IV. Kauas

Heaven today is but a way to a place I once called home; heart of a child, one final sigh as another love grows cold.
For the heart I never had, for the child forever gone: the music flows because it longs for the heart I once had.

Vieno terminou de afinar o kantele como fora instruído por Jalo e guardou novamente a flauta tonal na caixa com cuidado. Passou um dedo pelas cordas, testando o som, a outra mão encaixando a chave nos pinos para fazer os últimos ajustes, até ficar satisfeito com a pureza das notas. Além do cantinho onde se metera para ter um pouco de paz e privacidade, longe dos olhares curiosos, as outras crianças corriam, gritavam e brincavam de jogos barulhentos e tediosos que não lhe interessavam nem um pouco; afinal o instrumento era novo, presente de seu mentor no dia anterior, e explorar as novas possibilidades de timbres e acordes com as cordas reluzentes era muito mais divertido. Pelo menos para ele.

Ajustou a postura, costas retas, lembrando-se com um leve arrepio das palavras severas do menestrel e de sua fina vara de bétula – um modo bastante eficaz de enfatizar coisas importantes. Por sorte não havia apanhado no primeiro dia, mas suspeitava que era mera questão de tempo – provavelmente menos tempo do que realmente gostaria – até os primeiros dolorosos vergões. Pelo menos ainda tinha este e mais um dia para estudar e aperfeiçoar seu toque até voltar diante do professor. Até lá...

"Ei, Vieno?"

Levantou rapidamente o rosto, piscando por conta do sol muito brilhante, e viu o sorriso alegre de Aulis o encarando. Sorriu também, colocando uma mão para proteger os olhos.

"Aulis." pensou rapidamente em como dispensá-lo da maneira mais amigável e afável possível. Não que não gostasse do irmão, muito pelo contrário; mas queria aproveitar o intervalo para estudar um pouco. Estava tudo tão perfeitamente preparado. "... Não está com Taika hoje? Se não me engano você devia um pedaço de bolo a ela. ... Ou eram biscoitos dessa vez?"

"Bem, é, mas ela não veio hoje. A mãe dela está meio doente, acho." Aulis cruzou os braços, preocupado, mas por alguns poucos instantes apenas. Até mudar de assunto, agora curioso. "Ah! É disso que me falou ontem de noite?" e apontou o instrumento no colo do outro. "É maior que você!"

Vieno riu, resignado, contendo a vontade de suspirar e virar os olhos. "... Um pouco grande mesmo, de fato. Mas opettaja disse que eu devia estudar o kantele antes de qualquer outra coisa. Diz que devo aprender a amar o espírito de Suomi, para que não o esqueça mais tarde quando for tocar outros instrumentos. Que é fácil se fascinar com o diferente e no afã da novidade esquecer-se das origens, e que isso traz ruína e desgosto. Essas coisas."

Aulis se lembrou sem esforço da figura excêntrica do renomado poeta viajante, dois dias atrás, quando ele fora em pessoa à casa de pai Jaakko confirmar a veracidade da fama de Vieno. Mesmo sendo ainda uma criança, as histórias sobre seu raro talento já circulavam pela aldeia e região; muitos o convidavam regularmente para tocar em suas festas ou mesmo fazer-lhes visitas, encantados com a voz e os modos refinados do garoto, tão incomuns para sua idade. Igualmente impressionado, Jalo havia requisitado o menino como seu aluno depois de alguns testes e até estabelecido morada ali perto, numa velha casa abandonada – cheia de maus espíritos, diziam alguns –, enquanto durasse a tutela.

"Tá... Ele é um pouco esquisito, né? E você não disse nada sobre a primeira aula. Fiquei curioso, como foi?"

"Bem... ele é estranho, realmente, e a casa parece mesmo mal-assombrada." admitiu Vieno com um sorriso divertido. "Mas sinto que vou aprender muitas coisas com ele. Só não comentei muito em casa porque ele carrega todo o tempo uma varinha de bétula assustadoramente parecida com um relho. Pai e mãe ficariam um pouco receosos com a idéia de apanhar nas aulas, acho."

"E você não está com medo? Dói levar pancada daquilo, não?"

"Ainda não experimentei – ele foi bem bonzinho comigo ontem. Mas também... levar umas chicotadas por fazer besteira, que mal faz?" deu de ombros e riu. "Estou mais preocupado com o kantele do que com a vara, na verdade; tenho que decorar e tocar uma pe... uma música que ele me passou até a próxima aula. Quer ver?" e tocou um trecho, ainda bem devagar, tropeçando aqui e ali nas passagens mais complicadas. O professor o mandaria a Tuonela sem paradas se ouvisse a peça naquele estado, mas era o suficiente para se mostrar um pouco.

"Mm... é bonito, mas sei lá, muito complicado!" Aulis fez uma careta engraçada. Não tinha prestado muita atenção à música em si, obviamente. "Ah, é. Vai voltar com a gente hoje, né? É dia de pai Jaakko vir nos buscar."

Vieno olhou o irmão, abriu a boca para replicar e lembrou-se a tempo das palavras do velho naquela manhã: queria ficar a sós com Aulis quando saíssem da escola, para levá-lo a algum lugar misterioso. E mudou a resposta pela metade, um pouco precipitado. "É... na verdade combinei com opettaja de ensaiar com ele hoje na hora do almoço." perguntou-se se o irmão sabia do esquema de uma aula a cada três dias; por precaução, emendou uma observação. "Como é meu primeiro dia com o kantele, ele quer confirmar que estou fazendo direito. A afinação é muito delicada, sabe."

"Aaaaah, tá!" fez Aulis, crédulo. "Então você não vem comer em casa? Que pena! Mãe Ritva ia fazer aquela sopa de peixe que você gosta tanto."

"Hoje não, infelizmente. Mas guarde um pouco para mim, sim?" sorriu Vieno em resposta.

Conversaram um pouco mais, Vieno brincando ociosamente com as cordas enquanto falava, até a professora chamar os alunos de volta. Um pouco frustrado e irritado, mas ainda gracejando normalmente com o irmão, guardou o instrumento a contragosto e seguiu com as outras crianças. A aula foi razoavelmente interessante, falando dos trens de Venäjä e do verão de 77, e toda a classe ouvia com atenção. Vieno rabiscou mais um desenho vago, indiferente, pensando em poemas antigos do leste. Para ele a escola, tradicionalista e em muitos aspectos bastante limitada, há muito deixara de significar aprendizado para se tornar um mero compromisso recorrente e uma promessa de longas horas inúteis. Inteligente e curioso, cedo se entediara do ritmo moroso de seus colegas e passara a procurar o conhecimento nos livros antigos do conselho e na sabedoria dos velhos. E, quando saber da história, das línguas e de outros assuntos mundanos não mais lhe interessava, vieram as perguntas sobre seu destino, sobre o significado da vida; e ele se voltara aos oráculos e aos espíritos, numa procura perigosa. Mas certamente muito mais divertida que ficar sentado na sala de aula ouvindo a voz pueril da professora de dezenove anos a discorrer sobre ensinamentos semiprotestantes.

E, se descobrira alguma certeza nessas buscas, era que já não pertencia mais a Lahti já há muito tempo. Seu corpo permanecia lá, mas seu itse havia viajado para além do mar, para as terras do sul. Ansiava por sair de sua terra natal, deixar a proteção do ninho e conhecer o mundo, provar de novos sabores, como um beduíno anseia pela promessa de um oásis. E, de tão longe que estava, as pessoas e coisas e lugares haviam se tornado a seus olhos apenas imagens nebulosas da realidade, sombras difusas num espelho de fumaça. Mas como amar simples ecos de um mundo tão distante? Mesmo pessoas familiares de todos os dias, que o estimavam e queriam bem, para ele não eram muito diferentes de um vaso de flores ou uma peça de mobília: algo que causa pequenos aborrecimentos assim como pequenos prazeres, mas cuja falta não faz diferença. Embora tivesse uma vaga idéia de que era errado sentir-se assim, simplesmente não era capaz de formar elos verdadeiramente fortes ou significativos. E sua consciência o atormentava dia e noite, numa luta eterna aonde ambos eram perdedores. Ao mesmo tempo, as únicas pessoas que ele realmente amava, por quem continuava lá...

... não. Não era justo pensar assim, disse a si mesmo, reprovando-se. O amor é um sentimento livre, e belo por ser assim, e triste é quando é preso a obrigações ou dívidas; deve ser dado de coração. Não pode ser exigido por ninguém nem de ninguém. Nunca. Embora...

Sacudiu a cabeça e forçou-se a voltar a atenção para trilhos, navios mercantes e política, ignorando o resto. Refletiria sobre isso mais tarde, outro dia.

Sempre outro dia.

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Depois de finalmente terminadas as aulas, despediu-se efusivamente de Aulis e caminhou na direção da casa do professor até sair das vistas da escola; esperou até ter certeza de que pai Jaakko já teria ido buscá-lo, depois rumou a passos lentos para a orla da floresta. Estava completamente só: nada se movia até onde seus olhos alcançavam no horizonte, ou entre as bétulas enegrecidas; nenhum animal, nenhum pássaro. E era tão... confortável. Sem olhos e ouvidos para enganar, sem máscaras, sozinho consigo mesmo. E, por que não, sem platéia. Deixou-se cair sentado num tronco caído, tirou novamente o kantele da caixa para afiná-lo, endireitou as costas e inspirou fundo, olhos fechados. Cheiro de frio e neve ao longe, notou vagamente, focando-se. E tocou a primeira corda solitária.

Um tinido metálico, rico e brilhante, ressoou pela floresta, quase melancólico em sua solidão. Ajudado pelo silêncio Vieno se concentrou no som, analisando as nuances que mudavam e se sobrepunham conforme a nota se apagava lentamente, como uma brasa, até se dissolver na paisagem muda; e concluiu, com prazer, que lhe agradavam mais do que esperara. Testou longamente diversas combinações e gestos, conhecendo as vontades e caprichos do instrumento e se deliciando no som agradável, devaneante, sem se apressar. Pouco a pouco esqueceu-se do ambiente a seu redor, toda a consciência voltada para o som e o toque, como se o mundo desaparecesse à sua volta e deixasse apenas a eles dois, músico e instrumento, num deserto de completo vazio.

... Talvez fosse mesmo verdade que havia nascido com a voz de um pássaro e as bênçãos de Väinämöinen, vindo para trazer beleza e encanto ao mundo e tudo aquilo que diziam dele; quem saberia? Mas para ele esse estado de transe não deixava de ser também uma forma de escapismo, uma fuga dos pensamentos que o atormentavam. Não era de todo impossível que seu amor pela música fosse simplesmente o reflexo de uma fraqueza. Mas tudo isso lhe pareceu repentinamente irrelevante enquanto seus dedos corriam pelas cordas mais e mais rápido, sentindo a realidade se desfazer em fragmentos brilhantes.

Imaginou cores surreais dançando entre os galhos negros das árvores mortas do inverno, como turbilhões de sol e arco-íris, e espíritos antigos cantando versos perdidos, sobre paraísos e caminhos cintilantes de pássaros; viu as costas e os mares que pareciam espelhos encrespados do céu cortados pela proa de inúmeros barcos de papel, e as altas montanhas com suas coroas de nuvens alvas incrustadas de jóias da aurora, e a chuva do verão caindo em gotas de cristal e diamante sobre os bosques sagrados dos ancestrais. Imaginou o som de flautas e vozes a louvar nomes esquecidos, enterrados fundo no coração e na alma daquela terra. Imaginou belas histórias de amores frustrados, grandes planos de astúcia e inteligência, criação, destruição, poder e heroísmo. E a visão o encheu de adoração e assombro, levando-o além do tempo e do espaço àquele lugar perfeito, tecido em luz e canção, que ele visitara tantas e tantas vezes antes. Cada vez mais desejava ir para lá e não precisar voltar. Lá não haviam preocupações. Não havia a dor, nem o remorso, nem a angústia, apenas beleza e êxtase eternos.

Mas de repente um canto trinado despertou Vieno de seus devaneios: um som doce, agradável, como uma flauta dos deuses. Olhou à volta; acima de sua cabeça, um pequeno rouxinol, o marrom escuro da plumagem contrastando com o céu muito azul, cantava a plenos pulmões. Curioso, certamente; a época de sua partida não havia passado uma estação atrás?...

A ave virou a cabecinha, os pequenos olhos pretos fitando o rosto do menino, e pipilou mais uma vez. Seria impressão sua o olhar brilhante do pássaro, quase humano, as cores que bailavam à sua volta numa aura suave, e o vento que sussurrava feitiços para as bétulas? Mãe Ritva costumava dizer que nada era em vão; que os deuses mandam muitas mensagens a quem quer ouvi-las. Vieno fechou os olhos, sentiu a brisa tocar-lhe os cabelos compridos e deixou que lhe aflorassem à mente as imagens e aos lábios as palavras, pedindo ajuda aos espíritos para compreender o sinal. E viu, naquele estado entre as realidades, um grande bando de aves que voava sobre um lago; eram alli, notou subitamente, enquanto via o desenho dos pássaros contra o poente e as elegantes caudas típicas. Ela estaria no centro da vila a esta hora, não? O rouxinol soltou uma nota límpida, saltitou no galho, lançou-se em vôo na direção da aldeia; e o menino se apressou em segui-lo, correndo tanto quanto podia.

Avistou ao longe a velha torre de pedra; teria Aulis já passado por lá? Deu de ombros, arrumou a caixa pesada nas costas e caminhou até o pé da construção. E ela ainda estava lá, pensativa e solitária, e o coração de Vieno se apertou ao vê-la; parecia tão triste. E ele podia fazer tão pouco pela irmã, apesar de amá-la mais que tudo. Mas ela não precisava saber que ele se preocupava com isso. Não precisava de mais um motivo de aflição, por menor que fosse; seu sofrimento já era grande o suficiente. Reuniu forças para se obrigar a soar despreocupado e casual; o artista cumpre seu papel, custe o que custar, e convence a platéia de sua sinceridade, dissera seu mestre. E, pelo menos nesse sentido, ele era um artista perfeito. Sua platéia era o mundo, e para ela Vieno mostraria qual máscara lhe fosse pedida.

Sorriu, incorporando sua personagem, e chamou a irmã em voz alta. Hora do almoço.

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Estômago satisfeito, colocou a mão no corrimão, pensando em ir até seu quarto, trancar-se e estudar para poder mostrar algo apresentável ao professor. Mas olhou para trás, e seu coração pesou no peito. Alli parecia tão...

... sozinha.

Suspirou. Devia estar sentindo falta de Aulis, por certo; os dois nunca se largavam, tamanho era o carinho que tinham um pelo outro. E, é claro, secretamente ele se sentia machucado, menos querido, no fundo de seu orgulho; mas como não ficar feliz por eles quando os via rindo juntos com sua alegria inocente? Como não ficar contente por serem tão bons amigos? Se pudesse formular o pensamento e descobrir com certeza o que o afligia, Vieno talvez chorasse, talvez se sentisse só; mas seu remorso não lhe permitia sequer terminar o raciocínio. No momento, sabia apenas que ela estava triste, e se sentia impotente por não saber como alegrar um pouco a irmã; algo lhe dizia que o outro ainda iria demorar bastante. Talvez... chamá-la para estudar um pouco? Iria distraí-la, no mínimo. E realmente ajudaria se não precisasse pensar em problemas e lembrar-se deles a todo momento.

Foi no fim das contas uma das melhores tardes de que se lembraria no futuro. Estudaram, riram, contaram um ao outro histórias inventadas e fábulas de heróis e amantes. Engraçado como com ela essas brincadeiras tão corriqueiras se tornavam divertidas, prazerosas, ao contrário do tédio mal suportável dos jogos de outras crianças; seu riso enchia o coração de Vieno de alegria e felicidade, sentimentos tão fortes e sinceros que ele se sentia transbordar, e seus olhos cinzentos, mesmo cegos, eram a visão mais bela que ele já tivera. E ele invejou Aulis em silêncio, vendo o sol poente refletindo suas cores quentes nos cabelos e rosto da irmã.

Alli.

A visão fazia doer seu coração. Sua respiração vinha em haustos cansados, sôfregos. O desejo de abraçá-la e pedir que não o deixasse, confessar que sem ela não tinha motivos para viver, o sufocava. Mas, ainda assim, era uma sensação tão boa. Se fosse dar um nome a ela, seria amor.

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Já estava escuro. Voltou para o quarto, sorrateiro, enxugando freneticamente os cabelos compridos; mãe Ritva teria um ataque se o visse agora, lavando a cabeça naquele frio e com a água precariamente amornada na caldeira. Sentou-se na cama e esfregou o melhor que pôde com a toalha já bem úmida, depois trançou os cabelos frouxamente e arrematou com uma pena branca de cisne. Começava a nevar lá fora, e Aulis estava longe. Fechou os olhos e estendeu a mão para pegar sobre a mesa de cabeceira uma das pedras com runas que pintara com as próprias mãos, enquanto pensava no retorno do irmão. E confirmou seus pressentimentos ao ver o símbolo escolhido: ele voltaria só pela manhã. Suspirou, agradeceu com uma breve prece e recolocou a runa no devido lugar, pensativo.

A neve lá fora captou sua atenção, girando em pequenos turbilhões de vento num baile elegante, alguns flocos entrando vez ou outra pela janela. Levantou-se e caminhou alguns passos para trás, a mão ainda sobre a cama, intrigado; e, sem querer, seus dedos esbarraram em algo frio e fino, tirando um fugaz som de sinos. O acorde acidental casava bem com a visão dos flocos a dançar na brisa, percebeu com um leve arrepio, como se fosse um retrato em som da visão... E uma idéia lhe veio à mente. Se ele podia, por que ela não?

Pegou o instrumento de cima da colcha de retalhos e dedilhou algumas notas, meditativo, depois ergueu a cabeça de súbito e caminhou na direção do quarto da irmã.

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Se havia uma boa hora para testar o que Jalo lhe dissera, era agora. Vieno nem de longe tinha tido o tempo necessário para desenvolver qualquer técnica com o kantele. Mas o menestrel dissera, quando lhe entregara o instrumento, que o espírito de um artista o leva a se expressar com o que tenha em mãos, independente da situação; e que esse espírito vivia nele, forte, apenas adormecido, como sementes sob a neve, aguardando passar o inverno para germinar. Mas então por que suas mãos suavam, por que sua voz ameaçava tremer? Não deveria ser assim. Suas palavras estavam estudadas e bem-elaboradas, cada gesto, cada toque, cada pausa. Havia previsto várias situações, várias respostas, e planejado sua reação a cada uma delas. Apertou as bordas do kantele nas mãos, nervoso. Bem... nada iria acontecer se sua idéia não desse certo, não é? Absolutamente nada.

Não faria diferença nenhuma.

Mas se havia algo que ele queria fazer, era exatamente isso. Fazer alguma diferença. Para as pessoas, para o mundo. Para ser lembrado. Para fazer a felicidade, e viver nas memórias e no amor alheios. E decidiu: não se deteria, nem que seu coração parasse de bater, nem que sua alma fosse arrancada do corpo, se fosse preciso para vê-la sorrir.

"... Voe, querida."

De repente sua consciência englobava a tudo: a ele, a ela, à vila e a floresta, ao mundo; se havia realmente um criador, sua perspectiva da existência deveria ser parecida. Flocos de neve e vento voltearam sob suas mãos, as estrelas brilharam ao ritmo de seus dedos, e sua voz ditou o compasso do mundo, auroras e crepúsculos. Tomou a irmã nos braços, tocando sua alma com a sua própria, e dançou com ela por uma eternidade. E quando abriu os olhos, ao fim do último acorde, Alli dormia.

Vieno fitou o rosto da irmã por alguns minutos, inerte; seu corpo pesava como se feito de pedra, sua mente incapaz de tecer qualquer fiapo de raciocínio. Os sentidos lhe voltaram lentamente, como uma centena de agulhas penetrando sua carne, e ele se levantou a custo. Andou alguns passos dolorosos na direção da cama, levantou-a nos braços e a deitou cuidadosamente sobre o travesseiro e sob as cobertas, cobrindo-a até os ombros com cuidado. Passou a mão pelo rosto da irmã, beijou-lhe levemente a testa, fechou as janelas e saiu em silêncio.

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Em seu quarto, as luzes apagadas, deitou-se na cama e olhou o teto, sentindo a sombra de um sorriso ainda nos lábios. Estava cansado, mais do que se lembrava de ter estado em anos. Mas, mesmo assim, estava contente.

Cruzou as mãos sob a cabeça, sentindo o sono chegar, e deixou a mente vagar pelos estranhos caminhos tortuosos que levam do mundo desperto ao dos sonhos, tentando sem esforço lembrar-se do que tocara pouco atrás. Como era mesmo a melodia, agora...? Cantarolou um pouco, despreocupado, fechou os olhos...

... e ouviu acima de si o som das grandes asas macias. Todos à sua volta olhavam para o céu muito estrelado, admirando o grande pássaro, branco como a neve, a passar sobre eles como se deslizando no ar. E ele soube que o amava, e sorriu para ela, tão alto, lá em cima. Mãos nos bolsos, canção nos lábios, ele se pôs a caminhar no rastro do pássaro, os passos leves e dançantes. Em seu caminho viu pessoas que nunca vira na vida, mas que não lhe eram desconhecidas, seus rostos cheios de vida e brilho destacando-se na multidão. E elas murmuravam palavras de louvor e nomes estranhos, suas roupas misteriosas cintilando como um tecido do universo sob a luz acima...

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Quando acordou e abriu as janelas, viu além delas o céu escuro, uma leve pista de aurora despontando no horizonte; era ainda absurdamente cedo, e uma parte de si queria desesperadamente se enrolar nas cobertas novamente e aproveitar mais algumas horas de descanso. Mas algo o incomodava, como uma coceira: as palavras da noite anterior, gravadas em sua memória com marcas de fogo, não o deixavam em paz. Sentou-se na cama, coçou a cabeça e pensou. Jalo deveria saber o que significavam se lhe perguntasse... será que não ficaria muito bravo se o visitasse àquela hora? Bem, deu de ombros, era importante. Vestiu-se rapidamente, colocou os sapatos e saiu, apressado.

Voltou após algumas horas, atordoado, com um maço de folhas sob um braço e esfregando os vergões nas costas, e sentou-se no sofá para estudar e tentar forçar sua mente a absorver o que descobrira. Uma deusa sob forma humana, tão próxima? Jamais haveria imaginado que...

Mal percebeu quando Aulis chegou, trôpego de cansaço, e tombou a seu lado como morto. Mas viu claramente quando alguns minutos mais tarde Alli desceu as escadas e olhou para eles; seus olhos cinzentos, acesos de fulgor e glória, encontraram os dele com uma certeza incomum. E ele teve certeza de que ela poderia ver seu sorriso respeitoso, e a mesura que aprendera em seus sonhos com os antigos cavaleiros, antes de aceitá-los com dignidade e sair.

"... Salve, minha Senhora."


Notas:

a. Kauas, "Distante".
b. Extraído da letra de For The Heart I Once Had, Nightwish.
c. Kantele, instrumento similar à cítara que consiste cordas esticadas sobre uma caixa acústica e tangidas com os dedos. O kantele é tido como o instrumento nacional da Finlândia.
d. Jalo, "nobre", "gracioso".
e. Taika, "feitiço", "magia".
f. Opettaja, "professor".
g. Suomi, nome da Finlândia entre seus nativos.
h. Tuonela, o mundo dos mortos, equivalente ao Hades grego.
i. Venäjä, nome da Rússia em finlandês.
j. Itse, a porção espiritual correspondente ao "eu".
k. Väinämöinen, herói do épico Kalevala e um deus primevo, dotado dos poderes da música e da canção. Construiu o primeiro kantele a partir da mandíbula de um lúcio gigante e dos dos fios da crina do corcel de Hiisi, e o segundo a partir de madeira de bétula e dos cabelos de uma virgem.
l. Referência à Via Láctea, tida como o caminho que os pássaros migratórios percorriam no outono para chegar a um paraíso de eterno verão.
m. O rouxinol [Luscinia megarhynchos] é uma ave migratória e passa na África os meses de inverno.
n. O cisne é tido como a ave mais sagrada da Finlândia.


Quarto capítulo, solo de Vieno.