Já faz um tempo que eu não comento minha vida, mas não necessitei pois os dias vão amigavelmente alegres, e nós simplesmente nos esquecemos de comentar uma coisa ou outra de ruim. Isso mudou.

Minha mãe está tentando parar de fumar, numa conversa descontraída comentei minha primeira tragada aos 17 anos, mas ela chocou-se porque sempre fui um exímio filho de bons modos, boas notas e boas promoções escolares. Jogou-me na cara minha febres de adolescente, as noites que ficava acordada ao meu lado, cuidando de mim, e por último voltou-se para sua pia resignada e triste.

Obviamente EU me depreciei, pois mãe é mãe por mais que recorra as suas chantagens sujas. Ela está brava, e muito, ainda continua batendo as panelas e sim, eu ainda fumo, mas sempre evitei em sua presença. Agora, se ela voltar a fumar, vou me sentir culpado.

Porque os pais acham que seus filhos devem ser sempre perfeitos? Ainda afirmo que a vida é uma loteria, mas enfim... é isso. Quanto a minha prole, essa eu não consigo dar um jeito de modo algum...

*

"Por que não podemos permitir que ele faça o curso de teatro?"

"Isso não é próprio pra ele".

"Camus, sabe muito bem da relatividade dos empregos hoje em dia, ele pode ser maravilhosamente bem sucedido".

"Não acho que poderíamos ser tão otimistas" - disse o francês bebericando de seu café fumegante.

"Preferia que você se opusesse a outras atitudes de Hyoga, como o fato de nunca ter um parceiro fixo...".

"Oras, isso não é umum mérito só dele não é?" - deu um sorriso charmoso para Natássia que, diga-se de passagem, está linda hoje.

"Camus, por favor, eu não quero falar sobre isso".

"Haha... você sempre evita falar mesmo" - sorriu - "Não ando conseguindo falar com Milo".

"Ele anda muito ocupado com a empresa" - retrucou resignada - "Bom, vou visitar a minha mãe, ainda bem que vim para cá nesse fim de semana".

"Porque não passa mais tarde lá em casa para podermos falar mais sobre Hyoga".

"Sinto muito, Camus. Não seria providencial" - retrucou envolvendo o xale mais perto que pode de seu pescoço fino e alvo, deixando a cafeteria de encontro ao outono Francês.

*

Nos dias que se sucederam Camus e Natássia não se encontraram enquanto ela esteve hospedada com Hyoga na cidade natal dos dois. Contudo, Hyoga fazia visitas regulares a residência de Camus para tentar convencê-lo da nova profissão e assim foi por muito tempo até que eles retornassem novamente a Paris quando Milo foi buscá-los no fim de semana.

Antes vamos abrir um parêntese para uma visita que Camus recebeu naquele sábado a noite, altas horas, enquanto ele escrevia as últimas contas de seu serviço administrativo e esperava um telefonema de Hilda.

"Milo?".

"Olá, Camus" - disse o grego sorridente, mas parecendo ligeiramente cansado - "Será que eu poderia entrar?".

Pedido acatado prontamente e regado ao mais caro uísque que Camus pode oferecer acompanhado de seu sofá rasgado no interior do imóvel.

"Fiquei contente que pode vir... conversei com Natássia e ela me disse que andou ocupado".

"Os negócios estão me matando, amigo, infelizmente, eu que sempre fui muito boêmio vejo-me renunciando aos prazeres terrenos" - confirmou virando metade do seu copo de uma vez e voltando com uma careta - "Hum... escocês".

"Hahaha... sei como você aprecia um. Deveria ter nascido de saias".

"Prefiro as saias das outras, como você sabe" - ele olhou triste para o líquido no seu copo - "Natássia, está... me traindo".

Camus se absteve e olhou-o chocado. Milo? Ela estava nos traindo ou traindo você? Essa foi a pergunta que surgiu na cabeça de Camus enquanto ele acariciava sua cabeça sossegado.

"Trair? Milo, está imaginando coisas...".

"Não. Não estou! Peguei ela conversando muito intimamente com um homem e combinando um encontro com ele aqui. Quando a surpreendi ela desconversou e falou que estava conversando com uma amiga" - bebeu o resto do uísque e estendeu seu copo para que Camus colocasse mais - "Sabe que eu nunca quis me casar, mas quando conheci Natássia... ah! Claro, depois que vocês estavam separados, eu vi como ela é uma mulher legal".

"Ela é!" - agora era a vez de Camus beber um trago.

"O que eu faço?"

"O que você quer fazer?".

"Nada! Não quero confirmar que ela está saindo com outra pessoa".

"Então está resolvido...".

"Camus, também não posso, simplesmente, fingir que nada está acontecendo".

"Então, persista em sua busca" - retrucou desviando o olhar - "Apenas isso".

Milo bebeu mais um gole de uísque e começou a desafogar suas mágoas do casamento ali, no colo de Camus, como sempre fizera nos tempo de escola.

"Bom, Camus, obrigado por me ouvir" - ele tentou se levantar, mas caiu cambaleante sobre o sofá novamente.

"Dê-me as chaves do seu carro".

Camus levou um Milo quase inconsciente até a casa da mãe de Natássia onde estavam hospedados. Apertou a campainha, ajudou-o a sair do carro e Natássia a levá-lo para cama.

"O que está acontecendo?" - perguntou um Hyoga sonolento que estava cochilando no sofá - "Com esse barulho vão acordar a vovó".

"Venha, Milo" - disse Natássia amparada por Camus levando-o até a cama de casal do quarto de hóspedes no andar superior.

"Agora, vê se dorme de vez, garanhão" - disse Camus brincalhão ajudando o amigo a se arrumar enquanto Natássia tirava seus sapatos.

"Obrigado, Camus" - respondeu virando para um lado e dormindo - "Você é um ótimo... ótimo... amigo".

Camus e Natássia saíram do quarto e um olhar culpado recaiu sobre os dois que se encararam demoradamente.

"Acabou não foi?" - ela perguntou.

"Há anos".

"Então porque...".

"Não sei porque, mas é bom que deixemos isso de vez no passado" - retrucou o francês descendo as escadas.

"Boa noite, Hyoga".

"Boa noite, pai" - disse o loiro.

"Hum... filho. Pode fazer artes cênicas".

"QUE?" - ele fez menção de se levantar e pular em seu pescoço, mas não deu tempo, pois Camus fugiu o mais rápido que pode para não mudar de idéia. Para ver as pessoas que gostamos felizes, muitas vezes devemos deixá-las fazer o que quiserem.

No dia seguinte Milo, Natássia e Hyoga voltaram para Paris. Camus e sua ex-mulher não tentaram mais se comunicar, apesar de olhares furtivos e cheios de significados sempre rondarem a conversa dos dois, nunca mais passou daquilo.

Mas, meses mais tarde, Milo traiu Natássia com uma ruiva espetacular e foi ela que resolveu por um ponto final definitivo no casamento. Pelo menos foi isso que Hilda disse a Camus minutos após sentarem para ver um espetáculo.

"Sério, querida?" - perguntou Camus beijando a mão da mulher docemente - "Eu não sabia disso...".

"Justamente! Natássia me confessou esses dias após um Dry Martini".

"Mudando de assunto... Siegrinfield não se incomodou que você me acompanhasse no seu dia de folga ao teatro?".

"Hahaha... ele não sabe que estou aqui. Você é sempre um ótimo paliativo".

"É um prazer. Quer dizer que Natássia está só de novo?".

"O que pretende?".

"Não sei, acho que nada... gosto da minha vida pacata de agora".

"As luzes estão se apagando".

"E vamos ficar em silêncio, Hyoga já vai entrar em cena...".

E Camus foi administrador e viveu feliz até descobrir pedra nos rins.

Fim

N/A: Eu acabei com o Camus! Coitadinho! Juro solenemente tentar evitar meu humor negro. Ohohoh... obrigado meus poucos leitores, foi um prazer. Desculpe o mal estar final.

Marfine.

Sexta-feira, 13 de Fevereiro de 2009.