II. Voimakas
We used to swim the same moonlight waters, oceans away from the wakeful day;
My fall will be for you, my love will be in you; if you be the one to love me I'll live forever.
"Olha lá!"
"Que tá havendo?"
As crianças aglomeravam-se na saída da pequena escola, curiosas, em torno dos três meninos que se encaravam e gritavam desafios e desaforos furiosos um para o outro, os agasalhos já sujos de pó e terra. Era começo do inverno, e a primeira neve ainda não havia caído, deixando a terra dura e seca.
"Aulis!"
O menino de cabelos escuros e bem curtos virou a cabeça para trás, piscando os olhos cinzentos contra o sol. Acima da turba barulhenta de crianças, o rosto de pai Jaakko olhava para ele com desaprovação. Largou a frente do agasalho do colega, espanou desajeitadamente a sujeira da roupa e esfregou o queixo com a manga, tirando o resto da terra. E caminhou na direção do velho, cabeça baixa, enquanto as outras crianças se afastavam. Lembrou-se a tempo que hoje ia sozinho para casa com ele; Vieno havia avisado que não iria com eles. Ensaiar com o professor, era isso? De qualquer jeito, significava que ia levar a bronca sozinho.
"... Sim, Pai?"
"Diga, Aulis, o que foi isso?" ele cruzou os braços, severo.
"... e-eu... desculpe, Pai." o menino olhou para o chão, como se a grama seca e a terra esturricada se tornassem subitamente muito interessantes. "N... não vou fazer de novo, prometo."
"Meu pequeno. Você é um menino tão bonzinho, tão querido." o velho abaixou-se, segurou-lhe os ombros, exasperado. "Não é a primeira vez que briga com os outros. Por que, criança? Por que faz essas coisas com seus colegas?"
"Desculpe, Pai... é que eles... eles estavam falando de mãe Rauha, de novo. Falaram coisas muito ruins dela, e eu... eu fiquei tão bravo. D-desculpe..." Aulis segurou o choro de raiva o melhor que conseguiu, mordendo o lábio com força e desviando o olhar.
Jaakko suspirou longamente; sabia que Rauha, mesmo falecida há anos, ainda era alvo de más línguas. Ele mesmo não havia concordado em silêncio com seu isolamento? Mas nada justificava aquela maldade, falar dela diante das crianças. Segurou o queixo do menino para fazê-lo olhar para cima. "Olhe para mim, Aulis. Olhe. Está certo que seus colegas falaram coisas que não deveriam. Coisas ruins, que machucam. Mas a culpa não é deles. Nenhum deles poderia pensar aquilo sozinho, sabe? Foram ensinados assim pelos pais. E os pais deles ouviram de outras pessoas, e essas pessoas de outras pessoas, e histórias contadas assim sempre terminam diferentes do que eram no começo. Mais tarde vão saber a verdade, e vão se lembrar do que disseram, e saberão que estavam errados. Mas por enquanto, pequeno, apenas perdoe. Não é culpa deles. Entendeu?"
Aulis fungou, esfregou os olhos e pensou um pouco, muito sério, nas palavras do velho. E seu rosto se iluminou de repente com um sorriso. "Entendi, Pai! Eles... só não sabem, não é? Então... eu preciso pedir desculpas. É isso! Vou falar com eles!"
Jaakko levantou-se a algum custo, sentindo os joelhos reclamarem, e observou o garoto se afastar e ir conversar com os colegas. Pensar que, apenas oito anos atrás, ele fora a favor de se livrarem das crianças!... Na pequena vila, agora, ninguém amava os filhos de Rauha tanto quanto ele. Era consenso que se havia um pai para os pequenos órfãos, esse pai era ele; mesmo não tendo elos próximos de sangue, os laços de afeto forjados com o tempo e o longo contato haviam se provado tão ou mais fortes quanto.
"Pronto, Pai!" a voz de Aulis interrompeu seus devaneios. Agora o sorridente e animado Aulis de sempre, a pequena mochila de couro cru às costas, olhando para ele com sua expressão alegre. "Falei que ia fazer biscoitos e trazer para dividir na aula. E prometo que não vou mais brigar, Pai!"
Jaakko riu, sua mão bagunçando os cabelos curtos do menino num gesto carinhoso. "Muito bem, meu pequeno. Vamos?"
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Conforme caminhavam seguindo a trilha de terra, o velho pensava, preocupado. Aulis era certamente um bom garoto, educado e amigável, empenhado em ser prestativo, dócil como poucos de sua idade. Mas seu temperamento já volúvel vinha piorando nos últimos tempos, e incidentes assim – pelos mais diversos motivos – se tornavam cada vez mais comuns, apesar de sua personalidade normalmente tão amável. Toda aquela disposição deveria definitivamente ser encaminhada para alguma coisa que fosse capaz de acalmá-lo e refrear sua impetuosidade. E ele havia pensado em algo; mas seria aquela realmente uma boa opção? Muitos outros, mais velhos e experientes que ele, haviam tentado e desistido. Tinha que...
"Pai?" a voz de Aulis interrompeu novamente seus pensamentos. "Aonde estamos indo? Este não é o caminho para casa, é?"
"Não." respondeu Jaakko. "Tem uma pessoa que quero que conheça – estamos indo visitá-la."
Aulis olhou para a frente e para cima, acompanhando a trilha que entrava na floresta e subia a montanha. Não que tivesse medo da floresta ou preguiça de caminhar; mas estava agora bastante curioso. "Quem é ela, Pai?"
"Uma... velha conhecida minha." esquivou-se o velho, continuando a caminhar. Pensou um pouco, teve uma idéia e prosseguiu. "Aulis. Lembra-se de quando Alli adoeceu e aquele rapaz, Taavi, veio até nossa casa cuidar dela? Naquele dia, você disse que queria se tornar como ele quando crescesse. Por que?"
"Eh?" Aulis parou um pouco também, lembrando-se do jovem curandeiro e seus modos agradáveis, depois sorriu. Sincero, cândido. Inocente. "Para poder ajudar, Pai. Sei que não consigo evitar de machucar as pessoas, mesmo prestando atenção e tentando. Então quero poder consertar as coisas, curar as dores e as doenças dos outros, em vez de só poder pedir desculpas quando machucar alguém. E... não é porque não podemos evitar fazer coisas ruins que vamos cruzar os braços e nem tentar mudar as coisas, né?" pausa. "Acho que... todos nós somos especiais, cada um. Todos nós temos que tentar mudar. Tornar o mundo melhor, um lugar mais bonito. E eu gosto de ajudar os outros. Gosto de ver eles sorrindo. Fico... muito feliz em saber que pude fazer uma coisa boa para eles."
Jaakko sorriu, agora mais certo; orgulhoso, por que não? "... É claro."
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A casinha, empoleirada no penhasco e coberta de palha e pedras, era uma visão melancólica, quase assustadora. Uma hortinha de ervas variadas, plantadas e cuidadas com esmero, cobria um pequeno círculo ao redor da construção, deixando um estreito caminho calçado de minúsculas pedras até a porta de entrada. Jaakko caminhou até ela e bateu de leve, três vezes. Demorou alguns minutos até que alguém entreabrisse a porta, projetando um olhar desconfiado sobre os dois visitantes; pouco depois saiu por ela uma velha, curvada e vestida de um preto de noite, que estreitou os olhos para o homem numa expressão pouco amigável.
"Saarijärvi. O que faz aqui?"
"Kielo." ele sorriu, com um aceno de cabeça à guisa de cumprimento. "Como está?"
"Tão bem ou tão mal quanto permitem estes ossos, e os deuses. O que o traz aqui? Você não é de fazer visitas; ou a idade mexeu com sua cabeça velha?"
"Apenas queria que conhecesse uma pessoa, Kielo, nada de mais." Jaakko parecia acostumado à hostilidade da senhora; e empurrou o pequeno, que se escondera atrás dele, um pouco para a frente. "Este é Aulis Ilmavalta. Diga olá para ela, pequeno."
Kielo baixou os olhos míopes para o menino, examinando-o e reconhecendo-o, adivinhando a intenção do outro velho. "... não, é pequeno demais, Saarijärvi. Os maiores que ele já são difíceis. Não tenho mais paciência para os jovens. Fazem muito barulho, pouco trabalho, e não querem aprender. Taavi foi o primeiro, Satu foi a segunda, mas só os dois conseguiram. Dos outros, nenhum prestou."
"Não este, Kielo. Pode ser pequeno e jovem, mas seu coração é maior que o de muitos. E ele tem vontade de aprender, acredite, e um grande futuro; é um dos filhos das estrelas, afinal. Pode até ocupar seu lugar... no futuro, talvez." e segurou os ombros de Aulis com firmeza, transmitindo sua confiança. Viu a expressão no rosto dela, e sorriu consigo mesmo: acertara em cheio.
Ela ponderou longamente, lembrando-se de sua longa lista de infelizes aprendizes. Talvez valesse a pena investir numa daquelas crianças tão incomuns, tão tocadas pelo destino, decidiu. E havia o augúrio das estrelas, lembrou-se, a Espada. A primeira, da força, com o espírito ardente, que conduziria as outras e abriria o espaço adiante. A portadora de sua redenção. Se não estivesse enganada desta vez... "Bem... se você diz. Acreditarei em você. Pelos velhos tempos." ela examinou novamente Aulis, suspirou e empurrou a porta, ainda em dúvida. Não queria explicar para o outro velho seus motivos, dando o braço a torcer; ela que interpretara o futuro dos filhos de Rauha como tragédia e perdição, pregando a morte e o abandono das crianças por nascer... não, bastaria aquilo por ora. Tentou parecer o menos disposta possível enquanto tocava o menino para dentro, ríspida. "Vamos. Entre."
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O interior da casa era escuro, mas quente por causa das brasas na lareira e das janelas fechadas. Cheiros misteriosos pairavam no ar, vindos de formas estranhas e indistinguíveis penduradas aos caibros do teto por cordões empoeirados. Sobre as estantes mal visíveis na meia-luz, frascos diversos igualmente empoeirados com substâncias esquisitas e corpos flutuantes. Aulis sentiu um arrepio correr pela espinha, amedrontado, enquanto seguia a anciã. Não fosse Jaakko a trazê-lo, provavelmente já teria fugido; mas não podia fazer essa desfeita com seu Pai, então forçou-se a ficar.
Kielo sentou-se pesadamente diante da lareira, cutucando com uma vara as achas de madeira e carvão para reavivar as chamas. "Menino."
"S-sim?" sobressalto.
"Vá até aquele armário. Pegue a tigela aí dentro. Não essa. Essa. Agora, vá até a bica, ali no canto. Encha e traga aqui. Pegue firme, não derrame. Assim. Coloque aqui em cima, devagar. Isso."
Ele, nervoso, obedeceu tão bem quanto pôde. Posto o vasilhame sobre a mesa, afastou-se e olhou a mulher, ansioso. Ela não se moveu, mas continuou falando, ainda de costas para ele.
"Agora, olhe dentro da água. O que vê?"
Olhar dentro da tigela com água? O menino assim fez; colocou-se na ponta dos pés, apoiou-se na mesa alta e forçou os olhos no escuro, tentando ver algo. Água escura, e um fundo de barro manchado de alguma coisa muito antiga. Muito provavelmente não era o que a mulher queria; Aulis, mais nervoso ainda, gaguejou alguma coisa ininteligível. Como ela queria que ele pudesse enxergar algo, assim, sem preparo nenhum? Havia ouvido falar de pessoas que eram capazes de prever o futuro, ter visões, coisas assim, místicas, misteriosas. Mas ele não! Sentiu as mãos começando a suar. Sua vocação não era aquela, não combinava com aquele tipo de coisa, nem nunca tinha tido nenhuma iluminação maravilhosa. Por quê?
A velha olhou-o de lado, e suspirou em alívio e desapontamento. Talvez o menino não fosse nada especial, afinal, como ela esperava. Ou temia.
Fazia tanto tempo que não se via diante de uma situação tão dúbia – conviver dia a dia com a criança que ela condenara à morte no passado com tanta convicção, e ao mesmo tempo treinar nela seu tão aguardado sucessor; afinal, estava ficando mais velha a cada ano, e o povo precisava de um bom curandeiro e vidente para cuidar de seus doentes e ler as estrelas para guiar seus caminhos. Não poderia morrer tranqüila sem deixar alguém para ocupar seu lugar. E nem mesmo Taavi, seu próprio neto, nem Satu, a profetisa amada pelos deuses, tinham a persistência e a força para tomar sobre as costas tamanha responsabilidade.
Ter que assumir seu erro. E ter paz em sua morte. Ou não. Mas, em sua teimosa arrogância, ela fingiu para si mesma que se resignava com o falso sinal, e apressou-se em sua conclusão.
"... Vá embora, pequeno, você não é o que preciso. Parece que o velho me enganou bem, o pilantra. Vamos, eu o levo para fora." e levantou-se, com esforço, fazendo menção de ir até a porta.
Indignado, Aulis sentiu as faces esquentando e vontade de responder alguma malcriação. Mais pelo desdém que ela mostrava por Jaakko; talvez também por uma ponta de orgulho ferido, quem sabe. "Espere!" gritou, numa altura bastante desnecessária, arrependeu-se imediatamente e retraiu-se novamente, contra a vontade. "Ah... d-desculpe... mas... d-deixe-me tentar de novo, por favor! Eu... eu sei que vou conseguir!" balançou a cabeça, quase implorando, embora quisesse mais sacudir a mulher pelo colarinho.
A velha virou o rosto para ele, discretamente interessada. Olhou nos olhos do menino, e viu algo que lhe agradou, uma chama brilhando mais forte depois de atiçada: selvagem e descontrolada, mas quente, poderosa; lembrava-lhe muito de sua primeira aprendiz. O moleque se parecia tanto com sua mãe! Então voltou-se novamente para a lareira, ainda fazendo-se de indiferente.
"Acha que é capaz, pequeno? Então tente. Tente até conseguir."
E sorriu para si mesma, alimentando o fogo. Redenção, sim. Se o moleque não conseguisse, pelo menos se cansaria e desistiria logo; mas desta vez suas previsões a respeito da criança pareciam estar corretas, pelos deuses.
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Empoleirado sobre o banquinho Aulis coçou um olho, inspirou fundo e se concentrou, mais uma vez, pela milésima vez. O fundo da tigela e as ondas na superfície da água, era tudo o que ele via. Por mais que se esforçasse. Logo as pernas haviam começado a doer, os olhos a arder, todo o corpo reclamando da posição prolongada com dores e cansaço. Mas não se deu por vencido; firmou os pés no lugar, estreitou os olhos, e insistiu, tentando ao máximo não se deixar distrair. Se quisesse vencer o desafio – e ele odiava perder –, teria de dar mais que aquilo, disse a si mesmo. E esse pensamento o sustentou – por horas, horas e horas a fio. Mesmo que ainda não entendesse direito o porquê daquilo, tinha certeza de que a velha o estava testando. E não ia se entregar.
O sol se pôs, a lua se levantou e as nuvens fecharam-se sobre o mundo, embora na cabana o escuro continuasse exatamente o mesmo. As estrelas giraram no céu noturno em sua marcha, acima das nuvens, no ritmo lento que rege o céu; a neve começou a cair em pesados flocos, rodando e sibilando lá fora; mas o menino não mostrava sinal de desistir. Agora o corpo, já muito além do cansaço, estava completamente dormente, insensível a qualquer percepção, de modo que não sentia dor, frio ou sono: apenas uma vontade obstinada de ver, enxergar. Era já alta hora da madrugada quando um canto distante, estranho e límpido, se fez ouvir ao longe, quase um delírio. E a visão veio, fugaz; Aulis esfregou os olhos e debruçou-se sobre a mesa, assombrado, pensando ser um sonho.
E viu, recortado contra um céu estrelado, mais brilhante que qualquer um que tivesse visto na vida, um grande pássaro branco, a estender as enormes asas para alçar vôo. Um pássaro tão grande quanto uma montanha, com uma gentileza e um poder que ele nunca presenciara em nenhum ser vivo. Aliás, era algo parecido com a grandiosidade aterradora da primeira aurora, ou com a violência elegante das tempestades de neve no inverno, ou a fluida serenidade das grandes bétulas prateadas. Mas era também atraente, convidativo. Quase... familiar? Lembrou-se de Alli sem querer; desejou que ela pudesse compartilhar daquela visão maravilhosa – se não desperta, pelo menos em sonhos, pediu. Pensou sentir as plumas macias roçando umas contra as outras, a suavidade e a leveza combinadas ao poder e à força, um canto de chamado ao lar longínquo; e quis partir junto com ele. Mas algo o segurava firmemente à terra, como uma âncora segura o navio ao porto, impedindo-o de se libertar, e também se perder no mar bravio. E olhou, da terra, a imensa imagem a alçar vôo e partir. Chorou e estendeu as mãos para ela, pedindo que retornasse, que o levasse consigo; mas soube de algum modo que em breve a veria outra vez, e tudo ficaria bem.
Então, sem aviso, o mundo escureceu. E o sono veio, de repente, cobrindo seus olhos e seu corpo com sua manta pesada e macia; e Aulis adormeceu.
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Quando acordou, a primeira coisa que sentiu, antes mesmo de abrir os olhos ou sequer lembrar seu nome, foi o toque fresco na testa e o cheiro amargo de alguma erva desconhecida. Sentou-se, tirou a compressa do rosto e olhou em volta, atarantado; o sol entrava radiante pela janela, apesar do vento frio, iluminando a grossa cama de peles. Um guisado de peixe e batatas exalava um cheiro atraente a seu lado, um fio de vapor intermitente balançando na brisa. Depois do descanso da noite de sono – seria mesmo só uma noite? – tirar-lhe o cansaço sobre-humano, percebeu de repente a fome desesperada; tomou o prato e comeu tudo em poucos minutos, sentindo vagamente os temperos peculiares, tão diferentes dos de mãe Ritva. Limpou a boca na manga da blusa e notou, pela primeira vez e com alguma estranheza, que não havia mudado de roupa desde o dia anterior, de tão absorto que estivera.
Observou melhor o quarto: alguns móveis de madeira rústica, pequenos e baixos, ornamentados com entalhes em formas tribais, encimados por pedaços de tecido branco-amarelado bordado em vermelho. O chão era de pedra escura, polida e irregular, e as paredes de vigas de madeira pouco espaçadas com alguma argamassa entre elas; a impressão geral era de pouco cuidado, pouco esmero, pelo menos com a decoração do lugar, reforçando a aura estranha, mística, perdida no tempo. Bem melhor que o cômodo escuro e cheio de vidros com coisas esquisitas, um tanto mais agradável até, mas mesmo assim...
Passos soaram no assoalho além da porta do quarto, e o pensamento de se deitar novamente e fingir que ainda estava dormindo lhe passou vagamente pela mente. Mas antes que pudesse se decidir a velha entrou pela porta, trazendo uma espécie de vaso, visivelmente bastante pesado.
"Finalmente acordou?" e pousou o vasilhame sobre um dos móveis. "Bom, porque tenho um trabalho para você. Levante-se, pequeno, e rápido."
E ele sentiu o gosto da vitória nessas palavras. Havia vencido o desafio, disse a si mesmo. Porém, mais que o sabor do orgulho e da vaidade satisfeitos, sentia-se muito diferente desde a noite anterior, ainda que recordasse dela apenas pequenos fragmentos, esparsos e confusos. E sabia em seu coração que havia dado um primeiro passo na direção de um destino grandioso, importante. O seu destino, e o seu desejo. E sabia, de alguma forma, que eles também.
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Nas semanas seguintes, Aulis mal teve tempo de pensar em sua primeira visão. Pouco a pouco, a memória esvaneceu e tornou-se pouco mais que um vago pensamento ocasional. Havia contado a Kielo tudo o que fora capaz de lembrar, mas ela nada lhe dissera a respeito, se é que havia algo a ser tirado daquilo. Não lhe fazia muito sentido mesmo, concluiu com um resmungo; e cortou mais um pedaço, perigosamente perto do próprio dedo.
Terminou enfim de fatiar a raiz e inocentemente deu-se por satisfeito, apesar dos pedaços irregulares e das cascas remanescentes, e levou-os para a velha. Não entendia o porquê de tanto detalhismo, de qualquer forma. Mesmo picados em formas ligeiramente... diferentes, não seria o mesmo efeito depois de cozidos por várias horas? E depois de passar várias noites em claro lendo e memorizando nomes e funções de tantas flores, ervas e afins, e virar seu aniversário tentando decorar partes do corpo que ele nunca imaginara que existiam, entre as canções e danças e comidas e bebidas... Kielo não poderia recriminá-lo demais, poderia?...
De qualquer modo, na dúvida, lembrou-se dos castigos da noite anterior; e rezou para que ela estivesse de bom humor.
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Mas o treinamento certamente não foi tão fácil quanto esperava. Foi demorado, intenso, doloroso e exigente; Kielo, como veio a se mostrar, era uma professora rígida e caprichosa e não perdoava erros, nem os menores, nem os mais inocentes. Pelos meses e anos seguintes Aulis trabalharia e estudaria exaustivamente sob a cuidadosa orientação de sua tutora, dia a dia, isolando-se gradualmente do convívio das outras crianças por conta dos estudos extras. Aprendeu dela os nomes e os espíritos de ervas, flores, frutos, raízes, e como cozinhar e preparar as poções para curar venenos, doenças e outras infelicidades; as formas e o funcionamento do corpo, e como cuidar dos problemas através de toques, drogas e palavras; o fluxo de energia e de vida, as correntes de força e poder, e como extrair o poder dormente de dentro de si, impulsionando-se apenas por sua vontade e libertando-se das amarras da terra. Aprendeu, após vários anos, a transcender os limites do corpo, elevando seu espírito a outras esferas de existência e consciência, além da percepção mundana – era uma sensação parecida com asas de fogo e luz erguendo-o da terra em direção ao infinito, como ele mesmo descreveria mais tarde.
Assim fortaleceu através dos anos seu corpo e seu espírito, para poder curar os outros sem se deixar abater pela tristeza ou pela doença; aprendeu calma, serenidade, sorrisos; aprendeu o controle, a precisão e a rapidez. Galgou em poucos anos os degraus do conhecimento, ávido por se tornar cada vez melhor, movido pelo desejo de salvar e ajudar, e assim tornava-se um bom rapaz: bondoso, honesto, simples, querido por todos. Murmuravam os aldeões que as estrelas brilhavam sobre sua fronte, e que seu toque era milagroso, abençoado com a graça dos bons deuses.
E apesar de toda a rigidez e de tratar o garoto sempre com sua rispidez típica, cada vez mais Kielo, satisfeita e orgulhosa de seu jovem aprendiz, via nele o futuro de um verdadeiro sábio, seu herdeiro e sucessor, e se alegrava apesar de sua teimosia e de seu próprio corpo cada vez mais fraco: agora sabia que quando morresse sua missão estaria terminada, e isso era bom. O pequeno seria a salvação para seu povo, pensava ela, e se confortava; e Aulis crescia cada vez mais, como curandeiro, como guia, como homem. Verdadeiramente forte, dizia ela.
Notas:
a. Voimakas, "Forte".
b. Extraído da letra de Ghost Love Score, Nightwish.
c. Jaakko, variação local para Jacob.
d. Taavi, variação local para David.
e. Saarijärvi, "lago de ilha".
f. Kielo, "lírio do vale".
g. Satu, "conto de fadas", "fábula".
h. Ritva, "ramo de bétula".
Segundo capítulo, solo de Aulis.
