Eu sobrevivi, mas não fui poupado.

C. Valente.


No primeiro turno, dadas sete e meia no relógio oval do Olivier's, Dwight cumpriu a promessa de trazê-la um pouco de bolo. Sam disfarçou a própria surpresa. Ele parecia satisfeito pela cobertura que recebeu no dia anterior, e ficar sabendo que Sam sequer se lembrava que seria recompensada pelo favor não soava como algo tão grato ou adequado. Ela não pensava em nenhuma recompensa, para ser sincera. Tinha sido algo genuíno. Sam não era a maior fã de aplausos pelas simples coisas que fazia, e aquela não seria uma exceção.

Ela aceitou o pedaço, meio sem jeito. Assim que Dwight viu o seu uniforme branco já no corpo, decidiu perguntar:

"Faz tempo que chegou?"

"Não." Na verdade, fazia. Sam se manteve escorada em uma mesa no canto do refeitório logo após abri-lo ela mesma às seis e tantas. Mas Dwight não havia percebido sua cabeça jogada sobre as mãos ou suas olheiras fundas desde o momento que se sentou ao seu lado, e Sam não queria que sua vinda adiantada por ter cruzado São Francisco à pé e a consequente falta de descanso virassem uma pauta real de conversa.

"Peguei trânsito na Tennessee," Dwight se explicou em seguida, mesmo que ela não tivesse comentado sobre o seu atraso de trinta minutos. "Alguma manifestação. Sei lá. Quarta-feira é dia de manifestação?"

Ela apoiou o pescoço em uma das palmas calejadas e engoliu um bocejo.

"Pros patrões, nenhum dia é dia de manifestação." Por fim, Sam deu de ombros. "Como foi o aniversário?"

"Divertido. Uma das crianças levou uma arma de brinquedo e atirou na piscina de bolinhas, mas conseguimos fechar o furo antes que todo o ar saísse."

Sam não tinha uma resposta para isso, então preferiu apenas acenar e arriscar algo com o garfo de plástico à sua frente. Era um pedaço mediano de bolo, mais do que o suficiente para distrair o estômago, cujo glacê à primeira vista tinha excedido o ponto do amido de milho e engrossado demais. No centro, um pouco de pasta americana posicionada no que aparentava ser o desenho da curva esquerda de um coração era polvilhada por raspas de limão. A massa não cheirava a almíscar ou algo realmente estimulante, mas Sam não se importava. Ela fatiou um pedaço e comeu distraidamente enquanto Dwight continuava seu monólogo sobre a festa da sua filha.

Quando acionadas, as máquinas no setor atrás do refeitório soavam como canhões. Sam era familiarizada ao trovoar rotineiro no fundo do crânio. Naquele dia, no entanto, enquanto Dwight comentava sobre algum menino empurrando Nancy durante uma das brincadeiras e a confusão infantil generalizada que isso havia causado na comemoração, a sua cabeça percorria movimentos ininterruptos como um pêndulo viciado, até formar círculos e círculos de curtos períodos de agonia.

Ela pressionou uma têmpora, buscando respirar fundo. Poderia ser a merda do sono. A falta dele. É, provavelmente. Isso a deu uma vontade de fumar que Sam sabia ser ridícula, mas que costumava ser útil nessas horas. Deveria poder acender um ali mesmo. Seria rápido e inofensivo. Malditas regras de segurança no trabalho.

Dwight quis continuar puxando assunto, porque era claro que ele faria isso. "Você tem uma irmã, não tem, Sam?"

Foi só quando se pôs a falar que percebeu que estava respirando com certa força. "Uhm, sim. Tara."

"Quantos anos ela tem?"

"Faz 22 em dezembro."

"Até que é próxima de você."

Poderia ser mais. Em vários sentidos além do numérico. Ainda assim, Sam meneou a cabeça em uma lenta concordância.

"Sabe, Nancy me pediu um irmão ou irmã de aniversário," Dwight amassou os próprios dedos nas palmas. O thump vigoroso das máquinas parecia estar tão próximo dela quanto aqueles dedos. "Disse que é o 'sonho da vida dela'. É tão engraçado, isso, não acha? Digo, as prioridades de uma criança."

"É, talvez."

Sam espetou o garfo no pratinho de plástico, pensativa. Algumas memórias retornaram sem que pudesse contê-las, velozes e pesadas como o desdobramento de uma avalanche. Memórias de sua mãe, ainda fresca do lado de fora do colegial, deixando sonhos para trás sem criar outros para frente. Uma noite com um cara compromissado e problemático que definiu o resto da sua vida enquanto ele saía da reta com um tiro na cabeça dado por uma adolescente. Sam havia sido um empecilho do qual ela nunca realmente se livrou, um último resquício daquela ocorrência; a carta ruim ainda restante no baralho. A sua substituição veio no álcool que sua mãe aprendeu a amar demais, e depois no distanciamento que já perdurava quase dez anos.

Se Sam tinha sido seu erro, Tara era a tentativa de remendo. Ela era o produto de uma situação melhor e de um cara melhor ainda. Sua mãe costumava dizer que Sam era o joio entre o trigo dos sorrisos genuínos e disposição boa e amigável da sua irmã, agindo como uma constante sombra ao seu redor.

Após algum tempo, Sam passou a acreditar nisso, também.

Quando ela finalmente respondeu, ainda se sentia distante, como se não estivesse realmente ali.

"Ela tem um pai que a defende e que está lá pra fechar o buraco de uma piscina de bolinhas no dia do seu aniversário. Um bom tipo de pai, quero dizer." Sam murmurou. "Vai ser uma boa irmã mais velha."

"Obrigado, Sam," ela não o olhava, mas percebeu pela sua voz que Dwight havia de certa forma se confortado com as suas palavras, monótonas o quanto fossem. Soava suficiente. Uma bola dentro era melhor do que duas fora.

Independente disso, o passeio das lembranças continuou a confundir seu raciocínio. Sam sentiu um suor inevitável crepitar nas suas axilas. Dwight continuava falando, mas ela já não o escutava.

Sam se levantou de supetão.

"Tá perto das oito. Vou indo."

Titubeou durante uma palpitação enquanto pegava sua jaqueta de cima da superfície branca e laqueada. Precisava lembrar de deixá-la no vestiário. Em seguida, levou seu prato quase vazio de grãos e tubérculos para a mesa de mármore do refeitório enquanto se culpava por ser incapaz de dar um soquinho incentivador ou um mero sorriso à Dwight. Ele sobreviveria, mas Sam já estava tentando ser mais simpática e fisicamente receptiva há meses, e as coisas pareciam meio estagnadas.

Não se demorou ali depois disso. As máquinas permaneciam gritantes e exageradas, retumbando no seu cérebro. Sua respiração parecia acompanhar o ritmo dos batuques metálicos, começando a se desestabilizar enquanto ela desenganchava a carcaça restante do dia anterior com uma camada fria de suor surgindo na nuca. Impassível por fora e agitada por dentro, a taquicardia deixou seu ritmo interno aos vapores e galopes.

Sam não era tola de fingir normalidade. Já conhecia os sinais típicos das suas crises. No refeitório, ainda antes das sete, tinha pego algumas pílulas no vestiário. Clomipramina. Aliviava os distúrbios de humor e mantinha sua síndrome do pânico em graus socialmente aceitáveis. Desde o seu retorno pra Califórnia, ela tinha passado a pechinchar a receita clandestina dos fármacos suburbanos perto de onde moravam quando os antipsicóticos sumiam dos estoques. Esse era um dos raros benefícios de morar em um distrito com pouquíssimo policiamento e de ter conhecido a realidade maliciosa das ruas desde os treze anos.

Ela desceu dois comprimidos no seco e voltou a trabalhar.

Em algumas horas de carne de porco fatiada e uma limpeza nas frigoríficas, a clomipramina agiu o suficiente para conter seus tremores e aliviar sua miséria. Sr. Hawkins não toleraria açougueiros que não controlavam as próprias mãos. Sam usava da força para garantir o corte correto quando essas crises aconteciam, mas o esforço era quádruplo, e, no final do dia, ela era algo descartável. Talento no manejo e corte não era uma especialidade tão rara assim; ou ao menos era o que ela se fazia pensar para se manter realista. Pelo pouco que Sam conhecia do ego, era uma coisa ilusória e muitas vezes traiçoeira.

Deixou o lombo por último desta vez. Uma novidade. Não se permitiu pensar demais e vestiu as luvas de malha, as mãos cheirando a desinfetante barato. Se não fossem os calos na pele, ela estaria enrugada por conta do pano úmido do esfregão.

Filé mignon requisitava cortes mais cuidadosos. Precisava de calma. Sam se moveu no piloto automático de todos os dias. Girava a peça quando necessário, calculava rapidamente uma boa distância e fatiava.

Suas sobrancelhas pareciam pesadas e geladas com alguma coisa que lembrava suor. Não queria parar para se limpar. Precisava terminar essa carcaça atrasada. Em um determinado segundo, sua respiração deu um solavanco, e suas mãos se moveram sozinhas na carne suave. Foi algo tão momentâneo que Sam inicialmente não notou; seus dedos cobertos pela malha de aço deslizaram pelo seu rosto suado em um gesto tão rude e despreocupado que ela levou alguns segundos para perceber que o sangue que escorria deles não pertencia apenas ao porco.

Sam soltou o cutelo sobre a mesa metálica e retirou a luva da mão esquerda, grunhindo. Estava com uma falha na cobertura de aço, bem na palma. E nela, um corte diagonal de mais ou menos três polegares ardia insistente em vermelho.

Fechou a palma e foi até a pia mais próxima, em um banheiro mal-cheiroso no corredor à direita. A água corrente que jorrou da bica irritou a ferida aberta, mas ajudou a escorrer o sangue que descia espiralado como pequenos redemoinhos em direção ao ralo.

Sam levantou o rosto e fitou o espelho.

Sua expressão não parecia assustada, mas algo mais estranho que isso, menos humano. Sua boca estava reprimida, lábios contidos, e as têmporas acumulavam gotas de suor que também quase pingavam pelo nariz, mesmo após as pílulas.

Porém, restava o fato básico de que o suor acontecia de ser transparente, mas o sangue nunca teria o mesmo luxo.

Havia muito tempo que Sam não se via com aquelas gotas descendo no rosto como uma cascata. Sangue animal, sangue dela própria; escuro e quente. O pior ainda não era a maneira como a substância vibrava na sua pele como se a reconhecesse, mas algo ainda mais simples.

Os olhos.

Suas olheiras fundas tentavam disfarçar, em vão. Até o tremor do seu rosto se esforçava em camuflar o óbvio. Mas aqueles eram olhos que já estiveram antes em outro rosto, e Sam tinha essa certeza porque poderia tirar a prova naquele mesmo instante.

Como a diferença elementar entre suor e sangue se resumindo apenas na sua cor e dignidade, o sorriso sardônico rasgando o rosto de Billy Loomis era a única coisa em que ele e Sam não eram idênticos.

Seu pai a encarou, mas não foi encarado de volta.

"Estava com saudades, Sam."

Ela se retesou, mãos sujas a cada lado da pia, água sangrenta ainda escoando em silêncio.

Diante da falta de resposta, ele soltou uma gargalhada que reverberou através do banheiro. A água continuou a descer pela bica, e Sam permaneceu quieta.

Seu pai tomou um segundo para finalmente escrutiná-la, lábios cortados em um riso interessado.

"Como você mudou."

A observação a atingiu como um trem em movimento. Ela apertou o porcelanato branco e evitou de olhá-lo a todo custo.

Billy continuou a tentá-la.

"É realmente incrível o que alguns meses e uns homicídios à parte podem fazer, Sammy. Devo admitir, eu quase não reconheço a garotinha que se escondia debaixo da cama quando sua mãe negava o seu jantar ou a dava uma boa surra longe dos olhos da irmã. Ou a menina de alguns anos depois, que ignorava as minhas dicas de como quebrar a cabeça dos moleques escrotos da escola que faziam merda com ela dentro dos becos porque ela não queria ser um monstro, nem mesmo naquele tempo. Você se lembra de tudo isso, não é, Sam?"

Ela o ignorou, fechando os olhos para evitar de reviver aquelas lembranças amargas. Seu pai sabia que ainda estavam frescas e que sempre estariam. Eram resquícios de uma infância conturbada que permeavam a sua vida durante o dia e os seus pesadelos durante a noite.

Como o sangue seco fundo demais nas suas unhas para que pudesse limpá-lo, Sam jamais se veria livre daquilo, não importa o quanto lutasse por isso.

Lavou o rosto como se o que estivesse ali fosse mera sujeira. Talvez Tara tremesse no seu lugar. Uma simples maquiagem borrada já a deixava fora de si. Cuspe a dava nojo. Mas o sangue — o sangue a aterrorizava. Talvez essa fosse a reação correta de todas as pessoas, mas nunca tinha sido a de Sam, em toda a sua existência estranha e solitária.

No fim do dia, sangue sempre seria apenas isso. Apenas vermelho.

Como se lesse seus pensamentos, ele voltou a falar.

"Eu chamava isso de 'couraça do monstro', você sabe, toda essa resistência... essa afinidade ao terror. Começa pequeno, nas mãos, nos pés. Mas cresce rápido. É como um joio. Um parasita. E não é isso o que nós somos para os outros? Algo que deu errado, uma aberração? O que a sua mãe diria, Sam?"

A escolha de palavras a fez ranger os dentes, mas seu autocontrole cumpriu o trabalho de suportar o baque novamente. Para a raiva ser contida, ela aprendeu que precisava contar os números e se concentrar neles. Contar de um para dois, dois para três. Quatro, cinco. Seis, sete.

Ele a assistiu se forçar a se acalmar e realmente conseguir ignorá-lo na sua frente pela primeira vez desde que surgiu na sua vida, refletido nos espelhos de todos os lugares em que ela fosse, sussurrando tentações e zombarias até que suas crises psicóticas a engolissem por completo.

Oito, nove. Uma risada reverberou no banheiro. Dez.

"Hmm. Eu pensei que você estaria inútil e amolecida sem a minha presença por tanto tempo, Sam, mas vejo que me enganei."

Ela girou o volante da torneira. A corrente de água acabou, assim como os redemoinhos rubros. Suas palmas ficariam sujas, mas Sam não se importava. Saberia viver com isso. Deixou a toalha intocada para não manchá-la e deu as costas ao espelho.

Antes que saísse do banheiro sem dizer uma palavra sequer ao seu pai, Sam escutou:

"Agora eu vejo que realmente me enganei. Você nunca esteve melhor."

Ela fechou a porta.

A tensão lambia seus ossos. Sam respirou fundo e levou um breve segundo para cogitar voltar às carcaças e não deixar a mesa de corte até bater seu ponto, horas noite adentro, mas a figura baixa e roliça do Sr. Hawkins surgiu subitamente diante dela antes que pudesse dar um passo sequer. Ele batia no seu ombro em estatura, talvez menos. Sua face empoada parecia meio cerosa, e suas expressões eram quase investigativas.

"Veja só quem está aqui. Bom dia, srta. Carpenter."

Sam devolveu o cumprimento com a voz monótona, desistindo de tentar amenizar o cansaço que vazava nela. "Sr. Hawkins."

"Ver você me lembrou de avisar uma coisa: eu já li e considerei alguns dos seus termos da última negociação," anunciou ele. "São bons pontos. Dentro do possível, é claro. Sempre dentro do possível."

Há alguns meses, Sam tinha proposto a ideia de que pudesse trabalhar ainda mais isoladamente. As coisas tinham melhorado um tanto desde então, tornando toda aquela conversa meio inútil, mas ela não desfaria nada. Ainda preferia seu próprio canto e suas próprias tarefas.

"Ok, senhor. Obrigada."

Sr. Hawkins a olhou. Com aquele tamanho e suas vestes do século passado, ele parecia um personagem dos filmes que Mindy tanto gostava. Um Hobbit, se Sam se recordava bem.

"Eu também chequei seus pontos das últimas semanas, srta. Carpenter." Sr. Hawkins cruzou os braços encapados por linho. "Por mais que ache a sua disposição e dedicação admiráveis, devo lembrá-la que a aceleração da produção não pode vir ao custo da sua saúde."

A mera ideia de diminuir sua carga horária a causava um temor angustiante. "Não se preocupe com isso, senhor. Eu gosto de trabalhar."

"Veja bem, sua vida é a sua vida. Mas eu recordo da mulher calada e difícil de entender que me implorou por esse emprego há quase um ano. Eu não esqueço dela. Você lembra do que ela me disse, naquele dia da entrevista?"

Sam piscou algumas vezes, se sentindo exausta.

"Não, senhor."

"Ela disse que só estava aqui para poder dar aos que ela ama aquilo que ela não pôde ter. Ela queria ser de algum valor, queria ser útil. E isso é muito louvável." Sr. Hawkins refletiu calmamente. "Só não esqueça de viver por conta disso, srta. Carpenter. Nenhuma pessoa merece apenas existir."

"Obrigada, senhor. Vou pensar nisso."

Seu chefe não pareceu convencido. Para ser honesta, Sam não convenceu nem a si mesma. Sentia-se absorta. Não gostava daquela sensação; era sinônima à perder o controle.

Tudo o que ela precisava naquele momento para resolver aquilo eram as suas carcaças, seu cutelo, sua mesa e um novo par de luvas de malha de aço sem defeitos.

Como uma ironia chata do destino, algo quente deslizou pela sua mão e pingou no chão. Sam não precisou olhar para baixo para saber que era um filete de sangue. Ela xingou mentalmente.

Sr. Hawkins desceu o rosto e o levantou outra vez.

"A senhorita não me disse que havia se cortado."

Ela ergueu a mão e esfregou o excesso de sangue com o polegar da mão boa, pondo a palma sangrenta aberta no seu uniforme em seguida para conter a nova onda de secreção.

"Foi só uma luva rasgada, senhor. Eu não vi e acabei causando um arranhão."

"Um arranhão?" Sr. Hawkins era o gêmeo de Tara naquele instante isolado, com seus olhos julgadores, sua voz exageradamente preocupada. "Isso levará pontos. Precisa ir ao hospital de imediato."

"Não vai ser necessário, senhor, eu garanto."

Quando ela o driblou com certa facilidade pelo seu tamanho, sr. Hawkins se apressou atrás dela.

"Para onde você vai?"

Sam fechou as mãos e continuou andando devagar. Elas ardiam, mas não apenas por conta do corte. Afundou-as nos bolsos.

"De volta ao meu trabalho, senhor."

"Não, não. Não posso permitir isso. Não com a sua mão aberta, senhorita, as chances altas de infecção, as condições de segurança e bem-estar no trabalho, os manuais dizem que—"

Com os dentes rangendo, ela ainda conseguiu conjecturar: "Tá tudo bem, sr. Hawkins."

"Não, não está tudo bem. Não mesmo. Precisamos ligar para a emergência para solicitar atendimento local, o que cria uma oportuna brecha para também revermos as suas diárias—"

Tudo veio e se chocou contra ela como uma onda.

Múltiplas coisas percorreram sua cabeça em questão de segundos. Seu cansaço acumulado, seus músculos doloridos a todo instante, a aparição de seu pai após tanto tempo, Tara e Mindy e Chad que fingiam que nada tinha acontecido, Danny que a entendia mas não tanto, sua constante preocupação com tudo que parecia rodeá-la, sua porcaria de mão rasgada, as vozes e pensamentos perturbadores que só iam embora quando estava ocupada, a catafasia escrota do seu chefe—

Sam só percebeu tê-lo empurrado contra a parede mais próxima quando teve de se afastar dele, o peso das suas ações afundando ainda mais os seus ombros. A nova distância a fez notar que no pulôver caqui do sr. Hawkins, próximo do seu pescoço, agora jazia uma larga mancha vermelha-viva. As suas palavras ditas nos segundos de instinto então finalmente ressoaram na sua mente. Eu já disse uma vez, senhor. Não vou dizer de novo. Se quer me ver sã, largue a porra do meu pé e me deixe trabalhar.

O tom amargo e truculento da sua voz tinha sido quase irreconhecível. Beirava o violento, como o gesto automático do seu punho a segurá-lo com força e um dos seus braços firme contra o seu pescoço apenas alguns momentos antes. Tudo o que ela sempre quis conter tinha acabado de acontecer, bem ali, vazado pelos seus dedos e boca como se o seu autocontrole anterior não existisse.

Que ótimo. Era isso que Sam havia feito de volta para o seu chefe. Ao chefe que parecia genuinamente gostar dela e desejar que ficasse bem. Ao senhor agitado e gentil que a garantiu o emprego quando mais precisava e que agora oferecia cuidados médicos ao seu ferimento. Essa tinha sido a sua maldita retribuição: jogá-lo na parede do seu próprio açougue e ameaçá-lo como a merda de uma gângster.

O choque evidente no semblante do sr. Hawkins a fez se odiar. Sam sentia todo o seu rosto tenso e endurecido, preso em alguma expressão consumida em raiva que ela jamais se perdoaria por dirigir à alguém como ele.

Por fim, sr. Hawkins respirou fundo e colocou as mãos para atrás do corpo, ajeitando suas vestes nervosamente.

"Está liberada para o dia, srta. Carpenter. Amanhã conversamos."

"Senhor, eu..."

"Nós nos vemos às sete, na minha sala."

Ela fechou os lábios e deixou a palma sangrar dentro do bolso enquanto o via ir embora, andando um pouco torto desta vez. Suspirou. Não soube quanto tempo permaneceu naquele mesmo ponto, até caminhar silenciosamente na direção contrária. Despejou o uniforme para limpeza quando dobrou no corredor certo e se curvou debilmente diante da máquina de lavar. Sua respiração saía entrecortada, como cusparadas de ar, e tudo nela doía ou queria doer.

Uma camada de suor se começava a se formar acima dos seus lábios, outra perto das suas têmporas. Sam estava acostumada a esse suor. Seus antidepressivos e antipsicóticos geralmente acarretavam em banhos como aquele. Existiam terrores piores que isso, como sua mão tensa e suja de sangue seco após ser esfregada contra o tecido grosso que o sr. Hawkins vestia.

Afundando o rosto nas palmas, Sam quis desaparecer. O corte ardeu como uma recordação fria.

Saiu de lá em seguida. O local parecia estar devorando suas entranhas e o sr. Hawkins provavelmente a queria longe dali, então fez o que deveria e vazou despercebida; mochila e jaqueta nos ombros, crachá na mão boa, olhos ficando sensíveis à claridade assim que fechou o portão dos fundos. Sam nunca deixava o açougue naquela hora. Na verdade, ela nem sequer presenciava o meio-dia ao ar livre há muito tempo — não era acostumada ao calor ou à aparência vibrante do céu em contraste com pluma suave das nuvens.

Os incontáveis prédios em São Francisco se erguiam como escarpas metálicas e reflexivas, criando pontos brilhantes no seu campo de visão que Sam era incapaz de fitar diretamente. A algazarra de carros e pedestres também era maior do que à noite, como o esperado, e Sam preferiu se esgueirar pelos cantos. Ela atravessou toda a Illinois St e pegou o primeiro metrô.

O relógio na estação ditava as horas. 09:37.

Todo o percurso foi rotineiro. Chegou em casa não muito tempo depois. Dentro do flat, as janelas continuavam fechadas como Sam gostava de mantê-las, e havia um leve cheiro de naftalina e fumaça preenchendo os cômodos lacrados. Ela improvisou um curativo com um restante de gaze que mantinha guardado na despensa e se pôs a preparar o almoço. Um punhado de arroz meio emborrachado, uma lasanha de micro-ondas e um pouco da batata-palha que comprou na semana passada depois de Tara pedir que incluísse no seu estrogonofe.

Ela comeu em silêncio, sentada no banquinho no canto da mesa, observando seu aquário. Era retangular, quase do tamanho do seu braço, com algas de plástico no fundo e pedrinhas coloridas. Um peixe Betta azul-celeste nadava de lá para cá enquanto comia calmamente os grânulos da ração que Sam pôs na água, uma das suas barbatanas cortadas por algum acidente nos tempos de petshop.

Ela sorriu um pouco para ele. Ambos eram bem familiares nas suas quietas refeições.

Sam lavou seu prato em seguida e guardou a ração no armário à esquerda da pia. A gaze na sua mão estava começando a ficar rosada, com um ponto rubro insistente no centro. Sam a tirou e jogou fora enquanto tomava a súbita decisão de um banho. O suor ainda impregnava sua nuca, logo abaixo dos pés dos ouvidos, e a sensação era meio escrota.

As horas se estenderam vagarosamente, cada minuto levando mais tempo que o anterior.

Trocou seus afazeres antigos por novos. Assim que deixou o chuveiro, Sam limpou a poeira dos quartos, cozinhou o jantar de Tara, acomodou os equipamentos de Chad próximos da saída para que ele os pegasse mais facilmente no treino noturno e reuniu a papelada do aluguel do mês para longe de uma pilha de fitas VHS que Mindy sempre acumulava nas primeiras gavetas que via pela frente.

Enquanto rumava de um cômodo a outro, Sam subitamente interrompeu seu caminho ao notar que já anoitecia.

Suas costas doíam e a casa ainda se mantinha em uma profunda quietude, mas a lua refletia uma luz opaca e gentil quando ela abriu a janela, e isso bastou, mesmo que por um único momento.

Sam se permitiu observá-la, livre da cobertura das nuvens cinzentas. Taciturna. Etérea. Um ponto fixo e imperturbável de paz, distante de qualquer possível alcance.

Buscou o aquário. Deixou-o na bancada perto do vidro, onde dava de se observar o céu.

"Admire a noite por mim, hm? Ela tá bonita hoje." Sam murmurou ao peixe. Ela suspirou, olhos entre as nuvens. "E, se quiser um segredo: são essas as coisas pelas quais se vale a pena viver, meu amigo. Então não tenha muita pressa que elas acabem."

Despediu-se de Netuno para trocar de roupa, agindo em um impulso conhecido. No seu quarto, arranjou uma camiseta qualquer — estampada em El Diablito, dos Caifanes — e uma das suas jeans velhas no cabide. Desceu dois comprimidos dos seus tranquilizantes antes de sair e trancou a porta com duas voltas na chave, apenas para ter certeza.

Depois de uma curta caminhada, pegou o metrô próximo às 19:00. Tara não voltaria antes da madrugada, e Mindy e Chad a seguiriam aonde quer que decidisse ir. Sam tentou não cogitar a péssima segurança do lugar onde desprenderiam tanto tempo ou grana, mas era inevitável. Sua perna direita balançou em agonia durante todo o percurso até a estação próxima de Seacliff, no noroeste da cidade.

Avistando o pináculo do emaranhado de mansões multicoloridas ao decorrer da alameda, dirigiu-se até a entrada. A casa era planejada, de um suave amarelo-adamascado e com dois andares. Visivelmente nova, pintura em dia, em um conforto verde e exuberante que Sam não tinha costume. Um contraste direto à sua selva simplória e monocromática em Tenderloin.

Apertou a campainha. Esperou. Já tinha sido oferecida uma cópia da chave alguns meses antes, mas esse parecia um passo muito grande a se dar e Sam não dava mais passos grandes na sua vida de maneira geral, o que significava que a sua neurose pessoal arrebataria a vitória outra vez. Era desanimador, mas compensava na previsibilidade.

Ela percebeu um movimento atrás do olho mágico. Não se surpreendeu. Aquilo também era previsível.

A porta se abriu em um ranger delicado, revelando um rosto quase tão exausto quanto o seu e com mais que o dobro da sua idade sobre os ombros.

Sam afundou as mãos nos bolsos. "Espero não ter te acordado."

"Besteira. Eu não durmo há alguns bons anos, mas nenhum deles por sua causa." A voz de Gale Weathers respondeu em um murmúrio rouco, mas resistente. "Entra."

Sam esfregou os coturnos no tapete de 'Bem-vindo!' e a acompanhou casa adentro. Pausaram ambas ainda na entrada, logo após o pé da porta, porque Gale lidaria com as trancas metálicas. Era uma ação de rotina, passos repetidos de um ciclo; seja pela natureza da vida ou pelo seu histórico traumático similar, o conforto do que era conhecido parecia alcançar ambas, e isso bastava.

Diferente de algumas semanas antes, Sam observou a maneira como uma das aldrabas tremeu mais que as demais quando foi fixada. Pelo que soou aos seus ouvidos, devia estar com a lingueta frouxa. Na próxima vez em que viesse, lembraria de trazer suas ferramentas para tentar consertá-la.

Quando terminou o seu ritual, Gale girou a garrafa de Jack Daniels que antes segurava debaixo do braço distraidamente e fez a rota em L até a sua cozinha americana sem prestar maiores cumprimentos. A distância física entre elas era familiar, palpável e segura; envelopava seu corpo em uma normalidade incomum.

Divagando em pensamentos, Sam a acompanhou como uma sombra. Ela não desligava as luzes que deixava para trás ao fazer o seu caminho pela retaguarda. Gale não gostava do escuro.

Na cozinha, buscou resolver o problema que percebeu ainda no metrô — o vazio no seu bolso direito e as suas implicações. "Isqueiro?"

"Na bancada." Gale abriu alguns armários planejados de madeira nobre; pela cor, deveria ser mogno. "Se achar melhor, eu bebo esta gracinha quando você passar de novo por aquela porta."

"Tu casa es tu casa. Faz o que quiser."

A oferta tinha sido atenciosa, mas, sendo honesta, Sam realmente não se importava. Seus motivos não eram problema de ninguém.

Ela abriu duas gavetas e achou o que queria. Acendeu um cigarro em silêncio.

"Sendo assim, fique com o isqueiro pra você," Gale anunciou de volta. "Não tenho uso pra essa porcaria, de qualquer forma."

"Obrigada."

"Teoricamente falando, eu não deveria sequer estar alimentando esses seus vícios, pra início de conversa," de onde se encostava na bancada, Sam podia acompanhar Gale manusear uma faca contra o desnível do gargalo, arrancando o lacre em uma única estocada. "Mas você é uma coisa quieta e uma das únicas pessoas que não reclama do meu uísque, então vou devolver o favor."

Sam soltou ar pelo nariz. A fumaça veio junto, dissipando-se em seguida como um fantasma.

Há cerca de um ano de convívio mais estreito, elas tinham desenvolvido uma forma estranha e consideravelmente eficiente de mútuo entendimento. Gale até que parecia gostar um tanto da sua honestidade introspectiva, ou da sua disposição sem julgamentos e duplos sentidos. Por sua vez, Sam não tinha tanta certeza do que a movia para lá de tempos em tempos. A compreensão que Gale a proporcionaria, talvez. A firme recusa dela em esquecer o passado, diferente de todos os outros e similar à Sam. A maneira como ela se parecia com a mãe que Sam nunca teve. O seu saber.

Era bizarramente confortável compartilhar um cômodo com alguém que soubesse; com alguém que já tivesse visto. Gale a conhecia em mais maneiras que uma, e, ainda assim, abria sua porta para ela. Isso deveria significar alguma coisa.

Inevitavelmente, a superfície das suas palmas ardeu com a recordação imediata que sua reflexão trouxe. Uma casa antiga. Dois anos antes. Um corpo agonizando ao chão e o seu banhado em vermelho. Voraz, fora de si. Irreconhecível.

Sam teve de tragar para tentar afastar as memórias. Seus tranquilizantes de horas antes lidariam com o resto.

"Sabe, talvez as pessoas tenham razão. Eu realmente deveria arranjar algo diferente com o que queimar todos esses royalties de merda." De súbito, Gale estava posicionando o saca-rolhas na cortiça, mas não fez muito além disso. Sam a viu abaixar os braços. "Algo que valha a pena."

Sam nunca teve grana suficiente para enfrentar aquele tipo de problema. Por não ter o que dizer, preferiu continuar calada.

"Se vocês precisarem de algo—" Gale voltou a conjecturar. "Luz, gás. Sei lá. Fundos de faculdade, gastos da vida adulta—"

Sam se retraiu. Sua voz soava brusca e definitiva. "Eu não quero o seu dinheiro."

"Olha, eu sei como as coisas funcionam pra você. Não exatamente, já que você não é de abrir tanto o bico, mas eu sei o suficiente." Ela argumentou. "Sei que não gosta de depender dos outros, que tá acostumada a fazer tudo sozinha. Mas a vida não precisa ser sempre assim, Sam."

Cruzando os braços, Sam tragou mais uma vez e não disse nada. Ela escutou Gale suspirar em meio ao silêncio tétrico que as rodeava.

"Tudo bem, deixa pra lá. Não sei como fazer isso." Admitiu, entredentes. "Acho que você me entende, não é?"

Sam deu um pequeno aceno. Gale relaxou os ombros. Voltou a tratar a garrafa, forçando o cabo e rompendo a abertura. Executou a mesma dança de sempre, de copos pequenos com fundos largos, a bebida pálida preenchendo um deles e desaparecendo garganta abaixo em seguida.

Não levou muito tempo de convívio para Sam perceber que a força motriz responsável por mover Gale adiante era a sua própria culpa. A ligação que recebeu dos Kirsch em Nova Iorque — a sua primeira em todas as ocorrências Ghostface até então —, e seja qual tenha sido seu conteúdo, representou um baque na sua composição que Sam presumia nunca tê-la deixado descansar. Este era um médio problema, somado aos traumas das perseguições, ao sangue que inevitavelmente manchava as suas mãos, aos pesadelos que também deveriam atormentá-la durante a noite.

Todos estes médios problemas jamais se equiparariam ao maior deles, porque este foi um golpe do qual ela não se recuperaria.

Dewey.

Sam supunha que, dois anos antes, uma parte substancial de Gale também havia morrido junto dele.

Inicialmente, ela não poderia afirmar o tamanho da parte perdida. Foi só uma questão de tempo até descobrir. A mulher curvada debilmente à sua frente, faca em mãos duras demais, escondendo-se em uma casa vazia que não se rendia ao escuro por um medo incurável: essa era a sua resposta.

Antes de Nova Iorque, Gale havia prometido não escrever mais nada que pusesse os monstros nos pedestais que desejavam. Disse que escreveria sobre Dewey, que contaria sua história às pessoas. A intenção era bonita, mas Sam tinha ouvido falar que as vendas não foram como o esperado, e, diferente do vazio da perda, o torpor do luto não duraria para sempre.

Gale publicou sobre o segundo atentado de Woodsboro — o primeiro de Sam e Tara — não muito tempo depois. Escreveu sobre o quanto Sam era psicótica e uma ameaça para a sociedade, sobre assassinos mascarados fazendo merdas outra vez. Exatamente como disse que não faria, porque aquela era a sua natureza.

Ela não era um monstro como aqueles dos quais fugia e publicava sobre há mais de vinte anos. Nunca tinha sido. Existiam provas disso em vários lugares; em diversas pessoas, vivas ou mortas. Sam nunca pôs o fato em dúvida, nem sequer ao ler suas palavras cruéis no passado. Mas Gale não era uma boa pessoa, também, e Sam notou que ela tinha finalmente entrado em termos com isso. Talvez não por completo — o uísque sobre a mesa era algo por si só —, mas em parcelas suficientes da coisa.

No final do dia, não havia mais um doce Dewey para amar os seus pedaços ruins e transformá-los em bons, e talvez sempre existisse uma melancolia nata sobre se perder o único ponto de luz em meio à vida escura que pessoas como elas estavam condenadas a trilhar.

Essa melancolia agora banhava Gale dos pés à cabeça.

Entre os seus pensamentos, Sam percebeu que nunca teve a sua luz para manter, para tentar proteger dos terrores. Ela só conhecia o escuro; a claridade era estrangeira. A sua melancolia também sempre esteve lá. Sam não se lembrava de algum dia em que não se sentisse submergida nela.

Cogitou, contra sua vontade, o que seria mais infeliz: provar da felicidade e tê-la removida, ou nunca sequer descobrir qual seria o seu gosto.

Ela apagou o cigarro no metal da pia. Notou que Gale estava a fitando há algum tempo. Fitou de volta.

"Antes que pergunte, não é nada," Gale se explicou com a voz casual assim que seus olhos se encontraram. "Mas eu conheço esse rosto. Quer me contar algo, não quer?"

Sam acenou silenciosamente. Disse, por fim: "Você teria um pouco de gaze?"

Tirou a mão do bolso e desprendeu da pele a sua tentativa torta de curativo. Seguindo seu movimento, Gale ergueu brevemente as sobrancelhas ao ver o que estava mostrando. "Cacete. Essa parece uma história e tanto. Volto já."

Desapareceu corredor adentro por pouco tempo. No seu retorno, trazia um kit branco de primeiros socorros debaixo de um dos braços. Aproximou-se dela e pediu que esticasse o braço sobre a bancada. Sam fez como pediu.

"Cristo," Gale rasgou um bom punhado de gaze com os dentes, proporcional ao comprimento do corte, e buscou alguns esparadrapos dentro da caixa. "Quem diabos fez isso com você?"

Ela deu de ombros. "Minha outra mão e um cutelo. E uma luva do açougue com buracos."

"Califórnia e suas condições de trabalho."

Foi movida subitamente durante a tentativa de curativo. Um ponto imediato de dor irradiou do meio da sua palma. Sam franziu o cenho.

"Porra, foi mal," Gale usou mais gaze para limpar o estrago. Onde antes não escorria tanta coisa, agora começavam a nascer novos filetes de sangue. "Tá bem longo e abre fácil. É melhor levar uns pontos nisso."

Sam respirou fundo, as costas contra uma gaveta. Seus ombros pesaram. "Não foi a primeira pessoa que me disse isso hoje."

"Se você aguentar o tranco, vou ser a última."

"Tá, foda-se." Ela relaxou contra a bancada. "Vá em frente, enfermeira Weathers."

"Ao seu dispor, Capitão Gancho."

Sam não resistiu e soltou o ar pelo nariz outra vez, boca se retorcendo em um sorriso sonolento.

Debaixo de umas bombinhas de ar dentro do kit, Gale abriu um pacote de agulhas e procurou por fios sintéticos que servissem para algo improvisado. Os únicos que tinham eram de poliéster, de calibre grosso demais para uma palma da mão, mas Sam não ligava exatamente para a estética que se daria depois, e instruiu que ela usasse o que tivesse.

Em meio ao silêncio, Sam percebeu que Gale estava trabalhando devagar; dando o espaço que precisasse para explicar os acontecimentos.

Com o rosto levemente suado por conta da dor, Sam decidiu começar a contar a sua Ilíada moderna.

"Eu voltei a vê-lo." Anunciou. "Billy."

Recebeu um olhar cauteloso. "Onde?"

A agulha na mão de Gale perfurava o espaço do primeiro ponto. Sua pele rasgada reclamou da nova invasão, mas Sam estava mais comprometida com seus pensamentos agourentos. "Dentro do banheiro do açougue. No espelho."

"Ele falou com você?"

O caminho do fio grosseiro se arrastando pela sua pele era como o rastejar sinistro de uma cobra.

"Ele tentou. Eu não respondi." Sam fez uma careta de dor, mas não apenas pela sua mão. "Ele parecia... satisfeito... como se estivesse orgulhoso de mim. Saí daquele lugar assim que pude. Deveria ter vazado antes, dado alguma porra de jeito, mas não consegui. Fui covarde."

Gale continuou o seu trabalho de perfuração e costura. "O que você fez foi o necessário, não covarde. Os remédios, todas essas pílulas e porcarias, são coisas falíveis. Não dá de se esperar um milagre."

"Eu sei, Weathers. Não é disso que tô falando." Ela abaixou a cabeça, tensionando os dedos. O sangue que vazava do ferimento sendo costurado empapava sua mão, mas não diminuía sua ardência.

"E do que é?"

"Ele..." Sam grunhiu de novo. "Ele não desapareceu quando eu virei de costas. Não parou de falar assim que eu fiz isso. Eu ouvi."

Gale limpou o excesso de secreção com uma gaze extra. Seu semblante era precavido.

"E isso costumava funcionar?"

Ela soltou um suspiro definitivo. "Foi a primeira vez que não deu certo."

Sam focou na dor insistente para lidar com o silêncio que se criou. Sua respiração vinha irregular, mas ela se esforçou para manter o controle.

"Depois disso, eu encontrei o meu chefe." Prosseguiu, por fim, a voz cansada. "Ele começou a falar, e a querer diminuir a minha carga horária, e então viu a porcaria do corte. Eu tentei me afastar dele. Tentei voltar ao serviço e ficar sozinha, talvez pudesse me acalmar desse jeito. E então ele teve a maldita ideia de me seguir."

Sam sentiu seu rosto endurecer. "Não sei o que passou depois disso. Quando dei por mim, eu já tinha..." Não terminou a frase.

Uma nova onda de silêncio se perdurou depois disso, carregada de significado. Quando ergueu o olhar remoído à Gale, percebeu que ela não mais a encarava. Seus lábios se apertaram, e Sam ciciou:

"Eu não estripei o cara na surdina, caso esteja cogitando a ideia." Seu tom brusco então se transformou em um murmúrio quase inaudível, como se agora estivesse falando apenas para si mesma. "Não estaria aqui se tivesse feito. Eu me mataria antes de colocar você em algum risco que seja."

Gale deu nó em mais um ponto e tocou suavemente no seu pulso.

"Tudo bem. Eu confio em você, Sam."

Sam desviou o rosto para o lado, sentindo-se indigna do gesto e do sentimento.

Foi Gale quem falou outra vez.

"Se apenas esses malditos psiquiatras fizessem o seu trabalho, talvez as coisas fossem diferentes."

Ela franziu a boca, quieta.

"Não?" Gale insistiu.

"Dr. Stone foi um canalha como todos os outros antes dele. Você sabe disso."

"Eu sei," sua voz resignada era uma comprovação por si só. Sam nunca duvidou da sua experiência, apenas questionava sua insistência no assunto. Não era a primeira vez que falavam sobre isso. "Mas é tão fodidamente injusto, não vê? Recaídas são inevitáveis, sabemos disso, mas você não é apenas essa pessoa. É mais do que isso. E deveria haver a porra de uma maneira. Qualquer uma. Porque você merece."

Sam a observou fechar mais um nó, dizendo mais coisas que Sam não absorveu. Sua mente se rodeou de névoa, como uma cortiça de fumaça, e as palavras anteriores de Gale repetiram-se em um mantra até cessarem por completo.

Na sua confusão, ousou pensar o que mais seria. Nada vinha exatamente à cabeça. Ela era apenas a Sam. Problemática com a lei e ainda mais com a família. Um mero protótipo, meio falho e mal feito, cujas qualidades nunca seriam maiores que os defeitos. Algo que ela não sabia dizer se seria merecedor de conserto.

Se não tinha identidade, então não era ninguém. Sam era só isso: uma mão aberta, sangue jorrando para fora e um longo acúmulo de problemas.

Gale a retirou do seu torpor. "O que pretende fazer agora?"

"Vou trabalhar." Sam respondeu sobriamente, sem pensar muito. "Se me mandarem embora, vou procurar outra coisa. Preciso fazer algo."

As contas do mês continuariam a se empilhar, ela quis dizer. Sua mente permaneceria na tormenta, com emprego ou não, e ela não poderia se tornar suscetível aos seus pensamentos ou correr o risco de deixar Tara e os demais sem nenhum teto acima da cabeça.

Sam sempre soube se virar com o mínimo, ou até menos do que isso. Eles, não. Quase todo o seu dinheiro, senão todo, ia para os gastos com coisas que Sam nunca teve na mesma idade deles; pseudo-luxos que poderiam se perder por completo. Em um piscar de olhos, todos eles viveriam na pele o que ela encarou desde os treze, entre pratos vazios à noites no frio.

Tara sofreria nessa realidade, e Sam sabia disso. Não poderia deixar que acontecesse.

"Sabe, foda-se tudo isso. Foda-se o seu pai e o seu chefe," Gale concluiu em tom de finalidade, trazendo-a de volta à conversa. "Vai ficar tudo bem. Com o trabalho, com a sua irmã. E com você mesma. Você também merece a sua paz, Sam. Talvez mais do que todos nós."

A bondade nas suas palavras permeou o espaço entre elas. Porém, como uma atmosfera cinzenta, a incerteza por debaixo tratou de contaminar o resto.

Gale terminou de suturá-la. Os remendos ziguezagueavam imperfeitamente na sua palma, grosseiros e meio tortos, mas o sangue estava começando a deixar de sair. A dor se resumia a um formigamento e repuxões na pele, como uma memória recente dos furos da agulha.

"Voilà."

Sam apertou os lábios em uma miniatura de sorriso. "Obrigada, Weathers."

Não sabia pelo que exatamente estava agradecendo. Pela sutura, é certo, mas parecia algo a mais. Por ter estado lá quando bati na sua porta, talvez, se ela fosse capaz de proferir as palavras sem se complicar nos seus sentimentos difíceis. Por não me olhar como se eu fosse uma aberração tão grande assim. Por acreditar em mim. Pelo quase afeto nos últimos meses que desejei a infância inteira que minha mãe tivesse me dado. Seja por qual motivo fosse, esperava que Gale pudesse sentir, também, e entender um pouco.

Ela a viu dar um pequeno riso. "Só seja paciente com os curativos, tá bem? Sei que é durona, mas uma açougueira precisa das duas mãos inteiras, de preferência." Gale suspirou baixo. "Sobre todo o resto... as coisas se resolvem, de uma forma ou de outra. Eventualmente."

A palavra a trouxe uma memória distante que Sam não se permitiu entreter. Pegou um pouco de gaze e grudou no sangue seco, evitando aplicar pressão. A dor foi lentamente substituída por uma vibração estranha, como se a ferida estivesse dormente.

Sam se curvou na bancada, um tanto sem jeito, evitando olhá-la. Ela expressou sua gratidão da única maneira que sabia: oferecendo um serviço que executasse bem e que soubesse que seria minimamente útil. "Eu... tenho algumas ferramentas em casa. Pra sua tranca afrouxada."

Gale não pareceu se lembrar do que ela estava falando, até se passarem alguns segundos. "Ah."

"É só a lingueta que deve estar torta, ou enferrujada. Não vou fazer sujeira." Com a sua má postura, Sam se tornava mais baixa, e seu rosto se nivelou com o de Gale ao fitá-la brevemente. "Se você quiser, é claro."

Ouviu outro riso nasalado. Uma palma encostou no seu ombro, e sua tensão foi súbita. Sam não sabia reagir àquilo, então ficou calada.

"Obrigada, Sam. Pra ser honesta, eu nem tinha percebido." Gale tracejou sua jaqueta com o polegar em círculos. "Foi atencioso da sua parte."

Ela acenou sem muita certeza e olhou para baixo, rejeitando o elogio com um dos ombros. "Você faria o mesmo por mim."

"Sabe, Sam, tem vezes que eu olho pra você e penso que gostaria de ter sido assim, na sua idade." Gale admitiu, um sorriso nostálgico nos lábios. "Só queria ter tido mais força pra conter toda aquela energia Gale Weathers da televisão. Dos livros. De tudo isso."

"Se tivesse se contido, não teria sido você."

"Mas teria sido melhor para os outros," Gale complementou com uma suavidade triste.

Sam levantou o olhar. Assentiu.

"Eu entendo."

"Sei que sim," ela concordou, mão ainda no seu ombro. Um conforto. Uma tentativa. "Alguns de nós conseguem a paz com mais facilidade do que os outros. O resto precisa de mais tempo. Mais esforço. Às vezes nunca alcançam. Faz parte da vida."

Naquele instante, Sam sentiu como se estivesse olhando de frente para um espelho. Pelo semblante de Gale, ela não passava longe dessa sensação.

"Não sei. Eu evito pensar sobre isso."

"Sobre a paz?"

Sam acenou. "Sobre ter um descanso. Uma forma de livramento das coisas."

"Acha que não vai conseguir?"

"Não acho que devo." Ela corrigiu debaixo da respiração. "As pessoas que seguem em frente... elas são diferentes, então merecem algo diferente. Só é mais fácil pra elas por conta disso. Não é justo que seja do mesmo jeito pros que não são como essas pessoas."

"Os que não são diferentes."

"Os que não são bons. Genuinamente bons." Sam remexeu no seu curativo sujo, a voz quieta. "Essa é a diferença."

Quando Gale a respondeu, foi em um mero sussurro.

"É por isso que não quer seguir em frente? Por não achar que mereça?"

Sam acenou de novo algumas vezes, quase não movendo a cabeça, os olhos fixos no curativo que seus dedos cutucavam ansiosamente. O peso da sua culpa era como múltiplas bigornas nos seus pés.

"Creio que eu subestimei as nossas semelhanças, Sam," Gale disse subitamente, contra o silêncio da noite. "Eu não sei. Foram tantos anos..." Suspirou. "Eu nunca cogitei que existiria alguém que fosse tão... parecida."

Sam prendeu os lábios, voltando a fitá-la.

"Parecida com você?"

Foi a vez de Gale mover o rosto em anuência. Ela sorria um pouco, a feição conformada; parecia estar pensando em algo que Sam não alcançava.

"Parecida com o que eu sou hoje. Com o que eu me tornei." Ela esclareceu. "Bem, eu não tenho mais tanto caminho pela frente, Sam, mas você tem."

Sam percorreu o seu semblante, tentando entender suas expressões. Sem sucesso.

"O que quer dizer com isso?"

"Talvez ainda haja esperança, só isso," Gale apertou seu braço uma última vez. "Lembra daquele dia no santuário, um ano atrás?"

Não respondeu. Não precisava. Gale sabia que Sam nunca esqueceria.

"Foi uma boa conversa, a que tivemos naquele dia. Não terminou em nenhum soco no meu queixo, ao menos."

Soltou o ar em uma diversão contida. As memórias vieram generosamente, pouco a pouco.

"Naquele dia, eu sugeri que você juntasse seus cacos e seguisse adiante," Gale relembrou. "Deixando os seus problemas com a família e os traumas para trás."

"'O passado não pertence a você. Só pertence a ele mesmo'." Ela a parafraseou, pensativa.

Gale abriu um pequeno sorriso. "E eu também disse que você não precisava fazer tudo isso sozinha."

Suas mãos se tensionaram. Por um momento, Sam se tornou consciente de cada palavra, cada mera inclinação de tom.

"Às vezes, nós podemos encontrar outras pessoas. Outras pessoas solitárias, como nós," seus olhos eram da cor do mar que se fazia visível através da janela; um azul vívido mesmo no escuro da noite, mirando os seus com afeto. "Pessoas que nos compreendam o suficiente pra trilharem o caminho das pedras do nosso lado."

Sam não sabia o que ela estava implicando. Talvez estivesse falando de si mesma, mas a ideia não encaixava direito, e provavelmente não se tratava disso. Sam percebeu que não restava ninguém que pudesse ser para ela o que Gale acabou de contá-la.

Nunca havia tido um alguém.

"Bem, eu não vou mais encher você com as minhas lorotas, eu prometo." Gale soltou uma risada baixa e rouca. "E eu ainda tenho o meu uísque pra tratar. Se incomoda em passar mais algumas horas por aqui? A vista vai te ajudar a refletir."

Sam não achava aquilo uma lorota, mas não insistiu. Antes que pudesse respondê-la, no entanto, uma curta melodia de três tons ressoou pela casa.

A campainha.

Encarou Gale em silêncio. Seu rosto deveria estar dizendo, você tá esperando visitas?

"Merda. Eu esqueci." Gale buscou um pano apressadamente e limpou as mãos. Suas feições mudaram em segundos. "Se livra desse uísque pra mim, Sam. Rápido. Eu já volto."

Não questionou. Mesmo com a palma enfaixada oferecendo pouca ajuda, Sam teve a ideia de fechar o lacre com a que restava e rolar a garrafa bancada abaixo, já que as gavetas criavam um vão antes do nível do porcelanato.

Bastou alguns segundos para o vidro cheio rolar de volta. Teria que pular ao plano B.

Reabriu o lacre com os dentes e derramou uísque no copo. Desceu um gole enquanto se encostava de qualquer jeito contra a mesa. Sua boca se retorceu diante do gosto desprezível.

A ideia de beber era ainda pior do que o sabor de chamas líquidas, mas seja quem fosse na porta, Gale parecia determinada em esconder o fato de estar enchendo a cara em uma noite de inverno, e Sam não a deixaria na mão.

Suspirou. Para falar a verdade, deveria ter ido embora, comprado alguns analgésicos e sumido ruas adentro. Não estava com energia para conviver com ninguém.

Ela ainda estava resmungando quando Gale retornou, falando baixo e gesticulando amigavelmente. Ao seu lado, Sam não demorou para reconhecer a mulher que a acompanhava.

Talvez nunca esquecesse o seu rosto, nem mesmo após dois longos anos.

"Eu e a Sam estávamos batendo um papo por aqui, antes de você chegar," Gale a introduziu sem muita cerimônia. "Ela precisava de uma ajudinha médica, também."

Sam engoliu o resto do uísque e fez uma careta brusca, limpando a boca com as costas da mão boa.

Os olhos de Sidney Prescott não a percorreram por completo, mas encontraram o seu curativo, e depois brevemente os seus próprios.

"Oi, Sam." Ela disse casualmente. "Quanto tempo."

Sam pressionou os lábios e limitou o cumprimento a um balanço a cabeça. Trancou algumas tosses para aliviar a queimação. Sua garganta detestou aquela porcaria de bebida.

"É bom te ver de novo." Foi o que Sidney concluiu, vendo que Sam não queria muito assunto. "Espero que sua mão melhore logo."

"Obrigada."

Sidney apertou os lábios na sua direção e voltou a olhar para Gale com expectativa.

"Eu vou terminar isso aqui depois," Sam murmurou na tentativa de se livrar tanto da bebida, quanto da situação. Era nítido que elas fariam bom uso de um pouco de intimidade, e Sam estava acostumada a desaparecer nessas horas. Caso ficasse ali, só serviria para atrapalhar.

E, claro, como todas as grandes merdas que aconteciam no mundo, a sua se deu em uma questão de segundos.

Assim que tentou apanhar o uísque, copo na outra palma, Sam esqueceu da droga do curativo e bateu a mão inutilizada contra o cano com força demais, atirando-a para além da superfície segura da mesa.

A garrafa se chocou contra o chão em um único baque instantâneo. O vidro estilhaçou em infinitos pedaços, e seus coturnos tomaram um banho de álcool.

"Porra," rosnando consigo mesma, Sam esqueceu os modos e se curvou de imediato, juntando alguns cacos. Eram tantos que aquilo demoraria horas. Não bastaria o trabalho manual; para desfazer aquela merda, era uma questão de ferramentas certas. Levantou o rosto, encontrando ambas a encarando, e focalizou em Gale. "Eu só preciso de uma vassoura e um apanhador de lixo pra limpar isso. Tem algum desses por aí?"

"Uhm, deve ter no quintal. Vou buscar."

Quando Gale se virou, Sam voltou brevemente o rosto à Sidney. Ela observava as costas de Gale contemplativamente.

Sam não a via há muito tempo para poder conhecê-la de alguma maneira mais profunda, mas aquela expressão era óbvia. Sam também tinha a noção básica de que ela não era nenhuma idiota.

Sidney não caíra naquela historinha da bebida.

Sendo sincera consigo mesma, Sam estava exausta, e ainda tinha muito vidro a ser varrido. Decidiu que a falha daquela cena forjada seria um problema com o qual Gale lidaria mais tarde.

Prosseguiu a reunir os cacos insistentemente, reclamando um tanto consigo mesma. Focou tanto na sua tarefa que esqueceu que não estava sozinha.

"Ah, deixa eu te ajudar com isso," ela ouviu Sidney dizer. Sam fechou o rosto e continuou o seu trabalho, ignorando a oferta.

Não queria ajuda. Na verdade, não queria interagir com ela de modo geral. Sua presença a trazia lembranças, e Sam já estava tendo um dia abarrotado demais de memórias, desejadas ou não. Todos os outros problemas permeando sua mente também não ajudavam.

Alheia à sua agonia, Sidney agachou na sua frente mesmo sem ter uma resposta positiva e começou a juntar alguns caquinhos. Ela parecia relaxada, como se aquela fosse mais uma noite usual entre várias outras noites igualmente usuais, mas ainda havia algo de estranho sobre ela.

Chegou na conclusão de não insistir no pensamento. Quanto menos soubesse, melhor.

E era claro que nada aconteceria como ela preferia, porque o seu dia realmente não poderia piorar.

"Como andam as coisas, Sam?"

Ela respirou fundo. Sidney Prescott realmente iria engatar uma conversa dentro daquela cozinha — e, de todas as pessoas do mundo, seria justo com ela. Sam varreu mais alguns pedaços de vidro com os dedos da mão funcional enquanto engendrava mentalmente uma forma eficiente de enfiá-los na própria garganta e morrer.

"Na mesma, eu acho."

"Que bom." Sidney a deu um sorriso pequeno. Deliberou um pouco. Por fim, arriscou: "Olha, sobre a Gale..."

Sam enterrou os olhos nela em desconfiança. Desviou depois de uns segundos, não querendo estabelecer algum contato visual.

"Eu sei que ela adora Jack Daniels. Ela sempre preferiu os clássicos." Sidney tentou apaziguar a repreensão com a arma que tinha: os anos de familiaridade em vantagem. Em seguida, deu uma risada meio contida que preencheu o recinto. "E o seu rosto também entregou um pouco. Você odiou beber esse negócio, não foi?"

"Hmpf."

"Eu entendo que queira ajudar," Sidney relativizou logo depois, tentando negociar. "Eu também quero. Mas existem outras maneiras—"

Sam a interrompeu monotonamente. "Só tem dois tipos de maneiras. As que funcionam, e as que não."

"E como sabe o que eu ia dizer?"

"Porque provavelmente deve estar incluso nas maneiras que não funcionam."

"Você parece ter bastante certeza disso."

É claro que ela defenderia algo tão idiota quanto o Alcoólatras Anônimos. Perguntou-se se esse seria o absurdo da próxima entrevista.

Sam respirou fundo, esfregando o rosto marcado pelo cansaço. "Gale não estaria escondendo uma garrafa de uísque de você como se fosse uma carga ilegal de cocaína se o que quer que tenha pensado como solução estivesse dando certo, Sidney."

Ouviu um suspiro. "Bom, é menos mal que não estejamos em lados diferentes, porque você tem um bom ponto." Ela cedeu e sentou acima dos calcanhares, batendo uma mão na outra para tirar o excesso de pó de vidro. Sam percebeu que Sidney parecia mais abatida do que dois anos antes, como se muito mais tempo tivesse se passado desde então, e isso a fez evitar de dizer que, na verdade, não se sentia no mesmo lado que ela em momento algum.

Talvez, pelas circunstâncias da vida, Sam se visse muito mais vezes na situação contrária.

Questionou-se se isso a fazia menos feliz ou satisfeita de alguma forma. Não encontrou uma resposta clara dentro de si mesma, e isso a perturbou por um instante.

Desviou o olhar dela de novo quando caiu em si que estava prestando atenção demais em detalhes fúteis. Em seguida, assim que o trabalho mais pesado parecia pronto, sentou-se no chão com as pernas abertas e dobradas nos joelhos, limpando a mão boa no tecido grosseiro da jeans.

As palavras a deixaram antes que pudesse contê-las.

"Eu ouvi você no rádio. Mês passado, talvez."

Sam se acuou depois disso, sentindo o corpo tenso. Continuar conversas ao invés de cortá-las pela raiz era algo tão fora do comum a alguém como ela; e, ainda assim, aquele maldito dia não parava de surpreendê-la.

"Ah," Sidney parecia estranhamente fora do próprio ambiente. "O que achou da entrevista?"

Deu de ombros. "Esquece, só falei por falar. Eu não sou muito boa nessa coisa de dar opiniões generosas."

"Acho que consigo lidar com isso."

Sam percebeu seu tom obstinado e suspirou. Ela realmente insistiria em saber. Bem, que se danasse; a culpa era sua, de qualquer jeito. Lembraria de manter a droga do bico fechado na próxima.

"Eu vi os seus pontos sobre o uso da fama a fins humanitários. Os impactos dos holofotes no indivíduo e todas essas coisas."

"E?"

"E o quê?"

"O que achou sobre?"

Sam puxou um cigarro de dentro do bolso. Colocou na boca e acendeu com o isqueiro de Gale.

"Uma bobagem midiática."

Sidney pausou por uma palpitação, o rosto surpreso. Foi a primeira vez em que Sam parou para dá-la uma olhada. Aquela jaqueta de couro legítimo no seu corpo deveria custar mais do que todos os seus aluguéis do ano. Era irônico que alguém tivesse tanta grana que poderia comprar Sam, Tara e a casa onde moravam simplesmente por dizer besteiras sintonizadas em estações FM.

"Perdão?"

Pela visão periférica, Sam percebeu uma sombra próxima à entrada da cozinha. Cigarro entre os dedos, apoiou os braços acima dos joelhos despreocupadamente.

"Você quis saber o que eu achava."

"Eu sei. Eu só imaginei..."

"Que eu adoraria escutar aquele papo de auto-sacrifício, como se sobreviventes de grandes crimes devessem suas existências inteiras pras outras pessoas apenas por estarem vivos?" Sam retrucou no mono-tom usual, inclinando a cabeça. "Sério, Sidney?"

Ela não a respondeu, mas também não fugiu do seu escrutínio. "É isso o que você pensa do que me ouviu falar naquele dia?"

"Foda-se que eu penso. Não sou nada importante. Ninguém é." Ela tamborilou o cigarro tediosamente, derrubando as cinzas. "Mas o fato de algumas pessoas estarem mortas não te faz menos digna de ainda ter ar nos pulmões. Nem eu, nem Gale, nem qualquer outra pessoa que passou por essa merda. Isso é tudo o que eu sei."

Em seguida, Sam tragou novamente, devagar, espreguiçando as omoplatas doloridas enquanto observava Sidney ponderar consigo mesma. Ergueu a voz logo depois, para poder ser ouvida do lado de fora do cômodo. "Pode sair do seu esconderijo agora, Weathers."

Sidney não virou para trás. Uma Gale com vassoura e apanhador em mãos surgiu no cômodo, encarando ambas.

"Você e esses seus olhos de águia," ela retrucou. "Os benefícios da juventude."

Percebeu ao analisá-la que havia algo a mais no seu semblante além da ironia afetuosa direcionada à Sam ao falar; algo cozinhando devagar, fermentando alguma coisa meio subversiva, desde antes que entrasse na cozinha.

Sua exaustão e vontade de vazar dali foram suficientes para convencê-la de não bater cabeça sobre o que trataria.

"Toma." Gale ofereceu, por fim. "Essas porcarias estavam no canto mais imundo daquele quintal. Espero que faça bom uso disso."

"Ninguém morre por causa de um pouco de sujeira, Weathers." Sam se levantou com auxílio da mão saudável e apanhou as ferramentas. "Mhm. É o suficiente. Gracias."

Na sua frente, Sidney parecia pensativa. Sam a deu uma breve inspeção e virou de costas para fazer o que precisava. Se aquela fosse a sua reação básica à uma crítica, Sam não era capaz de imaginá-la vivendo nos seus pés.

Afastando os pensamentos, varreu tudo o que precisava. Gale começou a passar um pano no chão para secar o uísque perto da bancada.

Para o seu azar, só ter uma mão funcional tornava um tanto infernal a simples atividade de usar o apanhador. Quando recorreria aos pés para segurar o ferro no chão, Sidney apoiou um dos braços na ponta do cabo.

Sam a fitou.

"Sinto muito se fui intrusiva, antes," Sidney respirou fundo, falando baixo. Ela parecia tranquila, mas Sam sabia identificar bem uma frustração. "Só fiquei curiosa sobre o que teria a dizer, eu acho."

Cigarro no canto da boca, deu de ombros. "Não foi nada. Não pra mim."

"Que desperdício," ao mesmo tempo, Sam ouviu Gale resmungar para si mesma, no outro canto da cozinha e agachada no chão. "Droga."

Voltou-se à Sidney, soltando fumaça pelo nariz. Seu tom era objetivo ao proferir: "Ainda acha que a sua maneira tá dando certo?"

Sam a viu conter o rosto desconfortavelmente. Suas palavras anteriores também pegaram no seu calo, era visível. Mas Sam não durou ali para presenciar qualquer outra reação: usou a mão boa para apoiar a vassoura na parede e despejou os cacos em uma caixa vazia de papelão, dentro da despensa.

"Joga aquilo com cuidado, depois. Você não vai querer perfurar nenhum desavisado." Fitando apenas Gale, Sam então se apiedou dela. "Depois eu compro um novo desse pra você, eu prometo."

Se Sidney odiou a ideia do presente se tratar de mais álcool, não disse nada. Sam também pouco se importava.

"Promessas são dívidas." Gale respondeu casualmente, mas ela a conhecia: por mais que não fosse cobrar, sentiria falta do uísque perdido. Sam daria um jeito de pagar por uma garrafa daquelas e compensá-la pelo problema. "Você já vai?"

Sam girou os ombros e grunhiu. "Não tenho nada pra fazer aqui." Respondeu. "E vou pro serviço às sete." Talvez pela última vez até que arranjasse um novo, percebeu internamente.

"Se cuida, Sam. De você mesma e da sua mão."

Deu um sorriso curto e meio torto em retorno. "Vejo você por aí, Weathers."

Em meio à sua saída, seu rosto virou à Sidney por um instante. Ela novamente aparentava estar perdida em pensamentos. Sam deixou a cozinha sem se despedir dela, e aquele foi o único momento da noite relacionado à Sidney Prescott que não tivesse sido estranhamente bizarro.

Fechou a porta de carvalho atrás do corpo. A noite a consumiu de imediato, como um gigante faminto, assim que deixou a casa para trás. Sam tragou devagar do restante do cigarro e limpou a boca com as costas da mão boa pelo que poderia ter sido a vigésima vez naquela madrugada, porque o maldito gosto do uísque se recusava a sair.

Caminhou noite adentro novamente, tal como no dia anterior. Desceu a rua fumando em silêncio e tentou conter a ânsia de jogar o álcool para fora das tripas. Não conseguiu.

Vomitou a porcaria toda em um lixeiro da esquina. Sam apagou o cigarro na sujeira, tossiu mais um pouco e rumou solitária na escuridão da alameda, torcendo que os demais fantasmas perdidos do seu passado não decidissem que também seria uma boa hora de saírem de lá.

Dois já eram mais que o suficiente.