OS MAROTOS: O LIVRO DAS SOMBRAS
CAPÍTULO 9
PRECIPÍCIO
You live your life, you go in shadows
You'll come apart, and you'll go black
Some kind of night into your darkness
Colors your eyes with what's not there
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
(Fade into You – Mazzy Star)
Para Sirius, Detenção sempre fora o pior castigo. Permanecer horas trancado em uma sala, limpando troféus e quadros, definitivamente, era um saco!
A Professora McGonnagal se revelara realmente aborrecida com o aluno de sua Casa e, depois de passá-lo um longo sermão em seu escritório, mandara Sirius para a Detenção, sob os cuidados de Filch.
Ainda no corredor, com uma expressão maliciosa, Filch parecia não caber em si, sorrindo com os seus dentes amarelados.
"Sirius Black, não sabe o prazer que me dá vê-lo obediente como um cachorrinho, cumprindo Detenção, ao invés de estar criando confusão na Escola. Pena que os métodos de hoje não sejam como os de antigamente. Se Dumbledore me desse permissão, eu o colocaria pendurado por dias na entrada do Castelo para aquelas outras pestes e aquele seu comparsazinho, o tal de Potter, aprenderem a lição. Depois disso, eu..."
"Você me chicotearia, me espancaria e daria a minha carcaça para os dragões." — previu Sirius, mais familiarizado com aquelas ameaças do que gostaria.
"...Eu te chicotearia, espancaria e daria a sua carcaça para os dragões..."
Sirius coçou a cabeça com a própria varinha.
"Mas Filch, onde você arrumaria um dragão? O que dirá vários... Só de tê-los, você poderia ser detido, sabia? Melhor não sair falando isso por aí, senão as pessoas podem entender mal e te denunciarem para o Ministério..." — falou Black, com cinismo.
"Ora, seu fedelho, trate de calar a boca e não venha me aborrecer! Tenho certeza de que um mês de Detenção vai te fazer baixar essa crista..." — alertou-o Filch, abrindo a pesada porta da sala de troféus — "E me dá isso aqui! A Professora McGonagall me disse para confiscá-la até terminar o seu turno..." — acrescentou o zelador de Hogwarts, tomando a varinha da mão de Sirius.
O rapaz de cabelos compridos protestou como se o seu braço ou o seu fígado tivessem sido arrancados e olhou, angustiado, Filch manuseando a sua varinha de qualquer jeito. Depois, o zelador da Escola partiu e Sirius se viu obrigado a cumprir a sua tarefa sem braço e sem fígado.
Agora, sozinho na sala de troféus, Sirius executava com má vontade a Detenção que lhe fora designada. O grifinório já se sentia exausto por causa daquele maldito longo dia em que cada coisa parecia um pesadelo. Polindo uma das molduras de um bruxo com uma cara sonolenta, Sirius organizava os seus pensamentos.
Ele ainda não conseguia acreditar que beijara Remus. Beijara também James. E, agora, por seu descuido, por sua inconsequência, todos na Escola sabiam que os três haviam se beijado, inclusive aquela víbora da sua prima, Bellatrix, que era quase uma extensão dos seus próprios pais em Hogwarts.
Mas por que ele beijara Remus?
Por que ele se sentira tão fora de si e impelido a fazer o que fizera, desprezando os problemas que isso poderia acarretar?
Por que ele beijara justamente Remus, que não o beijaria nem que ele fosse a última criatura viva da Terra e, que, mal se afastara dele, pulara sobre James Potter, parecendo entregue e oferecido feito um lobo faminto?
Sem querer verbalizar as palavras que se formavam em seus lábios, Sirius torceu a boca para o lado, pensando que Remus parecia muito fácil, jogando charme para Michael Carlson, James Potter e para ele. Mas Black, feito um idiota, se mostrara muito disposto a aceitar as investidas pouco discretas de Lupin, parecendo um adolescente aparvalhado e impressionado.
Além do mais, que direito Black tinha de rotular Remus como fácil, sendo que ele mesmo já ficara com inúmeras garotas em Hogwarts? Na verdade, ele descobria recentemente que Remus podia ser sexy pra caralho e que ele podia seduzir seus dois amigos e um veterano como se eles fossem meninos prestes a mijarem nas calças. E Sirius praticamente se jogara sobre Remus, parecendo desesperado e apegado. Um homem daquele tamanho...
"Tá, eu que sou o fácil..." — constatou Sirius, resmungando e sacudindo a cabeça enquanto polia a moldura do quadro do druida Amergin Glúingel.
O bruxo no retrato, arregalando os olhos muito azuis e mexendo em sua barba escura, fitou o grifinório, falando após suspirar fundo:
"Você, na sociedade celta, teria virado a cabeça de todos com esse rosto bonito, filho. As pessoas iam fazer fila pra chegar até você nas Fogueiras de Beltane. Que bom que é um garoto fácil! Assim, são mais pessoas felizes no mundo de hoje... Sou a favor da paz!"
Tá, né? Sirius, olhando o bruxo, um pouco aturdido, contraiu as sobrancelhas e, discretamente, virou o quadro ao contrário, dedicando-se ao retrato de um pentagrama, que estava encostado ao lado.
Black se voltou para os seus pensamentos novamente.
A atitude de Remus mais cedo revelava que ele gostava de garotos então? Será que, agora, ele ia começar a agir sempre daquela forma mais atirada com outros colegas?
O simples pensamento trouxe uma sensação amarga para a boca de Sirius.
Bom, Remus poderia agir assim com outros rapazes, excetuando Black, claro, pois Remus deixara evidente que não considerava Sirius digno de interesse, ignorando completamente o seu beijo e provocando, logo em seguida, James. Além do mais, ele partira para a Casa dos Gritos três dias antes do seu ciclo lupino, sem se importar com o caos que se formava.
Black não conseguia imaginar no que Remus estaria pensando. Talvez, Lupin estivesse muito aborrecido com a situação, mas, principalmente, com o beijo roubado de Sirius.
O grifinório de cabelos compridos tateou os seus lábios com a ponta dos dedos. Ele ainda tinha em si a sensação de beijar James Potter e Remus Lupin.
Pestanejando ao polir um troféu de bronze em uma das prateleiras, Sirius refletia que, talvez, após o que acontecera, pudesse assumir para si mesmo que beijar garotos era tão gostoso quanto beijar meninas. O desgraçado do Potter beijava bem pra cacete, massageando a sua língua e quase lhe arrancando uma maldita ereção e Remus, surpreendentemente, não parecia que fazia aquilo pela primeira vez com a boca úmida e doce. Marotos filhos da mãe! Ia ser difícil pra Sirius ficar perto dos amigos agora e não ser invadido por aquelas sensações.
Black foi arrancado de suas elucubrações quando ouviu batidas fortes na entrada da sala de troféus. Aparentemente, uma manada de arpéus estava à solta pela Escola.
Antecipando-se para atender quem o chamava e, girando a maçaneta, o rapaz abriu a pesada porta, resmungando:
"Derruba logo essa merda..."
No entanto, para surpresa de Black, não havia ninguém na soleira.
O grifinório se adiantou pelo corredor, olhando para os dois lados da passagem e verificando os arredores. Não havia ninguém à vista. Nem mesmo os fantasmas.
Sirius, procurando ignorar aquele estranho fato, fechou a porta do recinto e voltou a sua atenção novamente para o polimento dos malditos troféus sonserinos.
Foi quando, distraidamente, o rapaz de cabelos compridos limpava uma grande taça de prata de mil oitocentos e bolinha que Sirius se deteve ao ver o retrato de Godric Gryffindor voando em sua direção, pairando no ar a quase um metro do chão.
O quadro se mexia, um pouco cambaleante, e de trás dele, vinha uma voz empostada:
"Sirius Black, eu sou o fundador da sua Casa. Vim do além conversar com você e dizer que você agiu muito mal... Mas não tiro a sua razão em querer dar um belo soco nos cornos do Ranhoso..."
Sirius sorriu, cruzando os braços. A expressão do sorriso impassível da pintura de Gryffindor em contraste com a voz que lhe era atribuída era engraçada.
"...Quero dizer Severus Snape, aluno da Casa daquele cuzão do Salazar Slytherin..."
O rapaz de cabelos compridos sacudiu o seu rosto, entoando uma risada um pouco canina.
"...Mas você foi bem ingênuo em dar nas vistas de todos daquela forma, Sirius Black e terminou na pior. Então, generosamente, resolvi te mandar o melhor presente que eu poderia te mandar... Um dos meus alunos mais queridos!"
Sirius viu, por trás do quadro flutuante do fundador da Grifinória, James pular com os braços abertos, saindo de baixo da Capa da Invisibilidade e se atrapalhando um pouco.
"Tcharam! James Foda Potter!"
Sirius gargalhou, falando:
"Gryffindor, achei que me enviaria a sua espada! Não tinha nada melhor, não? Tinha que ser esse aí?"
James ergueu o seu dedo médio em direção a Sirius, antes de manusear a sua varinha e pendurar de volta o quadro de Godric na parede.
"Vai se foder, seu desgraçado mal-agradecido! Se não gostou, vou pro dormitório ouvir os roncos do Pettigrew."
Sirius repuxou os cabelos escuros para trás, avançando para James e o puxando pela gola da camisa para um abraço.
"É claro que eu tô feliz em te ver, Potter! Isso aqui tava um tédio sem você..."
James ajustou os óculos no rosto com o dedo anelar e, movendo ainda a sua varinha, enfeitiçou os utensílios de limpeza para fazerem o trabalho de polimento sozinhos. Sirius, sentando-se no chão com as costas apoiadas em uma cristaleira, perguntou:
"Como sabia que eu tava aqui?"
James se sentou ao lado de Sirius, abrindo o zíper da sua mochila e retirando um maço de cigarros de dentro dela.
"Eu sondei a monitora Fawley pra saber onde você cumpriria Detenção. Depois, dei uma passada na sala do Filch e vi que ele tá tirando um belo de um cochilo. A magia vai te ajudar hoje... Quer?"
Sirius se antecipou em acender o cigarro que lhe era oferecido e os dois garotos se puseram a fumar.
"Obrigado, Potter. De verdade..."
James assentiu, movendo os seus braços num gesto de 'Não tem de quê' e permaneceu um tempo muito quieto, inclinando um pouco a cabeça enquanto expelia a fumaça. Pouco a pouco, os troféus da sala iam se tornando muito limpos e brilhantes.
"Então, o que o Snape te falou que te tirou do sério...?"
Black soltou um suspiro fundo e prolongado enquanto acariciava a própria nuca.
"Ah... Ele ficou me encarando de um modo esquisito..."
James contraiu as sobrancelhas, movendo o seu olhar com estranheza.
"Você bateu nele só porque ele te olhou esquisito?! Black, o Snape é esquisito..."
Sirius assentiu, tentando se esquivar daquele tópico. Mesmo para James, ele não tinha vontade de replicar o que Severus dissera sobre ele e Remus. Snape confessara que rezava para Potter quebrar o pescoço e acusava os dois rapazes de terem agarrado Remus. Eram coisas adoráveis demais para narrar.
"Eu sei, Potter, que o Ranhoso sempre age estranho! Mas ele me tirou do sério e eu já não tava muito bem por causa da conversa familiar maravilhosa que tive..."
James tinha o cigarro entre os dedos, batendo as cinzas no chão.
"O que foi dessa vez?"
"Bellatrix ameaçou me delatar pra Orion e pra Walburga se eu não for mais discreto com os meus atos. Ela viu a gente se beijando próximo ao Lago. Eu sabia que ela havia visto e sabia que ela não ia deixar isso passar..."
Potter moveu a boca com irritação.
"O problema, então, é você beijar um garoto, imagino eu..."
Sirius, ajustando um pouco a sua postura, falou:
"Acho que, sem dúvida, Orion me quebraria a cara se soubesse disso. Mas acho que a questão da Bellatrix gira mais em torno do purismo doentio dela... Ela ficou repetindo que o Remus é mestiço e que a sua família apoia os trouxas e o governo atual, Potter."
James, então, suspirando com algum pesar, colocou o braço em volta do ombro de Sirius e Black conseguiu sentir o perfume cítrico da colônia do amigo; o cheiro aconchegante da sua pasta de dente de hortelã e da poção para o hálito que era consumida, a fim de não reter o cheiro de cigarro na boca.
Sirius conseguiu sentir a fragrância do banho que o rapaz tomara após o jantar e um pouco da fumaça do cigarro bruxo, que não era terrível como o odor dos cigarros trouxas. Havia uma masculinidade muito pontual em James Potter, apesar de ele ser ainda um adolescente de quinze anos. Havia um calor que emanava do seu corpo e Sirius se percebeu inalando aquela mistura de cheiros, aspirando discretamente James Potter.
"Não me esforço pra obter a simpatia da sua prima, Black, então, é meio que recíproco. Apontar a mim e a minha família como simpatizantes das causas trouxas é um elogio. Só não quero que se sinta mal. Vamos pensar em alguma coisa pra esse verão, ok? Seus pais não vão te perturbar."
Sirius assentiu, tragando o seu cigarro. Na verdade, os Blacks iam encontrar uma maneira de infernizarem sim. Isso era certo. Mas ele saber que não travava mais uma guerra sozinho contra a própria família enchia o coração de Sirius de gratidão e acalento. James desvencilhou o amigo do seu abraço e, engolindo em seco, murmurou:
"Eu tô preocupado com o Remus, Black. Não sei se foi demais pra ele o que aconteceu mais cedo. Me pergunto como ele tá se sentindo na Casa dos Gritos... Talvez, tenhamos passado dos limites com ele hoje..."
Black, recordando-se de algo, tentou manter a sua expressão neutra, o que pareceu não surtir efeito porque James demonstrou perceber o seu desconforto.
"... O que foi?"
"O que o Remus sussurrou pra você hoje no Lago?"
James tragou o cigarro e expeliu a fumaça, inclinando um pouco a cabeça. Em seguida, falou, pigarreando um pouco:
"Ele disse que queria saber como eu beijava de verdade. E que eu podia fazer com ele como faço com as meninas com quem eu fico... Que ele gostaria de saber como era o meu beijo e que eu podia esquecer que ele era o meu amigo naquela hora..."
Sirius sentiu uma pontada em seu coração e ia levar o cigarro à boca, mas se deteve no caminho. Depois, coçando a testa com o polegar, replicou, sacudindo o rosto com amargura:
"Uau! O Remus chegou com tudo em você... Quem diria..."
James se manteve um pouco quieto e depois falou:
"Mas sei lá, Black! Talvez o que o Pettigrew falou faça algum sentido. Eu não tô acostumado a ver o Remus agindo desse jeito. Foi um pouco estranho porque ele é o meu amigo e tal... Mas eu não sei o que me deu também. Na hora, eu agi e só parei pra pensar quando o Remus me afastou e percebi que ele tava chorando..."
Sirius cruzou os braços, replicando com alguma mágoa:
"Mas vocês pareciam muito à vontade até se afastarem. Você gostou de beijar o Remus?"
James apoiou a nuca na cristaleira, reparando em algumas pequenas teias de aranha que se formavam no lustre da sala de troféus.
"Sei lá, Black. Foi tudo muito confuso. Tava legal, mas daí o Remus chorou e saiu correndo..."
Sirius assentiu, percebendo que James também o interrogaria agora, bombardeando-o sem meandros:
"Você também beijou o Remus. O que foi aquilo?"
Black pigarreou, tragando o cigarro para ganhar tempo:
"Sei lá. Talvez eu não estivesse muito no meu eixo também, Potter. O Remus parecia que tava insinuando que éramos dois idiotas e parecia que ele ia chegar naquele infeliz do Carlson. Na hora, eu quis fazer aquilo. Mas quando penso na confusão que isso causou, eu me sinto mal..."
James assentiu, movendo os seus olhos cor de avelã por trás das lentes dos óculos. Depois, encostando o seu tênis no pé de Sirius, indagou-lhe, cutucando-o de leve:
"E o que você achou do meu beijo? Você não me falou ainda..."
Sirius passou a mão pelos cabelos escuros e virou o rosto, fitando o outro grifinório dos pés à cabeça. James era um dos seus melhores amigos e, sem dúvida, Black admirava e adorava tudo nele. Desde o primeiro ano, os dois garotos estabeleceram uma cumplicidade tácita e Potter sempre o deixara tão à vontade que, naturalmente, Sirius fora expressando partes suas, sem perceber que o fazia e sem perceber que estava tudo bem em ser ele mesmo, ao invés de um produto engessado e ameaçado pelos Blacks. Era impressionante para Black pensar que havia beijado Potter horas atrás e, ao mesmo tempo, isso fazia um estranho sentido.
"Seu filho da mãe presunçoso! Eu já te falei que você é ok beijando. Não vou repetir isso de novo..." — falou Sirius, esbarrando no ombro de James num tom de brincadeira.
James endireitou os óculos com indignação.
"Só ok?! Só ok?! Eu quero exceder as expectativas, Black! Era pra você dizer que eu mandei bem pra cacete!"
"Mas você mandou bem pra cacete, seu desgraçado! Agora, eu entendo porque aquelas garotas parecem um bando de abelhas atrás de você. Que porra de língua é essa?"
James sorriu, parecendo muito satisfeito consigo mesmo. Depois, bagunçando um pouco o próprio cabelo, falou:
"Você não foi nada mal também. Acho que, na matéria beijos, estamos empatados..."
Sirius ruborizou e sorriu um pouco sem graça. Depois, encarando os seus próprios joelhos, indagou:
"Então, será que o pegador James Potter gosta de garotos...?"
James permaneceu um tempo pensativo enquanto o sorriso fenecia em seu rosto.
"Eu me senti tranquilo porque era você e o Remus no fim das contas. Acho que gosto mesmo de meninas e não sei se me sentiria ok com outro garoto se não fosse vocês dois... E você?"
Sirius permaneceu muito quieto e, amassando a guimba de cigarro no chão, mentiu por razões que não sabia interpretar em si mesmo, mas lhe pareciam óbvias:
"Foi só uma curiosidade passageira... Já passou..."
"Certo..." — replicou James, apagando a guimba do seu cigarro no assoalho.
Os dois garotos permaneceram um tempo em silêncio e, levantando-se do chão quando o relógio da sala de troféus badalou dez horas, James moveu a sua varinha novamente para direcionar o espanador e o produto de limpeza encantados até o lustre.
"Melhor nos concentrarmos em deixarmos tudo limpo, antes que o Filch volte..."
"Ok..." — respondeu Sirius, buscando uma vassoura para varrer as cinzas do chão.
Quando Filch retornou uma hora depois, a sala estava brilhando de tão limpa. O zelador, deslizando o dedo indicador pelos móveis lustrosos, olhou ao redor com desconfiança, não enxergando James Potter sob a Capa da Invisibilidade.
"Certo. Pode voltar pra sua Casa, sem gracinhas. Amanhã, te espero nas estufas para realojar algumas mudas em outros vasos e matar algumas pragas." — determinou Filch, devolvendo a varinha de Black.
Nos dias seguintes, a Detenção seguiu normalmente e James, rotineiramente, passou a vir ajudar Sirius, logo quando Filch o deixava sozinho.
O grifinório de cabelos rebeldes ajudou o amigo a limpar as estufas e a lidar com os brotos das plantas cultivadas pela Professora Sprout. Ajudou-o também a organizar os arquivos e as runas por categoria e significado nas gavetas da sala de Estudo de Runas Antigas. Depois, James ajudou Sirius a limpar o escritório de Aritmância, que a Professora Vector havia deixado, particularmente, bastante fora de ordem. Sem magia, Sirius, possivelmente, levaria o triplo do tempo para cumprir as metas estabelecidas na Detenção.
Sirius imaginava que Remus, se estivesse presente, não veria com bons olhos a interferência de Potter naquela punição. Lupin, em muitos aspectos, se alinhava bem com a metodologia educacional dos professores de Hogwarts e compreendia as Detenções como trabalhos atribuídos para que os alunos refletissem sobre as suas condutas e faltas.
Nas poucas vezes em que Remus fora posto em Detenção por ser flagrado aprontando com os seus amigos, ele cumprira as tarefas com concentração e diligência, determinado a fazer o que julgava certo, ainda que os amigos praguejassem a cada momento, pontuando o quão injusto aquilo era.
Devido à Detenção que Sirius precisava cumprir durante todas as noites daquele longo mês, o grifinório precisou negociar com um aborrecido time de Quadribol a mudança de horário do treino da noite de sexta para a manhã de domingo, o que deixou os jogadores bem chateados por precisarem se levantar cedo no seu dia de descanso. O Capitão Longbottom e o goleiro Dayal, no fim, concordaram e James tentou animar os outros jogadores, prometendo levar cervejas amanteigadas geladas para todos após o treino.
De forma geral, no domingo, o dia ensolarado de primavera pareceu levantar um pouco o ânimo da equipe que estava determinada em bater a Corvinal no próximo jogo.
Black treinava na artilharia, tentando furar o bloqueio de um ágil e concentrado Dayal e marcou alguns bons pontos, comemorando com o time. No entanto, perto do fim, um dos balaços que escapulira da defesa do batedor, acertou em cheio as costas de Black enquanto ele sobrevoava o campo e, por muito pouco, não o derrubou da vassoura. Sob as ordens de um preocupado Longbottom, Sirius seguiu para a enfermaria mais cedo, deixando os seus colegas treinando por mais alguns minutos.
Quando Black deixava o campo, ele se deparou com o time corvino, trajando o seu uniforme azul e esperando o horário agendado do estádio. Os jogadores estavam apoiados em uma mureta de pedra irregular, próxima ao vestiário masculino.
A maioria do time da Corvinal era composta por rapazes, mas havia Rebbecca Liljeberg, na posição de apanhadora, brincando com um pomo dourado e a artilheira Anna Boyd se alongando. Carlson conversava com parte do time, rabiscando estratégias de jogo em um pedaço de pergaminho enquanto o outro batedor simulava acertar um balaço em pleno voo.
Quando Black passou pelos corvinos, todos cravaram os olhos nele, parecendo corvos com fome espreitando carniça. Carlson dobrou o seu pergaminho rabiscado e o guardou dentro das vestes. Faltavam poucos dias para a Grifinória e a Corvinal se enfrentarem em campo e a animosidade entre os jogadores naquela etapa era algo natural.
Com um aceno de cabeça gelado, Sirius cumprimentou os seus adversários, mas Michael Carlson não o respondeu de volta dessa vez. Ao invés disso, ele manteve os seus olhos vívidos fixos em Black, vendo-o desaparecer nos gramados em direção ao Castelo.
Chegando à ala hospitalar, Sirius se deparou com uma enfermaria praticamente vazia no início daquela tarde de domingo, sendo embalada por uma música suave que era entoada através de um radinho. Madame Pomfrey lia o Profeta Diário enquanto um paciente de cabelos loiros espetados e com algumas espinhas graúdas nas faces folheava um livro de Poções. Suas mãos estavam enfaixadas.
"Senhor Black, o que aconteceu?"
Apalpando a sua lombar, Sirius declarou, sentindo ainda o impacto nas costas:
"Boa tarde, Madame Pomfrey! Um balaço me acertou no treino. Nem tá doendo tanto, mas Longbottom fez questão que eu viesse..."
Madame Pomfrey indicou a cadeira para Sirius, pedindo que ele retirasse a camisa. O rapaz obedeceu, despindo a parte de cima do seu uniforme e sentiu os dedos da enfermeira pressionando a sua medula.
"Sente dor aqui, próximo ao pescoço?"
"Mais embaixo. No meio das costas..."
"Aqui?"
"Ai, ai! Isso, aí..." — gemeu Sirius, estreitando os olhos com dor.
Madame Pomfrey se retirou, então, indo até o seu escritório buscar um bálsamo e uma poção para dor muscular. Sirius percebeu, nesse instante, com algum desconforto, que o paciente no leito o observava com a boca meio entreaberta. Ele tinha uma cara um pouco abobada e os olhos um tanto esbugalhados.
Sirius pigarreou constrangido e o rapaz se antecipou em se explicar.
"Olá, Black! Não tô te secando não, parceiro. Só tô um pouco perplexo, olhando da minha cama o seu físico e me autodepreciando em silêncio. Agora, entendo por que as garotas dessa Escola são loucas por você... Belo tórax, garanhão..."
Black contraiu as sobrancelhas, cobrindo-se um pouco com a sua camisa. Depois, como o paciente ainda o encarava, ele questionou:
"Desculpa, eu te conheço?"
O rapaz fez uma cara como se tivesse uma piada pronta.
"A gente já se falou nesse mesmo local! Só que, no dia, você tava vestido e procurando aquele menino magrinho e estourado da sua Casa, o Remus Lupin..."
Sirius coçou o queixo, se lembrando de um garoto todo enfaixado só com os olhos e a boca de fora no dia em que ele, James e Pettigrew haviam vindo até a enfermaria procurar por Remus.
"...Sou Elton Cameron! Tava com a cara tostada da última vez que nos vimos, rapaz. Agora, o meu experimento de poção Remove Espinhas misturado com a Poção de Rejuvenescimento me trouxe aqui de novo..." — disse o rapaz, erguendo as mãos enfaixadas e apontando para o seu rosto coberto por pústulas.
Sirius assentiu, meio sem saber o que dizer:
"Certo... Bom, prazer, Cameron... Quero dizer, oi de novo..."
"Você é um dos caras que se pegaram com aquele danadinho do Lupin, não é...?"
Sirius se voltou um pouco confuso e, com um rubor em suas bochechas, redarguiu:
"Eu não me peguei com o Remus e ele não fez nada disso do que você falou, até onde eu sei... Você conhece o Remus?"
"Fomos vizinhos de leito. Ele é um pouco impaciente, mas gente boa. Me deu dois bombons explosivos e uma fatia de bolo de caldeirão em troca de eu calar a boca. Recebi alta antes dele e soube através de Madame Pomfrey que ele foi embora ontem à noite... É uma pena porque tenho pensado em desenvolver uma poção, que tenho certeza que ele ia gostar..."
Sirius contraiu as sobrancelhas, argumentando:
"Espera aí, Cameron, deve estar enganado... O Remus tá fora da Escola há três dias..."
O rapaz com o rosto pontilhado de espinhas, riu-se, dizendo:
"Claro que não! Ele passou esses dias todos naquela cama ali e..." — Elton Cameron pareceu se lembrar de algo, levando a mão à boca como se ela tivesse vida própria — "Ai, caramba! É, tem razão... Ele foi embora há três dias..."
Sirius se ergueu de sua cadeira, aproximando-se do leito de Cameron e o olhar do rapaz se deteve no tórax nu de Sirius como se ele olhasse para a foto do próprio Everest ou dos Jardins da Babilônia. Black disse então:
"Espera aí! Eu vim aqui com os meus amigos e fui informado que o Remus tinha ido pra Casa dos... tinha ido visitar a mãe dele em Londres. Ele esteve aqui esse tempo todo...?"
Elton tinha os lábios selados e, no fim, gesticulando freneticamente as mãos, declarou:
"Ah, não vale a pena chorar pelo leite de dragão derramado e nem ignorar o hipogrifo na sala! É! Ele ficou escondido aqui, fechado na cama de cortinado dele como se fosse um índio numa oca. Pronto, falei..."
Sirius moveu os olhos, remoendo os seus pensamentos e insistiu:
"Ele ficou escondido esse tempo todo aqui, sem falar com ninguém?"
Cameron torceu a boca, parecendo muito ofendido.
"Ninguém também não né, Black! Olha eu aqui! Ele falou comigo... Ah, falou com o Snape também, que ficou naquela cama lá. Aliás, parceiro, que soco que você deu no Snape, hein! Não curti aquilo. Somos bruxos, não gorilas!"
Sirius alterou a sua voz, tamanha a sua surpresa.
"O Snape sabia que o Remus tava aqui...?!"
Cameron assentiu, servindo-se de um copo de suco de abóbora da garrafa sobre a cômoda ao lado do seu leito enquanto Sirius tinha a boca entreaberta e o cenho franzido. O grifinório murmurou, um pouco atordoado com aquela enxurrada de informações:
"... Mas eu não entendo por que Madame Pomfrey disse, no dia que vim aqui, que o Remus não estava mais na Escola..."
Cameron moveu a sua mão como se estivesse abanando o nada, convidando Sirius a se aproximar mais. Depois, cochichou, apontando o dedo para o escritório da enfermaria.
"Madame Pomfrey mentiu pra vocês, sem remorso. Mas acho que foi a pedido do Lupin. Observei os dois interagindo no tempo em que estive aqui. Acho que ela gosta mais do Lupin do que da gente. Então, entre você e ele, ela escolheu ele... Mas acho que entre mim e o Lupin, quem rodaria seria ele..."
Sirius ainda tinha o seu olhar perdido e sacudiu o rosto, dizendo:
"Mas por que o Remus não ia querer nos ver?"
Cameron tentou fazer uma cara de profundidade, mas ela pareceu uma careta.
"Acho que ele não tava a fim de olhar pra tua cara, parceiro. Mas eu sou só um observador das angústias humanas e pode ser que eu esteja enganado. Não gosto de fofocas e é melhor não insistir comigo pra saber de mais nada... Estamos só conversando, sim?"
Sirius espreitou Cameron, julgando que havia um problema sério com aquele rapaz e a sua verborragia incômoda. E o absurdo disso é que ele trouxera informações que o grifinório desconhecia totalmente.
Nesse instante, a porta do escritório da enfermaria se abriu e Madame Pomfrey surgiu novamente, trazendo um pote com bálsamo em uma mão e uma taça com o conteúdo exalando uma fumaça de espirais verdes, na outra.
Sirius, com uma expressão atordoada ainda, retomou o seu lugar na cadeira e se manteve inexpressivo quando Madame Pomfrey massageou as suas costas com a pomada e colocou um emplastro sobre elas. Foi quando ela pediu que o rapaz bebesse a poção para dor muscular que Sirius se deteve, fitando os olhos muito claros da enfermeira. Black perguntou, então, sem meandros:
"Madame Pomfrey, então, o Remus esteve aqui esse tempo todo...?"
A enfermeira de Hogwarts contraiu os lábios, fitando Elton Cameron, que se voltava novamente para o seu livro de Poções. Girando os olhos nas órbitas, ela falou:
"Pelo visto, o senhor Cameron não consegue ficar calado e age como um Profeta Diário vivo..."
O paciente, colocando um pouco teatralmente a mão sobre o peito, respondeu:
"Com todo o respeito, Madame Pomfrey, os meus pais sempre me ensinaram a falar a verdade..."
"Ora, seu respondão..." — começou Madame Pomfrey, antes de respirar fundo com as mãos nas cadeiras e girar alguns passos pela enfermaria, fitando o teto enquanto recobrava a sua compostura — "Depois, lido com você, Cameron. Senhor Black, precisa entender o lado do senhor Lupin..."
"Entender que ele não quer me ver?"
Madame Pomfrey apertou as mãos, encarando brevemente Cameron com rancor ainda, e sussurrando próximo ao rosto de Sirius:
"O senhor sabe que o senhor Lupin é um caso muito específico. Ele estava sob muita tensão próximo ao dia de ele ir ver a mãe dele. Não quero expor os sintomas do meu paciente, mas era importante mantê-lo tranquilo e calmo..." — Madame Pomfrey abaixou ainda mais o seu tom, transformando-o num murmúrio quase inaudível — "... Para que ele não volte daqui a uma semana todo arrebentado e precisando de doses cavalares de Poções para Repor Sangue..."
Sirius, que tinha o rosto muito próximo ao da enfermeira, engoliu em seco, fitando Cameron que os olhava com desconfiança.
"Então, eu deixei o Remus se sentindo tão mal assim? Eu piorei a condição dele?"
Madame Pomfrey puxou o rapaz para próximo da janela, afastando-o dos leitos.
"Na hora certa, o senhor Lupin e o senhor vão poder conversar. Por enquanto, vou pedir que aguarde um pouco, senhor Black, e não fique imaginando coisas. Vocês são amigos e vão se entender. O senhor Lupin gosta muito do senhor e do senhor Potter. Vai ficar tudo bem. Agora, tome a sua poção e pode voltar para o seu dormitório. Tente descansar um pouco hoje. Amanhã, já estará novo em folha..."
Sirius, sentindo um peso maior sobre os ombros, retornou para a Sala Comunal da Grifinória, encontrando o dormitório vazio e se deparando com duas corujas bicando, impacientes, a vidraça do quarto. Black se apressou em desamarrar as correspondências das patas das corujas, lembrando-se de presentear as duas mensageiras com o petisco bruxo destinado às aves de rapina, que os Marotos guardavam em um pote para aquelas ocasiões. A mistura era composta principalmente por besouros e tenébrios moídos.
Sirius reconheceu a coruja-das-torres como Fiona, a mensageira dos Lupins e a coruja de penas negras fez o rapaz deduzir que a ave fora enviada pelos Blacks.
Após as duas aves partirem, Sirius se sentou no parapeito da janela do dormitório, fitando os dois envelopes brancos. Deixando de lado o envelope endereçado para Remus, Sirius rasgou com má vontade o invólucro da carta enviada pelos Blacks, partindo o selo com o brasão Toujours pur em relevo e emoldurado por crânio, espada e pássaros agourentos.
Não era comum Orion e Walburga lhe escreverem e esse fenômeno raro acontecia, no máximo, duas vezes no ano. Não eram muitas linhas ocupadas pela letra rebuscada do pai de Sirius, mas o grifinório começou a se sentir ansioso ao desdobrar o pergaminho único, temendo que Bellatrix o houvesse delatado. O que os Blacks fariam com ele? Iam humilhá-lo? Ameaçá-lo? Tirá-lo da Escola?
Abril/1975
Sirius,
Você não seria você se, finalmente, conseguisse fazer algo direito. Não esperava que pudesse evoluir como homem numa Casa medíocre formada por bravateiros imbecis e limitados. Mas esperava que, pelo menos, tendo sido realizado esse seu desejo mesquinho de envergonhar a sua própria família, pudesse se dar por satisfeito na merda da Grifinória.
Mas nada é o bastante para você, não é mesmo, seu idiota? A diretora da sua Casa enviou uma carta, narrando o seu envolvimento em uma briga em meio ao Salão Principal e nos deixando a par da Detenção que está cumprindo. Se vai passar a agir como um animal e não um bruxo, a escolha é sua, mas não me provoque.
Se eu for perturbado novamente pelos queixumes dos professores sobre a sua conduta e eu tiver que prestar contas com Hogwarts, eu irei pessoalmente lidar com você. Não me desafie, Sirius. Não me aborreça. Não me desaponte mais do que já desaponta. Não bata de frente comigo e não me crie problemas. Caso contrário, não hesitarei em passar por cima de você, como já passei e deveria ter passado quando o Chapéu Seletor te colocou na Casa de Gryffindor.
Espero que entenda. Porque, se não entendeu, receio que tenha que usar métodos mais eficazes para serem registrados por essa sua cabeça dura. Se Hogwarts não pode te educar decentemente, precisaremos buscar outros meios que façam você se colocar em seu devido lugar e aprender o que tentamos te ensinar de uma vez por todas.
Orion Black
Sirius só percebeu que puxava o ar para os seus pulmões com dificuldade quando concluiu a leitura da carta. Apoiando as mãos no parapeito da janela, o grifinório se esforçou para inspirar pelo nariz e expirar pela boca. Fechando os olhos vermelhos e levemente umedecidos, ele amassou a carta e a jogou longe como se fosse um animal peçonhento.
A caligrafia bonita à serviço da desqualificação de Orion era algo que Sirius detestava e detestaria todas as vezes. Contudo, acima de tudo, ele detestava o modo como se sentia perante os seus pais e a influência que exerciam sobre ele.
Idiota, besta irracional, péssimo filho, burro, mulherzinha, bicha...
O que mais ele era?
Sirius apoiou a cabeça na vidraça da janela, batendo de leve a sua própria nuca enquanto remoía simultaneamente o desprezo e o alívio por Orion parecer não saber sobre o beijo no Lago. Talvez, ele fosse ter pessoalmente com Sirius se descobrisse que o filho beijara garotos. Se suspeitasse o quanto ele gostara daquilo.
Encolhendo os joelhos e os envolvendo, Sirius se deteve, fitando o envelope da carta destinada a Remus, assinada por Hope e Lyall Lupin. Ao lado do nome do rapaz de cabelos castanhos, havia alguns corações feito a mão enfeitiçados que se moviam alegremente. E, ao lado dos nomes dos pais de Remus, havia em parêntesis registrado (mamãe e papai com saudades), como se o senhor e a senhora Lupin quisessem que o mundo inteiro soubesse que eram pais amorosos de um menino maravilhoso.
O amor podia ser evidente, mesmo quando ele não abria a boca.
Sirius se recordou, então, não sabendo bem o porquê, de uma vez em que os Marotos subiram no freixo do pátio da Escola e assistiram juntos o fim de tarde. Black se lembrava de observar o rosto concentrado de Remus, talhando com a sua varinha, as iniciais do seu nome na árvore, ao lado das letras SB, JP e PP.
"Somos amigos pra sempre agora..." — declarou Remus quando guardou a varinha no bolso das suas vestes. Seu rosto tinha mais traços infantis do que tinha agora.
"Um abraço coletivo!" — determinou James, agachado em um galho, parecendo um macaco se equilibrando.
"Se me derrubarem daqui de cima e eu morrer, vou puxar o pé de todos vocês à noite..." — declarou Pettigrew, abraçado ao tronco da árvore.
Remus sorriu e, se equilibrando para alcançar o galho mais alto, chegou até Sirius, o envolvendo com os braços arranhados e o seu rosto gentil. Depois, James, se pendurando em um galho, envolveu os amigos e Pettigrew, sem tentar olhar para baixo, se arrastou também até os grifinórios.
Os Marotos eram quatro garotos sobre uma enorme árvore, talhando as iniciais dos seus nomes em madeira e sobrevivendo, ao seu modo, ao tempo. Enquanto tinha o corpo de Remus e de James muito perto ao seu, Sirius sentiu como se um calor se espalhasse por seu peito.
Lupin e Potter sabiam muito a respeito de Sirius, mas os dois garotos, em sua juventude, não podiam mensurar toda a dor que ele carregava no peito porque aquela mesma dor lhes era desconhecida. Não sabiam também de lembranças vergonhosas e vexames que ainda machucavam fundo.
Os amigos não sabiam de um Sirius, com seis anos, sendo castigado por Orion por haver abraçado uma criança trouxa. Não sabiam como ele se sentira vulnerável, amedrontado, humilhado e pequeno perto de um Orion gigante que movia a sua varinha em sua direção. Não sabiam do choro da sua babá, Nora, que mordia as mãos em agonia, proibida de interferir na punição de pai para com filho. Não sabiam de um Sirius de seis anos, chorando e correndo na direção do pai, tentando abraçá-lo.
"Desculpa, papai... Eu não faço mais..."
Sirius, no entanto, fora repelido e empurrado para longe, batendo com as costas na parede. Deveria ser proibido sentir-se tão insignificante numa idade tão jovem.
"Não me toca, depois de ter tocado naquele trouxa imundo! E para de chorar! Você parece uma menininha, um fracote, um maricas!"
Sirius fechou os olhos, passando o dorso da mão pelos olhos e se concentrando na sua própria respiração. Depois, movendo a sua varinha, ele incendiou a carta enviada por Orion. Ela não necessitava de resposta. O desgraçado podia ter enviado pelo menos uma foto de Regulus para amortecer um pouco a queda. Sirius sentia falta do irmão.
Black fungou ainda quando, se levantando, caminhou até a escrivaninha de Remus, colocando a carta enviada por seus pais apoiada em um livro, com um cuidado excessivo.
O rapaz de cabelos compridos ergueu a sua vista para fitar o mural de Remus em que algumas fotografias se moviam, presas com alfinetes.
Havia uma foto de Remus com uns nove anos em Paris, diante da Torre Eiffel, sorrindo e de mãos dadas com o senhor e a senhora Lupin. Havia outra foto de Remus num balneário na Itália, trajando uma camiseta com cores vivas e com o vento em seu cabelo. Havia uma foto de Remus diante de um lago em Cotswolds, ao lado dos seus avós trouxas. E também uma foto do garoto de cabelos castanhos de costas para a lente da câmera, mirando um grande rio diante de uma floresta. Sobre a fotografia, estava escrito: "Brasil - 1970".
Havia fotos também dos Marotos fazendo caretas e deles se divertindo no Castelo e na Sala Comunal da Grifinória.
Sirius sorriu para as imagens e para si mesmo sorrindo nelas.
Ele era bruto demais para Remus e fazia sentido o rapaz de cabelos castanhos se desvencilhar dele, ignorando o seu beijo. Fazia sentido o amado filho dos Lupins não querer um Black nem que ele fosse a última criatura viva na Terra. Remus vinha de um lar, de uma vida, de um molde diferente do seu. No universo dele, as pessoas perdiam o ar pela euforia e os abraços eram aceitos em diferentes cenários.
As meninas que gostavam de Black estavam envolvidas por um ideal de príncipe de Hogwarts bonito e encantador, mas Remus era esperto demais para cair nessa ilusão. Remus tinha o amor correndo em seu sangue e não precisava de mentiras.
E, aliás, por que para Sirius isso era tão importante? Afinal, ele não estava apaixonado por Remus e o via somente como um amigo muito querido. Aquelas vontades e desejos que o assombravam, definitivamente, eram consequência daquela nova parte sua. Do fato de se descobrir gostando de garotos também. Fato esse que Sirius, inclusive, não sabia o que faria a respeito.
Sirius deixou o dormitório, batendo a porta e os Black atrás de si. Rumou, então, para o Salão Principal e encontrou James na mesa da Grifinória, conversando com uma jovem de cabelos escuros e rosto muito bonito. Black não sabia identificar de qual Casa a garota era porque ela estava com vestes trouxas, mas o rapaz não pode deixar de reparar no fascínio que o uniforme de Quadribol trajado por Potter parecia exercer sobre ela.
Vendo o amigo chegar, James quis se inteirar sobre o que Madame Pomfrey falara a respeito do balaço nas costas dele. Depois, Potter apresentou para Sirius a jovem, que mantinha o rosto apoiado nas mãos de modo adorável, fitando ainda James. Ela se chamava Linda Ferguson e estudava na Casa da Lufa-Lufa. Esperando, pacientemente, os rapazes terminarem de conversar, a jovem, levantando-se ao ver que o almoço seria servido, curvou-se sobre James, um pouco sedutora demais para a sua pouca idade, dizendo:
"Então, Potter... Você quer me encontrar de noite na Torre de Astronomia pra gente se conhecer e conversar um pouco mais...?"
Sirius viu a lufana apoiar a sua mão de dedos delicados e delgados sobre a mão de James. O rapaz de cabelos rebeldes trocou um olhar com Black e falou, pigarreando:
"Hoje, eu não posso. Na verdade, tenho tido muitos deveres de casa... Eu combinei de estudar hoje à noite com os meus amigos e não vou poder ir..."
Linda arqueou as sobrancelhas com algum desapontamento e Sirius compreendeu o que estava acontecendo. Potter se via preso àquela Detenção mensal que Black cumpria e rejeitava as investidas da bela jovem diante de si para fazer companhia ao amigo, tomado por um senso de lealdade grifinória. Tomado pelo dever de ajudar Sirius com magia a terminar tarefas que levariam horas para serem concluídas.
Sirius sacudiu o rosto, tocando a outra mão de James.
"Pode ir, Potter. Podemos estudar juntos outro dia. Hoje é domingo e acho que você merece uma folga..."
Claro que Black sentiria falta da companhia de James. Durante aquelas primeiras noites de Detenção, eles se divertiam conversando e experimentando feitiços para cumprirem as tarefas. Os garotos fumavam e bebiam cerveja amanteigada, falando sobre tudo e sobre nada. Riam e faziam competição de feitiços, sentados no chão das salas vazias e Potter pulava para debaixo da Capa da Invisibilidade quando ouvia o barulho dos passos de Filch se aproximando no corredor.
Os olhos cor de avelã de James se detiveram na mão de Sirius sobre a sua.
"Tem certeza, Black?"
Sirius sorriu para o amigo, servindo-se de suco de abóbora e não querendo transparecer o quão abalado ainda estava pelo turbilhão que se formava em seu peito naquela semana.
Ele era o mais velho dos Marotos e, como um irmão mais velho, ele precisava dar o exemplo, mantendo-se sobre o controle das suas emoções. Não era tão difícil, exceto quando ele não conseguia. Afinal, Black havia beijado os seus dois melhores amigos; havia sido ameaçado por Bellatrix Black; agredira Snape e fora penalizado com uma Detenção de um mês. Se indispusera com o time de Quadribol e descobrira que Remus estivera até a noite anterior na Escola, evitando encontrá-lo. Havia como cereja do bolo sempre os Blacks atacando-o nas ocasiões em que mais doía para fazê-lo se sentir feito merda. Mas isso não tinha nada a ver com James. Bastava um deles triste.
"Claro, Potter... Tá tudo bem..." — sorriu Sirius, piscando para o amigo e bebendo de sua taça.
Mas não parecia tudo bem quando Linda Ferguson remanchou um pouco, cochichando algo no ouvido de James, que, parecendo um pouco mais retraído do que costumava ser, olhava do amigo para a garota.
E, por não estar tudo bem, Sirius sentiu uma ausência de si mesmo se instaurando em partes suas, antes que pudesse evitar. E ele, vazio, interagiu com James sem estar totalmente lá. Riu dos comentários de Pettigrew, sem achar graça. Parabenizou o time de Quadribol da Grifinória pelo desempenho, sem sentir o gosto de suas próprias palavras.
E quando ele deixou o Salão Principal e foi fumar um pouco sob o freixo do pátio, fitando as copas altas da árvore e os seus galhos retorcidos, Black se descobriu sendo arrancado de seus pensamentos por uma jovem que o abordava. Em um instante, ele estava sozinho e, no outro, ela estava lá.
Ela era Albie Kerr da Corvinal. Cabelo loiro e cheio. Olhos verdes. Perguntas e mais perguntas. Ele estava saindo com alguém? Ela soubera que ele e Aileen Marratt terminaram. Ela podia continuar conversando com ele? A jovem reparava nele há algum tempo e o vira saindo do estádio mais cedo. Podiam se conhecer melhor? O que ele estava olhando nas copas da árvore? Ele era muito bonito e ela gostava do jeito dele. Ela ouvira sobre os boatos do Lago, mas, obviamente, tudo não passava de um mal-entendido. Uma brincadeira de garotos. Ela havia terminado o seu namoro e não queria nada sério também. Os dois podiam ser amigos? Os dois podiam ir para algum lugar mais reservado?
E, Sirius, sentindo aquela necessidade de ser abraçado, de ser acolhido, de não ser repelido, deixou que a jovem entrelaçasse os dedos nos seus e conduzisse o seu corpo vazio para uma sala vazia naquele domingo vazio.
Se pegar com alguém nunca fora difícil para Sirius. Era fácil ele se deixar levar pela empolgação sexual de beijar alguém e friccionar o seu corpo contra o de outra pessoa. Com dezesseis anos, Sirius ainda não havia ido até o fim com nenhuma garota, mas ele deixava as coisas irem até muito longe, sentindo braços o envolverem e o calor de outro corpo inflamar o seu. Sentindo-se endurecer e desejoso de poder penetrar o corpo diante de si, fundindo-se e desaparecendo nele.
Talvez, Black não prestasse mesmo por usar as meninas de sua Escola ou, talvez, elas o repelissem também se soubessem o quão solitário e carente ele se sentia às vezes. Sirius não era um príncipe de Hogwarts. Ele era um garoto de dezesseis anos vulnerável e silencioso.
Num banheiro vazio, Sirius mergulhou o rosto no pescoço de Albie Kerr, aspirando o perfume da jovem e, com alguma truculência ou desespero, ele ergueu a corvinense, a apoiando sobre a pia. Black sentiu as pernas de Albie o envolverem e, como ela deslizou as mãos por seu corpo, ele sentiu que tinha permissão de tocá-la também.
Talvez, Sirius devesse transar logo de uma vez e não se segurar tanto como o fazia. Talvez, devesse obedecer aos seus próprios comandos e tentar só se divertir, sentindo-se tranquilo e, temporariamente, satisfeito. Aceitavelmente ok. Aceitável era bom. Exceto quando era uma droga e ele sentia o mundo ao seu redor distante e o seu mundo interno se quebrando.
Foi quando o grifinório sentiu a mão de Alby deslizar para dentro de sua calça que a lembrança do cheiro de xampu trouxa, de resina de árvore, folhagens, cerveja amanteigada e o abraço de Remus e James arrancou lágrimas dos olhos de Sirius. E aquela forma de tentar criar afeto pareceu assustadora para ele.
Antes que pudesse evitar, Black segurou a mão de Alby, afastando-a. Ele apertou, então, os seus olhos com os dedos.
"Você tá bem?" — indagou a corvinense, fitando o rosto do rapaz diante de si.
Sirius remanchou um tempo, fechando a sua calça e se sentindo sem jeito e perdido.
"Desculpa... Eu só acho que é muito precipitado pra mim..."
Alby, descendo do tampo da pia, apressou-se também em abotoar a sua blusa.
"Tudo bem. Você devia gostar muito da Aileen Marratt. A sua cabeça, talvez, ainda esteja nela..."
Mas não era em Aileen que Black pensava. Era sobre os seus afetos.
Mais tarde, no início da noite, após dormir durante a tarde toda, sentindo um cansaço e uma necessidade de se ausentar, Black seguiu para a Detenção que cumpriria na sala de Poções. A tarefa que lhe fora atribuída consistia em organizar ingredientes dentro do armário e descartar os que perderam a validade. Além disso, o rapaz deveria arrumar a sala utilizada pelo Professor Slughorn e limpar caldeirões.
Sirius fitou os vasilhames de cobre com a parte interna manchada por resquício de poções e, sem a sua varinha, ele não fazia ideia de como deveria limpá-los. O rapaz respirou fundo. Talvez, esse fosse o momento oportuno de ele começar a chorar. Mas essa não era a forma de Black lidar com as suas emoções.
Ao invés disso, ele retirou a bandeja de frascos com ingredientes do armário e se pôs a examinar um por um, jogando fora os conteúdos com rótulos que denunciavam a validade vencida.
Durante meia hora, Sirius se concentrou naquela tarefa e o rapaz constatou que os professores e Remus talvez tivessem alguma razão a respeito daquela metodologia. A atividade pouco a pouco ocupava os pensamentos do grifinório e permitia que o incômodo que ele sentia em seu coração não passasse, obviamente, mas aliviasse um pouco. A tarefa mecânica e racional trazia alguma lógica, alguma sensatez para o seu cérebro.
E foi quando ele descartava asas de besouros do Nepal com argila estrelada vencidas em dezembro de 1974 que Sirius se questionou: Quem eram os Blacks para falarem algo sobre ele afinal?
Eles nunca foram bons pais. Nunca fizeram questão de conhecê-lo ou demonstraram minimamente algum interesse por sua pessoa. Então, como os Blacks podiam interferir nas suas escolhas?
A Professora McGonagall, o Professor Flitwick e os outros professores sempre pontuavam que ele era um aluno rebelde, mas inteligente. Reativo, porém, hábil com as disciplinas. O que Orion e Walburga inferiam sobre ele não era real. Mas se o rapaz de cabelos compridos continuasse sentindo os pisões que os Blacks lhes davam, invariavelmente, ele começaria a apodrecer de dentro para fora. E aí o seu tempo passaria e ele seria descartado feito aqueles ingredientes que perdiam a sua chance de serem parte de um processo maior.
Eles simplesmente se deterioravam em prateleiras, esperando poderem vir a ser. Black estava se deteriorando?
Foi quando Sirius voltou para dentro do armário de ingredientes, selecionando outra bandeja com componentes que ele ouviu a porta da sala de aula se abrir sozinha e fechar com um estrondo.
Black se sobressaltou quando escutou passos ecoando no ambiente e viu uma cadeira ser arredada para o lado, sozinha. Contraindo as sobrancelhas, Sirius deduziu o que acontecia no mesmo instante em que James Potter saía de debaixo da Capa da Invisibilidade, sem se anunciar e informando:
"Acho que esbarrei, sem querer, num dos monitores da Sonserina, quando tava vindo pra cá..."
Sirius ainda tinha o cenho franzido por trás da sua franja irregular e a bandeja de ingredientes em suas mãos.
"Pelas barbas de Merlin, o que caralhos você tá fazendo aqui, Potter?"
James desarrumou um pouco mais a sua franja e se pôs a limpar no suéter os óculos, cujas lentes estavam um pouco embaçadas.
"Ora, não é óbvio? Vim te ajudar, Black..."
Sirius depositou as plantas em potes sobre uma das bancadas da sala, aproximando-se do amigo:
"Mas eu havia dito que não precisava fazer isso, James. Se entendi bem o que estava acontecendo no almoço, aquela garota linda da Lufa-Lufa tava te convidando pra sair e sei que ela é bem o seu tipo..."
James parecia um pouco sem jeito e tinha um rubor em suas faces.
"É, mas eu não podia deixar você lidar com tudo isso sozinho. Posso dar um jeito de encontrar com ela outro dia. Se é que eu quero isso. Sei lá, eu tava ainda com a cabeça no Quadribol, conversando com o Dayal sobre o jogo contra a Corvinal e, do nada, ela se aproximou de mim e começou a puxar assunto..."
O olhar de Sirius se tornou um pouco pesado.
"Olha só, Potter, nós somos amigos, mas não quero ficar no seu caminho. Não quero interferir nos lances seus com as suas namoradas. Não se sinta obrigado a cumprir Detenção comigo só porque somos parceiros..."
James, que já tirava a varinha de dentro das suas vestes, girou a cabeça bruscamente.
"Mas eu não me sinto obrigado a fazer isso. Eu vim porque eu quis... Tergeo!" — murmurou o rapaz de cabelos rebeldes, fazendo um movimento linear com a sua varinha e espanando uma das bancadas suja com pó de chifre de arpéu e gengibre moído— "Na verdade, talvez eu não tivesse muito a fim da Linda. Aliás, Pettigrew me contou que viu você mais cedo, andando de mãos dadas com uma garota..."
Sirius entortou a boca para o lado, pensando que o sistema de comunicações Marotos era mais eficaz do que o sistema de corujas. Pettigrew era um pombo fofoqueiro.
"É... Era uma menina da Corvinal que chegou em mim. A gente conversou um pouco, mas não deu em nada. Eu não tava com cabeça pra isso..."
James espreitou um tempo o rosto do amigo em silêncio e se aproximou dos frascos de vidro, destampando um deles, cheirando o conteúdo e fazendo uma careta enjoada.
"Certo. Então, o que devemos fazer hoje?"
Sirius sorriu de um modo contido e se pôs a explicar a tarefa para Potter. O rapaz de cabelos compridos não dissertou sobre como estava feliz por James vir ajudá-lo. Naturalmente, o uso de magia ajudaria Black a concluir a tarefa mais cedo, mas mais importante do que isso era aquela sensação que acalmava o seu coração. Era a certeza de que James se importava tanto com ele. Tanto que empurrava para o lado o que não fosse Black.
Por meio dos feitiços, não demorou muito tempo para os ingredientes das poções serem organizados, rotulados e guardados. Nem para os caldeirões de cobre serem limpos e areados. Ou mesmo, as bancadas serem espanadas e a sala, varrida. Por fim, Sirius, consultando o relógio de ouro em seu pulso, declarou:
"Vamos para a Torre de Astronomia. Eu não gosto da escuridão, da umidade e do cheiro desta sala. Filch disse que ia voltar daqui a uma hora. A gente volta quando der o horário."
Os dois grifinórios rumaram, então, das masmorras para a Torre de Astronomia, fazendo uso das passagens secretas e atalhos que conheciam. Chegando lá, Black e Potter se acomodaram sentados sobre uma toalha que James trouxera em sua mochila, bebendo cerveja amanteigada e fumando. O brilho da lua cheia gigante no céu adentrava o recinto pelas janelas e sacada, banhando os móveis, telescópio e mapas com a sua luz prateada.
Sirius, se sentindo muito mais relaxado do que se sentira até então, narrou para James sobre a descoberta que fizera na ala hospitalar a respeito de Remus se encontrar lá até o dia anterior e, com os olhos fugitivos e envergonhados, contou sobre a carta que recebera dos Blacks.
Com o cigarro ainda entre os dedos e coçando a sua testa, James, após ouvir tudo em silêncio, declarou, dando de ombros:
"O Remus tem esse mecanismo de fuga. Quando ele tá puto, assustado ou triste, se isola, chora, lida com o que tem que lidar e, depois, volta. Sempre foi assim..."
"Mas eu não gosto dessa forma de ele lidar com as coisas! É covarde e injusto. Preferia mil vezes que ele ficasse puto e falasse um monte pra mim do que me deixasse no silêncio, me sentindo um idiota..."
James engoliu em seco, baixando o seu olhar cor de avelã.
"Mas você não é ele, Black. E nem sempre as pessoas devem ou podem falar tudo o que pensam porque podem magoar os outros... Magoar de verdade... De um modo irreversível. Dá um tempo pro Remus..."
Sirius tinha os cotovelos apoiados em seus joelhos e encostou a nuca na parede. James prosseguiu:
"...E os Blacks são os Blacks. Você é melhor do que eles. Talvez, devesse considerar jogar fora as cartas enviadas por eles. São sempre ameaças, deboches, críticas e rancores. Ainda que eles sejam os seus pais, você não precisa lidar com isso tudo se não quiser. Recebe somente o que é bom pra você e o que não servir, joga fora..."
Black se lembrou com algum acalento em seu coração de que, no final de março, no domingo de Páscoa, ganhara dos Potters um ovo de Páscoa gigante com inúmeros bombons explosivos dentro. Ganhara dos Lupins também esqueletos de chocolate, chocobolas, caramelos cor de mel e um bolo de caldeirão com raspas de abóbora. Enquanto os Blacks eram a aridez, os pais dos seus amigos eram pessoas generosas que não represavam o seu amor feito água empoçada, mas o deixavam fluir na direção também de quem precisava. Receber só o que fizesse bem era um ótimo conselho.
Sirius fungou, sentindo os seus olhos arderem e percebeu que James evitava encará-lo. Contudo, estendendo a sua mão, o rapaz de cabelos rebeldes tocou no peito do amigo, indagando:
"Mais leve?"
Black fechou os olhos, experimentando aquela palma quente, cujo calor ultrapassava o tecido das suas vestes. Sentindo-se nutrido novamente, o rapaz de cabelos compridos absorveu o ar ao seu redor, sorvendo-o como se ele o aquecesse.
"Bem mais leve..."
"Ótimo..."
Sirius sorriu, apagando a guimba de cigarro na sola do seu sapato. Depois, ele retirou do maço mais um, levando-o à boca.
"Obrigado por ter vindo hoje, Potter..." — agradeceu Sirius com a voz alterada devido ao cigarro entre os lábios.
James sorriu, batendo as cinzas no chão.
"Não por isso..."
"Certo. Preciso de fogo." — disse Black, indicando o seu cigarro para que Potter usasse a sua varinha para acendê-lo, como costumava fazer.
Potter se deteve, fitando o cigarro entre os lábios de Black. Por um segundo, ele pareceu hesitar. Depois, tomando uma atitude finalmente, o rapaz se aproximou do amigo, encostando a ponta do cigarro em sua boca no dele. Os rostos dos dois permaneceram muito perto. E Sirius sentiu um rubor subir por suas faces enquanto o filtro do seu cigarro era chamuscado pelo contagioso fogo e era aceso. James não o encarou, mas os dois garotos não se aproximavam tanto desde que haviam se beijado no Lago da Escola.
James exalava aquele perfume cítrico amadeirado e com uma autoconfiança precoce, ele se afastou, voltando-se a se sentar ao lado de Sirius. Black, por outro lado, demorou para perceber que o cigarro em seus lábios era consumido pelo fogo enquanto um silêncio adiposo se instaurava.
Quando Potter retomou a conversa, Black se manteve ausente e disperso, corando um pouco toda a vez que olhava para o rosto do seu amigo banhado pela luz do luar.
Distraído como Sirius estava, foi James que o lembrou sobre o horário e que os dois deveriam retornar para a sala de Poções nas masmorras. Os dois rapazes, novamente, fizeram uso das passagens secretas e atalhos até chegarem à sala de aula. Quando se preparavam para dobrarem em um dos corredores, os garotos ouviram as vozes dos dois monitores do sétimo ano da Sonserina chamando-lhes. Aparentemente, eles faziam a ronda noturna, erguendo as suas varinhas com as pontas luminosas feito lanternas diante de si.
Antes que Sirius pudesse responder, ele sentiu a mão de James se fechando sobre a sua e puxando-o pelo corredor soturno. Os dois grifinórios correram, jogando-se atrás de uma armadura enquanto Potter cobria os dois com a Capa da Invisibilidade.
"ESPEREM AÍ!" — gritou o monitor do sétimo ano, com o seu distintivo no peito.
A jovem que o acompanhava moveu o seu rosto muito branco, olhando para os dois lados do corredor e apertando o passo. Ela iluminou os cantos com a sua varinha, incidindo luz nos espaços.
"Para onde eles podem ter ido?"
Sob a Capa da Invisibilidade e na pouca luz, os olhos de Sirius encontraram os de James. As suas respirações e os seus hálitos estavam muito próximos e, enquanto Sirius sentia um arrepio percorrer a sua espinha, ele sustentava o olhar avelã de Potter, fitando-o, agora, ininterruptamente.
"...Você também os viu, não foi, Bulstrode? Será que foram eles que esbarraram em você mais cedo?"
O monitor sonserino, um garoto de cabelos castanhos cacheados e constituição um tanto atarracada, coçou a cabeça enquanto iluminava com a sua varinha o espaço ao lado da armadura em que Sirius e James permaneciam, invisíveis.
"Acho que aquilo pode ter sido só o Pirraça zoando com a nossa cara, Betsy. Talvez, os dois possam ter seguido para as escadas. Vamos inspecionar o andar de cima..."
"Certo." — respondeu a menina com o cabelo loiro e crespo preso em um rabo de cavalo, avançando para a escadaria, ao lado de Charles Bulstrode.
James se manteve observando Sirius e, com o seu sorriso enviesado e Potter até dizer chega, ele olhou por sobre o ombro para os monitores sonserinos que subiam os degraus.
"Essa foi por pouca. Vamos?"
Sirius pestanejou um pouco atordoado. O que estava acontecendo com ele no fim das contas? Talvez, o rapaz devesse ter se esforçado mais com Albie Kerr porque ele ainda estava com aqueles pensamentos e desejos estranhos. Mas que diabos, James Potter era o seu amigo! Um dos melhores! E, como irmãos, os dois grifinórios cresciam na microssociedade Hogwarts, felizes em serem errados, subversivos e terríveis. James Potter gostava de garotas desde que Black se entendia por gente e ele não devia se sentir tão constrangido perto dele.
"Vamos..." — respondeu Black, andando um pouco na frente, ao sair de debaixo da Capa da Invisibilidade e avançar pelo corredor.
Quando chegou à sala de Poções, Sirius se deparou com um carrancudo Filch, batendo a porta atrás de si. O zelador o olhou com desconfiança.
"Onde esteve?"
Sirius, recuperando o seu norte, deu de ombros, fingindo displicência.
"No banheiro. Por quê? É proibido mijar durante a Detenção?"
"Ora, seu delinquente, mais respeito! Não esteve por aí, aprontando das suas, não é mesmo?"
Sirius contraiu as sobrancelhas, torcendo para que Filch não percebesse o cheiro de cigarro nele. Porque ele sentia o cheiro de cigarro em James, próximo a si.
"Não. Eu terminei o serviço ainda há pouco e fui ao banheiro. Só isso... Posso voltar para a Sala Comunal?"
Sirius foi dispensado, então, finalizando mais aquele dia de cumprimento de castigo.
Na segunda-feira, os alunos do quarto ano tiveram um horário cheio de aulas durante a manhã e de tarde. Sirius observou o lugar vazio de Remus e tentou se concentrar nas palavras de James. Lupin não sumiria porque estava fora de alcance. O garoto retornaria e, no tempo certo, eles conversariam sobre o que havia acontecido no Lago.
Black espreitou Snape também com algum rancor, mas se manteve longe do rapaz. Aparentemente, o nariz do sonserino havia sido restaurado, parecendo maior do que nunca. Em um determinado momento da aula de História da Magia, Severus se virou para encarar um sonolento Sirius, que registrava a matéria em seu pergaminho entre um bocejo e outro.
O rapaz de cabelos compridos se deteve com a pena no ar e, não demorando muito o seu olhar, ergueu o seu dedo médio, sem hesitar. Snape crispou os lábios e se virou para a frente, movendo teatralmente o seu cabelo escorrido.
"Babaca maluco..." — sussurrou Sirius, atraindo a atenção de James e de Pettigrew sentados ao seu lado.
Pettigrew moveu a sua cabeça, observando Snape adiante.
"Ele tá espumando de raiva..."
"Uma hora, dou um jeito nele..." — redarguiu Sirius, riscando uma palavra que escrevera errado em seu pergaminho.
Quando chegou a noite, Black se encontrava fisicamente bastante cansado porque conciliar os estudos, os treinos de Quadribol e o horário de Detenção com o sono regular estava sendo bem difícil. A sua tarefa daquele dia consistia em organizar a sala de Estudo dos Trouxas. A matéria era lecionada por uma professora nascida-trouxa pequena e ágil e o recinto não estava tão desarrumado como os outros espaços dos quais o grifinório já cuidara.
Sirius abriu um livro em que estava escrito Eletricidade e Maquinaria Trouxa em que havia fotos de eletrodomésticos que Black já vira em vitrines de lojas trouxas, sem saber muito sobre o seu funcionamento, no entanto. Em outro exemplar, sobre Transportes Trouxas, Sirius observou o modelo de uma moto, sorrindo ao se lembrar dos trouxas que já vira pilotando uma daquelas em Londres, arrancando a toda velocidade e infringindo os sinais vermelhos das estradas.
James, fielmente ao lado de Black, folheava uma revista sobre esportes trouxas. Uma das imagens dedicada ao Polo exibia um jovem montado em um cavalo, usando um taco para golpear uma bola. Virando a foto para Sirius, James comentou:
"Parece a Corrida de Testrálios bruxa. Só que é menos bizarro do que ver um monte de jogadores montados em um animal invisível."
A Detenção, naquela noite, foi concluída bastante cedo. Felizmente, não havia muito o que fazer. E quando Sirius se alongou, fitando o gramado da Escola, tomado pela névoa e banhado pela luz prateada da lua cheia, James abriu o zíper da sua mochila, dizendo:
"Trouxe algo diferente pra hoje à noite." — e de dentro da bolsa, o rapaz tirou uma garrafa de whisky de fogo — "Peguei mais cedo na cozinha de Hogwarts na seção de bebidas para condimentos..."
Sirius sorriu, fitando a garrafa ser destampada por James e ele a erguer diante do rosto.
"... Achei você desanimado hoje durante as aulas e, apesar de saber que isso não é a solução para os problemas, eu pensei... Que se dane!"
Black sorriu, bagunçando a franja de James e dizendo:
"Você é uma péssima influência, Potter... Vamos beber..."
Minutos depois, os dois garotos estavam sentados sobre a toalha trazida por James e tinham manchas vermelhas sobre as suas bochechas. Eles bebiam da própria garrafa de whisky e após tomar um gole, James ainda tinha o gargalo encostado na sua boca quando disse:
"Melhor maneirarmos. Quando Filch chegar e você não conseguir falar coisa com coisa, não vou poder te ajudar..."
"Eu não fico bêbado fácil, Potter. Cuidado você, seu fedelho! Senão vou ter que te carregar até o dormitório..." — riu-se Sirius, tomando a garrafa das mãos do amigo e bebendo um gole.
James se manteve um tempo em silêncio, fitando a lua cheia brilhante com seus veios sombrios e rodeada por nuvens através da janela. O grifinório permaneceu um tempo pensativo e murmurou, como se tornasse audível uma constatação interna.
"Somos péssimas influências uns para os outros no fim das contas..."
Sirius acompanhou o olhar de James, fitando o luar e disse:
"O que quer dizer com isso?"
James deu de ombros, após limpar o whisky do seu queixo com o dorso da mão.
"Não somos os bons garotos dos contos infantis sobre boas intenções e morais de vida que ficam para a posterioridade. Somos um pouco tortos e torpes. Talvez, os Marotos sejam mesmo delinquentes. Mas, enfim... Se existem os bons meninos, existem nós também..."
Sirius se deteve, fitando o rapaz diante de si. James cravou o seu olhar no chão e falou, após fechar os olhos por alguns segundos:
"Gostei de beijar a sua boca, Sirius..."
Black se manteve parado, sentindo uma eletricidade atravessar o seu corpo. Seu olhar espreitou o rosto do rapaz diante de si, antes de ele se cravar novamente no assoalho.
"... Gostei de verdade. Agora, entendo por que as garotas que você beija perdem a razão por sua causa... Se você não fosse o meu melhor amigo, eu teria insistido um pouco mais com você. Teria te chamado pra fazer algo e..."
Sirius estava muito quieto, tendo as costas coladas na parede e o rosto inclinado. Ele cortou o amigo, dizendo:
"Potter, não me trata feito uma das suas meninas!"
James engoliu em seco, retraindo-se e parecendo muito desconcertado. O rapaz assentiu, retirando um cigarro de dentro do seu maço e o acendendo com a varinha. Depois de tragá-lo, assentiu mais uma vez, tendo um rubor muito forte em seu pescoço e orelhas.
"Certo. Me desculpa, Black..."
Se Sirius olhasse para o lado, perceberia os olhos úmidos de James porque o rapaz de cabelos rebeldes reunira toda a sua coragem para dizer aquelas palavras. Não era uma declaração amorosa e nem o convite para nada em específico, mas era uma parte verdadeira sua e que assustava um pouco James Potter. Ele não sabia o que devia fazer com aquela constatação e isso o confundia. Talvez, o lobo estivesse certo e ele fosse só um garoto.
Sirius fungou, cruzando os braços. Se a linha havia sido atravessada, ele não hesitaria mais.
"Eu não quero que você aja comigo como faz com elas. Já vi você usando o charme James Potter sobre as garotas desta Escola e elas caindo em sua lábia... Somos amigos e somos mais do que isso. Eu também gostei de te beijar, James. Muito. Muito mesmo. E eu menti quando disse que estava ok com isso porque, definitivamente, acho que gosto de garotos. Gosto pra caralho!"
James se manteve quieto. Em seguida, ele tomou um longo gole de whisky de fogo, respirando fundo e falando:
"Eu tô um pouco aliviado em ouvir isso. Achei que você tinha se ofendido, me achado um idiota e que a nossa amizade ia para o ralo." — e, dando um empurrão no ombro de Sirius, ele acrescentou — "Vai assustar a tua mãe, Black!"
Sirius tomou a garrafa em sua mão e, relaxando um pouco, soltou a sua risada canina.
"Se eu escrever sobre isso pra Walburga, vou realmente assustar a minha mãe..."
"Deixa os seus pais fora disso... Fico feliz por ter podido falar desse assunto com você..."
"Você pode falar sobre o que quiser comigo, James. Eu sempre vou ser o seu amigo. E sou a porra de um Maroto também. A droga dos nossos nomes tá talhada no freixo do pátio. Só vou sair da sua vida se você me matar..."
James olhou para o amigo com uma expressão divertida, tragando o cigarro e o passando para ele.
"Isso foi assustador pra cacete e você parece um bandido dizendo coisas desse tipo, mas vou aceitar o que falou como algo bom."
Potter engoliu mais um longo gole do whisky e se espreguiçou, se deitando sobre o assoalho. Depois, ele deu um longo bocejo, falando:
"Mais quase um mês inteiro de Detenção... Você irritou um bocado a Professora McGonagall, hein..."
Sirius sorriu, expelindo a fumaça pelo canto dos seus lábios.
"Não é a primeira vez que a nossa diretora pesa a mão. Pensando bem, acho que infernizamos um bocado a vida dos professores dessa Escola..."
James se manteve deitado com as pernas esticadas e erguidas sobre a parede, deslizando os pés. O rapaz de cabelos rebeldes soltou mais um longo bocejo e esfregou os olhos. Sirius o observou, dizendo:
"Ei, Potter, não dorme. Filch deve voltar a qualquer minuto..."
"Ele não vai voltar tão cedo. Ele só vai voltar no horário que a Detenção acabar. Mas, pensando bem, ia ser bom se pudéssemos terminar aquele mapa que começamos e pudéssemos manter um olho no velho Filch em ocasiões como esta..."
Sirius encostou a nuca na parede, fitando o rosto bonito do rapaz de olhos fechados. Cutucando o ombro de James levemente com a ponta do sapato, Black insistiu:
"Potter, não dorme..."
"Não me trata feito criança, Black..." — murmurou o rapaz, com as bochechas vermelhas e os olhos semicerrados — "Eu não vou dormir..."
Os dois rapazes se encararam e Sirius sustentou as pupilas cor de avelã do grifinório e o seu rosto banhado pela luz do luar. Levemente alcoolizado, Black sentia as amarras dentro de si afrouxarem. Sentia aquela fera indômita em seu peito relaxar um pouco.
Sentindo um arrepio percorrer a sua espinha e o seu coração acelerar, Sirius se debruçou sobre James. Black lidava com a aceitação do seu gosto por garotos. E descobria que aquela parte sua enclausurada, uma hora se rebelaria. Ele sabia que talvez algo assim fugisse ao seu controle, ele só não sabia que seria naquele momento e daquela forma.
Tateando a fronte de James e afastando a sua franja, ele sentiu a pele quente do rapaz.
"Você tá bem?"
James assentiu com os seus olhos estreitos e febris.
"E você?"
Sirius não estava bem. Ele estava cansado. E, ainda que ele não conseguisse reconhecer isso claramente, ele precisava de carinho. E de cuidados. Porque ele tinha somente dezesseis anos e estava assustado com toda aquela enxurrada que o afogava pouco a pouco.
Porque se ele reconhecia o seu desejo por garotos só agora, descobrira o amor há quase quatro anos com os seus garotos, que o acolheram quando ele estava endurecido, rejeitado e solitário em um vagão de trem. E as meninas de Hogwarts não podiam compreender isso. Não podiam alcançar toda a solidão que existia nele.
Talvez, os Marotos fossem inconsequentes que gostavam de brincar com coisas perigosas. Talvez, eles não fossem os bons moços mesmo. Mas e daí...? Todas as criaturas precisavam de amor.
Sirius não respondeu à pergunta feita por James se ele estava bem ou não. Mas o rapaz de cabelos compridos aproximou mais o seu rosto e as suas bocas estavam tão próximas que as suas respirações estavam entrecortadas uma pela outra. A cortina escura que era o cabelo de Sirius emparedou Potter.
"Eu quero te beijar, independentemente de você ser o meu amigo..." — declarou Sirius, acariciando ainda a fronte do outro rapaz.
James baixou os seus olhos brevemente, antes de reerguê-los faiscando, confiantes.
"Hum..."
E se Black se jogasse no precipício, sem medo também de fraturar os ossos, sangrar até a última gota e morrer? E se a vida fosse sobre ser tão livre a ponto de matar a voz dos Blacks dentro de si? E se ele precisasse se descosturar da tapeçaria de pureza primeiramente dentro de si mesmo?
Black fitou os braços de James envolver o seu pescoço.
Potter estava bêbado? E se ele saísse correndo, logo em seguida?
Não, James não era do tipo que fugia. Ele era do tipo que rodeava o seu medo até poder enfrentá-lo diretamente.
Retirando os óculos do outro grifinório, Sirius espreitou aquelas retinas banhadas pela luz da lua cheia. Ele hesitou por meio minuto. E os lábios dos dois se encontraram pela segunda vez. Sem feitiços de brumas ao seu redor; sem Lago; sem Remus como testemunha ou os colegas da Escola. Eram apenas os dois.
As bocas dos dois garotos se tocaram a princípio com delicadeza, hesitantes. E replicaram a dança entre as suas línguas. Sirius sentiu uma febre em suas faces e puxou o rosto de James, enterrando os dedos naqueles fios escuros e desarrumados. Debruçado sobre ele, Black sentia que o seu corpo tremia e que os seus joelhos perdiam a força conforme as suas línguas deslizavam uma sobre a outra.
Foi quando James o puxou com mais força que Black percebeu que o rapaz de cabelos rebeldes invertia a posição e o jogava sobre o chão, beijando-o sem mais tanta delicadeza. As suas línguas não pareciam mais retidas pelos lábios e Sirius espreitou o outro grifinório imobilizá-lo os pulsos com as mãos. Poderiam ser dois adversários que brigavam, mas eram dois amigos que se beijavam.
Black, sentindo os seus movimentos lânguidos por causa do whisky, deixou que o desgraçado do Potter lhe beijasse arrancando o seu fôlego, a sua vida. E quando Black inverteu a posição, derrubando James sobre o assoalho novamente, Sirius sentiu o efeito do álcool lhe deixar tão tonto que podia desmaiar. Talvez fosse a bebida. Talvez fosse a excitação que sentia por meio daqueles beijos. Talvez fosse aquele jogo que ele e James travavam para descobrirem quem dominava quem.
Quando Sirius sentiu a sua cabeça pender um pouco e os seus olhos se fecharem, sem hesitar, ele deu um estalado tapa em sua própria face, sendo desperto por si mesmo. Sirius não queria se ausentar naquele instante. Não queria fugir de si mesmo. Não queria adormecer como alguém que busca uma rota de fuga.
E, quando Black teve mais uma vez a sua cabeça puxada com força por Potter, ele pulou no despenhadeiro daqueles olhos avelãs e míopes. Ele mergulhou no precipício daquele corpo masculino e receptivo que o acolhia com uma força um pouco bruta, masculina demais. E Sirius não se importou em despejar a si mesmo em James Potter. No corpo adolescente do seu melhor amigo que sob todas as circunstâncias da vida, amaria.
Ainda que James estivesse sendo movido por uma curiosidade adolescente e passageira, Black precisava daquele toque em que podia existir não pela metade. Não como um corpo vazio. Não como uma criatura sem sombra e com desejos trancafiados. Não como a pária dos Blacks ou o reservatório de seus ódios e frustrações.
Porque Sirius Black precisava, desesperadamente, de amor. Não só recebê-lo, mas dá-lo porque ele jorrava em si e ele não sabia o que fazia com o tanto que sentia. Sirius Black sentia muito. E ele queria dizer a Remus que sentia muito por tê-lo magoado. Sentia muito por estar deixando-o chateado várias vezes naquele quarto ano, sem saber o porquê. Queria poder saber o que estava fazendo de errado para parar de fazer. Gostaria de que o ciclo lunar do rapaz de cabelos castanhos não fosse tão severo por sua causa e ele não estivesse se arranhando ou mordendo naquele exato momento, trancafiado na Casa dos Gritos.
Como o garoto de dezesseis anos que era, Sirius queria que algum adulto dissesse a ele que uma hora tudo ficaria bem. Mas isso não aconteceria. Não havia nenhum adulto por perto, ajudando-o diretamente em seu processo.
Contudo, havia alguém quase da idade de Sirius, sinalizando que, independentemente de as coisas não ficarem bem, teriam sempre um ao outro. E o precipício.
E, talvez, isso fosse o suficiente...
