Arco 1:

*A Mais Escura*

Capítulo 1:

*Deuses Entre Nós*

O toque do sino ecoava pelo vilarejo. Dezenas de pessoas, homens e mulheres, crianças à idosos, todos se reuniam com mantos laranjas sob a luz ofuscante do Sol em um altar no centro do vilarejo. Este altar que possuía uma mesa em frente ao sino com um livro pequeno em cima.

Andando em frente a todos, um grande homem, com cerca de trinta anos, um corpo musculoso e forte. Seu rosto não podia ser visto por baixo do capuz, mas assim que ele sobe no altar e pega o livro, ele começa a falar:

"Amigos. Voltamos hoje mais uma vez para rezar ao todo poderoso Sol, Aquele que é o centro de nossa galáxia," Ele discursava enquanto lia ao longo dos parágrafos do livro. "pois hoje é dito ser o dia em que Ele descerá dos céus para nos agraciar com Suas chamas celestiais!"

As pessoas, que até então estavam ajoelhadas, se levantam e erguem os braços ao fim do discurso. O homem no altar se vira se costas, replicando a ação de todos após puxar a corda e tocar o sino uma vez mais.

"Oh, glorioso Sol! Agracie-nos com Seu majestoso fogo!" Os fiéis repetem sem parar na duração dos toques do sino. Então, quando ele para, todos se calam, deixando apenas um silêncio frio dominando a área. Eles esperaram e esperaram. Esperavam algum sinal do Sol, mas nada aconteceu.

Enfim, o homem no altar sussurra "Eu não entendo... Era para ser hoje." com um tom de decepção e confusão.

No entanto, poucos segundos de silêncio depois, algo deverás estranho aconteceu. O sino tocou novamente, porém por conta própria. O homem estava longe da corda, e a mesma não foi puxada por ninguém. O sino apenas começou a balançar sozinho como se tivesse vida própria. A multidão o encara, assustada e incrédula.

A seguir, um objeto passava voando pelo céu com um alto estrondo que chamou a atenção dos fiéis. Uma enorme bola de fogo, com um rastro saindo diretamente do Sol e vindo em direção ao vilarejo em alta velocidade. Todos se afastam, com medo de ser um meteoro prestes a destruir aquele local. Porém algo ainda mais estranho acontece; o objeto acelerou e caiu logo atrás do sino sem causar nenhum dano ao chão ou aos arredores.

O líder do grupo dá a volta no sino para ver o local de pouso. Lá ele encontra dois seres vivos; um adulto e um bebê, nenhum deles humanos. "Quem... é você?" Pergunta ao se aproximar com cautela. A cada passo que dava ele podia ver melhor com quem estava falando.

O adulto era um tipo de lobisomem com pelos roxos cobrindo seu corpo, mesmo que apenas sua cabeça estivesse visível com suas orelhas erguidas. O resto dele estava coberto por uma capa estranhamente mística. Olhar para ela é como olhar diretamente para o céu estrelado, porém dava para notar que isto não era apenas um desenho, mas algo como uma projeção.

O lobisomem se vira, olhando para o homem com seus olhos azuis brilhantes antes de abrir sua boca em um sorriso. "O Sol ouviu seu chamado, e aqui está... Ela." Estende os braços que seguravam um bebê, este que tinha características de uma mariposa, peluda e adorável.

Embora relutante, ele tomava a criança dos braços do visitante peludo, dando uma boa olhada em seus pelos brancos, antebraços e pernas amarelas como o Sol, nos seus olhos azuis como o céu, adoráveis e belos, enquanto gentilmente massageava suas antenas amarelas semelhantes a grandes penas de quinze centímetros. E, por fim, suas pequenas asas, também amarelas e brilhantes com grandes bordas pretas.

O lobo falava mais uma vez, chamando sua atenção. "Seu nome é Sundaze. Ela não é filha do Sol, não é criadora dele, ela É o Sol em pessoa. E, agora, confio seus cuidados à você, o líder do clã solarês. Você aceita?"

Ele pensa por um tempo, alternando seu olhar entre o lobo e a criança. Se o que acaba de ouvir era verdade, então ele estava segurando um verdadeiro deus – ou deusa – em suas mãos e deveria criá-la como sua filha. O peso da responsabilidade é enorme, grande demais para qualquer humano.

"Eu... aceito." O responde, confiante no que diz e em si mesmo.

"Excelente. Cuide bem dela." O lobo se virava, projetando uma grande fenda ou portal místico luminoso pelo qual passava, até ouvir o humano o chamando e fazendo uma pergunta; "Quem é você?"

O lobo ri e, sem se virar, responde. "Pode-se dizer que sou o pai deste universo." E então atravessa seu portal, sumindo diante de seus olhos.

[•••]

Naquele mesmo dia, durante a noite...

Vilarejo do clã lunarês.

Não restava ninguém nas ruas a esta hora da noite. Não havia nenhum som ecoando por parte alguma do vilarejo, nenhuma cigarra, nenhum grilo, nenhum outro animal, nada. Apenas o completo silêncio.

Tal como os solarês, este vilarejo pertence a um clã que crê nos astros. No caso, seguidores da própria Lua. Ambos os vilarejos foram feitos em uma enorme montanha localizada em uma ilha afastada de qualquer continente, construídos em suas laterais e sendo considerados até mesmo pontos turísticos como parte de uma das culturas mais antigas de Terramar.

Apesar de estarem em lados opostos da montanha, o Monte Fijan, ambos os vilarejos e suas populações vivem em paz um com o outro. Suas religiões facilmente são vistas como uma só, apenas tendo escolhido um astro celestial específico – ou aos seus olhos, um deus celestial – para venerar e servir.

Enquanto cada pessoa do vilarejo estava em suas casas, em um sono profundo sobre suas macias e confortáveis camas, mal sabiam eles que de repente um visitante chegava ao seu lar, carregando consigo um bebê, também dormindo tranquilamente em seus braços.

Ao longo de sua caminhada, o visitante cantarolava uma canção de ninar para o bebê. Cada passo que dava deixava para trás uma marca de luz, que crescia e se espalhava com o tempo até cobrir toda a rua. A luz intensa emitida por essas marcas era forte o suficiente para chegar até dentro das casas através das janelas, e por isso várias pessoas acabavam acordando incomodadas por sua intensidade.

Estes que se levantavam iam para fora de casa em um estado de grande sonolência. Por conta disso, muitos deles demoraram para perceber o que estavam vendo, já alguns só pensavam que era tudo um sonho. Eventualmente a multidão cresce, cercando o visitante.

"Saudações, humanos." O visitante começa, os cumprimentando com uma voz melodiosa e feminina. Ela leva uma de suas mãos ao seu capuz, o abaixando até seu rosto ser exposto. É enfim revelado que a visitante misteriosa, tal como a bebê em seus braços, são seres escamosos com corpos azuis escuros, com a adulta possuindo um par de chifres saindo da cabeça e belos olhos brancos.

As pessoas a encaravam durante minutos, se questionando se o que presenciavam era real ou alguma alucinação. Murmuravam entre si, querendo garantir que não eram os únicos vendo uma criatura não-humana falando e usando algum tipo de magia luminosa.

"Vocês, lunareses, querem saber quem somos? Pois eu sou Luna, e eu lhes trago Aquela que vocês cultuam, a própria Lua; Alamuna!" Erguia o bebê acima de sua cabeça para que todos a vissem. A mesma permanecia em um confortável sono, enrolada em seu pequeno cobertor.

[•••]

Hoje o dia está frio, com uma forte brisa gelada batendo nos rostos das pessoas. Além de ser um dia calmo, perfeito para sair e fazer alguma atividade em grupo como praticar esportes, fazer um churrasco ou simplesmente passear.

E é basicamente isso que todos estavam fazendo ao redor de ambos os vilarejos, sem nenhuma preocupação ou problema pendente. Principalmente os que caminhavam pelas trilhas do monte Fijan, sozinhos ou acompanhados.

Agora mesmo, um jovem casal passava por essa trilha com um par de bicicletas. Planejavam cruzar a montanha e ir de um vilarejo ao outro e aproveitar a mudança de atmosfera. Neste momento eles chegavam à entrada, saindo da trilha da montanha e entrando nas ruas do vilarejo lunarês.

"Então, que tal aquele restaurante de frutos do mar para o almoço?" O rapaz pergunta.

"Me parece uma ótima ideia. Eu estou faminta."

Eles mudam de direção, indo para a primeira rua à direita, quando de repente suas bicicletas ficaram travadas no chão. As rodas pararam de girar, forçando os dois a descer e verificar. Ambos viam não um buraco nas rodas, como esperavam, mas sim a borracha delas completamente derretida e colada ao chão.

"Como que isso aconteceu?" Eles se perguntam em voz alta. Tentam puxá-las para cima juntos, no entanto elas nem se moviam do asfalto. Realmente grudaram e não separariam tão cedo.

Não muito longe de lá, vindo de um beco, uma risada infantil era ouvida. Um grupo de cinco crianças estava escondido atrás da parede, espiando a situação do casal e suas tentativas de desfazer o estrago repentino.

Três delas eram moleques já bem conhecidos no vilarejo como sendo um grupinho de encrenqueiros que adoram fazer pegadinhas elaboradas com os outros. Quantos às outras duas crianças... Bem, não são humanas. São uma lagarta e uma mariposa humanóides, rindo junto de seus amigos. Via-se que as palmas das mãos da pequena mariposa emanavam uma forte onda de calor, a que usou para derreter a borracha.

"Ai, isso é muito engraçado!" A mariposa dizia entre vários risos silenciosos.

"Seus poderes são ótimos para isso, Daisy!" Um dos garotos exclama, se referindo à Sundaze e dando alguns tapas nas suas costas. "E você, o que você consegue fazer, Muna?" Se vira à réptil, quase completamente coberta por um manto.

Ela ri, voltando para ver o casal. "Observe."

As crianças voltam a olhar, e prestando bastante atenção podem ver a sombra de uma casa se mexendo. Um tipo de tentáculo emerge dela, se esticando até os jovens pelo chão. Em um momento onde a garota ia dar a volta nas bicicletas ela acaba por tropeçar no tentáculo sombrio antes do mesmo desaparecer. Ela quase caiu, mas seu namorado foi rápido em a segurar pelo braço.

Novamente, as crianças caem de rir, principalmente Alamuna, que parecia muito orgulhosa de sua brincadeira infantil. Depois de extravasar toda sua alegria, as crianças saem do beco, Alamuna apenas depois de cobrir a cabeça com seu manto.

"E agora, vamos fazer o que?" Sundaze pergunta, entusiasmada enquanto acompanha o grupo por trás.

"Vamos zoar com os valentões da escola, é claro! Denis deve estar tentando tirar dinheiro das outras crianças no parquinho."

"Argh! Não suporto ele, sempre pegando meus lápis!"

"É! Quero ver ele dançar com os pés pegando fogo!"

O tempo todo o grupo ficava fazendo seu planejamento de novas "atividades" para fazer com o tal Denis. Todavia, isso deixava as duas deusas confusas, tendo nunca conhecido o tal garoto, já que não vão para a escola. Sendo criaturas não-humanas e, principalmente, deusas, ambas receberam estudos domiciliares durante toda as suas vidas.

Como Sundaze não tinha um pai ou uma mãe para cuidar dela, ensiná-la e acomodá-la, desde o dia em que chegou ela esteve vivendo debaixo do teto do homem à quem foi entregue, que por acaso também é o chefe do clã, conhecido pelos solereses como "Pai Antares". O mesmo que agora já estava um pouco mais velho, com quarenta anos, dez anos depois de a receber.

Por outro lado, Alamuna teve uma sorte maior ao chegar com uma acompanhante. Aquela que visitou o clã dos lunareses dez anos atrás, e agora também foi reconhecida como líder deles, uma celestial que agora se chamava "Mãe Luna".

Ambos os líderes eram pais muito amorosos e atenciosos com as duas, sendo rígidos e frios quando necessário, mas amigos e brincalhões em momentos casuais entre eles. E claro, eles tinham seus deveres específicos com as duas. Pai Antares era responsável por educá-las em sua casa no vilarejo solarês, enquanto a Mãe Luna ensinava-as a usar seus poderes apropriadamente.

Mesmo assim, Sundaze, também chamada de Daisy, e Alamuna, conhecida casualmente como Muna, tinham a liberdade para andar livres pelos vilarejos. Afinal, não existe nada no reino mortal que pudesse causar danos à seres celestiais, tal como para demônios ou anjos.

No meio de sua caminhada, Alamuna acidentalmente pisa na borda de seu manto. Como resultado, ela tropeça e cai deitada no chão, seu capuz agora retirado. De repente, Alamuna sente uma intensa dor, uma sensação de queimação horrível cercando toda a sua cabeça. A pequena Lua grunhia de dor para não gritar. Imediatamente, Sundaze se apressou para levantar seu capuz e proteger sua amiga da luz do Sol.

Bem, existe apenas uma exceção à regra. Alamuna, sendo uma criatura celestial das sombras, se queima caso seja exposta à luz solar por mais de três segundos, causando aquela terrível sensação ardente e torturante. Por que isso não se aplicava à luz de Sundaze diretamente? Ninguém sabia explicar. Apenas teorizam que isso se deve por Sundaze ser a luz em forma física e concentrada, e não radiante.

"Muna! Você está bem!?" A mariposa perguntava, ajudando-a a se levantar da calçada e segurando suas mãos, repleta de preocupação.

Alamuna balança a cabeça, grunhindo mais um pouco. "Ainda arde... Mas vou ficar bem."

"Ah, graças ao cosmo!" A abraça bem apertado e esfrega sua bochecha na dela carinhosamente. "Vem, vamos te levar para casa. Foi mal gente, não vai dar para continuar mais hoje."

"Tá bom... A gente zoa com o Denis na semana que vem." O trio de garotos de despede das duas, se distanciando pela calçada enquanto as duas vão pelo lado oposto.

O tempo todo Sundaze apoiou sua companheira sobre seus ombros, dado que a dor a causou uma certa tontura que poderia ser perigosa se deixá-la andar sozinha. Elas caminharam juntas até chegar na entrada de uma casa consideravelmente maior do que as outras.

A casa tinha dois andares e um formato quadriculado, como se fosse feita de vários quadrados e retângulos. O jardim tinha um pequeno lago artificial na esquerda, onde haviam alguns pássaros pequenos bebendo da água. Eles voam para longe ao verem as duas deusas se aproximando, indo em direção à porta e batendo algumas vezes.

Sem demora a porta se abre com a Mãe Luna do outro lado. "Céus, o que aconteceu?" Ela perguntou ao ver Alamuna atordoada e nos braços da mariposa. Sundaze prontamente lhe explicou o que aconteceu, e Luna as levou para dentro.

A líder se apressa para levar um pequeno saco de gelo e o colocar em cima da cabeça de Alamuna, na área onde ela foi exposta ao Sol. A mesma ficava sentada no sofá, apoiando-se em sua figura materna.

Sundaze também estava lá o tempo todo, sempre perguntando se ficaria tudo bem e sempre recebendo a mesma resposta de Luna. "Não se preocupe, querida. Você a ajudou antes de sofrer algum dano grave."

"Ok..." Mas continuava preocupada, sentada do outro lado do sofá e apertando seus joelhos.

"Você precisa descansar, querida. Volte para seu quarto, assista televisão. Eu vou estar aqui se precisar." Plantava um curto beijo na bochecha da pequena deusa, então se levanta e encara Sundaze por um momento. "Se comportem, ok?" Então se afasta, desaparecendo da vista delas entrando em outro cômodo.

Agora que estavam sozinhas, a mariposa pôde perguntar ela mesma "Como você se sente?" à amiga, que a responde simplesmente dizendo que se sente um pouco tonta. "Desculpa... É a minha luz que fez isso com você..."

"Não é sua culpa. Você não consegue controlar." Alamuna se vira para ela, segurando firmemente o saco de gelo na cabeça. Ela sorri, esperando que isso aliviasse a amiga de seu sentimento de culpa.

"Tem razão..." Sussurrava para si mesma, cabisbaixa.

Ela percebe isso. A Lua estende sua mão, o que causa uma confusão para Sundaze, que fica apenas a encarando sem saber o que fazer. "Vamos fazer uma promessa; você vai aprender a fazer sua luz não me ferir, e em troca vamos ser amigas inseparáveis!"

Seus olhos se esbugalham, surpresa com a proposta. Mas, sendo honesta consigo mesma, era impossível dizer não. Elas apertam as mãos e depois se abraçam. "Eu prometo, Muna."