Ouviu-se uma chicotada. Depois outra. E outra ainda.
As suas mãos fecharam-se num punho apertado. Fechou os olhos, apertando-os com força. Não! Não aguentaria aquilo durante muito mais tempo. Apenas o barulho das chicotadas, os gritos estavam ausentes e depois encontrava-a sempre no mesmo estado: de olhos semicerrados e quase sem força, perto da inconsciência.
A pesada porta de madeira escura abriu-se. O seu ranger ecoou pelos calabouços. E Murtagh entrou para cumprir a sua tarefa, a tarefa que lhe causava mais dor do que as punições recebidas perante os seus fracassos. E lá estava ela, no mesmo estado lastimável de sempre.
Lhian estava de costas para si. O seu corpo estava um pouco curvado, numa demonstração de fraqueza. As suas mãos estavam atadas ao tronco de madeira, um pouco acima da sua cabeça. A sua respiração era horrivelmente pesada e rouca.
Contornou o tronco para lhe poder ver a face. A sua cabeça estava descaída por isso, colocando delicadamente a sua mão sob o queixo da elfo, erguendo-lhe o rosto.
- Lhian…
- Tira-me daqui, por favor Murtagh! – suplicou Lhian num sussurro rouco, os seus olhos semicerrados e a sua face contorcida de dor.
Desamarrou as cordas que prendiam os pulsos da jovem elfo e imediatamente a segurou ao se aperceber que ela não tinha forças para se manter de pé. Pegou nela delicadamente e avançou em direcção à cela húmida onde ela dormia. Tentava não olhar para Lhian para não acentuar a dor que se abatia sobre o sue coração. Era demasiado doloroso vê-la assim.
Tinham-se passado duas semanas desde que a vira pela primeira vez. Ainda se lembrava da profundidade do seu olhar brilhante de safira, olhar que gradualmente ia perdendo o seu brilho. A força que encontrara nela ainda permanecia e a prova disso era o facto de não soltar um único grito durante as torturas e aguentar o sofrimento sem desvendar o segredo do pergaminho escondido.
Durante essas duas semanas aproximara-se mais da elfo. Era frequente escapar-se para a cela onde ela dormia. Falavam bastante, acabavam por apoiar-se mutuamente. Muitas vezes Murtagh curava-lhe alguns ferimentos, rejeitando os avisos de Lhian de que ele estava a arriscar-se demais.
Acabou por começar a confiar nela todos os seus segredos, os seus desabafos. E ela ouvia-o e aconselhava-o. Não desistira graças a ela, mantinha-se de cabeça erguida graças a ela. Iria lutar. Iria lutar pela sua liberdade e pela liberdade de Alagaësia. E durante esse tempo com ela, um outro sentimento crescera…
Atreveu-se a olhar para ela, aninhada no seu peito, quase a desfalecer.
- Não aguento mais vê-la neste estado. – confidenciou a Thorn deixando todo o seu desespero fluir para que o seu Dragão o percebesse.
- Ela é forte. – relembrou-lhe Thorn – Ela vai aguentar. Teve força para guardar o segredo durante todo este tempo, apesar das torturas e continuará a ter para sobreviver.
Abriu a porta de cela com uma simples palavra da Língua Antiga e deitou a elfo no aglomerado de palha sob uma coberta, existentes ao fundo. Olhou-a durante algum tempo e acariciou-lhe a face.
- Descansa. – e antes de abandonar a cela, despediu-se com um terno beijo na teste de Lhian.
Mais dois dias. Mais torturas.
Caminhava lentamente pelo escuro e sombrio corredor. A porta em frente abriu-se instantaneamente, como sempre! Entrou. O tremor de sempre, o arrepio pela espinha. A custo curvou-se diante do tirano rei. A imagem de Lhian, deitada sobre a manta, fraca assaltou-lhe a mente. Um quase inaudível gemido de frustração e dor escapou dos seus lábios.
- Controla-te Murtagh! – repreendeu-o Thorn.
- Algo que te incomoda, Murtagh? – perguntou Galbatorix com um sorriso escárnio.
- Não, Vossa Majestade! – respondeu o Cavaleiro, desviando o olhar do rei.
- Ora então… Quero apenas dar-te uma notícia. – Murtagh permitiu-se olhar para o rei, vendo o seu sorriso de desdém e ironia, que não traziam um bom presságio. Arrepiou-se. Galbatorix prosseguiu – De nada me serve a pequena e jovem elfo que temos neste momento por baixo de nós, assim muda que nem um bicho de mato! – a expressão facial endureceu e Galbatorix deixou transparecer toda a sua frieza na sua voz – Se aquela criatura não quer revelar onde está o pergaminho, que assim seja e que morra com o seu segredo!
- Que… que morra? Como assim? – perguntou Murtagh. O seu corpo tremia, a sua voz saiu mais alto que o habitual. Estaria o rei a dizer que…
- Neste momento, a jovem elfo e guerreira de Ellesméra, Lhian, está a definhar na sua cela. Morrendo aos poucos em pura agonia. Tal como todos os traidores ao império devem morrer após a tortura.
Murtagh sentiu como se o mundo lhe fugisse sob os pés. Os seus olhos arregalaram-se. A ira fluiu rapidamente pelo seu corpo e instintivamente a sua mão serrou-se em volta de punho de Zar'roc. Viu-se obrigado a conter o impulso de desferir um golpe sobre Galbatorix. Isso não ajudaria em nada, apenas agravaria a situação.
- Podes ir Murtagh. Era apenas isto que te queria dizer. Festejaremos a eliminação de mais um inimigo ao jantar! - e com um sorriso irónico, assinalando a sua vitória, fez sinal para que Murtagh abandona-se o salão.
Curvando um pouco a cabeça e engolindo a raiva e a dor, saiu apressadamente do salão. A porta fechou-se e ele correu o mais que pode. Correu em direcção à prisão subterrânea, em direcção à jovem elfo que morria em agonia.
Passou como uma flecha pelos dois guardas que montavam vigilância perto da sala. Ouviu inquirirem-no sobre o seu destino e o motivo porque ali fora. Ele remeteu-se ao silêncio e continuou a correr. Mas os guardas seguiram-no e as perguntas eram cada vez mais.
- Calem-se! – acabou por gritar ao parar perto da porta da cela. Só então se apercebeu que as lágrimas já lhe corriam livremente pela face, o que serviu para assustar ainda mais os guardas. – Desapareçam daqui. Já!
Cada vez mais assustados, os guardas obedeceram correndo para longe.
As palavras na Língua Antiga saíram de forma alta e apressada da sua boa e a porta da cela abriu-se diante si. E pode vê-la. Os seus cabelos negros espalhados pelo chão frio e rugoso, os seus olhos de misterioso e cativante azul noite ocultos pelas pálpebras cerradas. Gemidos de dor e agonia saiam da sua boca entreaberta.
Deixando as lágrimas correram livremente, sem fazer o menor esforço para as conter, entrou na cela. Ajoelhando-se ao lado da elfo, tomou-a nos seus braços.
- Lhian! – chamou-a com a voz rouca pelo silencioso choro.
- Murtagh… - sussurrou ela de forma fraca, puxado depois desesperadamente por ar. – Eu… Consigo senti-lo… A correr pelas minhas veias.
- O quê? O que é que está corres pelas tuas veias?
- Ve… Veneno.
- Mas como? – perguntou de forma desesperada, abraçando-a fortemente contra o seu peito. – Apesar de não conseguir perceber como o fazias, sobreviveste todo este tempo sem tocar na água e comida que eles te traziam. Como podes ter sido envenenada?
- Esta manhã, quando fui torturada… - parou para recuperar o folgo. As forças já eram tão poucas… Quase inexistentes! - A única explicação é a possibilidade de mo terem introduzido num dos cortes.
- Não! Sem ti isto não tem sentido, é por ti que eu luto! És tu que me dás força para continuar, não me podes abandonar agora! – berrou Murtagh, apertando-a cada vez mais contra si, como que na esperança de assim poder manter a alma de Lhian presa ao corpo.
Com a mão trémula, Lhian tentou alcançar a base do seu pescoço, oculta pelo sedoso cabelo ébano. Murtagh afastou-lhe delicadamente a mão e arrumou o seu cabelo para um dos lados. O espanto percorreu o seu corpo ao vislumbrar o fecho de uma corrente de prata. Abriu-o e puxou o colar. Observou-o: um fio de prata do qual pendia uma pequena safira em forma de gota.
- Eles não viram o colar. – explicou Lhian. A sua voz saiu num sussurro. – Durante todo este tempo… Abasteci-me da energia que tinha na pedra. Quero que fiques com ele, uma recordação para que te lembres que estarei sempre do teu lado, a apoiar-te… Aconteça o que acontecer!
Murtagh fechou a mão, encerrando o colar num punho. Aproximou a sua face da da elfo, encostando as suas testas e deixando os seus lábios perigosamente próximos. Respirou fundo, tentando ganhar coragem para dizer aquilo que à muito lhe ia na alma. Ouve um momento de silêncio.
- Amo-te! – sussurrou por fim. E sem esperar uma reacção por parte de Lhian, beijou-a suavemente, com todo o amor e carinho que por ela nutria.
Assim que os seus lábios se separaram, com um sorriso nos lábios, Lhian encostou a sua cabeça ao ombro do Cavaleiro.
- Eu… Também te amo. – sussurrou ela fracamente.
Um pequeno sorriso apoderou-se dos lábios. Afrouxou um pouco o abraço em que envolvia Lhian e deixou a sua cabeça cair sobre a dela. Acariciou-lhe os cabelos e…
Sentiu o corpo dela amolecer, a pele perdeu o pouco calor que ainda libertava.
Um gemido de agonia escapou dos lábios de Murtagh e ele deixou-se estar ali, entregue ao seu choro silencioso, abraçando o corpo sem vida da elfo que amava.
***
O sol ponha-se preguiçosamente no horizonte.
Sentado numa pedra de um planalto qualquer, Murtagh observava serenamente a paisagem, entregue às poucas recordações que tinha da jovem elfo. Lhian…
Sentiu a respiração quente de Thorn nas suas costas.
- Murtagh…
- Eu vou lutar! – interrompeu o jovem Dragão. Abriu o punho cerrado e observou atentamente o colar de Lhian, que o acompanhava desde a sua morte. – Por ela eu continuarei a lutar. A lutar pela minha liberdade e pela liberdade de Alagaësia. A morte dela não será em vão e ela será lembrada pela sua bravura e corage
