III. Vapauttaa
Once there was a child's heart – the age I learned to fly and took a step outside.
Faith brought me here; it's time to cut the rope and fly to a dream, far across the sea.
Era manhã. Os pássaros começavam a pipilar e tagarelar, mesmo no frio desanimador, saindo cedo dos ninhos para ciscar na terra dura alguma comida, alegres apesar da vida difícil em Lahti.
Bem-aventurados, pensou Alli com alguma inveja, enquanto levantava-se ainda sonolenta da cama e tateava seu caminho até a porta e o grande baú atrás dela. Ergueu a pesada tampa com alguma dificuldade, fazendo o máximo silêncio, depois passou a mão por cima das roupas cuidadosamente dobradas. Procurou por uma textura de algodão, até finalmente encontrar aquela que queria, e a vestiu, a saia do vestido longo deslizando macia até os tornozelos. Depois a de lã, por cima, arrumando as dobras lentamente, e então os sapatos lisos e duros. Lembrou-se do que lhe haviam dito sobre as cores e suas combinações, e quais deveriam lhe cair bem; penteou com esmero os cabelos compridos, amarrou a fita de cetim e deu-se enfim por satisfeita para sair.
Caminhou pela porta do quarto, pelo corredor, desceu as escadas e empurrou as portas de entrada da casa. Uma lufada de vento gelado a cumprimentou, fazendo tilintar os sinos pendurados no batente. O sol ainda não era o suficiente para aquecer a manhã; o frio grande chegaria logo, e breve as casas e ruas estariam cobertas da manta pesada e gelada a que chamavam neve. Haviam lhe dito que a neve era branca, alva como as nuvens numa tarde de primavera, mas como haveria ela de saber? Para ela o mundo era uma coleção de formas, texturas, aromas, sons; uma eternidade de escuridão preenchida de diferentes sensações, ou nem isso – o que era o escuro?, perguntava-se. E como poderia ela compreender, ou mesmo imaginar, a luz matinal fazendo brilhar a neve da noite, como uma centena de minúsculos diamantes incrustados no chão e pendendo em cachos das árvores mortas; ou as cores magníficas do crepúsculo tardio sobre o lago a ondular por entre os galhos do bosque escuro; ou a mais bela pintura de um artesão, retrato apaixonado de sua alma nua em tinta e pincel, como poderia admirá-los? E ainda assim os outros insistiam em apontar. Insistiam em apiedar-se dela, como que para provar uma inútil superioridade.
Ainda era cedo. Apenas os pescadores arrastavam suas redes até os barcos no lago, e um ou outro madrugador vagava em silêncio meditativo pelas ruas de terra batida. Alguns poucos a cumprimentaram no caminho; ela respondeu alegremente a cada um, perguntando-lhes da vida e da família, e eles replicaram com satisfação. Pelo menos vozes sabia discernir bem, e sua memória era boa. E as pessoas gostavam tanto de ser lembradas. Parando aqui e ali para conversas casuais, caminhou aos poucos e sem pressa na direção da pequena torre de pedra, resquício de tempos antigos e seu refúgio costumeiro pela manhã; pouco tinha o que fazer naquelas horas do dia, quando seus irmãos estavam na escola. Bem gostaria de ajudar mãe Ritva ou pai Jaakko com os afazeres diários, ou ser de alguma valia maior para a família e a vila, nem que fosse carregando cestas para os ceifadores. Não gostava de se sentir inútil. Apesar da fragilidade de nascença, não queria ser vista como inválida; mas a qualquer menção disso todos sempre a incitavam a passear e se distrair, como se seu estado os incomodasse. Dó.
Galgou os degraus sem dificuldade, os passos leves acostumados ao caminho, a mão na parede sentindo as pedras gélidas com um quase prazer. Chegando ao topo, na janela mais alta, soergueu o corpo e sentou-se no parapeito, como sempre. O vento soprava mais forte ali, agitando os cabelos e as roupas pesadas, assoviando nas fendas das paredes como um arremedo macabro de pássaros do verão. Mas era bastante convidativo, pensou, sentindo nele o cheiro das bétulas e de nuvens carregadas de neve, distantes ainda, na direção do oeste. Quem a visse ali – e eram mais de trinta côvados de pedra até o chão – se admiraria com a coragem, ou talvez a tolice; diria mesmo que a imprudência devia à cegueira. Ingenuamente: Alli conhecia bem demais os perigos das grandes alturas, e seu gosto por elas lhe havia rendido já vários acidentes e dores memoráveis. E, ainda assim, não temia.
Porque, mais que isso, mais que medo ou receio ou aflição, estar ali lhe rendia uma rara sensação de liberdade.
Liberdade. Seu maior sonho. Pelo que ela mais ansiava. Sua melhor definição era algo parecido com voar: voar ao sabor do vento, levada por grandes asas, ascender em direção ao céu, às estrelas, ao infinito, livre e plena. Sem precisar temer, nem se lembrar das tristezas e aflições que a atormentavam. Sem precisar pousar. Sem precisar retornar ao chão e às amarras da realidade. Sem mais sofrer.
Era uma fantasia também manchada pelo remorso, e que ela relegara ao absurdo e irreal, no entanto; tantas vezes tivera suas ilusões desfeitas pela frieza da realidade, já não tinha vontade de imaginar, almejar, desejar. Eram feridas mais dolorosas e mais perversas que qualquer outra, e muitas vezes não chegavam nunca a se curar; assim, para não mais sofrer, pouco a pouco deixara de lado aquela fé inocente no impossível. E tinha plena consciência disso, o que apenas somava mais peso a carregar nas costas.
Mais de uma vez os velhos haviam-na aconselhado a não se deixar tolher pelos obstáculos e voltar a querer e desejar. Ser como as outras crianças, diziam eles. Mas ela ouvia suas canções e brincadeiras, sua inocência, sua alegria, sua pureza; e sabia que não pertencia mais àquele meio, que não havia nascido para passear, rir, brincar como os demais. Algo se inquietava em seu coração a toda hora, ansiando por sair, por se manifestar, mas ainda não era chegada a hora. Nunca era chegada a hora. E ela se resignara, ou pelo menos dizia a si mesma que sim, delegando esses assuntos ao destino e fingindo esquecer-se deles.
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Lá ficou, e meditou, e sentiu o dia esquentar e a pequena aldeia se agitar mais e mais abaixo de si: toda a vila pulsava com vida, sons e cheiros, e a vida parecia boa e agradável conforme transcorria a rápida manhã. Uma mãe ralhou com suas crianças pequenas, que riam e gritavam; um vendedor passou promovendo seus bens em voz alta, peixes frescos, os últimos grãos de trigo e cevada do outono e pão quente; o sino da escola badalava ao longe, acompanhado de risos e cantigas infantis, e Alli sentiu-se contente. Não conhecia muitos outros lugares, é claro, mas tinha a vaga impressão de que aquele era um lugar bom, honesto e simples: para se viver uma vida tranqüila, longe das grandes preocupações e da loucura. Lentamente chegou o meio-dia; o calor do sol, tão indesejado no verão, era agora bem-vindo para derreter a geada e aquecer um pouco os corpos, e os aldeões tiravam seus gorros e falavam de coisas boas e alegres conforme se reuniam ao redor da taverna e da praça.
"Alli!" chamou a voz familiar, ao mesmo tempo incisiva e suave, pairando sobre os outros sons. "Já é mais que hora de irmos, satakieli. Ficou aí a manhã toda, de novo?"
"Oh, Vieno! Espere um pouco, já vou descer!"
Pulou pelas escadarias, rumo à saída. Que estranho, pensou consigo mesma. Não era todo dia que ele vinha buscá-la. Correu direto na direção do menino, mesmo sem enxergar sua posição, abraçando-o com carinho e sentindo a maciez de seus agasalhos grossos; para quem conseguia até adivinhar pensamentos não era realmente grande coisa saber onde os irmãos estavam.
"Um... onde está Aulis?" perguntou, afastando-se um pouco mas ainda lhe segurando as mãos. "Não vieram juntos hoje?"
"Não. Pai Jaakko queria levá-lo a algum lugar, parece. Faltou me explicar direito." respondeu o menino, um sorriso gentil na voz. "Mas Alli, achei que já tivesse ido, estava só de passagem por aqui. Não está com fome? Mãe Ritva ia fazer lohikeitto hoje, não?"
"Ah, sim, é mesmo!" escondeu seu desapontamento o melhor que pôde. Aulis devia ter avisado de alguma coisa, ou mesmo pai Jaakko, em vez de deixá-la ali esperando. A voz saiu um pouco esganiçada – ela esperou que Vieno não houvesse percebido, ou que pelo menos tivesse a discrição de não reparar. "Vamos para casa, então?"
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O almoço transcorreu tranqüilo, sem incidentes. Conversaram à mesa sobre assuntos triviais, inocentes, como notícias da escola e fofocas locais, cada um na verdade ocupando a mente com seus próprios problemas enquanto socializavam. Jaakko havia voltado sozinho; não teceu nenhum comentário a respeito de Aulis, e Alli se ressentiu mais um pouco em silêncio. Felizmente para ela a refeição terminou logo e mãe Ritva os dispensou em seguida. Melhor assim, pensou. Caminhou até a porta da frente, colocou a mão na maçaneta e parou por um instante. Não tinha mais muito para fazer até o irmão voltar, e tampouco queria ficar dentro de casa; e a vila estaria muito agitada agora, tornando a torre um lugar bem menos agradável. Cogitou caminhar pela floresta, como fazia nos dias quentes, mas não seria prudente: os lobos haviam novamente começado a rondar as aldeias, agora que o verão e outono haviam terminado e as presas, rareado. Embora não corressem muitas notícias de ataques, os lenhadores evitavam se embrenhar muito entre as árvores e as crianças eram aconselhadas a não se aproximar demais. E pai Jaakko nunca a deixaria andar por lá sozinha. Muito perigoso, diria ele, mesmo se não houvesse lobos e linces vagando. Suspirou.
"Ei, Alli." chamou Vieno da escada que dava para os quartos, a voz alegre e leve de sempre. "Venha um pouco! Vamos estudar, sim?"
"É claro!" fez ela, contente, voltou sobre os passos e subiu atrás do irmão. "O que aprendeu de bom hoje?"
"Ah, espere só até ver. Foi ótimo!"
Foram horas alegres apesar da falta de Aulis; Alli, mesmo não indo regularmente à escola, aprendera com facilidade as letras, os números e a história com ajuda dos irmãos, e gostava de estudar e saber. Não eram poucos os que se surpreendiam com sua inteligência, além de uma sabedoria e maturidade extraordinárias para sua idade, nas poucas vezes em que comparecia ao conselho com suas idéias para sugerir melhorias nas plantações ou nos horários de pesca. Vieno também se mostrou um professor paciente e dedicado; naquela tarde, além de lhe ensinar um pouco mais sobre o Grande Incêndio do verão, recitou para ela trechos do Antigo Edda, falando sobre dragões e valquírias, e feitos de bravura e grandes batalhas que a faziam vibrar e se emocionar; e os dois se divertiram toda a tarde, rindo e brincando de deuses e heróis de tempos passados.
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Agora era chegada a noite; vinha cada vez mais rápido, e continuaria assim até o grande festival de Joulu. Mesmo não distinguindo luz de escuridão, ela sabia pelo silêncio congelado, pelo soprar da brisa, e tinha a impressão de que o inverno tornava a noite ainda mais forte, mais longa e mais misteriosa. Sentada na cama, sentia os flocos de neve entrarem pela janela aberta e tocarem suas mãos e rosto; primeiro o toque leve e gelado, depois um deslizar pela pele, deixando um rastro evanescente de frio. Embora seu corpo reclamasse e tremesse, Alli achava a sensação agradável, mesmo confortante, distraindo-a um pouco de seus pensamentos numa espécie de torpor.
Um toque ritmado e leve na porta, o chamado logo em seguida. "Alli? Posso entrar?"
"Vieno? Claro, entre!" disse, voltando o rosto instintivamente para a entrada, esperançosa. "Aulis já chegou?"
O menino sentou-se na ponta da cama, um pouco longe, e sorriu para ela. "Ainda não. Mas sei que ele está bem. Que está num momento importante. De qualquer modo, saberíamos se estivesse em maus bocados, não?" e colocou sua mão sobre a da irmã. "Ainda está preocupada com Aulis, não é? Acalme-se. Pai Jaakko estava confiante. Vamos confiar também, sim?"
Sem resposta. Alli virou novamente o rosto para a janela, parecendo interessada em ouvir alguma coisa lá fora, embora nada parecesse vivo na paisagem o suficiente para merecer atenção.
"Alli, vamos, não fique assim." tentou ele novamente. "Aulis..."
Ela apertou a mão do irmão e baixou a cabeça. "... eu... sinto falta dele, Vieno. Sem ele por perto, é como se algo importante estivesse faltando... como se tivessem arrancado um pedaço de mim. Sei que tenho você, pai Jaakko, mãe Ritva, mas..."
A voz morreu aos poucos. Silêncio.
"Eu entendo, Alli." Vieno de repente segurou-lhe a mão mais forte e sorriu. Pausa. E sua voz assumiu um tom um pouco mais sério. "Mas ele também tem que viver a vida dele um pouco, e você a sua. Vocês se gostam muito, é certo. Mas não podem depender um do outro a toda hora, entende? Algum dia sentirão a necessidade de trilhar caminhos diferentes; e têm que ser fortes, mesmo separados, senão isso os fará tristes, incompletos. A prisão não deve ser o preço a se pagar pelo amor."
Silêncio.
"Bem... de qualquer forma, não vim para lhe dar sermões." mais relaxado, ele se levantou e abraçou a menina, cobrindo-a cuidadosamente com uma manta quente. "Foi para lhe dar um pequeno presente."
Alli levantou o rosto, curiosa.
"Acredito que você sempre tenha se perguntado como é o mundo para quem o vê, não é?" começou o garoto, com voz de contar histórias. "Como são as cores, as formas, os movimentos. Como é enxergar. E que tenha se sentido triste, frustrada, quando sem pensar comentamos a beleza da aurora, ou as cores das bétulas no outono." tinidos estranhos, engraçados, meio desafinados. Ele estava agora sentado à sua frente, no banco de madeira. "Mas há algo que sempre imaginei que você entenderia melhor que qualquer um. E que poderá nos descrever também, com uma riqueza e amplitude que nós todos invejaremos. E, para isso, olhos são supérfluos."
Silêncio. Não sabia se devia estar ofendida ou o que. Simplesmente não conseguia pensar em como deveria se sent...
"... Voe, querida."
E, de repente, o som. Um som suave, doce e vibrante, como uma límpida gota de melodia caindo e ondulando num oceano profundo de ecos e murmúrios. E mais um, e mais um, as ondas de cada gota somando-se à próxima, tecendo uma trama leve e dinâmica. A brisa entrou pela janela com uma corrente de bolhas de som exóticas como devaneios, trazendo com ela flocos de neve que explodiam em pequenos globos ressonantes ao tocar sua pele e derretiam lentamente em silêncio e eco. Ao fundo, tinidos delicados como pequenos sinos balançavam inconstantes, sumiam e voltavam, derramando uma suave harmonia sobre o conjunto. E uma melodia suave, sem palavras, emprestava uma aura tranqüila, serena, de paz adormecida e sonhos bons.
Alli arregalou os olhos cegos para o nada, as mãos estendidas, como se pudesse tocar os sons com seus dedos; bebeu das sensações como água fresca após uma tarde de verão, e seu espírito se ergueu e dançou com elas uma dança transcendente de eternidade. Quanto tempo se passou? Não saberia dizer, nem fazia sentido tentar; muito mais tarde, as memórias perdidas seriam de passos solitários num salão de pedra e cristal rodeados de fragmentos de sonho e beleza, espectadores sem olhos que a observavam, aplaudiam, cantavam e riam em coros de anjos. Cada vez mais distantes, até serem não mais que ecos vagos e indistintos de música e risos dissolvendo-se em silêncio.
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Estava... escuro. Não, não escuro, certamente; mas vazio. Alli caminhava sozinha. Seus passos não faziam som algum no chão frio, macio. Dentro dela algo ardia, queimava, e ela se sentiu bem; pois esse estranho fogo a guiava no vazio, aquecia e confortava, como se seu próprio coração saísse do peito e lhe fizesse companhia.
De repente sentiu o vento forte lhe tocando o rosto, os cabelos, o corpo nu. E soube que abaixo dela havia uma grande queda, maior que a torre, maior que a montanha: um grande pico do mundo. Lá embaixo, o choro e os gritos de desespero e tristeza de incontáveis pessoas como um mar de angústias; e ela quis saltar, ir para junto delas, consolá-las, dividir de sua dor, mas suas mãos e pés estavam atados a pesadas correntes que a prendiam às rochas. Pediu, e gritou, e puxou com toda a sua força, mas por mais que fizesse não conseguia se soltar das cadeias. Sentindo-se derrotada e incapaz, Alli deixou-se cair de joelhos e chorou – não de dor, embora agora sangrasse, o calor de filetes de sangue correndo pelos braços e pernas e pelos elos grossos; mas de raiva e tristeza, para com o destino e para consigo mesma, por toda a injustiça, por sua própria fraqueza.
Mas uma mão amável segurou seu rosto com delicadeza e enxugou suas lágrimas, e ela ouviu, sussurradas, palavras de consolo e força numa língua que há muito esquecera. Um bater de asas à sua volta; plumas lhe roçaram a pele, suaves como veludo e seda, e ela viu. A luz diante dela, dourada e quente como os primeiro raios do sol da primavera. Gloriosa, imponente, majestosa. E ela soube de imediato, como se sempre o tivesse sabido, que aquele era a águia dourada, a própria Vitória encarnada, com suas asas poderosas estendidas sob o sol de uma terra imortal. O símbolo de Atena.
As asas a envolveram, vestindo-a com ouro e linho, e os grilhões se quebraram e caíram a seus pés, tilintando como uma cascata de moedas e partindo-se em poeira de estrelas. Ela olhou para baixo, e sorriu. Em sua mão direita, a lança alada. Na mão esquerda, o escudo impenetrável. Em sua fronte, a insígnia de uma deusa.
Sua insígnia.
Pois eu sou a justiça alada, a deusa de heróis, medida da retidão, senhora da coragem e da bravura.
Eu sou Atena, nascida do poder e da sabedoria.
Sou Athena Aethyia, e Athena Glaukopis; sob minha lança perecerão a vilania e a tristeza, e sob minha mão florescerá a felicidade dos justos.
E, com um brado de guerra e vitória, ela abriu as grandes asas, lançou-se ao espaço e voou sobre a desgraça, transformando-a em ventura. Monstros de dor e morte sucumbiram sob sua luz; heróis triunfaram sobre tiranos; lágrimas deram lugar a sorrisos e esperanças; e o louvor e a inspiração assomaram novamente entre a humanidade. E ela sentiu-se contente.
Na terra abaixo, entre tantos rostos que agora recordava, duas pessoas especiais. Que ela amava. Um menino que lhe estendia as mãos, atado à terra, chamando-a em súplicas e pedidos que ela respondeu com promessas felizes. E outro, cantarolando uma canção sem palavras enquanto a observava, mãos nos bolsos, um sorriso gentil no rosto.
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Quando acordou, uma sombra de sorriso ainda sobre os lábios, o sol brilhava já forte sobre sua fronte; e ela abriu os olhos cinzentos, brilhantes como estrelas, para ver a última nuvem de neve passando rumo ao oeste, uma mancha branca e luminosa sobre o céu azul. Levantou-se, vestiu-se – escolheu a fita vermelha desta vez – e saiu. Aulis dormia pesadamente no sofá, Vieno sentado a seu lado; e este último sorriu e a saudou em silêncio à sua passagem, num cumprimento peculiar que ela se lembrava vagamente de ter recebido de homens trajados em gloriosas armaduras de ouro e prata, seus elmos nas mãos, chamando-a por títulos antigos.
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A vila vibrava, como sempre àquela hora, cheia de cores, rostos, vozes. Alguns como ela imaginava, outros não, mas não importava de todo; eram os mesmos, e ela sorriu e cumprimentou cada conhecido. Chegou enfim à casa do conselho no centro da aldeia, admirando sua estrutura sólida, as paredes de pedra, o teto de madeira e palha arqueado, o mosaico de vidro sobre a entrada. Bateu à porta. Um ancião a atendeu no meio de uma acalorada discussão, uma expressão curiosa no rosto ao vê-la. Expressão que se transformou em súbita surpresa quando a menina de apenas oito verões rapidamente tomou a palavra, silenciando a todos com sua voz firme e resoluta, e discursou longamente para todos os velhos da vila, falando de paz e justiça e de ensinamentos sábios que mesmo eles poderiam aproveitar; e discorrendo sobre planos inteligentes e de grande visão, que eles mesmos nunca haviam imaginado, para garantir um bom inverno, com as lareiras queimando alto e estoques fartos, sem precisar temer os lobos da floresta ou a fome e escassez.
Quando saiu, deixou atrás de si um conselho estupefato, admirado. Esperançoso. Os velhos murmuravam entre si sobre a segunda estrela, portadora da luz sagrada, lembrando-se da profecia: aquela que empresta das demais a força para brilhar mais forte que qualquer outra no céu, sua luz de esperança e salvação derramada sobre a terra. Aquela que concede os desejos dos pequenos órfãos e dos desamparados, e guia os navios em segurança até o porto e os viajantes de volta aos lares.
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A menina sacudiu os cabelos longos e escuros ao vento e aspirou o ar da manhã profundamente, admirando o profundo azul acima: uma visão inspiradora. Pensou consigo mesma em como começaria pela remota Lahti a realizar sua tarefa de curar as feridas da humanidade, enquanto este corpo amadurecia e se fortalecia para poder vagar o mundo e cumprir a profecia de seus sonhos. A pequena Alli dera seus primeiros passos para deixar o ninho e voar sobre a terra. Haveria de trabalhar em sua missão, agora que encontrara seu caminho e seu destino. E sorriu, triunfante.
E Atena, finalmente desperta e liberta, se alegrou e sorriu, triunfante.
Notas:
a. Vapauttaa, "Libertar".
b. Exatraído da letra de Dark Chest of Wonders, Nightwish.
c. Lahti ["baía"], a sétima maior cidade finlandesa, localizada na baía do lago Vesijärvi ["lago de água"]. A FIC considera uma pequena aldeia homônima ou uma versão paralela.
d. Satakieli, "rouxinol".
e. Lohikeitto, um prato típico da região da Lapônia que consiste numa sopa de salmão com creme.
f. Grande Incêndio, referência ao incêndio de junho de 1977 que praticamente destruiu a vila, marco histórico na economia e desenvolvimento.
g. Antigo Edda, referência ao Edda em verso, uma coleção de antigos versos nórdicos preservados no manuscrito Codex Regius. Os Eddur são a mais importante fonte de informações sobre a mitologia nórdica.
h. Joulu, nome finlandês para Jul [Yule], o festival do solstício de inverno e Ano Novo em antigas tradições nórdicas. Dura tradicionalmente doze dias e marca o dia mais curto do ano – e ao mesmo tempo também o início de dias cada vez mais longos, simbolizando a grande escuridão e o renascimento da luz e da vida.
i. Aethyia [literalmente, "Mergulhadora"], um epíteto de Atena e o nome de um pássaro marinho sob a forma do qual ela aparece perante Ulisses.
j. Glaukopis [aproximadamente "olhos cinzentos"], um epíteto comum de Atena e amplamente traduzido como "Olhos Brilhantes", "Olhos Cinzentos", ou "Olhos de Coruja".
Terceiro capítulo, solo de Alli.
