Torturava-me então mais uma circunstância: o fato de que ninguém se parecesse comigo e eu não fosse parecido com ninguém. 'Eu sou sozinho, e eles são todos', dizia de mim para mim, e ficava pensativo.
F. Dostoiévski.
O horário de almoço no Olivier's era quieto como uma floresta à noite.
Geralmente, Sam não tinha muita companhia. Estadunidenses não almoçavam. As mesas de laca, imperturbavelmente brancas, estavam sempre desocupadas até o descer do sol, quando os poucos funcionários arrancavam seus uniformes e recheavam algumas das cadeiras enquanto discutiam o jornal ou falavam dos filhos. Sam até poderia fazer o mesmo que eles: passar a ser um pouco mais esperta e vazar antes do seu relógio bater as nove como todos os outros, mas ela havia crescido com aquela estranha rotina, e velhos hábitos não morriam. Pensando nisso, ela encarou seu prato em silêncio. A comida parecia meio cinzenta.
Muitos anos antes, quando seu pai ainda estava em casa e as coisas ainda funcionavam como deveriam, sua mãe costumava preparar mixiotes de carne de porco cujo gosto e cheiro talvez ela jamais esquecesse. Às vezes, quando a inflação não fodia demais os índices, uma porção de tortillas de trigo ou nachos mais requintados também permeavam a mesa. Ela se recordava do quão animada ficava apenas ao sentir o aroma da guacamole fresca. A rara memória feliz tornou sua comida ainda mais indigesta. Eram dois pedaços grossos de rosbife, uma porção de vagem e algumas lentilhas ao lado de cenouras mal-cortadas e uma colher larga de arroz amarelado com textura de borracha.
Aquele estava sendo seu melhor almoço da semana. Ela ainda lembrava dos piores.
Em casa, Sam gostava de cozinhar. Era boa nisso. Não estava no Olivier's à toa, por mais que seu emprego não fosse exatamente um dote culinário. Ainda assim, também não adiantava quase nada. A cozinha era um hobbie de ricos, porque levava muito tempo, e só quem tinha tempo era quem tinha a grana no bolso. Uma vez — ela lembrou enquanto amassava as lentilhas meio cruas no fundo da boca —, sua mãe até a prometeu ensinar como preparar os polvorones que comiam nos pequenos aniversários caseiros, seus e de Tara. Ela cumpriu a promessa. Sam errou a dosagem de ingredientes em todas as tentativas. Precisava continuar tentando. Mas então seus treze anos vieram, Sam disse merdas demais por saber de menos, seu pai as deu as costas para sempre e sua mãe a odiou como nunca, e o resultado foi que Sam não pôde mais descobrir se finalmente os biscoitos estavam do agrado dela.
Assim que o prato ficou vazio, ela raspou o caldo escuro da carne na lixeira. A secreção amarelada do arroz se misturou ao molho em gotas ralas. Sam dispôs do prato no balcão de mármore próximo da saída do refeitório e fez o caminho sagrado através do açougue de todos os dias, segunda à sexta, sete às nove sem faltas, com picos de movimento às cinco. Sábado e domingo eram na conveniência do posto Shell em Chinatown, vizinho da Illinois St e do seu flat alugado em Tenderloin, mas ainda estavam na terça-feira, e Sam não pensava muito adiante do que já era obrigada a fazer. Os fornecedores tinham vindo naquela manhã com três dias úteis de atraso, e qualquer intercorrência como aquela implicava em mais trabalho para ser feito em menos tempo, e um tempo que Sam sabia ser imediato.
Dentro do vestiário, seu uniforme pendia em um gancho torto abaixo do seu nome social. Seu chefe, sr. Hawkins, um homem franzino e engomado na casa dos cinquenta, era suficientemente humano — até que muito para um capitalista — e não tinha rejeitado seu pedido informal de ignorar metade daqueles seus malditos documentos, por mais que não entendesse o motivo dela não procurar alterá-los de uma vez. Para falar a verdade, ela não gostava de lidar com as autoridades. Nunca se deu com nenhuma. Kirby era uma exceção, mas sua camaradagem não era de muito uso para as leis estaduais da Califórnia e os custos altos dos processos no cartório. Diante disso, só restava recorrer à conversa, e Sam já estava acostumada aos nãos. Os sins eram só um luxo que ela deleitava de tempos em tempos.
Por baixo do gancho, na prateleira única de aço inoxidável onde Sam poderia alojar seus pertences com uma privacidade inexistente, havia um bilhete de papel. Nele, ela leu, em caligrafia familiar: Clint pegou uma virose. Fiquei com as entregas. Os porcos são seus. Seja bondosa com eles. – O.
Era Oliver, o outro açougueiro. Além da semelhança infame com o nome da empresa que assinava sua carteira, ele também era muita coisa que Sam não conseguia ser. Oliver sorria muito. Estava com pés de galinha antes do tempo de tanto que fazia isso. No universo branco monocromático em que entravam todos os dias, nada realmente parecia abalá-lo. Seu contracheque não mudaria em nada por substituir o motorista das entregas de almôndegas e outros processados, Clint Smith, que todos sabiam que estava visitando a família no Kansas fora da época de férias sob a proteção de um atestado falso, mas, mesmo assim, ele se propunha a ajudar. Sua bondade intocada era estranha, e, para Sam, até meio alienígena, mas ela tentava ser agradável nas raras vezes que conversavam.
Imersa no frio conhecido da câmara frigorífica, foi Dwight, o operador, quem a ajudou a desenganchar três carcaças para corte.
No começo, Sam se frustrava com a atenção redobrada que recebia no trabalho, e isso sempre acendia uma luzinha vermelha escrota no fundo do seu cérebro que apitava a cada vez que um deles chegasse perto demais, mas após algum tempo, Sam se obrigou a pelo menos disfarçar sua agonia. Ela até poderia detestar toda aquela codependência e talvez preferisse a ideia de trabalhar sozinha, mas os abates ainda estavam lá e precisavam ser desenganchados rápido. Sua produtividade não tinha que ter nada a ver com seus problemas de confiança. Dwight trabalhava no açougue há mais tempo, o suficiente para saber dessas coisas antes dela. Era natural que a supervisionasse. Ele também não usava redes sociais, então não poderia ler as porcarias que falavam dela de vez em quando, o que constituía outro ponto positivo. Bem, ao menos Sam estava se esforçando para achar isso. O otimismo não vinha para ela tão facilmente. Precisava de treinos. A confiança era algo ainda mais difícil de fingir, mas a vida nunca seria rosada para ninguém.
A mesa de corte era límpida e reflexiva como um grande espelho, suficiente para Sam ver seu próprio rosto com uma clareza quase torturante, se não fosse costumeira. Ainda assim, ela evitou se encarar enquanto vestia os dedos com as luvas de malha de aço e amolava o primeiro cutelo em seguida. Dwight ainda a cruzou por trás e a ofereceu protetores auriculares ao caminhar para dar início do segundo turno do outro setor. As máquinas de corte eram barulhentas como o inferno, reverberando como tambores, e uma eventual surdez cortaria pela metade as suas já limitadas opções de emprego.
"Valeu, Dwight."
Tinha sido um ato protocolado, mas, de certa forma, também gentil.
Já na porta, ele limpou as mãos em um pano de linho e acenou na sua direção, aceitando a gratidão.
Sozinha novamente, ela fitou o serviço da vez, cru e gelado à sua frente. Suínos diferenciavam-se de bovinos em muitos aspectos. Aproximavam-se em outros. O principal deles, que poucos em vida viriam a pôr em teste, era a sua semelhança com a carne humana.
Em raras madrugadas de companhia, quando Kirby surgia à porta e a noite se tornava uma criança muito, muito jovem para mulheres que beiravam os trinta, era sobre algum telhado insalubre qualquer que ela contava à Sam sobre suas experiências policiais, como as simulações de tiros e golpes em investigações criminais. Eram todas feitas em carne suína. Suave e densa como a dos homens, sensível à queimadura solar e todas as outras merdas dermatológicas.
Sam costumava incentivá-la a falar sobre o que quisesse. Era uma boa ouvinte. Melhor do que na oratória, ao menos. Mas, no fundo, aqueles eram fatos que ela comprovou muitos meses antes. Relatos e comparações não eram exatamente necessários. Suas mãos talvez nunca esquecessem.
Richie talvez também não se esquecesse. Um vai-e-vem reto e repetitivo, por todo o corpo, até mesmo de uma bochecha para outra: como uma ponte, como o simples cruzar de um túnel serrilhado. Isto é, se ele pudesse se lembrar para início de conversa. Cadáveres não eram feitos para carregar nada consigo, nem mesmo os vinte e dois rasgos que ela o dera.
Sua respiração se entrecortou por um segundo, mas ela se recompôs rápido. Foda-se, pensou consigo mesma. Os irmãos e pai dele também não restaram para contar a história. Ela não deveria estar lembrando deles, pensando neles, como se ainda fossem matéria existente.
Foda-se todos e tudo isso. Trabalhe.
Em um deslize preciso, Sam desceu o cutelo através do lombo. Aquele era um corte nobre, filé mignon suíno, e a precificação na balança era equivalente à qualidade. Quando bem preparado em medalhão ou escalope, o lombo rendia pratos de tamanho refino que Sam provavelmente jamais provaria. Não com sua reputação enlameada e conta bancária vergonhosa, memórias fodidas e traumas vestigiais à parte.
Outro solavanco na sua garganta. Sam se perguntava se tudo isso sequer importaria enquanto a sua mente tratava tão decididamente de perturbá-la independente dos seus esforços.
A lâmina do cutelo se chocou contra a mesa, ressoando como um baque. Seu reflexo, tenso e apreensivo, a encarou de volta e ela suspirou. Foda-se. Apenas foda-se.
Seus pensamentos nem sempre a atormentavam tanto assim. Não estaria no Olivier's se fossem tão recorrentes. Muitas vezes, eram como impulsos nervosos e momentâneos. As pílulas funcionavam, vez ou outra. Ela se virava nos dias restantes. Foi em uma nova tentativa igual às anteriores que Sam girou o cutelo habilidosamente e desferiu outra laceração com a lâmina amolada, desenhando e dividindo um território sangrento como se estivesse construindo um mapa. Um país fictício feito de algo que um dia respirou, comeu, talvez reproduziu, defecou e morreu pela pistola de abate.
Aquele definitivamente era um dia em que ela precisaria se virar.
Ao término de cada carcaça, o que antes formava uma única porção se destrinchava em pelo menos quinze novos pedaços. Sam buscou duas seringas no contêiner discreto atrás dos inúmeros armários do depósito, longe da visão da vigilância sanitária. De volta à mesa, pressionou o polegar no êmbolo da maior delas assim que inserida a ponta da agulha em um chumaço de nervos. Ácido sórbico. Antibacteriano. Não era exatamente ético, mas ajudava a evitar bolores. Clareava as carnes opacas pela oxidação do ferro.
A porta abriu, dando espaço ao rosto de Dwight. Ao ver o que segurava, ele pareceu encontrar algo que estava procurando.
"Já pensava que teria que ir nos Achados e Perdidos," disse Dwight, pausando paralelo à Sam, mãos enluvadas na cintura.
"Nós não temos Achados e Perdidos."
"Justamente."
Ela deu um sorriso torto. "Precisa de qual dos dois?"
"Ácido ascórbico. Muito querido. Perdi no horário de trabalho. Atende também por Vitamina C. Algum sinal dele?"
Ela devolveu a borracha protetora à agulha da seringa e a empurrou para que deslizasse pela mesa metálica na direção de Dwight. "Você deu sorte de ainda não termos fichas."
"Eu juro que tenho meus documentos no bolso."
"Acho que vou acreditar nisso."
Ele deu uma risada. "É assim que se começa um bom Achados e Perdidos, Carpenter."
Sam soltou o ar relaxadamente, voltando a manejar a carne. Assim que Dwight tocou na maçaneta para fechar a porta atrás de si, ela disse, "Ei."
O rosto dele voltou, assim como metade de seu corpo.
"Eu lembro de você dizer no nosso almoço da semana passada que hoje era o aniversário da sua filha," ela dedilhou um nó nevrálgico meio nervosamente. "Pode sair mais cedo, se for melhor pra você. Sei que mora longe. Eu cubro as máquinas."
Sam não entendia exatamente o brilho no olhar dele, mas sabia o que implicava. Era o mesmo que surgia em Tara quando ela ganhava algo que queria há muito tempo. "Ah. Eu nem lembrava de ter falado sobre isso." Dwight apalpou a porta. "Uhm. Valeu, Sam. Eu trago um pedaço do bolo amanhã."
Ela só acenou e o deixou ir embora em silêncio. O nó que estava apertando estourou nos seus dedos como uma bolha de sangue, e Sam respirou fundo, se sentindo tremer um pouco.
Sua tendência de guardar informações demais sobre os outros como forma de se antecipar a qualquer coisa vinda deles não precisava significar apenas agonia. Ela estava tentando. Hoje parecia ter dado certo. Era a coisa adequada a se fazer. Estava tudo bem. Tudo sob controle.
O barulho alto das máquinas ajudava a distrair a cabeça. Alguns cortes de boi foram para o moedor industrial e Sam os ensacou à vácuo. Restava uma carcaça dos porcos de Oliver, que agora eram seus por herança, mas ela poderia chegar mais cedo amanhã para lidar com isso. Não era de dormir muito. Seu sono sempre foi meio agitado.
Com a capa branca e limpa do uniforme no seu ombro, Sam esfregou um dos olhos. Bastava picar mais algumas porções e amaciar o restante para ficar livre. A balança etiquetadora pertencia a outro setor. Ela não costumava participar dele, também, porque envolvia atendimento ao público, e Sam não tinha exatamente o perfil de uma vendedora. Não pelo que provavelmente diziam os manuais, e ela se deixaria acreditar neles pelo menos uma vez, considerando que nunca abriu nenhum para ler.
Um pedaço grosso e pesado de músculo foi seu último do dia. Chamavam popularmente de ossobuco, e era um dos piores para consumo. Muito fibroso para o paladar mais elevado. Ironicamente, Sam até que gostava de lidar com essa porção. O trabalho mais difícil a desafiava, e a sensação de serviço feito até que era algo bom.
Quando terminou de fatiar, os seus braços ardiam do esforço anterior e deste, e Sam percebeu estar respirando pela boca quando transportou todos os produtos para a vitrine.
Olhou para o relógio na parede branca pela primeira vez desde o almoço. Eram dez e meia. Ainda daria de pegar o metrô.
Sam se limpou em uma pia atrás do pequeno armazém. A água jorrou a maior parte sangue para fora do seu uniforme e luvas. As velhas máquinas de lavar nos fundos do açougue resolveriam o que faltasse. Ela esfregou as unhas escuras nas palmas e desistiu quando os coágulos estavam duros demais nas meia-luas para saírem rápido. Não queria ter que voltar a pé ou de Uber caso demorasse muito.
Alguns funcionários deixavam o refeitório. Maioria já tinha ido embora, o resto só ainda estava ali pela demora do papo. Sam cruzou as mesas sem olhar exatamente para nenhum deles, vestiu sua jaqueta de couro surrada e se preparou para o frio tremelicante das noites de São Francisco naquela época do ano. As ruas quietas tinham várias luzes nos letreiros e poucas pessoas para vê-los. Sam pôde pegar o metrô pouco depois, bolsa sobre o colo em um assento afastado, Motorola em mãos. Tara não tinha ligado.
As coisas permaneceram iguais até em casa. Seu porteiro cochilava com a barba do queixo apoiada em algumas caixas, a pequena televisão quadrada ainda ligada em um jogo de beisebol que não parecia ser ao vivo. Sam checou o correio. Vazio. Subiu pelas escadas. A porta não reagiu quando ela inseriu a chave. Estava aberta.
Profundo como um instinto, um temor inevitável tomou conta do seu psicológico. A regra primordial era de manter as portas fechadas. Sam assegurava isso, todas as vezes, aos poucos que ainda davam as caras. Ela entrou no apartamento cautelosamente, coturnos úmidos pelo asfalto pós-chuva manchando o tapete gasto de 'bem-vindo!', e observou. Não havia ninguém na sala.
Sam ouviu algo. Talvez tivesse vindo dos quartos ou do banheiro, mas não ela conseguiu identificar do que se tratava. A mochila de Tara não estava no canto da cozinha em que ela tinha costume de largá-la quando Sam a cruzou até o seu quarto.
Encarou a porta. Não pôde evitar o tremor nas suas veias. Erguendo a mão, se pôs a tentar tocar na porta...
O ranger súbito de abertura revelou um Chad claramente bêbado, sem camisa, com uma gravata estampada enrolada no pescoço. Ele a fitava como se Sam tivesse quatro novos braços crescendo nas suas costas. "Que porra," ele sacudiu o cabelo molhado. Não parecia ser água. "E aí, Sam. Chegou agora?"
Sam respirou fundo ao ver o restante do quarto. Uma luz neon azul-marinho piscava também em branco e rosa, com um som no limite para o horário reverberando entre as paredes e muitos copos usados pela cabeceira, chão e cama.
"A porta tava aberta."
Chad deu uma olhada na direção de onde ela veio. "Foi mal. Deve ter sido a Mindy. Ela foi deixar a Bridget no Uber."
Sam entrou no quarto e fez uma careta. O cheiro de maconha era mais familiar a ela do que a todos eles somados, mas o fedor se acumulava facilmente com o ambiente fechado. "Não faço ideia de quem é Bridget."
Chad inclinou o rosto, como se fosse óbvio. "A namorada dela. Veio aqui mês passado."
Sam fechou os olhos e esfregou a mão pelo rosto cansado. Seu gesto deve ter acionado algo em Chad, porque ele se apressou em explicar:
"Ela é vice-presidente do Clube de Literatura."
"Ok."
"Sam."
"Só—" ela respirou fundo outra vez. "Só não se esqueçam de trancar a merda da porta da próxima vez."
"Foi sem querer. Ela já voltou, olha aí."
Sam demorou para se virar. Seus músculos doíam.
"Oi, Sam. Chegou tarde."
"Tive trabalho extra."
"Ok, você soa brava."
"Não é isso," ela cruzou os braços, se sentindo estranha e incompatível com aquele lugar. "Era só—" Sam se interrompeu em um suspiro. "Foda-se. Deixa pra lá."
Mindy olhava para ela com precaução. Sam não quis comprar a disputa. Afundando as mãos nos bolsos, ela preferiu fitar a parede suja perto do abajur com listras que Tara usava desde os tempos de infância. Sob o reflexo do neon, a gin tônica de frutas vermelhas parecia sangue.
"Onde ela tá, afinal?"
"Olha, Sam..."
Ela se virou de volta. "Onde ela tá?"
"No seu quarto. Dormindo."
Ela não respondeu.
Mindy a conhecia. Não mentiu duas vezes. "Ela foi com um cara pra lá, Sam, tá legal? Só isso. É só um cara. Tara parece gostar dele."
Sam continuou a observar o abajur. Ele carregava tantas memórias. Conversas secretas no escuro sobre colegas bonitos de classe e figurinhas coloridas. Tara escrevendo no seu diário além do horário de dormir e Sam vigiando a porta para avisá-la caso seus pais levantassem. Sam confidenciando suas emoções esquisitas e como pensava em deixar o cabelo crescer e odiava a ideia de um dia ter um bigode. Tara ainda mais jovem, observando a lâmpada amarela como se fosse o sol, quando Sam ainda era sua heroína de infância e podia assegurar que nada a aconteceria de mal enquanto ela dormisse.
Talvez esse fosse o seu problema. Sam sempre teve o costume de prometer coisas que não podia cumprir, por mais que tentasse com todas as suas forças.
Em silêncio, ela abriu a gaveta, pôs um maço lacrado no bolso e pegou o seu isqueiro perto da agenda de contas do mês.
"Você vai mandar ele embora?"
Sam deixou o cômodo sem responder. Nem Mindy nem Chad a pediram que ficasse, tampouco fizeram qualquer outra coisa para impedi-la de algo. Ela dobrou o corredor do quarto, ignorando o seu, passou pela porta principal — novamente entreaberta — e trancou por fora antes de sair. Mindy tinha a chave. Ela não correria o risco.
O detector de fumaça do seu andar estava com problemas. Sam havia percebido isso na segunda semana desde que chegaram em São Francisco e encontraram um flat tão barato. Em um bairro suburbano perigoso e com uma infraestrutura questionável, aquilo ainda era tudo que ela podia pagar.
Acendendo um cigarro, Sam se sentou no degrau das escadas de emergência e apoiou os braços acima dos joelhos dobrados.
A parede cinzenta à sua frente, pobremente iluminada por um led branco oscilante no teto, refletia bem o monocromático conhecido dos seus pensamentos. Sam estava acostumada ao torpor. Quase não se movia, piscava muito pouco, só inalava e soprava a fumaça de dentro para fora como um balão furado. Suas costas doíam como sempre, mas Sam tinha dificuldade de sentar com a postura correta. Era muito alta, maior que as outras mulheres por uma boa margem, e isso a fazia se sentir alienígena, incongruente. Ela continuou curvada para a frente apesar dos puxões doloridos nas omoplatas.
Sam não sabia dizer por quanto tempo se manteve assim. O maço já estava na metade quando a porta se abriu atrás dela, mas não era preciso checar quem seria.
Ela deu outro longo trago, o maior da noite. Tirou outro cigarro e o entregou para a menina que se sentou ao seu lado.
"Chad disse que você chegou tarde."
"Só algumas horas."
"Deveria ter ido falar comigo."
Sam soprou a fumaça para fora. "Não acho que o pinto do seu ficante seria uma visão interessante."
A risada de Tara, tímida contra a quietude do eco nas escadas de emergência, era familiar e quase triste.
"Ele já foi embora. E a gente só tava fumando. Eu não transo com desconhecidos."
"Sempre tivemos tanto em comum."
Virando-se na direção dela, Sam deixou que acendesse seu cigarro na ponta do seu. Quando Tara se afastou, ela disse: "Acho que eu queria me vingar de você. Por Richmond. Por você ter me ignorado na calourada do dia seguinte. Fazia meses que eu tinha pedido pra você ir comigo naquela festa."
Richmond era um distrito popular em São Francisco. Adolescentes frequentavam os parques e achavam uma ótima ideia simular ataques mascarados quando outubro se aproximava. Tara tinha ignorado seus avisos e encontrado outro sujeito qualquer debaixo de alguma macieira mágica e usado o spray de pimenta quando as coisas se tornaram intensas demais. Quando finalmente voltou para casa pela manhã em uma viatura municipal, Sam se isolou por dias e não a acompanhou pro evento de verão da faculdade. Era todo o show Carpenter's de sempre. Tara reclamava. Detestava sua rotina. Fugia. Dava um jeito de flertar com a morte e não morrer. Metia-se em encrencas e as colocava na reta. Sam trabalhava até tarde e escutava seus surtos na volta. Preocupava-se sozinha por horas quando ela desaparecia. Resolvia seus problemas e limpava toda a sua sujeira depois. Ficavam sem se falar por ainda mais tempo. Em alguns dias, se nada maior acontecesse, tudo se repetiria outra vez.
Qualquer outra pessoa responderia àquela piada com algo entre 'não faça isso na próxima' ou 'foi uma boa vingança', considerando um espectro de possíveis reações. Sam não se enquadrava exatamente em nenhuma delas. Permaneceu calada.
Diálogo não era bem o seu forte. A essa altura, Sam não tinha certeza se possuía algum forte que seja.
"Sei lá. As coisas foram boas no começo, não foram?"
Ela sabia do que Tara estava falando. Ano passado, Nova Iorque, três Kirsch's psicóticos a menos no mundo, uma máscara deixada no asfalto ao som de sirenes e uma ressurgente compreensão entre elas. Talvez até um pouco de esperança.
Aquilo tinha durado só alguns meses. Então os meses se tornaram um ano, e lá estavam elas.
"Chad que o diga."
"Chad foi um romance por adrenalina. Estamos em bons termos agora."
"Isso não existe."
"O quê?"
Ela soprou fumaça pro lado contrário do rosto de Tara. "Romance por adrenalina. Não é assim que funciona."
"E quem saberia dizer como funciona? Você?"
Sam a fitou. Tara estava dando um sorriso zombeteiro. Ela não falou mais nada, mas Sam tinha entendido. Era uma frustrada com relacionamentos. Não confiava na própria sombra. Sua propriedade no assunto era meio miserável.
Por algum motivo, aquilo a deixou pensativa.
"Bom, acho que vou dormir," Tara murmurou de novo, parecendo cansada de estar ali. Sam não a culpava. Sua presença era geralmente vista como entediante nos últimos tempos. "Tenho uma entrevista online com a secretaria da South Florida às oito."
Ela acenou e pisou no cigarro quando percebeu que tinha acabado. Acendeu outro.
"Boa noite, Sam." A porta abriu atrás dela em um ranger que parecia uma tosse seca. "Deixei o umidificador na sala, se você quiser."
Tara se incluía na porcentagem de jovens adultos que precisavam acatar a certas regras específicas para ingressarem nas universidades anos após o término do colegial. Isso se dava principalmente por Sam. Primeiro Woodsboro, então Nova Iorque, e, finalmente, São Francisco. A constante mudança de cenários atrapalhava a sequência natural dos seus estudos.
A culpa a remoía em silêncio.
Assim que a porta se fechou por completo, Sam derrubou o rosto entre as mãos. Talvez, se esfregasse o suficiente, poderia arrancar a pele e chegar no músculo, e assim viveria escondida do mundo. Uma prisioneira em carne viva. Sentir-se uma aberração poderia ser mais fácil com a certeza de ser uma.
O peso do seu Motorola no bolso de trás era como um aviso.
Sam respirou fundo. Derrubou as cinzas no chão e checou sua minúscula lista de discagem. Aluguel. Chad. Danny. Emergência. Kirby. Mindy. Tara.
Weathers.
Ela deu um trago demorado, olhos na tela. Algumas chamadas perdidas. Não muitas.
Discou. O beep soou uma, duas, três vezes. Desligou.
Discou outro número. Danny atendeu no segundo sinal.
"Sam."
"Oi."
Ele esperou na linha.
"A sua chave ainda é a mesma?"
"Não. Aperta a campainha."
"Chego em dez minutos. Quinze."
Jamais pegaria o metrô tão rápido. Danny também sabia disso. "Vou estar na porta em trinta."
Ela desligou sem se despedir.
Sam desceu pelas escadas. A fadiga conhecida nos seus músculos a acompanhou até o metrô, onde o frio lambia seus ossos como um cão faminto. O fluxo do dia pararia em breve. Teria que passar a noite fora se quisesse economizar, e isso implicava a rua ou casa de Danny.
Ele tinha vindo para São Francisco algum tempo depois delas. Morava em um flat próprio no Mission. Sam o via de tempos em tempos, com cada nova visita demorando mais a acontecer do que a anterior.
Danny estava na porta em trinta minutos, como disse que faria.
"Tara?"
"Sim."
Danny considerou seu rosto por um momento. Deixou que entrasse. Sam não se fez em casa; deixou a mochila sobre a mesa mas não se sentou nem ligou a tevê.
"Polícia?"
"Não dessa vez," Sam poderia encará-lo de frente se não ficasse sempre curvada. "Foi no nosso apartamento."
"Você não parece feliz com isso."
Ele se refestelou no canto mais macio do sofá marrom. Convidou-a silenciosamente para fazer o mesmo. Quando Sam acatou, sua postura longa e rígida contrastava diretamente com a dele.
"As coisas estão piorando." Sam não era muito boa em dar detalhes. Por sorte, Danny nunca precisou de tantos. "Não sei o que fazer pra reverter isso."
"Se ela anda fugindo e fazendo merdas que você claramente aconselhou que não fizesse, é porque quer descobrir como é ter liberdade. A ideia adolescente de liberdade. Aquela que você conheceu depois dos 13 e comprou de vez 5 anos depois, enquanto ela ficou pra trás." Sam nunca se perdoaria por isso. O pensamento a fez retorcer o rosto. Danny não insistiu no assunto. "Legalmente falando, ela também é maior de idade."
"Não se trata disso."
Tudo sobre o que Sam havia feito de pior com uma idade muito inferior à de Tara era verdade. Algumas coisas ela ainda guardava apenas para si mesma.
Nunca tinha sido sobre as autoridades.
"Então do que se trata?"
"É complicado."
Ele ficou em silêncio. Sam balançou uma das pernas em agonia. As palavras escaparam dela duramente, como se expulsas à marteladas.
"Eu não evitei de me matar por todos esses anos pra ver a minha irmã fazer isso, de bom grado, bem na minha frente," estranhamente, sua voz manteve o calibre monótono. Ela se sentia como um robô, metálica e dura no toque, gelada e viscosa de óleo por dentro. Os seus esforços estavam rendendo algo. "Eu só não posso fazer isso. Tara. Chad. Mindy. Todos eles. Eles não sabem de nada. Eu sei."
"O que você sabe?"
À essa pergunta, Sam não deu resposta. Ela evitou olhá-lo.
"Eu não deveria ter vindo." Sam admitiu após uns instantes, encarando suas mãos e lembrando da ardência que as acometia. "Tenho serviço às sete."
Ela não conseguia identificar um padrão para esses momentos de ardência. Parecia ser aleatório, mas Sam não era tão tola de acreditar nisso, e estava começando de novo, como uma espécie de coceira irritante no fundo da palma.
"Eu não vou insistir em saber de coisas que não parece disposta a contar. Não acho que você mereça isso." Seu tom conciliatório a fez respirar fundo, têmporas doendo. "Durma no quarto de hóspedes. Tem café pra você no armário. Acho que também guardei alguma roupa sua do último Ano Novo. Depois podemos conversar melhor sobre tudo o que aconteceu e tentar chegar em uma solução, juntos. O que acha disso?"
Por um segundo, Sam se perguntou se ele realmente a conhecia.
Ela amassou os dedos nervosamente, estalou alguns no processo. Então sentiu os braços reclamarem, mas não deu importância. A dor física sempre se manteria em segundo plano.
Quando conseguiu falar, a sua voz saiu entrecortada e distante. "É provável que eu nunca possa te retribuir de forma justa pelas coisas que você faz por mim. Você sabe disso, não sabe?"
Novamente, Danny só respirou fundo e se levantou sonoramente. Foi buscar algo no próprio quarto. Voltou com a sua camisa do Deftones e uma jeans escura e esfarrapada que Sam precisava dobrar na bainha por conta dos rasgos.
O sorriso despreocupado no rosto de Danny indicava que não a faria mais perguntas, não naquela noite. Sam aproveitou a mudança de atmosfera para se levantar e pegar a roupa, parando na frente dele e agradecendo por elas.
"Bem, sobre a retribuição de antes, acho que não vamos ter problemas. Minha mãe sempre me disse que eu era um cara abnegado."
Sam cruzou os braços, roupas jogadas em um dos ombros.
"Disse?"
"Não. Ela me odiava, você sabe."
"Ah, claro. O nosso principal denominador comum."
Danny moveu o corpo na sua direção. Era alto e desenvolto, mas com uma despreocupação nata que ela talvez jamais carregasse consigo. "Mas nós também lutamos razoavelmente bem. Eu sei dar uns ganchos. Você cuida do resto."
"Acho que tô meio fora de forma."
"É difícil perder a prática pra certas coisas."
Tão de perto, Danny parecia o exato mesmo do ano anterior. A potência da maneira que ele a olhava, o ir e vir da sua respiração. Por um momento, eram apenas eles dois e um corredor de condomínio suburbano em Nova Iorque, Sam cheirando a Cherry Coke barata e ambos desafogando necessidades urgentes debaixo de um véu de segredos, distantes do olhar dos outros. Impulsos físicos que hoje em dia eram decisivamente contidos, pensamentos que não cruzavam mais a sua mente. Sam os enterrava quando surgiam; os afastava sempre da luz.
Precisava se manter sob controle. Em cada mísero e mínimo sentido do termo. Não confiava em si mesma com os excessos. Os bons desciam pelo ralo junto dos maus sem distinção.
Sam sabia que Danny tinha perpassado pela sensação inevitável da nostalgia pela forma como ele curvou o rosto, ousando uma mão no seu ombro tal como naquela noite, testando possibilidades que não se materializariam outra vez.
A imagem do ralo se fixou na sua mente, precisa como um cálculo matemático. Sabia que era hora de abri-lo.
Seu sussurro soou calmo e definitivo.
"Danny."
Silêncio. Ele pressionou os lábios. Sua mão deslizou debilmente pelo seu braço e voltou para o lugar de antes.
"Acho que captei a mensagem," Danny relevou em um murmúrio baixo. "Tudo bem. Eu sei. Eu não entendo, mas eu sei."
Ela permaneceu quieta. Danny acenou de novo, talvez para algo que estivesse pensando. Ele também não parecia muito disposto a falar.
Sam mergulhou as mãos quentes nos bolsos e caminhou para o lado, entrando no quarto de hóspedes sem olhar para trás. A cama de solteiro estava arrumada com uma colcha branca e dois travesseiros. Os pôsteres originais de Taxi Driver e Cidadão Kane jaziam pendurados ao lado de um pequeno armário de MDF. Na escrivaninha, Sam notou um porta-retratos. Danny não deve ter se lembrado de remover dali.
Não era uma foto deles. Sam não tirava fotos com ninguém, nem mesmo Tara. Mas era uma fotografia de autoria sua. O sorriso de Danny no retrato era um tão genuíno que deveria ter doído, mas tudo o que ela sentia era uma fria complacência no lugar de algo mais vivo, algo que fosse melhor do que a indiferença. Nada nele chamava por ela. Talvez tivesse algo de errado consigo, na composição do seu cérebro, além do que ela presumia anteriormente.
Tirando a camiseta, Sam trocou pela nova. A calça foi tirada mais rápido. As pequenas protuberâncias de queloide onde as injeções entravam eram os menores dos problemas. Ela pôs os tênis de volta por último e esperou.
Passada uma hora, vagarosamente abriu a porta. A sala estava escura. Não se surpreendeu ao encontrar a chave na saída, ainda dentro da fechadura. Danny a dava a chance de entrar, mas, principalmente, a dava a chance de sair.
O metrô já havia interrompido seu funcionamento. Não tinha nada nos bolsos que permitisse uma alternativa.
Ela checou o horário. 04:24. Se tivesse pressa, talvez chegasse à tempo do açougue abrir. Não tinha muita escolha. O breu da madrugada a trazia inseguranças, mas a casa de Danny era uma constante lembrança da sua estranheza e incapacidade de agir como um humano emocionalmente funcional. Sua própria casa também não a livrava dos demônios, e, de fato, ajudava a criar outros novos. Sam não possuía exatamente um lugar de paz. Talvez nunca tivesse conhecido a verdadeira realidade daquele termo.
Com o corpo dolorido e a mente repleta de barulhos ininteligíveis, Sam segurou a roupa suja acima do ombro como uma materialização da própria culpa, acendeu um cigarro e pôs-se a caminhar sozinha noite adentro.
