OS MAROTOS: O LIVRO DAS SOMBRAS

CAPÍTULO 7

O BEIJO NO LAGO

'… Now you're standing there tongue tied
You better learn your lesson well
Hide what you have to hide
And tell what you have to tell

You'll see your problems multiplied
If you continually decide
To faithfully pursue
The policy of truth

Never again
Is what you swore
The time before…"

(Policy of Truth – Depeche Mode)

"Estou com dor de cabeça desde ontem e nem mesmo as poções receitadas por Madame Pomfrey têm surtido efeito..." — queixou-se Remus, apoiado em seus cotovelos e deitado sobre a grama da Escola que serpenteava o Lago Negro.

Os alunos do quarto ano haviam tido a última aula do dia que era de Herbologia e, deixando as estufas, eles aproveitavam o sol gostoso do fim de tarde, assim como os estudantes dos outros anos. O cheiro das folhagens dos plátanos e álamos da Floresta Proibida era trazido pela brisa fresca e, próximo ao Lago, alguns alunos brincavam de atirarem pedrinhas na água, fazendo-as quicar ruidosamente sobre a superfície. Mais distante, algumas carpas se aglomeravam perto da ponte, de onde alunos do segundo ano lhes atiravam pedacinhos de pão.

"Você com essa sua licantropia tá parecendo uma mulher naqueles dias, Remus..." — zombou Pettigrew, rindo-se.

"Como se você soubesse o que é a licantropia de verdade, Peter..." — redarguiu Remus com mau-humor, pressionando a têmpora.

"Como se você soubesse como é uma mulher naqueles dias, Pettigrew..." — complementou James.

"Como se você soubesse como é uma mulher..." — declarou Sirius, cobrindo o rosto com a mão espalmada para protegê-lo do sol.

"Vão se ferrar! Vocês sempre se unem contra mim!" — resmungou Pettigrew, erguendo o seu dedo médio e se jogando sobre a relva — "Talvez você esteja virando um lobisomem de vez, Remus..."

"Muito engraçado, Pettigrew! Não é assim que a coisa funciona, mas Madame Pomfrey me alertou que, nessa época, alguns sintomas podiam alternar no período próximo à lua cheia. Faltam três dias... Então, acho que é natural eu não estar na minha melhor forma e me sentir, tipo, meio que miserável..."

James, que se apoiava também nos seus cotovelos e cruzava a perna sobre o joelho, perguntou com o cenho um pouco franzido pelo sol:

"Com quem você tava falando no banheiro do dormitório hoje de manhã, Remus...?"

O rapaz de cabelos castanhos se sentou sobre a relva, parecendo um tanto desconcertado. Depois, endireitou os óculos, dando de ombros ao se lembrar que, naquela manhã, surpreendentemente, eram os amigos que já o esperavam vestidos enquanto Remus deixava o banheiro sem parte do uniforme e com uma palidez fantasmagórica.

"Com ninguém em específico. Só que..." — o rapaz hesitou, mordendo os seus lábios— "Só que... Às vezes, eu converso com o lobo. Logo quando comecei a fazer isso, achei que estivesse ficando maluco, mas falei com Madame Pomfrey depois e ela me tranquilizou, dizendo que, talvez, fosse bom para eu me entender melhor com ele..."

Sirius pestanejou, fitando o rosto de Remus.

"Você fala da licantropia como se tivesse um outro ser vivendo dentro de você..."

Remus deu de ombros novamente, olhando involuntariamente em direção à orla da Floresta Proibida em que o Salgueiro Lutador movia os seus galhos, tentando alcançar em vão um bando de corujas que sobrevoara demasiadamente perto de sua copa.

"Mas é como se fosse isso, Sirius! A licantropia se trata de um vírus habitando o corpo de um hospedeiro. Todo o desenvolvimento da vida do licantropo compreende no processo de essas duas naturezas habitarem o mesmo corpo e se aceitarem. Principalmente nos quinze primeiros anos. O lobo é uma criatura consciente."

Havia alguma melancolia nas palavras de Lupin, apesar do seu esforço para ser didático na explicação daquele assunto. James observou o rosto do rapaz que ainda tinha o seu olhar sombrio em uma das faces e indagou:

"E o que foi que o lobo falou pra você hoje de manhã?"

Remus mexeu nos seus óculos, disposto a ser o mais discreto possível sobre as suas conversas com aquela criatura das trevas sorrateira no período da lua nova e minguante; demasiadamente impositiva e impaciente no estado da lua crescente e bestial no período da lua cheia.

"Nada de importante..." — mentiu Lupin.

Mas aquilo não era verdade. Porque o lobo farejava o cheiro humano ao seu redor, estando em uma Escola com vários bruxos na puberdade. A criatura sentia o cheiro do sangue e da carne daqueles corpos que se moviam ignorantes de como o lobisomem que habitava em Remus desejava cravar os seus dentes e unhas naquelas jugulares pulsantes.

"Se matasse, garoto, sentiria tanto prazer que faria de novo, de novo e de novo..." — murmurara o lobo na orelha de Remus durante a manhã, instaurando um arrepio em sua medula. Ele penetrava em seus pensamentos ultimamente, assim como o Chapéu Seletor fizera no primeiro ano.

O lobo chamava Lupin às vezes de garoto. Como se o lobisomem fosse uma alma muito velha e Remus se apresentasse como um feto em formação, sem nenhuma dimensão real da própria existência. Curiosamente, Sirius chamava Lupin também assim de vez em quando, ainda que houvesse somente um ano de diferença entre os dois.

"Cale-se!" — havia ordenado Lupin, apoiado na pia do banheiro do dormitório, fitando-se no espelho enquanto umedecia a testa. Uma íris sua se mantinha amarelada feito um topázio e a outra, escura como carvão.

"Pelo menos, você poderia ser um pouco mais verdadeiro consigo mesmo. Por que tenho que dividir esse corpo jovem com um garoto fraco, sonso, covarde, que não se permite nem mesmo trepar com a vontade que tem? Eu conheço os seus sonhos Remus John Lupin. Sei como são depravados. Por que se segura?"

"Porque eu não sou obrigado a fazer o que você quer! E se não estiver satisfeito, tampouco eu estou..."

Ainda no banheiro, Remus se voltou, fitando a porta do recinto quando ouviu Sirius batendo com os nós dos dedos nela, apressando-o e perguntando se estava tudo bem.

o que você quer também, garoto... Ser fodido pelos seus dois melhores amigos, não é? Por um deles, com amor. E pelo outro, por puro prazer porque nem sempre é da droga desse amor dos seres humanos que você precisa. Ainda que eles te descartem como fazem com todas aquelas garotas, você quer, Remus! Aliás, você ia adorar ser tratado como uma delas..."

"CHEGA!" — gritou Lupin, batendo com força na bancada da pia — "É a minha vida! São os meus amigos! Não vou deixar você encostar em nada do que é meu! Se é um inferno pra você conviver comigo, por que não vai embora?"

"Porque eu estou preso a você. Preciso de você. Se você morrer, eu morro e vice-versa. Quando vai começar a me dar o que preciso, Remus? Quando vamos começar a viver de verdade?"

Remus, diante da lembrança do início daquela manhã, retirou os óculos da vista e apertou os olhos. Não seria de todo ruim ele se isolar nos próximos dias na Casa dos Gritos e retornar quando os seus pensamentos estivessem menos confusos e obsessivos. Na verdade, já fazia um tempo que a voz do lobo vinha se tornando mais insistente durante os períodos do ciclo licantropo.

Além disso, em alguns momentos, Remus percebia em si mesmo alguns estados de ausência em que a sua concentração parecia se perder em um quarto de móveis gastos e ar abafado imerso em luz prateada. Então, ele ouvia em seus tímpanos a respiração pesada, o arfar rouco do lobo e um prolongado uivo que arrepiava todos os pelos do seu corpo, antes de ele voltar a si e se flagrar olhando para o nada.

Esse constava como um dos sintomas que Remus lera nos relatos de licantropos escritos nos livros que ele pegara emprestado na seção reservada da biblioteca. Durante a proximidade da lua cheia, algumas vezes, os lobos quando se encontravam insatisfeitos pela privação de alimento e prazer, podiam invadir o espaço pessoal do hospedeiro, sem causar um dano real, mas ansiando saborear um pouco as sensações humanas.

Lupin fez uma careta e apertou novamente as suas têmporas, dizendo aos amigos sentados ao seu lado no gramado diante do Lago:

"Bom, tudo vai melhorar depois da semana que vem..."

James, observando o amigo, sentou-se e murmurou, batendo de leve em sua coxa:

"Encosta a sua cabeça aqui. Melhor do que ficar com ela apoiada no chão..."

Remus respirou fundo e, julgando que não era tão ruim fechar os olhos por alguns minutos, já que ele sentia o seu cérebro latejando, aceitou o convite de repousar a cabeça no colo de James. Potter afundou, então, os seus dedos firmes nas madeixas castanhas do amigo, lhe massageando o couro cabeludo e aquele afago era demasiadamente relaxante.

Sirius entortou a boca para o lado com irritação, fitando os dois amigos.

"É sempre assim..." — resmungou ele mais para si mesmo do que para os outros grifinórios.

"Sempre assim o que, Black?" — indagou James, erguendo o rosto, após sorrir para Remus de olhos fechados em seu colo.

"Nada!"

"O que foi?"

"Nada!"

Potter respirou fundo, apoiando-se em suas mãos e jogando os ombros para trás.

"Você tá sempre irritado ultimamente!" — e, baixando a sua voz, ele indagou — "Por acaso, Orion e Walburga te escreveram?"

Os Blacks não costumavam escrever para Sirius durante o período escolar. Eles não eram esse tipo de pais, mas, nas raras vezes em que o faziam, era comum as cartas virem pontuadas com passividade agressiva, agressividade passiva ou agressividade agressiva.

Havia uma versatilidade no modo de Orion e Walburga serem cuzões e, após esse contato esporádico, era comum Sirius adentrar num estado de ansiedade, aborrecimento, amargura, sarcasmo e violência. Tudo ao mesmo tempo. A influência dos Blacks sempre desequilibrava Sirius como um ingrediente fatídico na fórmula de uma complexa poção.

"Não, não foi isso... Eu só tô com muita coisa na minha cabeça. Estamos tendo muitos exames e em poucas semanas, vamos jogar contra a Corvinal." — mentiu Sirius, observando os alunos do quinto ano molharem os pés na água do Lago.

Pettigrew, que se mantinha tão quieto que os amigos julgavam que ele havia caído no sono, sentou-se abruptamente, batendo as palmas das mãos ao dizer:

"Falando em Quadribol, olha quem tá vindo pra cá..."

Sirius olhou na direção em que Pettigrew apontava e viu Michael Carlson, Capitão do time da Corvinal, aproximando-se ao lado de Rebbecca Liljeberg, ex-namorada de James e apanhadora da Casa de Ravenclaw.

Carlson tinha as mãos nos bolsos e as costas eretas. A menina ao seu lado, uma cabeça mais baixa do que ele, avistando os garotos, se deteve a alguma distância, indo conversar com os colegas próximos ao Lago. O término entre Rebbecca e James havia sido péssimo e era comum os dois estudantes serem deliberadamente desagradáveis um com o outro quando eram obrigados a interagir. O ápice da animosidade deles se dava, sobretudo, nas partidas de Quadribol.

"O corvino certinho tá vindo pra cá. Poxa, na hora que eu ia fumar um cigarro..." — queixou-se James.

"Segura a tua onda, Potter! Esse aí te coloca em Detenção sem nem pestanejar!" — advertiu-o Pettigrew — "O Carlson tá pegando a tua ex? Ele não é gay?"

James espreitou a menina de costas próxima ao Lago Negro, conversando com algumas colegas. Ela tinha os cabelos escuros até os ombros um pouco bagunçados pelo vento e trajava o seu uniforme azul do treino de Quadribol da Corvinal.

"Eles não tão juntos." — explicou James— "Carlson é primo da Rebbecca. Os dois foram criados próximos como se fossem irmãos. Ela queria que eu o conhecesse quando estávamos namorando, mas terminamos o nosso namoro antes de ele voltar do intercâmbio em Koldovstoretz, na União Soviética."

Pettigrew sorriu, exibindo os seus dentes grandes.

"Você e o Carlson poderiam ter sido cunhados, Potter..."

"Chega, Pettigrew!" — censurou-o James, parecendo um pouco aborrecido.

O rapaz do sexto ano se aproximou, cumprimentando os colegas do quarto e Sirius reparou, imediatamente, que o olhar do corvino se debruçou sobre Remus com a cabeça apoiada no colo de Potter. Carlson parecia um corvo inspecionando um terreno e Black se sentiu invadido como um cachorro que, diante da inteligente ave, ergue as orelhas, rosnando e dando dois latidos para o alto.

Lupin, por sua vez, percebendo a movimentação ao seu redor, voltara a se sentar, levando os óculos à vista.

"Oi, Grifinória! Posso falar com vocês um instante, Black e Potter?" — cumprimentou-os o monitor com um aceno de cabeça.

Sirius não entendia por que se o assunto era com ele e James, Carslon insistia ainda em fitar Remus, que se ajeitava agora e envolvia os seus joelhos com os braços, no seu modo defensivo habitual.

"Tá falando, Carlson!" — devolveu-lhe Black, jogando as mãos para o ar.

O monitor contraiu as sobrancelhas, detendo-se por um segundo, antes de respirar fundo e dizer:

"Precisamos definir os dias de treino em que usaremos o estádio da Escola. Dois jogadores da Corvinal estão fazendo aulas complementares para os exames do N.O.M.s e precisamos fazer uma alteração nos dias de treino. Já conversei com o Longbottom e com o Dayal e eles falaram que, por eles, está ok cederem o domingo de tarde para nós e darmos a sexta à noite para vocês. O restante do time também concordou. Mas Longbottom pediu para verificar também com vocês dois."

Sirius trocou um olhar tácito com James e, erguendo o rosto, disse:

"Para mim, tanto faz se o resultado vai ser o mesmo..."

O resultado era a Grifinória massacrar a Corvinal na próxima partida e fazer aquele monitor corvinense achar outro lugar para olhar que não fosse o rosto de Remus.

James também deu de ombros e falou com cinismo:

"Longe de mim atrapalhar os meus adversários..."

Carlson fitou os dois garotos com os seus olhos azul-porcelana, assentindo ao abrir a sua mochila e pegar um pergaminho dobrado, um tinteiro e uma pena de dentro da bolsa.

"Preciso que preencham isso aqui para que eu entregue à Madame Hooch. Toda a alteração de horário dos treinos tem que ser documentada na Escola por questão de segurança..."

Pettigrew, que observava a cena, falou, jogando-se de novo sobre a relva:

"Vocês, monitores, são tão pacientes com as regras da Escola... Por que uma mudança idiota de horário de treino tem que ser documentada e assinada?"

Remus, que também permanecia calado até então, falou, fitando Peter:

"Porque se algum aluno se ferir gravemente no treino, o diretor da Casa é encarregado de avisar aos pais do jogador e é responsável por levá-lo à enfermeira ou ao St. Mungus na pior das hipóteses. Sabendo qual time está treinando em quadra, a Escola sabe qual diretor precisará ficar à disposição no dia..."

Pettigrew revirou os olhos.

"Como você é nerd, Remus! E por que os alunos têm que assinar esse pergaminho idiota?"

Remus mexeu nos seus óculos e fez um gesto circular com a mão, imitando o formato da quadra.

"Porque o céu do estádio é enfeitiçado para os alunos não ficarem o invadindo toda hora e jogando Quadribol durante as aulas. Só com a assinatura dos times, eles refazem o feitiço para os alunos que estão com os nomes escritos nesse papel aí treinarem..."

Pettigrew fez uma careta, entortando os seus lábios.

"NERD! Você tinha que ser mesmo a droga do representante de turma, cara! Quem mais aguenta isso?"

Carlson sorriu, abaixando o seu olhar e Sirius, respirando fundo, tirou o livro de Herbologia do interior da sua mochila para servir de apoio ao assinar o seu nome na linha pontilhada do pergaminho. Os espaços dos nomes dos outros membros do time de Quadribol da Grifinória, com exceção de James, estavam todos preenchidos.

Foi enquanto fazia os pingos nos is do seu nome que Sirius viu Carlson se mover em direção a Remus, sorrindo ao dizer:

"Está se sentindo melhor, Lupin?"

Um silêncio se fez por um instante em que Remus parecia incerto se o aluno do sexto ano havia falado, de fato, com ele. Movendo a sua cabeça para olhar ao redor, Remus endireitou os óculos sobre o nariz, dizendo:

"Perdão...?"

"Você parecia ter exagerado um pouco nos ponches da festa dos intercambistas. Tivemos uma conversa interessante sobre a camisa que você tava usando..."

Remus sentiu um rubor subir pelas suas faces porque alguns trechos da conversa que tivera com o monitor corvinense remanesciam em sua memória, incluindo a definição que ele dera da palavra Oralder. As recordações se misturavam com os outros acontecimentos daquela noite como ingredientes sólidos de uma poção que não se dissolviam no caldeirão de cobre em fogo alto e boiavam na superfície.

Sirius ergueu o seu olhar selvagem da folha de papel em que escrevia. James fitava Remus, assim como Pettigrew.

"Estou melhor, monitor Carlson. Er... Desculpa se fui inconveniente naquele dia..."

Remus também se lembrava que, com amargura por Black haver dito que era estranho dois garotos dançarem juntos, ele se insinuou para o monitor um pouco, alterado pelo whisky de fogo. No entanto, Remus definitivamente não se recordava do quão provocativo fora e nem da sua língua massageando o canino ligeiramente torto.

Quando Carlson se aproximou mais de Remus, Sirius fez um ponto desnecessário no fim do sobrenome Black, empregando tanta força na pena que o pergaminho chegou a ser perfurado.

"Você não foi inconveniente. Na verdade, era uma das pessoas mais interessantes daquela festa..."

Remus moveu o seu rosto, falando com sinceridade:

"Mesmo eu derrubando suco em você um trilhão de vezes...?"

Carlson sorriu, dizendo:

"Não foi um problema pra mim..."

Sirius empurrou o livro de Herbologia com o pergaminho e a pena junto para James, disposto a encerrar aquilo logo. James, por sua vez, que parecia distraído olhando a cena, demorou-se um pouco para tomar o formulário em suas mãos.

"...Mas estou feliz por podermos nos falar sob outras circunstâncias..."

Remus baixou o seu rosto com um leve rubor em suas bochechas, ajustando os óculos com as juntas dos dedos sobre o nariz. E para a surpresa dos seus amigos, ele estava sorrindo.

Na velocidade de um pomo dourado fugindo de dois apanhadores ansiosos, James assinou o seu nome no pergaminho, que não era um nome comprido, mas a linha do t de Potter se resguardou para uma consoante apenas.

Sirius olhava de Lupin para Carlson, tendo as sobrancelhas muito contraídas enquanto a sua respiração parecia presa no peito. Foi nesse momento, então, que Remus, sentindo a sua cabeça latejando com mais intensidade, se viu assombrado por aquela voz lupina que murmurava em seu ouvido, descendo o som das palavras até o seu lóbulo e farejando o seu pescoço: "Se quiser, eu trago Michael Carlson para o nosso lado, garoto..."

Fechando os olhos embaçados por um segundo, Remus, ao abri-los de volta, tinha aquela expressão que Black e o monitor corvinense já haviam presenciado na aula teórica de Poções. Havia um tom debochado e provocante no modo que ele espreitou Carlson de cima a baixo.

"Se quiser continuar falando comigo sob outras circunstâncias, monitor, eu não vou me importar..." — declarou Remus com uma voz estranhamente autoconfiante e se apoiando em suas mãos enquanto jogava os ombros para trás.

Carlson se deteve, sorrindo um pouco surpreso.

"Ah, não...? Bom saber. Eu devia ter tido coragem e ter te convidado pra dançar comigo naquele dia da festa, depois de você ter me sugerido isso... Só teria que te deixar avisado que não danço bem como você..."

Remus moveu o seu rosto para trás com um sorriso não tão surpreso e ignorando as caras perplexas de Sirius, James e de Pettigrew.

"Dançar é basicamente mexer os braços e pernas no ritmo da música. Não tem mistério! Vamos ter que esperar então até a próxima festa pra eu mexer com você, monitor?"

Carlson, agora, tinha um tom rosado em suas faces e não conseguiu responder à pergunta do lobo.

"...O quarto ano pode te ensinar a mexer, Michael Carlson..."

"EI!" — interferiu Sirius, tomando o livro de Herbologia da mão de James e empurrando o formulário com alguma agressividade na direção do peito do monitor corvinense — "Já preenchemos, Carlson! Melhor ir entregar isso para Madame Hooch agora!"

Black parecia tão perplexo que a sua voz falhava.

Carlson moveu os seus olhos azuis vívidos com alguma confusão, principalmente porque era justamente Remus que conduzia a conversa por um duplo sentido perigoso e, fitando as águas do Lago com um sorriso enviesado, o grifinório de cabelos castanhos parecia não se importar em absoluto com o tumulto que causava.

"Ah, ok... Certo..." — respondeu Carlson, parecendo que um feitiço o havia acertado em cheio — "Bom, até a próxima, Grifinória. Até a próxima, Lupin..."

Remus não respondeu às palavras do corvinense e sorria com maldade ainda, parecendo se divertir com a situação. Carlson se virou para trás, a fim de dar mais uma última espiada em Remus quando voltou a se aproximar da prima. O corvinense tinha as orelhas e pescoço muito vermelhos.

Talvez, realmente, o lobo fosse muito velho mesmo e quisesse se divertir com todas aquelas crianças em formação de Hogwarts. Talvez, todos fossem só garotos perto de uma criatura das trevas.

"Que Porra Foi Essa?!" — inquiriu, finalmente, Pettigrew com a sua boca escancarada e movendo a cabeça em direção a Remus com uma rapidez tão grande que foi um milagre ele não quebrar o pescoço — "Eu tô ficando maluco ou você tava cantando aquele monitor corvinense, seu putão?"

James mirava o amigo com algum assombro também e como ele não respondia, permanecendo encarando o Lago e os adolescentes com os seus sangues jovens e pele com o cheiro de sol adentrando a água, Sirius sacudiu o ombro de Lupin com mais firmeza.

"REMUS!"

O rapaz voltou a si e, após apertar os olhos, endireitou os óculos com aquele tique seu. Parecia muito pálido e confuso. A sua coluna se inclinou.

"Desculpa, eu acho que peguei no sono... Sobre o que tavam falando?"

Pettigrew moveu as mãos com impaciência.

"Você não se lembra do que acabou de dizer?!"

"Er... das regras para assinar documentos para a alteração dos horários do treino de Quadribol?"

"NÃO, CACETE! VOCÊ DEU EM CIMA DO MONITOR DO SEXTO ANO DA CORVINAL! AQUILO FOI UMA PUTARIA SÓ!"

Remus moveu o seu rosto com apreensão e parecia tão perplexo quanto os seus amigos.

"Eu não fiz isso!"

"Você fez, Remus..." — declarou James com os olhos um pouco umedecidos porque parecia que ele não piscava, fazia um bom tempo.

"Não!"

"Você fez uma associação da dança com sexo e praticamente convidou ele... O que tá rolando entre você e o Carlson?"

"Nada!" — explicou-se Remus, movendo o rosto com confusão.

Sirius, sacudindo a cabeça ainda incrédulo, sentou-se do lado de Remus, apoiando os cotovelos nos joelhos. Ele parecia um homem arruinado.

"Você convidou o Carlson pra dançar com você no dia da festa?" — disparou Sirius, após respirar fundo e passar a mão pelo cabelo.

"Ahn?"

"Responde, Remus!" — redarguiu Sirius, fechando os olhos e parecendo se esforçar para se acalmar.

"Não...?"

"Isso é uma pergunta ou uma resposta?"

"Uma resposta?"

"REMUS!"

Pettigrew interveio, sorrindo com os seus dentes incisivos grandes.

"Olha só, eu não ligo pra homem, mas aquele monitor gay até que foi corajoso! Propor para um outro garoto dançar com ele futuramente, na frente dos amigos dele é ter muito colhões! Ele quase ganhou sexo de graça do Remus só por essa cantada!"

"Sexo?!" — falou Remus, arregalando os seus olhos temporariamente heterocromos.

Sirius resmungou, crispando os lábios. Ele estava profundamente chateado. Recordava-se de quando pensara em chamar Remus para dançar com ele na festa dos intercambistas e de como se censurara, achando que o amigo recusaria o seu convite.

"Aquele monitorzinho de quinta..."

Pettigrew arqueou as sobrancelhas com deboche:

"Cara, ele é gato! A mulherada curte ele. Mas já ouvi boatos de que ele gosta de homem. Pelo visto, tá a fim do lobão aqui..."

"Cala a boca, Pettigrew!" — determinou James com uma expressão chateada também.

Potter estreitou o seu olhar, mirando o Capitão do time corvinense novamente antes de se encerrar em seu silêncio.

Pettigrew respirou fundo e jogou a mochila em suas costas, antes de se levantar.

"Vocês todos tão muito mal-humorados ultimamente. O Remus tem como desculpa a licantropia, mas e vocês dois? Vou indo nessa depois disso! Vou dar uma cochilada antes do jantar. Até mais!"

Pettigrew partiu, rumando para o Castelo, e um silêncio se fez em que Remus endireitou os seus óculos e parecia pensativo, antes de dizer:

"Ok, me contem direito o que aconteceu..."

Sirius, com alguma irritação, respondeu:

"Você não se lembra mais do que faz, Remus? No dia da festa dos intercambistas, você disse que não se lembrava de nada e culpou a bebida! Agora, se insinua para o Carlson em pleno céu aberto e vai culpar o quê...?"

Sirius se lembrava de Remus lhe dizendo coisas, sentado na beirada da banheira. Mas ele lhe dizia aquilo porque não estava sóbrio. Porque, afinal, Remus não beijaria Black nem que ele fosse a última criatura viva na face da Terra.

Remus mexeu no aro dos seus óculos com nervosismo.

"Black, eu não lembro!"

"Se tá a fim do Carlson, é só dizer logo! Sem aquele teatrinho de não querer falar se gosta de garotas ou garotos..."

"Sirius, eu..."

"A Escola toda comenta mesmo!"

James, que parecia digerir as palavras que ia dizer, fitou o chão, sentindo que Sirius, ao contrário, não racionalizava nada. Remus fitou o amigo com o rosto muito vermelho.

"Comenta o que?! Que eu sou gay?! É isso...?!"

"É, Remus! E já demos porrada em muitos idiotas por sua causa!"

"Obrigado, então! Mas não precisava! Por que não se juntam a eles e ficam cochichando sobre mim pelos corredores?! Vai lá, Black! Fala pra todo mundo como eu sou estranho!"

Remus aumentava o tom, sem se importar. Sirius respondeu mais alto:

"Eu tô pouco me fodendo se você é gay ou não! Eu só não entendo por que você sempre desvia do assunto quando falamos sobre isso e, agora, deu em cima daquele cara..."

"Porque não é da conta de vocês! E por que você teria interesse nisso, Black? Tem algum garoto pra me apresentar?"

Sirius contraiu as sobrancelhas com irritação.

"Você, pelo visto, já escolheu o seu garoto! Mais velho, certinho, entediante, monitor e Capitão de Quadribol! Parabéns, Remus John Lupin! Você é realmente exigente!"

"Vai Se Foder, Black!" — disparou Remus.

"Parem vocês dois!" — interveio James — "Vão se matar agora?"

Remus retrucou com raiva:

"É por isso que você me seguiu, Black, quando eu tava na sala vazia com a Alejandra González? Igual a quando você me seguiu quando suspeitava que eu era um lobisomem? Você queria me testar mesmo pra ter certeza do que eu gostava?! Era isso?!"

"Eu não te segui, Remus! Eu te vi por acidente!"

Remus levou a mão ao rosto com irritação e disse:

"Eu devia ter mudado de dormitório mesmo no primeiro ano!"

"Ah, Remus, dá um tempo também! Você quase chamou o Michael Carlson pra trepar com você! Um corvinense semidesconhecido! A gente nunca te viu dando em cima de ninguém de verdade e quando você fez, foi com tudo! A gente só ficou um pouco chocado..." — falou James não da forma agressiva de Sirius, mas com alguma mágoa na voz.

Remus respirou fundo. O rapaz de cabelos castanhos já havia percebido, naturalmente, os seus estados de ausência e, com alguma tensão, perguntava-se, agora, se o lobo assumira alguma parte sua enquanto estava disperso. Perguntava-se se aquela dor de cabeça contínua tinha algo a ver com aquilo. E, sentindo-se invadido, Remus envolveu os joelhos com os braços.

"Eu fiz isso mesmo...?" — indagou Remus, levando a mão à cabeça.

"Fez." — respondeu James, laconicamente.

Lupin se recordou, então, do lobo lhe dizendo durante a manhã:

"Se me soltasse nessa maldita Escola, eu ia fazer tudo o que tem vontade, garoto..."

Remus pestanejou, lembrando-se de que nunca havia flertado de verdade com um outro rapaz. Nunca beijara, transara ou pelo menos se pegara com um garoto. E, sendo sincero, as chances de Remus ir a um primeiro encontro fofo no seu período escolar na conjectura atual era nula. Porque Sirius era super hétero e trocava de namorada como se trocasse de roupa. Ele não ia, num belo dia, acordar e enxergar Remus diferente, certo? Sequer o enxergaria fora do escopo de amigo nerd que ouvia suas histórias de conquistas, mas não era um amigo tão legal assim e ele precisava de outras pessoas realmente populares ao seu redor.

Ah, sim! Remus se recordava também que Black lhe dissera com todas as letras que não tinha vontade de beijá-lo e aquela foi a resposta a algo que, no segundo ano, Remus quisera perguntar ao amigo, mas desistira quando descobriu que Sirius estava namorando Samantha Jones. Uma parte sua ainda era o garoto com aparelho nos dentes chorando dentro da cama de cortinado do dormitório porque Sirius Black beijava a namorada enquanto ele escrevia uma carta idiota.

No entanto, se Remus já havia sido dispensado por Sirius e ele já havia chorado tudo o que tinha pra chorar no segundo ano e no início da semana, alguma autorrealização não era uma tragédia. Era legal ele descobrir que fora capaz de dar em cima do monitor bonito do sexto ano da Corvinal, sem gaguejar ou parecer um idiota. Se Carlson gostava de garotos também, não deve ter sido tão ruim assim o seu flerte porque senão ele teria lhe dado as costas e o deixado falando sozinho. Era legal Carlson também se lembrar do nome Remus Lupin, esquecível para muitos veteranos.

Dez pontos pra Grifinória! E pra Corvinal também! Ou, talvez, vinte pontos para o lobo?

De qualquer forma, Remus só se lamentava por não se lembrar dos detalhes das suas investidas. Aparentemente, ele era mais interessante quando agia por meio do álcool ou do lobo. Ou seja, quando ele não era ele mesmo.

"Talvez eu tenha feito, então, o que disseram, sem que eu percebesse. Mas por que tá puto comigo, Black?"

Sirius sacudiu o rosto, pegando uma pedrinha do chão e a atirando longe.

"Desculpa! Não quis gritar com você, Remus! E, de verdade, eu não me importo se você gosta de garotos ou não... E eu sempre vou quebrar a cara de qualquer idiota que falar de você pelas costas. Eu sou seu amigo! Eu só fiquei com raiva porque... Porra, Remus! Michael Carslon...?! Ele é velho demais pra você! Você gosta dele?"

Remus sacudiu o rosto, sem hesitar.

"Não, não gosto dele, Sirius... Só nos esbarramos há uns dias atrás e conversamos um pouco..."

Um silêncio profundo se fez em que Sirius respirava fundo, após fechar os olhos por quase um minuto.

"Black..." — chamou-lhe James, fitando o rosto do grifinório.

Sirius, olhando ao redor, retirou a varinha de dentro das suas vestes e a moveu rodopiando no ar, murmurando Fumigant murum. Imediatamente, uma espessa fumaça se desprendeu do chão, cercando os garotos e os emparedando dos outros alunos. Quem olhasse para o lado em que os grifinórios estavam, veria somente uma densa bruma e aquele era um feitiço muito utilizado por alunos quando queriam ter alguma privacidade. Não era um feitiço demorado e em algum momento, ele se dissolveria, mas ele era útil também por manter as palavras retidas.

James, olhando ao redor para a névoa que parecia modificar o clima do dia ensolarado para um dia sombrio, circundando-os protetora, endireitou os óculos com o dedo anelar.

"Ok... Acho que você tem algo sério pra nos dizer..."

Sirius ainda segurava a varinha e movia os pés sobre a grama.

"É, eu... tenho algo pra dizer pra vocês. Algo que a Aileen falou antes de terminar comigo..."

Remus observava o amigo com uma expressão séria e James mirou os vultos dos colegas caminhando próximo ao Lago, parecendo fantasmas se arrastando a esmo.

"Não me diz que a Marrett amaldiçoou a sua virilidade como algumas sacerdotisas faziam no passado! Não me diz que vamos precisar achar uma bruxa de idade pra desfazer essa maldição... Deve ser por isso que você tá tão irritado. Eu não te culpo, parceiro! Eu também ficaria..." — falou James com uma genuína preocupação.

"Aileen não amaldiçoou o meu pau, James! Às vezes, não sei se você fala essas coisas porque aprendeu com o Pettigrew ou o Pettigrew é daquele jeito porque aprendeu com você..."

James arregalou ou seus olhos, parecendo um pouco mais tenso. Um pensamento o atravessou com força.

"Porra, não me diz que a Aileen Marrett tá grávida! Vocês não tomaram nenhuma poção contraceptiva?!"

Sirius sacudiu o rosto com veemência, assombrado um pouco pelo medo do amigo.

"NÃO, POTTER! A GENTE NEM TRANSOU!"

James suspirou aliviado e, afrouxando a gravata, deu alguns tapinhas na costa do amigo.

"Ok, então! Menos mal... Porra, vai assustar a sua mãe, Black..."

"O que ela falou então?" — indagou Remus com declarada curiosidade.

Sirius hesitou, movendo a sua varinha, fingindo displicência.

"Ela disse que acha que gosto de garotas e... de garotos..."

Um silêncio se fez em que Remus parecia agarrar com mais força a grama em suas mãos e James, com os cotovelos novamente apoiados no chão, fitou, involuntariamente, Sirius de cima a baixo.

"E você gosta?"

"Eu não sei, Potter! Isso é o que mais me deixa confuso! Quer dizer, eu definitivamente gosto de garotas! Muito! Mas aí Aileen me veio com essa..."

"Aileen não pode saber mais sobre você do que você mesmo!"

"Eu sei! Só que ela disse que gosta de meninas também, assim como gosta de garotos e parece que de alguma forma... Sei lá... Fez sentido pra mim... Talvez, seja o meu caso..."

Remus olhava os seus próprios joelhos com uma expressão tensa.

"Por que ela perguntou isso?" — indagou Lupin com uma voz hesitante.

Sirius meneou a cabeça, pensando um pouco. Ele não podia contar aquela parte da história para Remus e Potter. Não poderia dizer que Aileen Marrett dissera que achava suspeito o modo como Black observava James beijando as suas namoradas e nem como ele parecia obcecado por Remus. Remus, que, definitivamente, não o beijaria sob nenhuma circunstância. Nem se ele fosse a última criatura viva na face da Terra.

Black cruzou os braços, falando:

"Eu, talvez, tenha ficado mais interessado do que pensei na história de ver o Huang e o Hausen se pegando... Sei lá, eu sei que, no mundo bruxo, no passado, a homossexualidade era respeitada e os merlins e as sacerdotisas eram livres para viverem o que lhes fazia feliz, mas muitos puristas veem isso com maus olhos ultimamente e a minha família... Bom, vocês sabem como os Blacks são..."

James sacudiu a cabeça.

"Os Blacks não estão aqui, Sirius. Não pode deixar os seus pais morarem na sua cabeça."

"Eu sei, mas é que... Eu pensei em procurar um menino e, talvez, experimentar. Mas, depois, sempre me pegava pensando como seria chegar num garoto e dar em cima dele. Com as meninas, sempre foi fácil pra mim, mas eu travo quando penso num garoto, apesar de ter vontade..."

"Mas você nos disse que não tinha vontade de ficar com garotos..."

"Eu menti, Potter! A pergunta me pegou de surpresa..."

"E por um acaso você tá de olho naquele monitor corvinense? Ele vai levar os meus dois melhores amigos embora, aquele garanhão de Ravenclaw maldito? É isso?"

Sirius fez um ruído de desdém com a boca.

"Pfff... Eu e o Michael Carlson? Aquele idiota?! Mas nem fodendo! Eu só fiquei um pouco alterado com a situação toda, ok? Já passou..." — redarguiu Sirius, olhando Remus de soslaio.

Remus, por sua vez, estava muito quieto. Os seus olhos estavam úmidos e o seu rosto, vermelho. Havia uma ruga entre as suas sobrancelhas, evidenciando o movimento ruidoso dos seus pensamentos. De fato, havia uma tensão.

Porque aquelas revelações eram o segundo balaço que atingia o coração de Lupin naquela semana. Ouvir que Sirius sentia atração por garotos era uma revelação e tanto e, no passado, talvez aquilo deixasse Remus animado e esperançoso, com borboletas no estômago. Mas Sirius, no domingo, havia dito também que não sentia vontade de beijar Remus. Aquela parte, sem dúvida, não era mentira. E saber que o olhar de Sirius Black, mesmo talvez gostando de garotos, o contornara plenamente não era uma informação fácil de digerir.

James deu de ombros, olhando para a névoa sobre a sua cabeça e movendo a sua varinha, moldou um pedaço da bruma no formato de um cervo que pateou o ar, antes de disparar e se transformar em névoa novamente.

"Experimentar não é crime. Eu gosto de garotas também, mas a minha família, como vocês sabem, é muito liberal. Meus pais foram pais com quinze anos e eles sempre dizem que detestariam criar um filho com ideias puristas, radicais e conservadoras. Eu vou continuar gostando de garotas, mas quero beijar um garoto pra saber como me sinto. Eu não sou bissexual nem nada, mas gosto de me divertir..."

Remus piscou os seus olhos com uma mágoa indizível enquanto cravava os olhos no chão. Sirius, por sua vez, respirou com algum alívio, relaxando os ombros.

"Eu sabia que me sentiria melhor depois que falasse com você, Potter! Nem sei por que enrolei tanto pra te dizer. Só fico, às vezes, perdido com os meus pensamentos..."

"Bom, não se sinta assim... Estarmos passando pela mesma curiosidade, só me evidencia como somos próximos, irmão..."

Sirius sorriu e James, sorrindo de volta, estendeu o seu mindinho que pairou no ar diante de Remus, sentado no meio dos dois grifinórios. Black apertou o mindinho de Potter com força, piscando para ele.

James girava a varinha entre os dedos e o seu pé, acidentalmente, esbarrou no de Remus. Rindo sozinho depois, ele disparou para Sirius:

"Seu cachorro filho da mãe, tenho pena do garoto que se apaixonar por você..."

"Eu também tenho pena do garoto que ficar de quatro por James Potter. Não literalmente... Quero dizer, a não ser que você queira..."

James deu de ombros, sorrindo ao dizer:

"Eu não tô pensando em me envolver desse jeito. Quero só dar um beijo pra saber como é..."

"Bom, eu também..."

Remus se sentia desaparecer, conforme abraçava mais forte os seus joelhos.

Um silêncio se fez em que Remus, com o rosto vermelho e olhando de soslaio os dois amigos, via a névoa se dissipar um pouco. Engolindo em seco, ele se sentiu, subitamente, muito triste e não sabia dizer ao certo o porquê.

James, por sua vez, espreitou com o seu olhar semicerrado a orla do Lago Negro e, sem olhar para Sirius, disse:

"Me ocorreu que somos dois garotos, Black, e podemos tirar a prova entre nós..."

Remus apertou os seus joelhos com mais força e viu Sirius mover os seus olhos selvagens por trás da franja mal cortada.

"Você é um convencido filho da mãe, Potter! Por que acha que eu ia querer beijar você?"

"Porque eu beijo bem pra cacete, seu cachorro mal-agradecido de uma porra! Nenhuma garota nunca reclamou. E eu não tô vendo uma fila de garotos esperando por um beijo seu. Além do mais, sou bonito e tenho bom hálito. E eu prefiro beijar um amigo de quem eu goste do que algum sonserino irritante..."

"Não precisa beijar um sonserino, Potter..."

"Foi só pra enfatizar a porra da falta de opções. Por que pra você tudo tem que ser literal...? Olha, eu não costumo pedir um beijo duas vezes. É pegar ou largar..."

Durante alguns segundos, Sirius moveu a sua cabeça e aquela parecia ser a sua resposta, mas o rapaz de cabelos compridos abriu a sua mochila, pegando um frasco de poção, bebendo a solução, gargarejando e engolindo o líquido.

"Tá bom..." — determinou Black, guardando o recipiente novamente em sua bolsa.

Remus arregalou os seus olhos.

Sirius, que parecia confuso e tímido; que criara a parede de fumaça ao redor para confessar a sua confusão para os amigos, agora, estava aceitando a proposta de beijar o seu melhor amigo para descobrir como se sentia com garotos!

Mas aquele, talvez, fosse o efeito James Potter, que não apenas conseguia resgatar com o seu braço de jogador de Quadribol Sirius dos abismos em que ele se punha, mas também sempre conseguia o trazer para o seu lado. Sempre o influenciava. Remus intuía que, às vezes, Sirius parecia esperar uma permissão de James para fazer as coisas que tinha vontade. E, com James, aquela tensão, aquela alma ensebada trazida da casa dos Blacks se evaporava e Sirius voltava a ser um adolescente desmiolado e impulsivo.

James moveu o seu rosto com o sorriso enviesado.

"Mas vamos esclarecer como vai ser essa droga de beijo. Com língua ou sem língua...?"

"Beijo sem língua é coisa de criança, Potter! Não tenho mais tempo pra isso... Aliás, vamos deixar claro: eu sempre enfio a língua!"

"Ok. Mas se passar a mão em mim, eu te mato!"

"Há! Essa é boa...Vê se não vai ficar excitado com um beijinho de nada..."

"Você precisa se esforçar mais do que isso..."

"Sem as mãos?"

"Sem as mãos, cacete! Eu já disse..."

Remus, sacudindo a cabeça e afrouxando um pouco o laço que dava em si mesmo, indagou com alguma apreensão quando viu James e Sirius ao seu lado se levantarem.

"Espera... Vocês não vão fazer isso aqui e agora, vão?"

James deu de ombros.

"Com essa parede de bruma, acho que é o melhor lugar do mundo!"

Não, não era! Algumas partes da névoa se espaçava e tornava o interior da parede mágica nítido.

"Vocês...?"

"Não quero voltar para o dormitório e não quero que Pettigrew veja isto..." — murmurou Sirius, dando um passo à frente.

Fosse por Sirius estar ainda ferido pela investida de Remus em Michael Carlson; fosse por ele ter se doído por ser apontado pelo rapaz de cabelos castanhos como uma criatura não beijável, nem que fosse a última criatura viva da face da Terra; fosse porque James Potter não pedia por um segundo beijo ou fosse porque havia aqueles momentos tácitos em que, quando ele e James estavam próximos, ficando com garotas, os seus olhares se cruzavam às vezes, a chance ia ser pega.

Sirius vira James deslizar os dedos por baixo da saia de Mia Estivalet na semana anterior e, subitamente, perguntava-se como eram as sensações daquelas digitais. Mergulhar nos abismos de James Potter era sempre melhor do que afundar nos despenhadeiros da família Black.

Remus permaneceu sentado, vendo os dois garotos se aproximarem. Sirius, um rapaz alto de cabelos compridos, olhar feroz e sorriso provocador. James, um pouco mais baixo, com olhos cor de avelã por trás das lentes, pele um pouco bronzeada pelos treinos de Quadribol e o andar com uma certa empáfia. Retirando os óculos, ele os guardou dentro das vestes.

"Com língua então?"

"É, porra, eu já não falei?"

Experimentar não era um crime, mas Remus, até pouco tempo, acreditava que os seus amigos só gostavam de meninas e vê-los dar aquele passo entre si, afastando-o completamente o deixava triste e inseguro.

Remus ergueu o seu olhar cor de âmbar e negro quando viu os dois amigos aproximarem os seus rostos.

Sirius tocou a nuca de James com mãos firmes e puxou a sua cabeça para perto, ainda com os olhos abertos. Quando os dois encostaram os seus lábios, finalmente fecharam os olhos. Sirius não era muito delicado e puxava a cabeça de James com alguma violência e James, tampouco parecia suave, apertando o tecido da manga do uniforme de Black.

Os lábios de James permitiram que Sirius o beijasse do modo que quisesse. E aquele parecia ser um beijo possessivo, invasor. James retribuiu ao beijo, massageando a língua do outro rapaz. Quando ele sentiu Sirius deslizar os dedos por seu rosto enquanto movia a cabeça, um arrepio percorreu a sua espinha.

Remus tremia levemente e, apesar de ele não querer olhar, não conseguia deixar de olhar. Porque ele se sentia abalado pra cacete com aquilo que estava acontecendo entre os seus dois melhores amigos, mas ele também não costumava ver dois rapazes se beijando.

Ele vira, certa vez, quando criança, na sua viagem à França com os pais, dois homens adultos trocando carícias em um Café trouxa e, na ocasião, o senhor e a senhora Lupin pareceram um pouco desconcertados, deixando o recinto sem nada dizerem.

Remus possuía também revistas pornográficas que ele adquirira ilicitamente de uma livraria em Londres e que escondia nas suas coisas. Mas ele não estava habituado a ver meninos se pegando, apesar de ele pensar muito sobre aquilo. Quase o tempo todo.

De forma que, Remus sentiu as suas faces muito quentes e experimentou aquele calor se alastrar por suas orelhas, pescoço e peito.

"Você sempre sai perdendo..." — murmurou o lobo como se arrancasse a casca de uma ferida invisível em Remus— "Por que você tem princípios humanos quando ninguém mais os tem, garoto? No fim das contas, seremos sempre eu e você trancados em uma sala minúscula e a lua cheia no céu nos torturando se não souber se posicionar. Sirius Black não sente vontade de beijar você e bastou uma nova distração para James Potter olhar para outro garoto. Se quiser ir para o quarto chorar, problema o seu, mas, quanto a mim, vou pegar tudo o que puder carregar..."

Remus pestanejou com a sua heterocromia momentânea, mesclando o sussurrar lupino às sensações que percorriam o seu corpo adolescente. Movendo os lábios sem que emitissem som, ele disse para si mesmo:

"Eu Sempre Perco..."

"Você sempre é deixado de lado..." — insistiu o lobo enquanto Sirius tateava com os seus dedos o rosto de James.

"Eu Sempre Sou Deixado De Lado..."

"Eu sinto tudo o que você sente. Eu sei o que você pensa. Eu assumo daqui..."

"Você assume..." — murmurou Remus com o seu olhar desfocado, retirando-se de si mesmo. Sua coluna se endireitou e a sua expressão se desenhou em um riso sarcástico enquanto a bruma ao seu redor se dissipava mais e mais.

Os rostos de Black e de Potter, finalmente, se afastaram e, por alguns segundos, os dois grifinórios se mantiveram com as frontes encostadas, com os olhos fechados. Como se estivessem ainda saboreando algo que permanecia silencioso e íntimo demais entre os dois. Como se estivessem conectados.

Depois, ao abrirem os olhos, com uma certa brutalidade, Sirius puxou o amigo pela gola do uniforme para um abraço antes dos dois se afastarem de vez.

James retornou os óculos para o seu rosto e pestanejou, após tocar os lábios com o dorso da mão. Ele parecia um pouco desconcertado demais a princípio para olhar para os seus dois amigos, mas a vergonha não pareceu se demorar muito em seu semblante porque quando ele reergueu os seus olhos cor de avelã, eles estavam novamente confiantes e transbordando aquela audácia. Afinal, ele era a porra do James Potter.

Sirius, por sua vez, olhou com algum desconforto a bruma fina ao seu redor e a sua atenção se deteve em Remus, que se levantara e estava de pé na grama.

O olhar do rapaz de cabelos compridos se estreitou quando ele percebeu algo de diferente em Lupin.

Remus o olhava diretamente nos olhos e parecia até mais alto com os ombros erguidos e o rosto inclinado. Não demorou para Black sentir em seu corpo a mesma eletricidade animal que experimentara emanando de Remus na aula de Poções. E isso o atingiu em cheio no mesmo instante em que as suas células elaboravam o que acabara de fazer com James Potter.

"E aí? O que acharam?" — indagou Remus, sem meandros, sorrindo com os seus lábios úmidos — "O que acharam de beijar de língua outro garoto?"

James, que parecia notar algo de diferente em Lupin também, olhou o rapaz diante de si de cima a baixo. Remus enfiava o dedo no nó da sua gravata e a afrouxava com uma expressão divertida.

"Foi aceitável..." — murmurou James.

Remus sorriu, passando a língua pelo canino com um genuíno deboche quando percebeu o olhar atraído dos dois grifinórios.

Isso era outra coisa que não era registrada nos livros de Defesa contra as Artes das Trevas. Licantropos podiam ser sexies pra cacete com aquela selvageria habitando neles e lembrando a todos que o mundo é constituído não só por civilidade e gentileza, mas também por caos, violência e barbárie.

A natureza dos animais era mais simples. Não precisavam de poções de amor para obcecar uma espécie como bruxos e bruxas de má fé faziam. Bastava se acreditar nos artifícios da própria natureza e no fluxo dos ciclos: cio, cópula, feromônios.

Sirius, preso entre o transe e a realidade, sacudiu a cabeça, empurrando James, como um garoto muito ofendido.

"Foi muito melhor do que aceitável, seu mentiroso de merda! Onde aprendeu a beijar assim?"

James deu um rápido sorriso, mas antes que ele pudesse dizer algo, a pele de Potter se arrepiou quando sentiu Remus deslizando as pontas dos dedos por seu queixo como se ele acariciasse um animal antes de abatê-lo.

"Aceitável é uma droga..." — murmurou Lupin com um sorriso enviesado.

"Você tá diferente, Remus..." — respondeu Potter, afrouxando a sua própria gravata com algum nervosismo.

Remus moveu a cabeça, aproximando mais o rosto do amigo como se quisesse ouvi-lo melhor.

"Diferente como...?"

"Sei lá... Diferente... Como tava com o Carlson ainda há pouco..." — disse James, dando de ombros e fingindo displicência, mas erguendo o seu olhar novamente para o amigo— "Só falta chamar a gente pra trepar também com você..."

Sirius simplesmente não conseguia tirar os olhos de Remus e sentia a mão do amigo queimar em seu ombro ainda, subindo por sua nuca.

"Por quê? Por acaso você tá a fim de meter em mim, James Potter?"

Um silêncio fluiu como se todos os ruídos do mundo houvessem sido reivindicados por alguma força maligna. Tudo ao redor cessou e enquanto Black e Potter se entreolhavam com nervosismo, Remus ainda sorria, fazendo-os se sentirem ainda mais garotos do que eram e isso era perturbador.

Sirius segurou, então, Remus pelos ombros com firmeza. Ouvir o representante de turma do quarto ano falar daquela forma não era comum. O que estava acontecendo com Remus?

"Ei, para com isso! Que tipo de brincadeira é essa?! Somos seus amigos, Remus!" — falou Sirius com o rosto um pouco vermelho — "Isso não tem graça..."

James sacudiu a cabeça e disse, pigarreando:

"Por que tá falando isso?"

Remus ergueu o seu olhar amarelo para Michael Carlson que se sentara na orla do Lago com alguns amigos corvinenses e se encontrava um pouco distante.

"Vai ter que ser com ele mesmo, seus covardes de merda... Vocês não me ajudam em nada..."

Sirius sacudiu os ombros de Remus, sentindo um zumbido estranho em seus ouvidos. Lembrou-se do que o amigo lhe dissera no banheiro do dormitório, após a festa dos intercambistas. Uma pontada de raiva o atingiu, estrangulando-o.

"Não me chama de covarde!"

Remus tirou com irritação a mão de Sirius do seu ombro.

"Foda-se! Porque você é!" — vociferou o rapaz de cabelos castanhos.

Sirius tinha uma expressão selvagem por trás da franja comprida. Remus insistiu:

"...Eu vou beijar o monitor corvinense como você e o James me ensinaram! Vou beijar ele até não aguentar mais! Porque não é só vocês dois que podem fazer o que querem na droga dessa Hogwarts!"

James se aproximou, falando um pouco com irritação:

"Então, você gosta mesmo daquele cara, Remus?"

Remus soltou uma risada, olhando para o céu em que o sol começava a se pôr.

"E desde quando se precisa gostar de alguém pra fazer isso, Potter? Vocês beijam as garotas e jogam elas fora como se não fossem nada! Desde que vieram para essa Escola, brincam com tudo e todos! Eu aprendi direitinho com vocês! E eu deveria estar beijando a Escola inteira, ao invés de ver vocês se pegarem por diversão na minha frente..."

Sirius contraiu as sobrancelhas como se um palavrão fosse sair da sua boca. Mas, fechando os olhos, ele pareceu contar até dez, explodindo de qualquer forma quando terminou:

"ÓTIMO! VAI LÁ SE PEGAR COM AQUELE IDIOTA ENTÃO!"

Remus soltou um suspiro em que parecia realmente não ter consideração pela virulência que criava ao seu redor, quando viu Sirius dar as costas para ele e, sem se importar, deu-lhe as costas também, rumando para a orla do Lago.

O lobo podia colocar Remus em uma situação realmente complicada, mas o lobo não se amedrontava porque era uma besta que podia resolver os desastres, matando e silenciando qualquer confusão. O lobo era um assassino por natureza e isso o tornava insensível e cruel. Diferente de Remus que era a parte humana que deveria, depois, juntar os fragmentos de uma guerra.

James olhou de um amigo para outro e viu Sirius se voltar quando ele ouviu o ruído dos passos de Remus sobre a grama, indo até Michael Carlson. Black se deteve e, no instante em que Sirius caminhou até Lupin, por uma fração de segundos, parecia que o rapaz de cabelos compridos ia bater nele.

Mas Sirius não bateu em Remus. Ele nunca faria isso. Ao invés disso, ele lhe tocou o ombro, fazendo-o se virar. E antes que Remus pudesse fazer algo ou dizer algo, Black tomou o rosto do garoto em suas mãos e mergulhou os lábios nos dele.

Foi um beijo agressivo e Sirius arregalou os olhos quando sentiu Remus, enfiando a língua na sua boca. Mas não o repeliu. Porque beijar Remus não havia sido planejado ou calculado. Subitamente, a ideia de Remus se aproximar de Michael Carlson era assustadora e dolorosa. A ideia daquele corvinense flertar novamente com o rapaz de cabelos castanhos e ele se insinuar era uma imagem demasiadamente indigesta. E beijar Remus era a única coisa que Sirius queria fazer para impedi-lo.

Se Remus queria beijar tanto alguém, Sirius o faria. Mesmo que Lupin não o quisesse. Mesmo que Remus achasse que Black fosse a última criatura viva na Terra beijável, Sirius ainda assim queria Remus. E essa imagem mental já se desenhara algumas vezes naqueles anos quando ele se sentava nas aulas atrás de Remus, mirando a nuca pálida do rapaz, os seus lábios úmidos... Sirius queria beijar Remus, mas não sabia lidar com aquela atração. Isso o enlouquecia. E o movia a tentar mais e mais com garotas, deixando de lado aquele desejo descabido.

Anos depois, Sirius refletiria que o que Remus causou nele com aquele beijo no Lago nunca fora algo compreensível porque o mundo ao seu redor, subitamente, deixou de existir quando aqueles lábios encostaram nos seus. Simplesmente, o mundo se manteve em suspenso. A bruma fina que se desfazia mais e mais; os ruídos; o cheiro úmido das pedras do Lago; o odor verde da Floresta Proibida... Tudo cessou. E no peito de Black, algo pareceu se libertar, derretendo-se, aquecendo o seu coração.

Quando Sirius afastou o seu rosto, fitou o rapaz diante de si e ele não parecia intimidado. Não endireitou os seus óculos. Não se afastou ou manteve os olhos fechados, absorto. Não pareceu sem jeito ou envergonhado. Mas sorriu como se não sentisse medo. E isso era assustador pra cacete porque Black, engolindo em seco, constatava que aquele garoto, definitivamente, não era o seu Remus. E ao mesmo tempo, era.

E James Potter? James Potter permanecia de pé, olhando ainda de um amigo para outro, sem conseguir emitir uma palavra suficientemente apropriada. Havia uma dignidade na forma como os seus olhos não estavam arregalados, mas a boca entreaberta evidenciava uma humanidade confusa. Uma adolescência confusa. Uma amizade confusa e um encadear de acontecimentos que ele tentava processar.

"Eu... Remus, desculpa..." — começou Sirius, sentindo um formigamento subir por suas faces — "Eu..."

Mas o lobo em Remus já não olhava mais para Sirius. Porque as criaturas das trevas processavam os afetos com outra lógica. O lobo espreitava James que, por sua vez, cravou por alguns segundos o olhar no gramado, antes de reerguê-lo. Onde estava a coragem do rapaz confiante e rebelde do quarto ano que parecia ter controle sobre tudo? Ele era uma criança.

"Quer brincar de beijo também, Potter?" — indagou Lupin, interrompendo Sirius e silenciando as suas palavras.

James franziu as sobrancelhas. Black deu um passo para trás.

"Isso é uma brincadeira pra você, Remus?" — perguntou o rapaz de cabelos rebeldes.

"Por que a surpresa? Alguma coisa pra vocês é de verdade?" — disparou Lupin.

Sirius deu mais um passo para trás, sentindo que algo estrangulava o seu peito.

"Quer que eu te beije?"

"Quero... Não é justo fazerem isso na minha frente e me deixarem de fora..." — redarguiu Remus, aproximando-se de James — "Na verdade, porra nenhuma é justa!"

"Do que você tá falando? Você ficou com ciúme?"

Mas Remus se aproximava cada vez mais, parecendo decisivo e James Potter não deu um passo para trás.

Sirius engoliu em seco quando viu o rapaz de cabelos castanhos estreitar a distância do rosto de Potter e cochichar algo muito próximo ao seu ouvido. Algo que ele não conseguiu ouvir. Algo do qual Sirius não fazia parte porque ele era excluído agora daquele universo totalmente.

James, após ouvir o que Remus lhe sussurrara, pestanejou, tocando a franja de Lupin enquanto este lhe retirava os óculos da vista e os colocava em sua mão estendida com uma servilidade estranha.

"Tem certeza disso?"

"Tenho!" — respondeu laconicamente, Remus.

"Ok..." — assentiu James, sendo um pouco tragado por aquele rosto pálido com um olho cor de âmbar e outro, muito escuro. As duas írises pareciam faiscar, exalando uma ferocidade animal.

Nessa época, os Marotos não faziam ideia de que já contemplavam um pouco as trevas por meio de Remus, antes mesmo de confrontarem a escuridão em uma guerra. E não percebiam o quão a sombra podia ser atraente, muitas vezes, fazendo parecer que acalentava ao invés de destruir. Outras vezes, de fato, acolhendo todas as coisas vivas e mortas, ao invés de negá-las.

"O que eu estou fazendo?" — murmurou Remus para o lobo nas instâncias de seu inconsciente.

"Vivendo..." — rosnou o lobo de um modo curto e resoluto. Um pouco rude também.

E James, olhando Remus nos olhos por alguns segundos, aproximou o seu rosto, beijando-o de verdade.

Sirius, dando um passo a mais para trás, viu os seus medos de infância se materializarem. Ganharem densidade, enxerto, cor, cheiro. Subitamente, os receios de Black eram monstros vivos que devoravam as suas entranhas.

Eram os lábios de James encostando na boca em carne viva de Remus. Era Remus correspondendo ao beijo de Potter como fizera com ele. Era Lupin não haver se importado com o beijo que Sirius lhe dera e exigir de James que fizesse igual.

Afinal, Remus dissera no banheiro que sentia vontade de beijá-lo e de beijar Potter porque estava bêbado. Na verdade, Sirius, talvez, fosse a última criatura viva de quem Remus chegasse perto e, talvez, ele se interessasse mesmo por James, já que os dois estavam sempre envolvidos em brincadeiras sugestivas e alusivas. Já que os dois possuíam a mesma sintonia. Já que os dois vinham de famílias amorosas e lidavam com o sentimento de amor como um bruxo lida com a própria magia. Com naturalidade e aceitação.

Então, Sirius se viu com doze anos, arrancando uma versão menor de Remus de cima de um James Potter com onze. Nessa lembrança do passado, Lupin tinha a mão na frente dos seus lábios e avançava sobre o menino de cabelos rebeldes, que, por sua vez, entrelaçava a cintura do outro grifinório.

Para Sirius, pensar que os dois melhores amigos podiam se divertir espontaneamente com aquela troca de afeto indevida, excluindo-o como alguém que poderia ser afastado a qualquer momento enquanto sufocava no vazio de uma tapeçaria composta por puristas que não o amavam, o apavorara.

Não foi um beijo longo o que foi trocado entre Lupin e Potter diante do Lago. Porque a ligação que o lobo estabelecia com o consciente do rapaz de cabelos castanhos rompera-se, deixando Remus sozinho com os seus medos; inseguranças; travas; timidez e sonhos. Completamente sozinho. A criatura das trevas abandonara Remus, deixando-o como ele era. E ser quem Remus era constava em entrar em pânico.

Com os lábios colados nos de James e, arregalando os seus olhos, Lupin levou a mão ao peito do amigo, afastando-o. O lobo partira, levando tudo o que podia carregar. E criava uma tempestade em seu encalço, antes que se enrodilhasse satisfeito nas instâncias da inconsciência do menino que o hospedava dentro de si desde os oito anos.

O lobo ressurgiria em poucos dias e uivaria para a lua cheia enquanto o garoto dormisse em seu corpo. Era uma subvida a vida de um lobisomem. Então, sim, ele experimentaria tudo o que podia experimentar, sem se importar com sentimentos humanos porque, afinal de contas, ele não era humano.

Remus ainda tinha a mão no peito de James quando olhou ao redor.

Havia James que respeitava a nova distância imposta. Havia Sirius que parecia tremer levemente.

Havia a bruma conjurada por um feitiço, já quase completamente dissipada.

Havia os rostos de alguns colegas que olhavam em sua direção.

E Remus, levando o dorso da mão à boca, percebia que tivera uma das suas ausências crônicas. Percebera que a última coisa que vira fora Sirius e James se beijando e que, agora, despertava com os seus lábios grudados na boca de Potter. A sua cabeça latejava tão forte que parecia que o seu crânio se partiria ao meio.

"O que... fizemos?"

James contraiu as sobrancelhas.

"Você está bem?" — indagou o grifinório de cabelos rebeldes, colocando os óculos novamente em sua vista e percebendo, com algum constrangimento, que os colegas os encaravam.

Os alunos que se encontravam sentados na orla do Lago haviam virado as suas cabeças para fitá-los e, agora, davam risinhos, com exceção de Michael Carlson e de Rebbecca Liljeberg, que fitavam os grifinórios com expressões muito sérias. Dois sonserinos de cabelos muito claros ao lado de Emily Davies, do quarto ano, observavam de longe a cena com alguma curiosidade.

Sirius parecia despertar também do seu transe e observou entre os colegas, a prima Bellatrix Black fitando-o com uma expressão de desgosto, como se ela houvesse ingerido uma boa garfada de baratas vivas. O seu rosto se contorcia em uma careta nervosa enquanto sacudia a cabeça, ao lado de Lucius Malfoy e de Walden Macnair.

Remus sentiu o seu estômago revirar. Era possível ele correr para o Lago e se afogar? Porque toda a sua vida, agora, parecia ter existido, até então, para chegar naquela vergonha crítica. Ele beijara James na frente de Sirius e dos seus colegas? Merlin, ele precisava se afogar. Era possível os sereianos devolverem o seu corpo para os seus pais poderem velá-lo decentemente? Na sua lápide, seria escrito: "Afogado no Lago e na vergonha ... Não nessa ordem."

Ou, então, ele podia correr para a Floresta Proibida e implorar para que os centauros não lhe atirassem flechas. No fim, ele seria só um fugitivo de Hogwarts, tentando estabelecer uma vida tranquila nos bosques como um licantropo. Ou melhor, ele poderia morar para sempre na Casa dos Gritos e instaurar os gritos não somente na lua cheia, mas como um padrão, toda vez que lembrasse de si mesmo e das caras de seus melhores amigos e colegas.

"Remus... Você tá bem?" — insistiu Sirius, tocando no ombro de Lupin e sacudindo-o de leve.

A sua palidez agora era inumana e Remus, talvez, morresse ali mesmo sem precisar fazer nada. Simples assim.

Então, inspirado pela recordação das vezes em que os Marotos se metiam em confusão, Remus fez algo que sempre era uma boa opcão para um grifinório com uma coragem não suicida.

Ele correu.

Em sua defesa, Remus somente precisava de um tempo para se lembrar de como se respirava e desenvolver alguma coragem para encarar novamente a sociedade bruxa porque ser um grifinório nem sempre era sobre enfrentar basiliscos, feiticeiros das trevas e cuzões puristas. Era sobre lidar consigo mesmo.

Remus, disparando, afastou-se de Sirius e de James e, definitivamente, esportes não era o seu forte. E a corrida de Lupin não era rápida como o rapaz desejava. Além disso, a distância entre o Lago e o Castelo era desumana para um cdf de quinze anos. Mas Remus correu o mais rápido que pode e se descobriu chorando, sem que percebesse quando começou exatamente a fazê-lo. Talvez, fosse a adrenalina. Talvez, fosse a vergonha. Ou o medo.

Talvez, fossem os rostos de Lily Evans e de Julia Parker no caminho, acompanhando-o com o olhar. Ou de Severus Snape, que, sob uma árvore, lia um pesado livro.

Chorar não era algo tão surpreendente para Remus. Era quase Remus demais, assim como atravessar, por acidente, o fantasma do Frei Gorducho na entrada do Castelo e quase tropeçar no tapete do Salão Principal.

Sirius e James sacudiam as suas cabeças como se estivessem imersos em um daqueles sonhos em que se descobre, subitamente, nu. Os dois haviam sido manipulados pelo lobo e aquele jogo com a criatura das trevas os deixava também tontos.

Eles estavam conscientes do que haviam feito, mas perdidos sobre as suas motivações. Porque havia agora um Remus se debulhando em lágrimas e um monte de colegas cochichando ao seu redor. Porque os três haviam se beijado mais ou menos diante de todos e em 1975, isso era revolucionário pra cacete. Onde estava o Estatuto Internacional de Sigilo em Magia quando se precisava dele para apagar as memórias de uma caralhada de pessoas ao mesmo tempo? Por que diabos haviam beijado Remus?

Sirius olhou para o seu melhor amigo ao lado, que, por sua vez, observava Remus correr até a entrada da Escola.

Com uma expressão confusa e com a boca entreaberta, James murmurou, conseguindo, finalmente, falar:

— Caralho!

NOTAS DA AUTORA:

Quando escrevi esta fanfic há alguns anos na , o beijo dos três saiu espontâneo e eu sabia que podia ser a experimentação curiosa de três jovens. Mas, reescrevendo agora, vejo claramente que o lobo que habita Remus e gosta de ver o circo pegar fogo faria isso e o largaria no incêndio. E tinha que ser com essa música atemporal e sexy do Depeche Mode e tudo o mais.

Respeito completamente quem vê a relação de Sirius e a de James como a de dois irmãos, mas eu nunca a vi dessa forma. Para mim, sempre existiu uma adoração do Black pelo Potter que, em muitos aspectos, preenchia as lacunas deixadas pela família abusiva do Sirius. E adoração exige muita tensão. E muita tensão desemboca em libido às vezes.

Na outra fanfic que escrevo sobre o Príncipe Cativo, precisei escrever sobre uma cena de sexo entre três pessoas (não com o Laurent e o Damen, claro, que nunca aceitariam ninguém na cama deles) e sem querer virar uma embaixadora da causa, gosto de escrever cenas assim. Talvez eu tenha sido inspirada muito pela dorama de BL tailandesa chamada 'Unforgotten Night' em que os três guardas no mafioso Kamol se pegaram meio que do nada e ninguém viu vindo e a coisa toda foi tão atordoante que foi parar no trend topic dos twitters do Brasil. Aliás, alguém aí gosta de série de Boys Love tailandesa?

Também gosto desse conceito de bad máfia em que que os personagens não são tão mocinhos e você pode brincar com a sombra deles. Sirius, James e Remus não são os mocinhos aqui. Gosto deles assim.

No próximo capítulo...

Como esse beija-beija vai afetar o relacionamento dos 3 amigos?