Algumas descobertas...

Milo, na manhã de domingo totalmente à toa, estava consideravelmente lento. Na verdade lento e com sono, o que dá na mesma, sonolento já implica que esteja lento. Mas sonolento por que não conseguiu dormir à noite, óbvio. Sempre lembrava de Camus em seu semi-sono e tentava imaginar o porquê de sua presença no hospital. A enfermeira confirmou que o estado de coma do ruivo transcorria há algum tempo, nem ela sabia exatamente. Ainda agora não conseguia formular nenhuma explicação. Mas já tinha uma ação muito clara do que faria. Voltaria a visitá-lo. "Hoje mesmo, e viro aquele hospital de cabeça pra baixo até descobrir tudo direitinho!"

Tentou buscar um motivo para tamanha resolução, mas analisando sua mente não encontrou nenhum.

000

- COMO NÃO ESTÁ AQUI? Ele estava aqui ontem! – Gritava exasperado, a mocinha perfeitamente penteada da recepção o olhava com desdém, afinal todos pareciam doidos por lá, o que decerto piorava o estado dos nervos de Milo.

- Senhor, não existe essa pessoa em nossos registros, creio se tratar de um engano...

- Não há engano! Eu o vi! Estava lá – atalhou a pobre moça sem deixá-la concluir a frase.

- Pode me dizer qual o número do quarto?

- Hã...?

Jamais se lembraria simplesmente por nem mesmo ter olhado!

- Qual seu nível de parentesco com o paciente? – Perguntou com um tom de quem realmente trata com um maluco psicótico.

-... ...

Sentiu-se um imbecil. Que direito tinha de estar lá? Camus nem mesmo o olharia se não fosse para criticar! E isso ele fazia bem... Era um intruso de uma vida alheia à sua, mesmo que o ruivo estivesse num dos quartos do hospital, não tinha permissão para adentrar em seu mundo. Não existia nada que lhe concedesse essa permissão. Já bastava o diário...

Cabisbaixo e confuso deixou a moça em paz, retornou à sua casa. Seria uma tarde de domingo sem sentido e vazia.

000

"Vigésimo quarto dia, terceiro ano em que escrevo aqui.

Às vezes penso em poesia. As palavras poderiam descrever o que sinto, como um registro do que se passou em minha alma. Mas sempre que escrevo parece muito idiota. Talvez não seja capaz de ser poeta, ou talvez seja incapacidade de sentir... Muitas palavras e sentimentos passam pela minha cabeça sem que jamais sejam escritos, ainda menos dito. Transformam-se em mais um peso que me escurece por dentro até um ponto em que mesmo eu não consigo me ver. Nem me conhecer..."

000

Voltando no tempo, na manhã de sábado, pouco antes do meio dia.

- Rápido Doutor! É o 139 bloco B! Parece um princípio de parada respiratória, não sei exatamente.

O 'Doutor' atende ao chamado, verificando, porém a ficha do paciente antes de atendê-lo.

- Ora Jabu! Como é vocês esquecem de balancear os íons?! É nisso que dá confiar em enfermeiros... Uma coisa tão simples quanto receitar nutrição parenteral certa!

- Ei, não fui eu que prescrevi alimentação do 139! Foi a Anna, se quer reclamar com alguém que seja ela!

- Tirando o seu da reta né! Ouça bem, esse é um dos nossos ilustres! Se apagar vai sobrar pra todo mundo! – disse numa voz grave, à guisa de advertência. Deixou instruções, o paciente já estava estável, seria melhor voltar à sua sala e continuar a leitura interrompida. A próxima ronda seria daqui a duas horas, tinha tempo.

Já havia se habituado a tratar os pacientes daquela forma. Números. Era tudo que eles representavam para si.

A morte não era negra e a vida branca. Havia algo cinza no interlúdio entre as duas que sempre davam margens à dúvida e esperança. O 139, cujo nome lembrava um escritor, algo como Camus, era um caso típico. Em coma há quase três meses, não dava nenhum sinal de recuperação ou melhora, na verdade seu quadro tendia ao pior e não sabiam mais o que fazer com ele. A família não permitia desligar os equipamentos. Então o mantinham ali, como uma maquina velha sempre necessitada de manutenções.

000

Apesar da prisão mental na qual estava submetido, era capaz de ouvir o que acontecia em sua volta. O diálogo entre médico e enfermeiro o fez sentir a pequenez do ser diante da vida. A consciência era algo muito distante em sua cabeça forçando para voltar a reinar, o que, por enquanto, parecia impossível, e talvez inútil. O corpo se enfraquecia, e o desejo de desistir elevava-se exponencialmente e diretamente proporcional à solidão de seu abandono.

Desistiria. Ninguém, ninguém nunca aparecia.

Nunca vinha, e mesmo assim insistia em esperar.

Mas não vinham, e como sempre, o deixavam.

A mente, se resignando à derrota, quis iniciar o mergulho na inexatidão do infinito.

Camus já não lutaria.

Até abrirem a porta do quarto.

Pela indecisão dos passos não era um enfermeiro ou coisa parecida, eles sempre sabiam exatamente o que fazer, mas a presença que sentia era, inesperadamente, um pouco tímida. Aproximou-se lentamente de si e tocou-lhe. Não com fria impessoalidade, porém com carinho, o conhecia com certeza, não saberia, no entanto, dizer quem era. Mas mesmo assim o contato tão terno o relaxara e lhe deu uma afirmação de ser esperado por alguém, talvez... Amado por alguém. Esperança... Preenchendo seu corpo de forma que já nem se lembrava. Parecia bobo e susceptível! Apenas um toque transformar tanto seu coração! Mas para quem se afoga em escuridão um toque é capaz de salvar. Um milagre através de um gesto!

A mão segurando a sua intensamente, os dedos em seus cabelos, sentir-se observado, ações que lhe ascendiam sensações há muito não vividas.

Atenção e carinho. Não estava mais sozinho. E não! Não iria desistir. Talvez valesse a pena esperar um pouco mais e enfrentar.

000

Segundas-feiras têm a característica de serem extremamente inóspitas. Mesmo assim dirigiu-se ao trabalho, agora motorizado! Não, não, carro seria demais, pelo menos por agora, mas nada que uma moto não faça! E, satisfeitíssimo com sua máquina, embora ainda encucado pela história de Camus, desfilou pelas ruas semi-despertas até o grande prédio que tanto lhe fascinou em seu primeiro dia.

Já não era assustador, sentia-se parte dele. A rotina, sem mesmice, havia incorporado sua pele, era como se chegasse ao seu território, e a caça estava à sua espera. Sim, estava bem mais seguro, confiava em seu próprio trabalho, e os números não negavam sua competência.

Adentrando o edifício, Milo notou um burburinho incomum. A curiosidade atiçou seus ouvidos, mas não poderia verificar os porquês naquele momento, talvez na hora do café, realizaria algo importante antes.

Seguiu pelo corredor de piso granito acinzentado e paredes em mármore branco até a porta de mogno e, entrando intempestivamente, iria repor no lugar secreto o pequeno diário cuidadosamente guardado em sua pasta, porém...

- Pelo visto parece impossível que você algum dia aprenda a bater em portas.

"CAMUS!"?

Sobressaltou-se extraordinariamente, tanto pela visão à sua frente quanto pela voz... Aquela voz!!!

Sua mente nublou por um momento, teve ganas de pular no pescoço de Camus e abraçá-lo bem apertado felicitando-o por sua recuperação. Era esse o motivo de seu sumiço, ele havia se recuperado! No entanto, a distância que o comportamento do ruivo impunha era densa demais para que Milo pudesse transpor. Não pode, porém, evitar a surpresa que sentia.

- Camus!!! – "Ai que idiota! Pareço aquele povo de novela mexicana! Carlos Eduardo! Você voltou!!! Aff... Mas ok, vamos esclarecer um ponto aqui..." – Como você está? Está sentindo alguma coisa?

- Por que o interesse? – disse sem se virar para o moço, olhos parados na tela do computador, era ele que gostaria de saber se estava tudo bem com o loiro...

- É que... você... estava... – Havia alguma coisa muito errada naquela conversa.

- Viajando! Retornei ontem, tenho boas notícias, faremos uma reunião mais tarde para discutirmos os resultados das negociações que realizei. Foi pra isso que você veio, não é?

- Ah, foi... – Milo, embaraçado, ficou abismado com a declaração do outro. Será que tinha se enganado? Camus estava de pé e parecia bem. Alguém recentemente saído do coma estaria assim, tão disposto? Como nada respondia suas perguntas e o outro ainda agia arrogantemente superior, era hora de voltar a representar seu papel, o francês mantinha o olhar duro e ainda era "O Chefe". Parecia não saber de nada. Ou talvez não fosse mesmo ele no hospital... Não! Enganar-se a este ponto? Impossível! Tinha perfeitos olhos azuis no meio da cara! E não eram apenas de enfeites (embora funcionassem otimamente pra isso também).

- Milo? Há algo mais que posso fazer por você?

"Tão impessoal! Como ele consegue? Claro que tem seu besta! Diga o que aconteceu!!!" Os pensamentos o absorviam mais do que percebia. O tempo passava e em seu rosto era visível o embaraço que sentia da situação.

- Milo? Milo! Você está bem? – Milo, aparentemente voltando à realidade, observou os olhos à sua frente profundamente. Camus não estava tão melhor assim. Havia tanto ou mais confusão em sua mente, embora a camuflagem de seriedade fosse grossa o suficiente para disfarçar. Mas foi possível ver! Ele estava perdido! Se continuasse a fitar a imensidão castanha o que aconteceria? Acharia sua resposta?

Camus, por seu lado, respondia altivamente àquela inescrupulosa pesquisa de sua pessoa. Compreendia que o moço fosse querer saber o que aconteceu com ele, apesar das boas desculpas do tio, a curiosidade de todos estava bem acurada. Mas eles não tinham o direito. Milo não tinha o direito. Ninguém tinha o direito de saber, não se importavam realmente com ele.

A curiosidade vazia de apenas quererem uma boa estória para contar no almoço não era válida. Seu tio mentira sobre o acontecido e todos acreditaram. Nem mesmo tentaram ligar pra confirmarem. Não tentaram falar consigo. A culpa em parte era sua também, não era lá muito comunicativo, ainda assim esperava mais carinho de alguns... Como não recebera, a ninguém era permitido acesso à sua vida real, ao seu verdadeiro eu.

Na empresa seria apenas o funcionário, com a família seria o sobrinho, o primo, em cada caso representaria exatamente o que achavam que era, sem que nunca o conhecessem, sem jamais alcançarem sua essência. Não havia problema, se habituara a solidão. Tinha bons livros. ()

Milo compreendia cada vez menos, Camus o fitava de volta com revolta. Antes era apenas desprezo, que, aliás, distribuía a todos, depois na fatídica festa onde o conversara pela última vez, vira um lado diferente do ruivo. As suas leituras do diário lhe mostraram alguém meigo e meio carente. Nada parecido com a expressão dura que via.

Os devaneios transpuseram os limites de pensamento se tornando ações alheias às superficialidades de Milo, encontrando os anseios mais profundos de fazerem suas mãos tocarem o rosto bonito do homem que de várias formas ocupara sua mente. Nada o faria parar, nenhum conceito ou preconceito o perturbaria. Havia apenas o desejo e cedendo totalmente a esse impulso, o loiro inclinou-se sobre a mesa segurando com as mãos as faces de Camus forçando-o a se aproximar, os olhos perscrutando seu interior. Um toque de carinho.

Camus, parecendo correlacionar algo reagiu com o olhar surpreso.

Milo escorrendo os dedos pela delicadeza daqueles fios suspeitou.

Uma suspeita tão grandiosa que seu peito apertou e lágrimas quiseram brotar. Se fosse verdade... Naquela noite alguém o ajudou, mas ninguém reclamou o título, Camus desapareceu, disseram que viajando, mas estava em um hospital... Seria grande demais, perfeito demais...

Transparecendo a emoção que sentia em cada traço de sua fisionomia sorriu.

Enfim descobrira. Havia perguntas que possuíam respostas.

- Bem vindo de volta, Camus! – As palavras quentes e límpidas de sinceridade.

Camus sobressaltou-se, alguma coisa bem fina e aguda penetrou seu coração e talvez nunca mais saísse de lá. Por ser deliciosa e perigosa. Mesmo temendo, não se opôs quando Milo tocou seus lábios, as íris azuis puras, confiantes e ternas buscaram o profundo mar vermelho revolto de sentimentos. Calando suas dúvidas, inconsistências e mágoas num beijo.

Valera a pena.

Enquanto sentia as línguas se tocarem, pesava cada dor, cada dia vazio, cada ferida com a sensação que despontava em si. Era maior, seria sempre maior e fazia valer cada sacrifício com a possibilidade de que amava e era amado.

- Estou de volta, Milo...

000

PS.: Os dias aqui devem durar dois meses... deve ser por isso que estou postando esse capítulo só agora! XD

Um beijão aos que leram e mandaram reviews!

O próximo capítulo vai sair mais rápido, a fic está chegando aos finalmentes e consegui desenrolar minha cabeça!

XD