Capítulo Três – Guerreiros de Cymru

O sol já havia se posto fazia horas, mas não podiam parar. Não podiam!

Os cavalos estavam exaustos, viajavam desde a Cornualha, sem repouso, no intuito de auxiliar a contenção dos piratas nórdicos. Há três dias cavalgavam sem descansos que não fossem as horas de sono. Nenhuma parada para alimentação, o faziam sobre as montarias, ou asseio, que não havia. Não podiam dar-se a esse luxo. Os vikings não iriam esperar...

Há pouco mais de três dias Lorde Hywel, e seus sábios, já tinha conhecimento da invasão viking e mandava um grande contingente de soldados e bruxos galeses até o alvo do ataque. Há pouco mais de três dias toda Cymru já sabia. Lorde Ethelred II da Britânia não dava ouvidos aos da Antiga Sabedoria e, como sempre, estava despreparado.

O agrupamento lançou-se mais à frente, podiam ver o clarão dos incêndios contra o céu noturno. Ouviam o grito dos homens, o pranto das mulheres e crianças. Entre a estrada de terra e a entrada do povoado, guerreiros de cabelos em longas tranças loiras arrastavam os que tentavam desesperadamente fugir.

Grande parte dos homens nórdicos voltou-se para os cavalos, o barulho causado por seus cascos em marcha atraía. Pareciam ameaçadores e gigantescos, cobertos de sangue e fuligem, e mesmo assim os cavaleiros galeses não recuaram, não diminuíram sua marcha.

Godric pôde ver o brilho assassino nos olhos de um homem enorme, com uma vistosa pele de lobo envolvendo os ombros, rodando seu martelo várias vezes acima da cabeça. Esperava sua montaria avançar para lançar a arma. E ele não parou. Nenhum dos galeses parou.

Viu tudo ocorrer numa funesta câmara lenta. Berzerkers corriam em sua direção berrando gritos de guerra que pareciam canções do inferno. Os galeses avançavam com armas em riste. Alguns habitantes conseguiam, levados pelo medo ou não, correr descontroladamente adentrando nos brejos, cercados pela noite. Outros estavam paralisados, vulneráveis. E como um estopim, uma rajada de luz vermelho vivo clareou o campo de batalha. Dois berzerkers caíram desacordados.

Então, tudo tomou uma velocidade alucinante para Godric, não conseguia raciocinar. Apenas avançava com uma única idéia fixa em sua mente: proteger as pessoas daquele povoado. Gritava azarações e feitiços, a varinha não parava de faiscar. Sua égua escoiceava e passava por sobre os corpos dos inimigos mortos.

Adentrou cada vez mais pelas estreitas ruas entre as casas da periferia da aldeia. Divisou dois de seus companheiros empenhados em extinguir incêndios. Como uma onda os galeses tomaram as ruelas e seguiram na direção do mar, arrastando a ameaça viking de encontro à linha d'água. Nenhum dos nórdicos fazia menção de fugir, todos combatiam ferozmente, para eles era vencer ou morrer lutando. Não haveria honra em retornar derrotado.

A montaria Shire avançou sobre a areia fofa da praia. Godric derrubava inimigo a inimigo. Viu pelo canto dos olhos uma pele avermelhada passando ao seu lado, um bruxo viking, de enorme barba prateada e trançada, apontava a varinha em sua direção. Godric nem mesmo virou Renny à ameaça, bradou um feitiço de proteção e em seguida atacou o oponente, desarmando-o e derrubando-o inconsciente.

Então, nesse momento em que o inimigo tomba e o soldado passa os olhos pela extensão do campo de batalha, Godric viu uma garota de longos cabelos negros sendo arrastada de forma selvagem por um guerreiro. Num momento seus olhos se cruzaram e ele pôde sentir a súplica emanando da mulher.

Correu pela beira-mar e parou Renny à frente das pedras por onde a garota era levada. Como o eqüino não seria de grande valia em terreno rochoso, desmontou e seguiu a pé na direção do inimigo. Galgando a elevação, divisou várias pequenas embarcações nas quais os vikings teriam chegado ao povoado. Carregavam poucas pessoas amarradas e desacordadas, eram todos seqüestrados para engrossar o comércio de escravos.

Ouviu mais um grito e desembainhou a espada. Com a outra mão manejou a varinha emitindo uma rajada de luz vermelha na direção do inimigo. Este, habilmente, desviou-se do ataque e partiu para cima de Godric, empurrando a garota na direção das rochas.

Godric proferiu novamente feitiços e azarações, partindo para cima do inimigo em seguida. Com uma espada curta, o guerreiro desviou o ataque de Godric, desferindo uma seqüência enlouquecida de golpes. Na outra mão, o viking ostentava seu enorme martelo de guerra. A garota ferida e traumatizada encostava-se à um monte de rochas, incapaz de fugir. Seus olhos estavam arregalados e gritava por seu salvador. Godric se desviava habilmente.

O viking sangrava por inúmeros cortes em sua pele. Godric arfava exausto. Num momento em que sabia ser decisivo elevou a espada. O cabo cravejado de rubis vermelhos cintilou ao movimento. O inimigo percebendo o andamento da batalha lançou-se feroz. Por um segundo tudo parou. Antes que conseguisse proferir uma encantação, a garota jogou-se sobre o braço do atacante tentando conter-lhe o avanço. O viking irado girou o braço da espada sobre a menina, que perdeu as forças e caiu lentamente. Pela boca irada de Godric saiu a pior maldição que qualquer bruxo poderia jogar sobre outro ser vivente. Nunca usava esse feitiço. Era cruel demais, covarde demais, sem qualquer possibilidade de revide, de defesa. Nunca. Mas naquele momento Godric estava dominado pela insanidade. Após uma luz incandescer esverdeada, o homem caiu num baque surdo sobre as rochas. Os olhos vidrados, a boca aberta numa expressão horrenda.

A garota respirava com dificuldade e muito rápido. O sangue jorrava pela ferida aberta em sua alva pele. Roupas rasgadas. Segurava uma fina corrente dourada em seu pescoço. Godric abaixou-se ao seu lado, ao tentar proferir um feitiço de cura, a garota abriu os lábios e deles saiu uma única palavra, a última.

– Salazar...

Godric gritou. Um brado de fúria e ressentimento.

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A cidade estava destruída. Os inimigos haviam sido rechaçados e os cativos, libertos. Muitos haviam morrido, muitos andavam pelos brejos e jamais voltariam, os poucos que sobreviveram estavam feridos tanto no corpo quanto na alma. Não mais que uma dúzia.

Godric andava lentamente por entre os leitos. O cordão dourado da garota estava gelado contra seu peito, por sobre a túnica de linho. Um movimento leve chamou-lhe a atenção, um dos feridos voltava à consciência. Godric seguiu para o lado do rapaz e o auxiliou, estava com alguns hematomas, mas nada com o que se preocupar.

– Água...

Godric fez um sinal para um de seus companheiros e pediu água.

– Calma, rapaz. Não se esforce tanto.

Ele virou-lhe o rosto e uma dor lancinante percorreu o corpo de Godric. Aqueles olhos... os cabelos negros...

– Não o deixe se mover tanto, Godric. Encontramos ele com a coluna esmigalhada na beira da praia, mas ainda estava vivo. – disse-lhe aos sussurros seu amigo.

Godric assentiu e pegou o recipiente de barro com água fria trazido pelo cavaleiro galês. Era tão parecido com ela...

– Como é seu nome rapaz?

O enfermo olhou a frente por alguns segundos e fechou, sob grande pressão, seus olhos.

– Não me lembro... – falou ao largar a cabeça sobre o leito. – Lembro-me apenas de fogo e sangue... fogo... fumaça e sangue... Nada mais.

O rapaz virava-se no leito. Godric decidiu deixá-lo.

Salazar... seria esse seu nome? Ninguém, nos dois dias em que estava desacordado, veio reclamá-lo como seu parente. Teria ele perdido toda sua família? Seria a garota sua única família? Ponderou e achou melhor não revelar esta informação por enquanto. Seria por demais doloroso lembrar-se de quem era para, descobrir em seguida, tudo o que perdera.

No dia em que se seguiu, Godric não se afastou mais que poucos metros do leito do rapaz que deveria ser Salazar. Notícias chegavam rapidamente. Nas Terras Altas os nórdicos estabeleceram bases, mas não ousavam tomar de assalto o interior, mantinham-se no litoral. Os povos escotos eram fortes e orgulhosos e seu rei não abriria mão de mais nenhum punhado de terra, não após tantos sacrifícios para a união de todos os povos das Terras Altas sob um único soberano. Os galeses sabiam que eles tencionavam conquistar as terras de Ethelred II, que perdia sucessivamente território a ponto de preocupar Lorde Hywel Dda da Cornualha com a possibilidade de chegada às portas de Cymru.

Salazar mostrava-se interessado pelas Terras Altas, queria se ver livre da ameaça viking, e nada lhe pareceu mais propício do que rumar para um reino que não permitia seus avanços.

Ao fim do segundo dia, Godric sentou-se ao lado do rapaz de cabelos negros.

– Godric, já me sinto bem. Acho que não fui lesionado seriamente, estou me sentindo realmente bem... fisicamente.

Godric não estava certo do rumo que a conversa estava seguindo, mas podia fazer uma idéia. O rapaz respirou fundo e continuou.

– Você é a única pessoa que me é familiar, não conheço mais nenhum dos que me cercam estirados e desacordados sobre esses leitos... Não reconheço nada nesta vila destruída... Então venho falar a você. Vou seguir para a terra dos povos do norte. Quero me ver livre desse território de guerra. Quero seguir para um reino forte, que proteja seu povo...

Godric não teve coragem de negar. Tinha vontade de chorar pelo rapaz poucos anos mais novo que ele. Levou a mão ao peito e sentiu o medalhão contra a carne. Como negar a busca pela segurança àquele rapaz que perdera tudo? E como deixá-lo seguir solitário, quando não fora capaz de salvar a única pessoa daquele povoado destruído que poderia ampará-lo?


Espero que tenham gostado do novo capítulo!

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Gostaria de direcionar agradecimentos especiais a Aerton Zambelli e Manu Black por, além de acompanharem a fic, postarem as reviews!! MUITO OBRIGADA!!

Duachais Seneschais


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