimento era uma gaveta que se abria por uma espécie de tampa, diferente das convencionais.
Abriu, e o conteúdo dela o espantou. Era um caderno. Estava confuso, era errado abrir e invadir a intimidade de uma pessoa, que a bem dizer a verdade, não conhecia a fundo. Alguém poderia entrar e pegá-lo naquele ato ilícito. Mas o pior era a estranheza de entrar em um mundo tão diferente do seu. O mundo de Camus. A curiosidade acabou vencendo todos os seus escrúpulos, e num impulso sentou-se no chão com o caderno que na realidade parecia um diário.
A capa preta antiga foi virada com cuidado, as folhas estavam amareladas pelo tempo, Ele deveria ser um adolescente quando começou a escrever aquelas linhas, mas letra o surpreendeu. Era caprichada, mas sem ser feminina, uniforme, e com aquelas voltinhas nas maiúsculas, seguia seu caminho pelo papel suavemente com elegância. Dizia-lhe o passado daquela pessoa que agora parecia ser ainda mais envolvente para se conhecer. Esquecido de seu trabalho e de tudo mais, começou a ler.
"Primeiro dia,
Hoje a professora de redação pediu para iniciarmos um diário, disse que ajudaria na escrita. É para descrever o dia, as coisas interessantes, nas palavras dela. Então não sei como começar. Não tenho nada interessante pra escrever (...)"
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O tempo. Inexorável tempo. Passava, mas estava parado. O tempo passava, mas estava em suspenso, em uma bolha que não lhe permitia a vida e nem a morte. Imaginou que talvez o purgatório fosse assim, inócuo e aflitivo. Todos os dias, dias é modo de dizer por que não conhecia nenhum instrumento de medida que poderia lhe indicar há quanto tempo estava ali, escutava vozes, provavelmente médicos, e sentia ser manipulado. Mexiam nele, aplicavam agulhas com coisas que não fazia idéia do que era, esfregavam, trocavam alguma coisa, sentia o movimento, mas não sentia vida.
Tratavam-no como um objeto que demandava manutenção, e só. Encostavam-se a ele, mas nem um momento houve um toque de carinho, ou até mesmo um toque que o reconhecia como humano. Sentia-se uma peça estragada que fora largada numa imensidão deserta do espaço-tempo. Queria viver. Queria sentir-se vivo querido por alguém. Na verdade, queria ver o sol. Sentir o sol delineando cachos dourados com duas esferas azuis lhe sorrindo. Camus desejava apenas um toque, ouvir uma palavra daquele pelo qual entregou tudo, no entanto, só havia o vazio. Ele poderia estar morto, ou talvez o considerasse um tolo. Sonhos desconexos atormentavam sua mente, com mortes ou rejeições. Seu estado o levava a uma percepção de tudo, mas que às vezes era perdida em uma escuridão densa. Estava consciente, mas estava dormindo.
Hai! Vcs acharam mesmo que eu ia matar o Camus???
Mas, qualquer coisa, me mandem seus recadinhos!
Auf Widersehen!!!
