OS MAROTOS: O LIVRO DAS SOMBRAS
CAPÍTULO 14
ASSASSINOS
'Life is like, like a little game
That we like to play, just for fun, just for fun
Yeah, we take nothing seriously, nothing's wrong, make me run, all night long
Hide and seek is how you play with me
Oh, you're tempting me, just for fun, just for fun
I hear you calling me over city streets, through the trees, mess with me, then you'll leave
Oh, be still my heart, escaping in your cherry-red car
'Cause you rock, rock, rock, rock, rock
You know that I want what you got
You rock, rock, rock, rock, rock
Big bad wolf come on and eat me up, up'
(Big Bad Wolf – Lana Del Rey)
Sirius acordou no meio da manhã seguinte, sentindo uma pequena pressão em seu nariz e na perna anestesiada. O rapaz pestanejou, olhando ao redor e se deparando com James lendo um livro de Transfiguração, balançando-se em seu assento.
Pettigrew, jogado numa outra cadeira, com as mãos apoiadas na nuca, conversava com Remus.
E Remus, por sua vez, sentado na cama ao lado, jogava grãos de feijõezinhos de todos os sabores no ar e tentava ampará-los com a sua boca escancarada.
"Errou, Remus!'— declarou Pettigrew.
"Errei, mas aposto que aquele tinha gosto de cera de ouvido. Este aqui que tô mastigando tem gosto de chocolate!"
"Seu lobo sortudo! Deixa eu tentar agora!"
"Achei que essa caixa fosse pra comermos juntos quando o Black acordasse." — comentou James, virando a página do seu livro, sem desgrudar a vista da leitura.
"Tenho um estoque lá em cima. É só substituir por outra caixa de feijõezinhos!" — falou Remus, passando o doce para Pettigrew.
"Prefiro os bombons explosivos..." — pronunciou-se Sirius enquanto o cortinado da sua cama era aberto e ele se acomodava sobre os travesseiros, semicerrando os olhos ao sentir uma fisgada em sua perna.
"Sirius!" — gritou Remus, pulando da cama vizinha e se pondo de pé ao lado do amigo.
James e Pettigrew também se aproximaram com expressões ansiosas.
"Caraca, Black, tu dormiu feito um cachorro! Tu tá bem?"
"Estou, eu acho... Por que eu tô aqui?"
"Não se lembra do que aconteceu?" — indagou James.
"Lembro de um balaço vindo na minha direção e de tudo escurecendo..."
"Pois é..." — falou Pettigrew — "Se lembra do suficiente. Tu caiu da vassoura de cara no chão, feito uma abóbora podre."
Os rapazes contaram para Sirius o que se sucedera na partida de Quadribol do dia anterior e, movendo a sua cabeça, o rapaz de cabelos compridos olhava para os dois grifinórios com uma expressão atenta. Vez ou outra, o seu olhar se demorava mais em Remus, que se mantinha calado, somente assentindo com a cabeça.
Ao fim da narrativa, Sirius fechou os seus olhos, apertando os lençóis.
"Me diz que você pegou a porra do pomo dourado pra fazer aquele monitor corvinense de merda engolir, Potter..."
Havia uma ferocidade tão profunda nas palavras de Sirius que James hesitou em responder, ajeitando os seus óculos.
"Não. A Rebbecca pegou o pomo dourado. Caguei pro pomo depois que te vi caindo da vassoura. Todo mundo desceu pra te ajudar e a Liljeberg encerrou a partida."
Black repuxou os cabelos escuros para trás e depois, esfregou os olhos.
"Aquele monitor de merda..."
"Deixa pra lá, Black. Já era."
"Corvino maldito... Fodido!"
"Por que, afinal, tu cometeu falta mirando o balaço no batedor do outro time?" — indagou Pettigrew em um tom acusatório.
O olhar de Sirius se demorou novamente em Remus, que trajava um suéter vermelho por cima da blusa de gola e jeans. Feito um pufoso fofo, ele se mantinha em silêncio, movendo os seus olhos inteligentes.
Sirius pigarreou, dando de ombros.
"Ele me irritou..."
"Irritou como?"
"Sei lá. A cara do Carlson me dá nos nervos..."
Pettigrew moveu as mãos com impaciência.
"Então, tu mereceu tomar um balaço de volta, Black, e também tomar no cu! E sobre a derrota, chora nessa cama aí que é lugar quente. Depois que o pessoal da Corvinal souber que tu não morreu, vão começar a conjurar de novo aqueles corvos do inferno em tudo que é canto..."
Ignorando Pettigrew, o olhar de Sirius se deteve na figura pálida ao lado de James. E algumas lembranças confusas o alcançaram. Um sonho talvez.
"Oi!"
Remus mexeu em seus óculos, murmurando:
"Oi!"
Os dois garotos se fitaram por alguns segundos em silêncio e Sirius se sentiu envolver por uma onda de energia quando o rapaz de cabelos castanhos se jogou em seus braços, abraçando-o. Sirius sorriu com algum nervosismo, tocando as costas do rapaz com as suas mãos.
"Eu fiquei tão preocupado, Sirius! Que bom que você tá bem!"
Black afagou o cabelo do outro rapaz, tendo um rubor subindo por suas bochechas e orelhas.
"Achou mesmo que eu ia morrer, caindo de uma vassoura, Remus?"
"Achei. Foi assustador te ver caindo..."
James interveio, dizendo:
"Remus largou tudo pra ficar do seu lado, Black. Ele ficou a noite toda aqui. Já estamos de boa..."
Sirius, sentindo o perfume do sabonete trouxa do outro rapaz, o seu calor, falou com uma voz de fraqueza:
"É... Talvez essa perna quebrada gangrene e eu precise ficar mais alguns dias aqui. Meu nariz também tá doendo muito... Não sei nem como eu tô aguentando falar com vocês, sentindo tanta dor..."
Remus fitou o outro rapaz com uma expressão preocupada.
"Quer que eu chame Madame Pomfrey? Será que você precisa de uma poção para dor...?"
"Deixa pra lá, lobinho. Eu aguento..." — retorquiu Sirius, parecendo um mártir que voltara da guerra com a cabeça enfaixada, se apoiando numa muleta e com as vestes tomadas por medalhas.
Pettigrew revirou os olhos nas órbitas. Sirius, sorrindo para o rapaz de cabelos castanhos, afagou o seu cabelo, o seu rosto, sentindo-se mais feliz do que podia compreender, após longos dias que ansiara por isso.
"Mas você voltou de vez ou vai me ignorar de novo quando quiser um tempo? Vai se afastar de novo se a gente se desentender?"
Remus, segurando com delicadeza a mão de Sirius em seu rosto, respondeu:
"Não vou me afastar de novo! Eu tava muito confuso e só precisava de um tempo. Mas eu tava morrendo de saudade de vocês e tentei falar com vocês no sábado de manhã, mas não encontrei o momento ideal..."
Black fitava o rapaz diante de si, sentindo que a sua mão, o seu braço e o seu corpo todo derretiam diante de Lupin.
"Eu também tava com saudade de você, garoto. Desculpa... por tudo..."
"Não! Eu que tenho que pedir desculpas por ter fugido; por ter misturado você e o James na minha confusão; por ter me afastado e ter deixado vocês tanto tempo sem respostas... A culpa é minha..."
Sirius, observando James e Pettigrew recuarem e se manterem sentados na outra cama, esperando os dois garotos se entenderem, falou:
"Não! Eu te recebi mal quando você tentou se explicar. O erro foi meu! E aquilo que você falou sobre eu e o James estarmos distantes... Você tem toda a razão! Desculpa, Remus. Desculpa de verdade..."
Remus moveu o seu rosto, ajustando os óculos com o dedo indicador.
"Não, olha só... Vocês têm o direito de andarem com as pessoas de quem gostam, ainda que elas não gostem de mim e vice-versa. Têm o direito de procurarem fazer as coisas com as quais se divertem, mesmo que não sejam coisas das quais eu participe. Acho que a nossa amizade pode encontrar um meio termo porque sei que vocês são populares na Escola e todos gostam de vocês..."
Sirius cruzou os braços, observando Remus sentado na beirada da sua cama.
"Não sei se sou popular, Remus. Os outros alunos só começaram a me chamar para festas, reuniões, clubes e comemorações desde que entrei no time de Quadribol, mas não são meus amigos como vocês. São só pessoas com quem passo um tempo junto, falando de coisas triviais..."
Remus mexeu em seus óculos com o tique do qual Sirius sentira saudade.
"Como você não é famoso, Sirius?! Você e o Potter são populares desde o primeiro ano. Vocês têm fã-clubes na Escola e as suas adoradoras até ontem de tarde tavam aqui aguardando notícias suas..."
Black descruzou os seus braços e os cruzou de novo.
"Eu sei, Remus, mas não é como se eu tivesse reunido as pessoas e fundado um fã-clube. Essa merda foi acontecendo e essas pessoas não me conhecem de verdade como vocês, que são meus amigos, conhecem..."
Remus moveu o seu rosto, dizendo:
"É que você e o Potter se encaixam tão bem nisso..."
"Eu não me encaixo, lobinho. Assim como o Potter também não. Eu simplesmente participo..."
Remus olhou por sobre o seu ombro para o rosto de James, que fixava algum ponto no pé da cama em que havia uma bancada com uma bacia niquelada sobre ela. Como um garoto que é surpreendido fazendo algo que não queria que soubessem e desconversasse. E a maturidade de Remus que, na adolescência, era conquistada em lampejos permitiu que ele alcançasse algo.
Permitiu que Lupin visse naqueles rostos suas carências como cascas de ferida arrancadas e ardendo. Sirius não era uma pessoa que se abria facilmente, mas era suscetível à atenção externa porque não possuíra atenção suficiente por doze anos. O trato dos Blacks era áspero e o encantamento em Hogwarts podia ser macio para quem caía nas graças de uma dança social que sempre existiria em microssociedades escolares, fossem bruxas ou trouxas.
Com James, a dinâmica era mais delicada, mais complexa. Porque ele era amado por seus pais e avós. Ele tinha a membrana dos Potters afinal. Aparentemente, se abria fácil. Era sociável. Agradável. Suscetível à admiração externa. Mas tinha medos abissais, os quais confidenciava só quando estava vulnerável e sangrando. James era um garoto enigmático com uma substância oculta. Reativo e rebelde como Black, mas engessado em algo que viera com ele de fora de Hogwarts. Querendo chamar a atenção com bom comportamento ou indisciplina em um ajuste tácito. James era uma curva nas expectativas dos Potters. Sua mãe engravidara aos catorze anos de um primo um ano mais velho enquanto estavam em Hogwarts. Dois Potters promissores com previsões de ocuparem cargos no Ministério da Magia refreados por uma criança. Um escândalo nos anos 60.
Por muito tempo, os Potters não souberam o que fariam com aquele mau cálculo.
Remus se lembrava ainda de quando no primeiro ano, os três amigos viram James ter a sua primeira crise de paralisia do sono em Hogwarts e, após voltar daquele estado, James murmurou, respirando com dificuldade:
"Isso vai acontecer algumas vezes. Não se assustem. Na maioria das vezes, eu volto sozinho. É como cair no vazio, mas quando caio nele, sempre acordo. Sempre."
Remus, na enfermaria, mexeu em seus óculos, falando com a sinceridade conquistada por estar há quase quatro anos próximo de Black e de Potter.
"Não se sentem sozinhos no meio dessas pessoas?"
"Não. Mas me sinto sozinho quando o meu amigo de quase quatro anos coloca a nossa amizade em hiato. Quando faz isso com naturalidade. Você não tem medo de ficar sozinho, Remus, mas eu tenho medo de quando você parece querer ir embora..."
O rapaz de cabelos castanhos moveu o seu olhar cor de âmbar, assentindo.
"De fato. Não tenho medo da solidão. Mas me sentir assim, estando com vocês começou a me assustar também. Podemos nos perdoar e tentar de novo?"
Sirius fitou o rapaz diante de si como se o admirasse em silêncio. Seus dedos se esticaram e colocaram uma mecha do cabelo de Remus atrás da orelha. Os olhos de Black se detiveram na linha dos lábios umedecidos do rapaz e ele foi tomado pela sensação daquela boca. Do hálito doce. Da língua e do canino ligeiramente torto. Da pressão suave dos dentes. Era um déjà vu do beijo no Lago? De um sonho? De uma outra vida? Porque ele se recordava também do calor daquele corpo menor contra o seu e do desejo o açoitando em meio à languidez.
"Eu sempre vou insistir com você, garoto. Você não vai se ver livre de mim fácil..."
"Então, insista melhor em meio a toda essa popularidade. Não vou ficar batendo de frente com a Escola inteira pra conseguir sua atenção." — e, com um gesto de cabeça, indicou James— "Nem dele. Sabem onde me encontrar."
Sirius ergueu as sobrancelhas, parecendo ultrajado.
"Não vou ficar vindo à enfermaria que nem um idiota pra te achar também enquanto você se esconde no no... Onde você se escondeu afinal?"
"Ali. No escritório de Madame Pomfrey "— disse Remus, apontando a porta entreaberta de onde podia se ver a enfermeira lendo uma revista, recostada em uma cadeira.
"...No escritório de Madame Pomfrey! Minha vontade era ir te buscar lá na Casa dos Gritos..." — retrucou Sirius, baixando consideravelmente o tom de voz, ainda que estivessem a sós.
"Não ia sobrar nada de você. Nem um fio de cabelo. Mas eu não vou me esconder mais na enfermaria... Eu prometo!"
"Feito!"
Os dois garotos se encararam por um tempo longo e morderam os lábios porque, subitamente, todo aquele afastamento parecia uma grande bobagem e uma risada começava a lhes subir pela garganta, feito uma lufada.
"Alá! Dois otários!" — comentou Pettigrew, se servindo de feijõezinhos de todos os sabores.
"Três se contar com você!" — falou Sirius.
"Quatro, se contar com esse aqui!" — retrucou Pettigrew, apontando o polegar para o lado e se detendo um tempo, olhando para James.
Remus sorriu, fitando os amigos. Observando de soslaio Sirius, ele se recordou da noite passada em que beijara o rapaz enquanto ele adormecia, com um estranho senso de irrealidade.
O rapaz de cabelos compridos não parecia se recordar do acontecido e nem deveria. Remus sabia que não era certo beijá-lo enquanto ele estava dormindo. Era muito errado e incorreto. Era sórdido e mesquinho. Era um limite que não devia transpor.
Mas quando Remus tentava esmiuçar algum vestígio de culpa interna, esbarrava em algo escuro e nebuloso em si mesmo. Uma sensação que, quando se aproximava da lua cheia, sussurrava: "Humanos, seus deveres e questionamentos não têm relevância na alcateia...". Às vezes, quando o rapaz inspecionava atitudes suas, descobria que algumas das morais cativadas se flexibilizavam e esticavam e isso o surpreendia. Remus havia tirado vantagem de Sirius não como o Lobo, mas como ele mesmo. Por quê? Ele carregava mesmo a escuridão lupina ou era uma sombra humana?
Pettigrew ainda fitava James e inclinava um pouco a cabeça para o lado com uma atenção especial.
"Tá com um baita chupão hein, Potter! Quem foi?"
Rapidamente, James puxou a gola do seu casaco para cima, parecendo apreensivo.
"Não foi nada..."
Remus se voltou para o amigo a tempo de o ver cruzar os braços com uma expressão tensa.
"Como você arrumou tempo pra se pegar com alguém entre Detenção, treino de Quadribol, aulas e a partida de ontem? Cuidado pra essa garota não levar embora algum pedaço que precise depois..." — falou Pettigrew com um sorriso malicioso.
O olhar de James encontrou o de Sirius, mas, sutilmente, o rapaz de cabelos compridos sacudiu o rosto. Black acabara de acordar e aquele não era o momento para falarem sobre aquilo com os seus amigos.
"Outra hora eu conto..." — disfarçou James, erguendo um pouco mais a gola da sua roupa.
Remus voltou o seu rosto para Sirius e o olhar de Black se deteve naquela boca úmida diante de si e se perdeu no sorriso de Remus com o canino torto.
Sirius gostava muito do rosto de Remus. Daquela simetria delicada de tez muito pálida em um tom leitoso e de cabelos castanhos caindo em uma franja bem aparada. Gostava dos olhos cor de âmbar do rapaz e de sua boca em um tom intensamente rosado. Ele se lembrava ainda de quando vira Remus no Expresso no primeiro ano e pensara: "Que garoto bonitinho... Parece um pufoso".
Então, Sirius se lembrou de Remus em alguma instância lhe pedindo: "Me beija, Sirius...". E ele querendo beijá-lo, sem que se afastasse. Sendo somente um garoto aceitável.
Black havia definitivamente sonhado.
"O que foi?" — indagou Remus, capturando o olhar do amigo sobre si.
"Nada. Tô feliz por termos voltado a nos falar..." — respondeu Sirius, bagunçando a franja de Lupin e trocando um olhar com James.
(cut)
Nos dias seguintes, Sirius permaneceu na ala hospitalar, recuperando-se da queda e da sua perna fraturada. O seu nariz já voltara para o tamanho e formato normais, após uma série de medicações e troca de curativos administradas por Madame Pomfrey.
Agora, fazia quatro dias que Black se encontrava naquela enfermaria. Entediado e sem poder se levantar, o garoto fitava com irritação a sua perna engessada e elevada. Mais três dias e ele já poderia voltar a andar com a ajuda de poções para ossos fraturados.
Sirius sentia um mau-humor direcionado ao mirar os rabiscos feitos por seus amigos no gesso. Passado o susto inicial da queda e ele estando completamente fora de perigo, os colegas reservavam um pouco daquele humor ácido no intuito de dissolver tensões.
O time da Grifinória lhe escrevera inúmeros incentivos de melhora dentro do desenho de um enorme balaço. James desenhara uma paisagem simplificada e sem muitos detalhes artísticos, cujo sol era um balaço. Pettigrew lhe desejara no futuro, milhares de balaços no meio da sua cara sem vergonha. E Remus, bom, Remus escreveu com a sua caligrafia inclinada um dos códigos dos Marotos que os quatro amigos instauraram quando estavam no primeiro ano ainda.
Diante de todas as adversidades, nunca tombar, cair ou rastejar
Somos leões e não serpentes
E depois, acrescentou:
Mas você quase me fez desmaiar e cair de susto, Black. Fica bem logo. RJL 😊
Pufoso fofo, pensou Black.
Sirius também tinha sobre as três mesas de cabeceira da ala hospitalar, os presentes que as suas fãs lhe trouxeram, apesar de serem proibidas por Madame Pomfrey de entrarem e tumultuarem a enfermaria. Duas das meninas que cortejavam Sirius entraram carregando embrulhos e o rapaz tentou ser breve, agradecendo a visita e dizendo que precisava descansar ao receber os presentes por um simples gesto de educação.
Pettigrew desfrutava das guloseimas presenteadas para Sirius mais do que ele mesmo, que não sentia muito apetite, estando num leito de hospital e sem muita coisa para fazer.
Sirius também recebera uma carta de Londres naqueles dias. Com alguma tensão, ele vira a coruja de penas escuras empoleirada no parapeito da janela e, um pouco sem jeito, sem querer lidar com a situação e sem querer protelá-la para uma expectativa ansiosa, o rapaz pediu que James abrisse a correspondência como se algum animal peçonhento pudesse pular de dentro dela.
Quebrando o selo da carta e rasgando o envelope, James sorriu e lhe passou o pergaminho ao conferir o conteúdo da carta, dizendo:
"É do seu irmão..."
Sirius leu, então, a caligrafia infantil de Regulus que lhe dizia que os Blacks foram informados sobre o seu acidente no Quadribol e que ele desejava que o irmão ficasse bem logo. Que mal podia esperar para ir para Hogwarts em setembro e que fora recentemente com o elfo doméstico Kreacher ao Beco Diagonal.
No interior da carta, havia uma foto de Regulus ao lado de um uniforme de Hogwarts exposto em uma vitrine da loja Madame Malkin, sorrindo e acenando. Ele estava sozinho e a foto, possivelmente, fora batida por Kreacher.
Parecia inacreditável que Regulus fosse ingressar em Hogwarts no próximo ano e que o menino completaria onze anos. Para Sirius, o irmão ainda era uma criança com bons instintos e gestos espontâneos. Talvez, Regulus pudesse se sentar com o Chapéu Seletor em sua cabeça no início do próximo ano letivo e ser indicado para a Casa de Gryffindor. Seria maravilhoso Sirius poder rir ao lado de Regulus, vivenciando os trotes engraçados e inofensivos do primeiro ano. Fazendo com ele a dança do frango, fuinha, gatinho e minhoca.
Mas, ao mesmo tempo, o estômago de Black se contraía quando ele refletia sobre o quão Orion e Walburga poderiam ser duros com o filho mais novo se ele também permanecesse na curva, na contramão, instaurando subversão, assim como Sirius quando fora mandado para a Grifinória ao invés da Sonserina, como era esperado.
Sorrindo, Sirius colocou a fotografia de Regulus de pé sobre a cômoda ao lado de seu leito e viu Remus observar a foto de perto, dizendo com um sorriso:
"Vocês e o Regulus se parecem..."
Sirius estava sozinho na enfermaria naquele fim de tarde. As chuvas do fim de semana haviam cessado, mas um tempo nublado ainda se sustentava com um vento úmido e cortante. Algumas vozes se estendiam nos corredores e gramados dos alunos que eram dispensados da sua última aula do dia e davam um passeio lá fora antes do jantar ou retornavam para a Sala Comunal de suas Casas.
Entediado, Sirius tomou uma pena de dentro da gaveta de sua mesa de cabeceira e, após mergulhá-la no tinteiro, começou também a fazer rabiscos sobre o gesso de um modo distraído. A atenção do garoto de cabelos negros foi roubada pela entrada de Remus na enfermaria, que chegava com uma pesada mochila sobre os ombros e inúmeros livros em seus braços. Sua expressão era abatida e havia manchas escuras sob os seus olhos.
"Hey, Sirius..."
"Hey, Remus. Você parece cansado..."
"Nem me fale! Tivemos provas de Herbologia, História da Magia e um trabalho de Transfiguração hoje. Os professores tão cientes de que você tá na enfermaria e disseram que basta você passar na sala deles e agendar a reposição quando estiver totalmente recuperado... "
"Preferiria as provas a ficar preso nesta cama!"
"Pettigrew adoraria trocar de lugar com você. Recebemos os resultados do exame de Poções hoje. Peguei a sua prova. Nove tá bom pra você?"— disse Remus, tirando um pergaminho de dentro de uma pasta e passando-o para Black.
"Aceitável... Havia esquecido mesmo de mencionar as escamas de kappa no preparo da Poção Apimentada. Mas, pelo menos, a minha poção de prevenção de resfriados funcionou para que eu não ficasse doente depois daquela tempestade do dia do jogo de Quadribol. Funcionou também com o Potter... Aliás, cadê o James e o Pettigrew?"
Remus retirou um tablete de chocolate de dentro da sua mochila, rasgando com cuidado a embalagem dourada e quebrando dois quadrados brilhosos e com o relevo de Dedosdemel, antes de entregá-lo a Sirius.
"Eles pediram para eu vir na frente enquanto tiravam uma dúvida com a Professora McGonagall. Pensando bem, foi estranho porque o James insistiu muito para que eu fosse embora..." — disse Remus, movendo os seus olhos com alguma desconfiança.
Sirius assentiu, mordendo o chocolate oferecido por Remus e deduzindo muito bem porque Potter e Pettigrew se livraram dele. Era o que eles costumavam fazer quando tiravam uma dúvida ou outra com a Professora McGonagall sobre algum dado mais hermético registrado nos livros de Animagus que pegavam emprestado na biblioteca.
Remus não estava ainda muito à vontade com aquela ideia de os amigos se transformarem em Animagus e passarem a lua cheia ao seu lado, amiúde, tentando dissuadi-los dessa empreitada.
James, por outro lado, sempre sublinhava parágrafos inteiros dos exemplares que detinha e os levava à Professora McGonagall como um aluno aplicado que consultava uma especialista naquela arte avançada e impraticável para um adolescente de quinze anos. E apesar da desconfiança inicial da diretora da Grifinória (ela era sempre desconfiada com Black e com Potter), agora, ela parecia se animar com o interesse dos alunos enquanto James rodopiava entre os seus dedos uma varinha excelente para a arte de Transfiguração.
Sirius se manteve em silêncio, mastigando o chocolate e sentindo aquele doce trazer uma descarga de sabores para o seu paladar. Remus arredou a cadeira do pé da cama e se sentou próximo a Sirius.
"E você? Como está? Sente-se melhor, Black?"— indagou o rapaz de cabelos castanhos, acomodando-se em seu assento.
"Estaria bem se pudesse sair daqui..."
"Nem pense em tentar fazer isso, Sirius. Espere só mais uns dias e já estará jogando Quadribol novamente..."
Sirius permaneceu olhando o amigo por um longo momento. Novamente, aquela sensação estranha de um sonho ou uma lembrança o assolou, como havia o assolado no dia anterior enquanto jogavam xadrez e o cavalo de Remus encurralava a rainha de Sirius, fazendo-a recuar sem muitas opções disponíveis.
"Remus, gostaria de te perguntar algo..."— começou Sirius, escolhendo as palavras.
"O que, Sirius?"
"Você e o desgraçado do Michael Carlson se tornaram amigos afinal?"
Ouvindo o nome do monitor da Corvinal, Remus, subitamente, pareceu sentir-se pouco à vontade. Naquele dia mesmo, quando ele voltava das estufas, o corvino do sexto ano, conversando com Joshua Pride, virou-se para ele e lhe dedicou um sincero sorriso enquanto chegava ao Salão Principal.
"Não... Por que está me perguntando isso, Sirius?"
"Eu vi vocês dois conversando naquele dia na mesa da Grifinória e pensei que estivessem próximos..."
Remus deu de ombros, tomado por uma profunda hesitação. Sentia a intuição de que revelar para o amigo que Carlson há apenas algumas horas atrás o havia perseguido com olhares ainda mais insistentes pelos corredores, chegando ao ponto de virar o pescoço enquanto ele caminhava, não seria uma boa ideia. Durante a semana, tudo o que Sirius fizera fora maldizer o garoto da Corvinal com insultos e ameaças. Remus não sentia vontade de acirrar o ódio do amigo, revelando-lhe o modo como o monitor parecia simpatizar com ele.
"Não estamos próximos. Só nos falamos algumas vezes..."
Sirius estudava em silêncio a expressão do outro garoto, que parecia retomar a palavra mais com o intuito de pôr fim à conversa do que por qualquer outro motivo.
"Era só isso, Sirius?"
"Não, tem outra coisa também..."
"E o que é?"
"Logo após o acidente do jogo contra a Corvinal, você permaneceu aqui de madrugada, enquanto eu estava inconsciente, não é mesmo? Quero dizer, só você..."
Remus, subitamente, sentia que ele e o amigo caminhavam por um terreno pantanoso.
"Passei a madrugada aqui na enfermaria, Sirius. Mas, o que...?"
"Eu sonhei com você naquela noite..."
Remus se forçava a permanecer calmo. Sabia bem onde Sirius queria chegar. Seu rosto se mantinha impassível e o seu olhar era sonso. Lupin não tinha como voltar atrás em sua falta de caráter. Conseguiria negar se Sirius o inquirisse à queima roupa? Negaria?
Não, Black não poderia se lembrar... Remus sentia que morreria afogado naquele pântano, caso o amigo falasse o que tanto temia ouvir.
"Que tipo de sonho...?"
Os olhos de Sirius quase atravessavam Remus. Este, desconfortável, mexia-se em sua cadeira, movendo os pés.
"Não estou bem certo..."
Remus tinha as suas retinas circundadas pela cor de âmbar fitando diretamente Black.
O garoto de cabelos castanhos pestanejava com uma calma atordoante, diante da qual Sirius hesitava. Por fim, foi com um olhar estranho que Sirius voltou sua atenção novamente para a perna engessada.
"De qualquer modo, foi apenas um sonho, Remus... Esquece..."
O garoto de cabelos castanhos, enquanto tentava ultrapassar a prudência e perguntar ao amigo se este gostara suficientemente daquele sonho, convencia-se também que isto levantaria suspeitas. Contudo, sua curiosidade a respeito dos sentimentos de Sirius fora maior...
O que Remus estava fazendo? Queria se expor de alguma forma? Ser descoberto? Aquele beijo não fora o seu ponto final naquela história?
"Você... não quer... conversar sobre esse sonho, Sirius?"
Black ia perceber...
Sirius pareceu por um momento considerar a ideia. No entanto, sua resposta foi um lacônico "não" enquanto estreitava os seus olhos cinzentos.
Um pesado silêncio se instaurou no ambiente antes que Sirius, agora, também tomado por algum nervosismo, voltasse a falar.
"Tem uma terceira coisa, Remus. Não sei se esse é o momento adequado. Mas tem uma coisa que quero te contar... Uma coisa em relação às Detenções... Desde aquele dia no Lago..."
Remus se sentia um pouco perdido devido às súbitas mudanças de tópico naquela conversa.
"Está tendo problemas com as Detenções? James tem ido te ajudar, não é?"
Sirius parecia ter um ligeiro rubor em suas bochechas e apertava o seu lençol. Fechando os olhos por alguns segundos, ele parecia tomar coragem para proferir o que tinha para dizer.
Remus percebia ligeiramente nas feições de Sirius, a gravidade do assunto. Porém, o conteúdo verdadeiro daquela conversa, o garoto de cabelos castanhos não viria a conhecer naquele momento. Pettigrew, seguindo Potter, entrava agora na enfermaria com uma aparência também exausta e atirando, sem cuidado, a sua mochila sobre um leito vazio.
"Hey, Sirius"— murmurou Peter, sorrindo para o amigo — "Como está?"
"Bem..." — respondeu Sirius com alguma demora, parecendo aturdido e voltando a se fechar ao trocar um olhar breve com Remus.
Remus capturava no olhar de Sirius a certeza de que este, na verdade, tinha algo importante para dizer. Algo que desejava dizê-lo a sós. Remus lembraria de perguntá-lo do que se tratava o assunto quando tivesse uma oportunidade. Registrou essa informação em si mesmo.
Os quatro garotos permaneceram juntos na enfermaria, matando o tempo até a hora do jantar. James e Sirius jogavam xadrez bruxo enquanto Remus e Pettigrew treinavam pequenos feitiços com as suas varinhas. Feitiços que, possivelmente, cairiam na prova do professor Flitwick do dia seguinte.
Sirius levantou os olhos da sua torre negra cercada pelos bispos de James sobre o tabuleiro quando um grupo de alunos chegou à enfermaria. Eram sete. Sete corvos. O time da Corvinal em peso. Os corvos de Ravenclaw com vestes pretas em detalhes azul, em uma linha reta como se fossem alçar voo. Um bando de pássaros negros adentrando a ala hospitalar em direção a Sirius. Se crocitassem não seria estranho.
Rebbeca Liljeberg, Anna Boyd, Paul Boot, Andrew Sullivan, Mick King e Ronald Egwu eram conduzidos por seu Capitão, Michael Carlson, que trazia um buquê de flores em suas mãos.
Michael Carlson, com os seus cabelos escuros e olhos vívidos e azuis, era uma visão ainda mais incômoda do que anteriormente. Era um ponto desagradável aos olhos de Sirius. Porque os dois rapazes sabiam sobre a tensão que houvera nos céus que puxara Sirius para a terra.
"Boa noite, Black!"— murmurou o garoto corvinense, instintivamente, não conseguindo deixar de desviar a sua atenção para Remus, que se aproximava ao lado de Pettigrew do leito do amigo.
"O que você quer aqui, Carlson?"— redarguiu Sirius com maus modos— "Esfregar a sua vitória na cara dos leões?"
Carlson hesitou, espreitando o rosto obstinado diante de si. Depois, pigarreou, limpando a garganta para entoar o seu discurso.
"Nós, do time da Corvinal, viemos prestar o nosso pedido de desculpas pelo ocorrido no último jogo, Black. Não era a minha intenção que um acidente tão lamentável ocorresse. Queremos manifestar o nosso desejo de melhoras e dizer que nós, corvinos, não acreditamos em trapaças e violência. Acreditamos na inteligência e no fair play..."
Sirius capturou o olhar de Michael em Remus pela terceira vez, deslizando como os corvos sobre a mesa da Grifinória no dia do jogo. Incapazes de se refrearem perante o banquete de carne fresca e frutas maduras.
"Acha que as suas palavras falsas vão me fazer andar, Carlson? Posso aceitar as palavras da Liljeberg e dos outros, mas a sua, não. Quando eu melhorar, prepare-se! Porque quem vai derrubá-lo da vassoura, sou eu!"— vociferou Sirius, estreitando os olhos e acrescentando com alguma dor— "Eu sei o que você quer..."
Os alunos da Corvinal olharam Sirius um pouco aturdidos. Carlson, no entanto, assentiu, perguntando:
"Quer o mesmo que eu? É por isso que se ressente?"
Sirius crispou os lábios. O ar estava pesado e os jogadores do time de Quadribol da Corvinal contraíam as suas sobrancelhas, introjetando a ofensa ao seu Capitão e monitor. James segurava instintivamente o ombro de Sirius, empurrando-o para trás quando o rapaz de cabelos compridos se moveu um pouco, ignorando a sua perna machucada.
"Não ouse, Carlson!" — disse Sirius com os dentes cerrados, tendo as suas narinas um pouco dilatadas enquanto respirava fogo.
Rebbecca Liljeberg, num gesto semelhante ao de James, puxou o braço do primo, fazendo-o dar dois passos para trás e colocando a mão espalmada em seu peito. Depois, voltou-se para Sirius, dizendo:
"Bem, Black, você cometeu uma falta grave atirando um balaço contra o batedor rival só para machucá-lo. Vimos os registros de Madame Hooch e você e Mike estavam discutindo sobre algo no meio da partida. Acho que não é da conta de ninguém as picuinhas de vocês dois! Mas Mike não queria atingi-lo, mesmo que você quisesse derrubá-lo..."— pronunciou-se Rebecca, trazendo alguma racionalidade para o ambiente— "Mas ele te atingiu e te derrubou. Ele errou! E por isso nós estamos aqui!"
James observou a garota que um dia fora a sua namorada. Ela tinha o biotipo do primo. Cabelos escuros e olhos azuis, mas esses últimos de um tom bem mais pálido, quase triste. Tão confiante e tão correta. Não havia nada em Rebbecca que ele não gostasse na época em que estiveram juntos. E isso fora a primeira rachadura em seu relacionamento adolescente, atordoante e juvenil.
Black segurou a mão de James em seu ombro e o gesto sutil não passou desapercebido para Remus, que franziu o cenho.
O rapaz de cabelos compridos respirou fundo, tentando acalmar o seu próprio humor. O que nunca era simples. Por fim, apertou os olhos, dizendo:
"Aceito as suas desculpas, Rebbecca e as do time. Mas as do seu primo, não totalmente! Me fala uma coisa, Carlson, achava mesmo que eu engoliria o seu pedido de desculpas, depois de toda aquela animosidade? As nossas Casas sempre alimentaram uma competição saudável e não quero botar isso a perder, mas não vou me forçar a lidar com você. Reconheço a minha falta em campo, mas acho que a vitória justa de vocês elimina as dívidas pendentes. Agora saia, Carlson! Não quero olhar pra você... "
Sirius declarava as últimas frases com um tom de arrogância que os seus amigos já haviam visto algumas vezes. Com o timbre que os fazia estremecer porque eles sabiam de onde ele partia. Com a letalidade dos Blacks, os grifinórios já haviam ouvido aquelas palavras duras anteriormente no King's Cross quando Orion Black foi buscar Sirius e dispensara o elfo doméstico que o atendia com aquele movimento de cabeça. Com o olhar indiferente. Árido.
Remus e James não gostavam quando Sirius era tão Black. Quando ele parecia um galho daquela árvore podre. Quando a genética parecia esperar quieta para lhes pregar uma peça.
Carlson franziu o cenho. O rapaz detectou o tom dos puristas da alta sociedade inglesa nas palavras do grifinório como um mau cheiro no ambiente.
"Com quem pensa que tá falando, Black?"
Sirius alcançou a varinha na cabeceira da sua cama, dizendo:
"Não me obrigue a expulsá-lo..."
"O que?!"
Remus olhava de Sirius para Michael. James forçava com mais intensidade Sirius a se manter sentado enquanto Rebbecca puxava o primo.
Foi Madame Pomfrey, que, deixando a sala contígua, ouvindo as vozes se alterarem, surgiu. Com uma expressão consternada, a bruxa olhava a situação diante de si parecendo aborrecida pelo distúrbio que se criava na ala hospitalar.
"Para, Sirius! Baixa essa varinha! Carlson, é melhor vocês se retirarem... Vocês dois estão muito nervosos..."— interveio Remus pela primeira vez, observando o cenário tenso diante de si e trocando um olhar tácito com Madame Pomfrey.
Carlson pareceu por um momento ter novamente toda a sua concentração em Remus. Aquele ponto pálido e de olhos cor de âmbar entre ele e Sirius Black. A boca de lábios úmidos. A franja alinhada.
"Venham, eu vou acompanhar vocês até a porta! Baixa a varinha, Sirius! Vamos, pessoal. É melhor saírem..."
A suavidade de Remus trazia uma nova luz para aquela esfera dramática e os jogadores de Quadribol, sem reação, acataram ao pedido do representante de turma do quarto ano. Fitando Sirius ao remoerem as suas tentativas infrutíferas de estabelecerem algum diálogo, um a um dos corvinos foram deixando a ala hospitalar, após se desculparem com Madame Pomfrey.
Remus acompanhou os alunos corvinenses até a porta, olhando para trás e certificando-se de que Black não tentaria nada contra o monitor da outra Casa. Se Sirius recebesse outra Detenção, ficaria preso naquelas penalidades infinitas até o encerramento do ano letivo. Se Michael fosse alvejado, uma guerra explodiria na ala hospitalar entre corvos e leões.
Black fixou o seu olhar em Remus, acompanhando os alunos e os viu desaparecerem na porta da enfermaria.
Ao chegarem do lado de fora, o garoto de cabelos castanhos, temendo ainda algo pior, fechou a porta atrás de si.
"Desculpem-nos. Sirius ainda está nervoso e está tomando medicações para dores muito fortes..."
Rebecca ergueu uma sobrancelha.
"Ele sempre é esquentadinho assim?"
Remus endireitou os seus óculos, considerando a questão com sinceridade.
"Não, ele é pior. Mas é um grande amigo e um grande ser humano quando não está tão aborrecido..."
"Difícil de acreditar..." — retrucou Ronald Egwu, com um olhar de descrença— "Vocês da Grifinória são todos explosivos assim?"
"Somos." — assumiu Remus com honestidade, pensando em si mesmo com mau-humor.
"Bom, Lupin, desculpe qualquer transtorno. Não era a nossa intenção. Até mais..." — declarou Rebbecca Liljeberg, a apanhadora do time, despedindo-se do rapaz e seguindo adiante.
Remus observou o time corvinense atravessar o corredor que levava às escadas. Somente uma pessoa não seguiu o grupo, remanchando ainda com aquele buquê de flores magicamente azuis em seus braços.
Michael aproximou-se de Remus com hesitação, ao mesmo tempo que os seus amigos pareciam perceber que ele se detinha ali com uma intenção clara e não interferiram. Seu olhar era inseguro e a sua mão estava dentro de um dos bolsos das vestes.
"Que bom que você estava lá para evitar que o pior acontecesse, Remus. Desculpe por termos criado essa confusão..."
"Tá tudo bem, Carlson. Desculpa o Sirius. Sabe, ele não é assim o tempo todo..."
"Por que anda com ele e com o Potter? Vocês são completamente diferentes..."
"Não, não somos. Se me conhecesse bem, saberia que no fundo somos parecidos naquilo que importa..."
Michael se aproximou mais um pouco de Remus. Seu coração estava acelerado. Remus sentiu o espaço diante de si ser ocupado, experimentando alguma tensão.
"E eu posso te conhecer melhor então, Remus?"
Lupin mirava o outro garoto, pressentindo já o que estaria por vir com uma sensação de irrealidade. Porque flertar de longe e sem subterfúgios era uma experiência nova para ele, mas se sentir sendo olhado daquele jeito o atirava em uma postura quase combativa. Foi com sinceridade e não com a sonsidade ou o desnorteamento habitual que Remus declarou:
"Você não tira os olhos de mim... É isso o que quer? Me conhecer melhor?"
Tudo era muito novo.
Carlson espreitou o rapaz diante de si, olhando-o de cima a baixo. Suas bochechas estavam muito vermelhas. Não esperava aquela reação.
"É... Quero sim... Se você deixar... Porque eu acho você... um garoto muito legal..."
Remus sorriu com timidez enquanto baixava os olhos. Endireitou os óculos sobre a vista e ergueu novamente as suas pupilas intensas.
"Obrigado, Carlson. Você também é bem legal... Só que eu sou gay, como todos estão comentando. Não estou acostumado com o que tá acontecendo aqui. Estou lendo os sinais corretamente?"
"Está... Definitivamente, está!"
Remus também começava a sentir o seu coração bater mais rápido. Era estranho como ele ocupava o seu espaço naquele cortejo, surpreendendo até a si mesmo.
"...E eu também acho que... Acho que realmente... tô interessado em você..." — disse Michael.
Remus assentiu, tentado não se intimidar mais pelos olhos azuis de Carlson. Um sorriso nervoso se movia ao lado de sua boca.
"Ah, ok... Interessante, mas um pouco surpreendente também."
"Por quê?"
"Porque eu não sou um atleta; nem popular e não acredito nessa coisa de charme irresistível súbito de alguém que passa desapercebido na maioria das vezes. Por que tá interessado em mim afinal de contas, depois da Escola todo ter falado sobre mim?"
Carlson observou o rapaz diante de si por alguns segundos.
"Nossa, você joga direto! Não esperava por isso..."
Remus também não estava acostumado a rapazes tentando se aproximar dele. Ele explorava as intenções com alguma desconfiança. Como um lobo farejando uma oferenda.
"Você e o Black não se topam e eu sou um dos melhores amigos dele. É pra provocar o Sirius que tá fazendo isso?"
Michael ergueu as sobrancelhas e viu o rapaz menor levantar o seu rosto com uma expressão inteligente. As suas veias azuladas no pescoço e o corte agora quase imperceptível nos lábios eram visíveis sob a luz bruxuleante dos candeeiros da Escola que foram acesos.
Aquele era o garoto que numa manhã em Hogwarts, fora espontâneo durante o café da manhã com Carlson. Depois, sugeriu chamá-lo para dançar na festa dos intercambistas, estando alcoolizado. Em seguida, fizera-lhe um comentário alusivamente sexual no Lago para, depois, ser totalmente desatento e inseguro quando Carlson o tentara abordar antes do jogo. Por fim, ele diluíra tensões na enfermaria, impedindo que houvesse um conflito. Não, na verdade, Remus era uma criatura imprevisível por trás daquele disfarce de cdf desapercebido e toda uma força parecia se reunir em alguma ferocidade por trás das retinas circundadas de amarelo como se houvesse um núcleo ali. Bem no centro delas.
Carlson se sentiu novamente muito atraído por Remus e isso o intrigou porque ele já namorara antes. Já flertara antes. Já até trepara antes com afeto e sem afeto. Mas havia algo naquele garoto que o arredava do chão em sua direção com um magnetismo sombrio.
"Isso não tem nada a ver com o Black! Tem a ver com você! Você tá me deixando doido, Remus..." — disse o rapaz, esticando o seu braço e fechando o grifinório na parede— "É por isso que tô tentando chegar em você..."
Uma onda púrpura salpicou o rosto pálido de Remus de uma só vez. Nunca ninguém falara assim com ele. Observando o braço do corvino e o seu rosto, ele declarou:
"Certo... Eu acho?"
"Você me dá alguns sinais e não sei como lidar com você, Remus. Não sei o que está tentando me dizer..."
Lupin sentiu o rosto do rapaz próximo.
"Eu não sei o que você quer de mim. Se eu souber, posso rever os meus sinais..."
E os do Lobo também se ele deixasse, pensou o rapaz de cabelos castanhos.
"Quer sair comigo, Remus? Posso levá-lo ao próximo passeio a Hogsmeade?"
Como?!
A cabeça de Remus girava muito rápido. Subitamente, ele não sabia o que responder. Carlson era um veterano muito popular, que batia as metas de uma elite de Hogwarts: monitor, jogador de Quadribol e Capitão do time da Sua Casa. Sangue-puro de uma família sueca de bruxos, pelo pouco que o grifinório se informara em um curto espaço de tempo. Mas ele estava lá, emparedando-o e o chamando para sair. Na verdade, Remus refletira sobre os olhares daquela última semana. Sendo verdadeiro consigo mesmo e conduzido pela dedução de Pettigrew, ele achara que Carlson talvez quisesse dar uns pegas nele. Matar a vontade. Passar o tempo. Mas o convite era inesperado.
"Hogsmeade com você...?"
Um desânimo pareceu atravessar os olhos de Michael.
"Você não quer...?"
"Não, não é isso! É que tudo foi tão de repente... Se eu for com você a Hogsmeade, a Escola toda vai saber que nós..."
Carlson sorriu com um olhar de compreensão.
"Eu não tento me esconder. Desde os treze anos, os meus amigos e os meus pais sabem que eu sou gay, Remus. Na Suécia, as tradições bruxas são mais fortes do que no Reino Unido e a homossexualidade não é um tabu. Se preocupa tanto assim com o que as pessoas pensam sobre você?"
Remus sentia-se um idiota por não possuir palavras adequadas. Não sabia como agir. No fim, disse:
"Meus pais não sabem sobre mim. Só a minha avó trouxa. Os meus amigos, agora, sabem...Mas também é que... Nunca ninguém me convidou pra sair..."
Michael finalmente tirara a mão da parede e, com delicadeza, colocara a mão sobre o ombro de Remus duas cabeças mais baixo. Ambos os garotos estavam com os seus corações batendo acelerados.
"Eu não sou uma pessoa ruim. Quero só conhecer você melhor, passear com você, conversar. Podemos tomar uma cerveja amanteigada juntos. Não vai acontecer nada que não queira... Pode pensar no assunto?"
Remus assentiu com timidez, erguendo o seu olhar.
"Eu vou pensar e te aviso... Eu vou pensar, tudo bem?"
Michael, sorrindo, e com mãos um pouco trêmulas, retirou, então, uma das flores do ramalhete que segurava e a entregou para Remus.
"Prefiro entregar isso pra você do que para o Black. Pra você não esquecer do meu convite e nem de mim. Preciso ir agora. A gente se vê..."
Remus segurava a flor que lhe era dada com um cuidado especial. Sua alma desprendia um pouco do corpo e ele caía em um estado agitado e ausente ao mesmo tempo.
Carlson fez um desajeitado aceno para Remus, antes de cruzar o corredor. O garoto de cabelos castanhos tinha os olhos grudados no outro rapaz. Sua cabeça ainda girava muito rápido. Tudo ao seu redor gravitava. Havia sido convidado por outro garoto para sair? O seu desejo secreto se realizara, sendo embalado por olhos azuis ao invés de cinzentos? Sem precisar fazer um esforço de quatro anos para ser visto?
Remus tomara um vago conhecimento do interesse de Michael Carlson, mas nunca esperava que o monitor corvinense o levasse tão a sério. Sem perceber o tempo que transcorria, Remus permaneceu parado à porta por alguns minutos ainda. Seu rosto não estava menos vermelho.
Apenas quando ouviu a voz de Sirius o chamando, Remus se lembrou de onde estava e voltou para dentro da enfermaria. Nesse tempo curto, lembrou-se da única vez no segundo ano que tentara convidar Sirius para sair e terminara chorando no ombro de James, sem dizer ao amigo claramente o motivo do pranto. Lupin havia escrito uma carta para Black e no dia que a entregaria, ele descobrira que o amigo começara a namorar pela primeira vez.
"Por que você demorou tanto pra voltar? Não me diga que o idiota do Carlson ficou te enchendo até agora?"— indagou Sirius com uma expressão desconfiada sobre a cama de ferro da ala hospitalar.
"Não, eu tava só... tomando um pouco de ar..."
James estava sentado na beirada da cama de Sirius e espreitou rapidamente Remus de cima a baixo. O seu olhar se deteve nas suas bochechas vermelhas. Que adolescente num dia frio de primavera precisava tomar ar?
"Esse monitorzinho de merda tá precisando de uma lição... Ele vai ver só no próximo jogo!" — declarou Sirius com a sua ferocidade ainda não atenuada.
"Black, que bicho te mordeu? Desafiou o tal de Carlson pra cair da vassoura de novo...?!"
"Claro que não, Pettigrew! Eu vou acabar com ele!"
Remus ouvia as palavras dos amigos, sem prestar, de fato, atenção nelas. Respirando fundo, ele organizava dentro de si as palavras de Michael Carlson.
Esse era o momento em que o mundo ao redor lhe dava os sinais para se afastar de Sirius? Esse era o momento que começaria a superá-lo e aquele amor perderia a força e a intensidade, tornando-se uma recordação, uma nostalgia, uma luz pálida do que foi.
"Remus..."
...O terceiro segredo, do qual tenho mais medo de que saiba, mas resolvi contar é que gosto de você. Não consegui evitar! Todas as vezes que você foi legal comigo e gentil, eu sentia cada vez mais que acabava gostando de você. Não é um gostar só de amigos. Eu queria ir a um encontro com você.
Remus escrevera isso na carta destinada a Sirius no segundo ano e que se mantinha ainda trancada no seu gaveteiro do dormitório desde aquela época, amarelando com os anos, sem nunca ter sido aberta ou lida.
"Remus!"
Eu queria que você fosse o meu namorado, mas se quiser ser só o meu amigo e guardar os meus segredos, serei também o seu amigo para sempre.
"Remus!"
Com amor, Remus.
"REMUS!"
Era a voz de Black, arrancando-o de seus devaneios sobre ele.
"Ahn..." — o rapaz se moveu, fitando os seus três amigos que o observavam.
"Que flor é essa que você tá segurando?" — perguntou James, olhando da rosa azul para o seu rosto.
"Essa é uma das flores que o cretino do Carlson trouxe, não é Remus? Por que tá segurando essa porcaria?"— perguntou Sirius com um olhar intrigado, inquieto.
Remus, percebendo a atenção de todos em si, foi trazido à realidade.
"Ah, essa flor... Eu peguei porque... porque o Carlson deixou cair no chão..."
"Então, jogue fora!" — redarguiu Sirius com azedume implacável— "Jogue tudo o que tem a ver com o Carlson fora!"
Porém, Remus não jogou a flor fora. Retirou-se da enfermaria, alegando aos amigos que seguiria para o Salão Principal e iria jantar.
O garoto de cabelos castanhos, no entanto, não rumou para o andar térreo, mas se dirigiu para a Torre da Grifinória. Permaneceu em seu dormitório, mirando aquela flor que lhe fora dada. Uma excitação lhe percorria o espírito quando se aproximou da janela para fechá-la. O vento frio da noite começava a soprar, movendo as cortinas. O ambiente escurecia e em alguns pontos, havia luminosidade e em outros, completa escuridão. Sombras gigantes e disformes.
Alguém enxergara Remus. Alguém o chamara para sair. Quinze anos.
Seria com essa idade que algum garoto o descobriria e dedicaria algum tempo a ele? Era com essa idade que aquele desejo encarcerado e solitário faria algum sentido e poderia fluir? Que a sua afetividade poderia ser exercida, sem sonsidade e sem arranjos?
Era subitamente que alguém se tornava visível e resplandecia diante de olhos azuis vívidos?
Caminhando até um dos banheiros, Remus se debruçou sobre a pia com as mãos amparadas na borda e fitou o seu reflexo no espelho. O Lobo não estava lá. Mas ele se recordou das palavras que reverberaram na sua cabeça enquanto esperava pela sua transformação na Casa dos Gritos da última vez:
"Percebe como podemos brincar com o mundo bruxo? Percebe como podemos pegar tudo o que quisermos? Eu não sou o seu adversário, Remus Lupin, mas todas as vezes que me aprisionar, eu vou ser o seu pior inimigo. E vou pegar tudo o que quiser de uma forma ou de outra, garoto. Até não aguentar mais de tanto ter... Até não querer mais..."
(cut)
No dia em que Sirius recebeu alta, os seus amigos estavam ao seu lado.
O gesso foi partido com magia ao meio e, após alguns exercícios protocolares exigidos por Madame Pomfrey, como pular numa perna só, caminhar em passos largos e correr pela enfermaria, Sirius foi dispensado.
Higia Bhasin chegara um pouco mais cedo de Londres e arrumava as camas, movendo a sua varinha e dobrando os lençóis. O sol entrava pelas janelas abertas e o dia estava mais quente.
Os garotos não usavam mais casacos, mas roupas leves. Remus trajava uma blusa de algodão simples e branca escrita Riding the Sky, jeans e tênis. Alguns discretos arranhões podiam ser vistos em seus braços muito brancos com aquela palidez leitosa.
Sirius e James, por sua vez, usavam a capa vermelha de Quadribol sobre as suas vestes porque o time da Grifinória os esperava na Torre da Casa para brindarem a recuperação de Black e o seu retorno.
"Você vem dessa vez com a gente, não vem, lobinho? Do pessoal do Quadribol e da Fawley, eu sei que você gosta..." — insistira Sirius, sendo mais cuidadoso nos últimos dias.
"Eu vou." — disse Remus, sorrindo — "Separei algumas tortinhas de abóbora pra levar."
Madame Pomfrey, olhando Sirius com alguma desconfiança, disse com uma voz austera:
"Nada de Quadribol até a semana que vem, hein, senhor Black!"
Sirius abriu as suas mãos teatralmente.
"Nem um voozinho pelo estádio, Madame Pomfrey? Nem uma sequência de gols com o Dayal pra trocar o óleo?"
A bruxa retrucou com mau humor:
"O senhor é um péssimo paciente. Parece um testrálio teimoso e voluntarioso... Um pouco choramingão também."
"E a senhora é uma ótima enfermeira. Parece uma treinadora de testrálios carinhosa e gentil. Obrigado!"
Madame Pomfrey, ruborizando um pouco, disse, logo após entregar um frasco grande de prata líquida e ditamno para Remus:
"Espere aqui, senhor Black. Vou buscar um tônico muscular para o senhor. Se não posso segurá-lo, pelo menos, o tônico vai ajudá-lo a ter um bom preparo para ser inconsequente. Eu já volto..."
E Madame Pomfrey sumiu na sala contígua, com passos apressados.
"Ei, Black, tu sabe que a McGonagall vai seguir com as Detenções na semana que vem e essa tua alegria vai durar pouco né..." — falou Pettigrew, revelando os seus dentes incisivos grandes.
Sirius deu de ombros, trocando um olhar tácito com James.
"Sim, eu imaginei..."
Os garotos permaneceram de pé em meio a ala hospitalar, aguardando o retorno de Madame Pomfrey, e se voltaram quando ouviram um burburinho no corredor acompanhado da voz alegre e forte de Hagrid se sobrepondo ao dizer:
"É naquela direção, senhor Mikkelsen! Madame Pomfrey e a senhorita Bhasin vão poder ajudá-lo."
Os rapazes se viraram, então, quando uma figura irrompeu pela porta aberta da ala hospitalar. O ruído dos coturnos ecoava pelo chão de pedra lavrada e, ao chegar, o homem chamado de Mikkelsen espreitou rapidamente o recinto.
Ele devia estar por volta dos trinta anos. O seu cabelo era um pouco comprido na altura do pescoço num tom de loiro sujo e os seus olhos, um pouco estreitos.
Com um sotaque pesado, ele cumprimentou os garotos e adentrou a enfermaria, um pouco deslocado naquele ambiente de camas alinhadas, aparadores repletos de frascos rotulados e cheiro de poção antisséptica. Os seus trajes lembravam os dos Aurores do Ministério, mas o seu corte parecia mais militar em um tom cinzento. Na manga do seu sobretudo, estava estampado um grande M contornado de vermelho.
Higia se deteve, fitando brevemente o visitante de cima a baixo. A jovem não estava acostumada a ter a ala hospitalar visitada por bruxos que não fossem os estudantes ou algum professor com um acidente mágico leve.
"Boa tarde. Meu nome é Soren Mikkelsen e vim aqui a pedido de Filius. Tenho uma reunião com Dumbledore agendada para o período da tarde, mas sugeriram que eu viesse aqui antes fazer um curativo em um ferimento..."
Havia um tom enfático nas últimas sílabas pronunciadas, evidenciando que o bruxo viera de alguma região da Europa diferente da Inglaterra. Remus moveu os seus olhos, ouvindo as palavras enquanto Sirius e James também se detinham com a cabeça um pouco baixa, tentando descobrir o país do qual o homem viera.
"Claro, sente-se aqui, senhor Mikkelsen, por favor..." — instruiu-lhe Higia, movimentando a sua varinha e arredando uma cadeira para perto.
"Você deve ser a senhorita Bhasin. Onde está Poppy?" — perguntou o homem.
"Ela está lá dentro e daqui a pouco estará de volta. Posso dar uma olhada no seu ferimento?"
O homem, com uma expressão impassível, desabotoou os botões dourados do seu punho, ergueu a manga do seu uniforme militar e revelou o seu braço. Mesmo para Higia, sendo ela uma estagiária experiente que já lidara com diferentes tipos de acidentes mágicos, a revelação do machucado era surpreendente.
Na dobra interna do cotovelo de Mikkelsen, havia um furo com um entorno extenso e escuro de carne podre. Algumas veias saltadas se alastravam arroxeadas e azuladas até o pulso do homem que estava contraído. Um cheiro desagradável exalava do machucado. As suas unhas pareciam rodeadas também por um tom quebradiço e violeta, como se houvesse sangue pisado sob elas.
Higia se antecipou, pegando uma poção no aparador próximo para dores fortes.
"Por Merlin, o senhor deve estar sentindo muita dor... Foi algum acidente mágico?"
Mikkelsen ergueu as sobrancelhas com um ar tranquilo que parecia até mesmo entediado.
"Não colocaria as coisas nessas palavras..."
Higia ergueu a sua varinha, inspecionando o ferimento de Mikkelsen, procurando vestígios da sua origem, a fim de ela aplicar o tratamento adequado. Quando descansou a sua varinha no colo, a estagiária estava com uma expressão séria em seu rosto moreno e redondo sempre tão sorridente. Havia uma contração no canto dos seus lábios. Num murmúrio, ela falou:
"Magia Negra..."
"Não se preocupe. O verme das Trevas que foi colocado aí dentro já está morto. Precisei esperar que ele crescesse e rastejasse por algum tempo até poder removê-lo. Mas não pude evitar que ele fizesse esse estrago..."
"O senhor é amigo do Professor Dumbledore?" — indagou Higia com os olhos redondos levemente arregalados.
Mikkelsen cruzou as pernas com o braço ainda erguido.
"De certo modo, sim. Sou um Auror atuando no Ministério da região setentrional da Europa. Preciso resolver uns assuntos com o diretor."
Higia assentiu.
"O senhor não é do Reino Unido. Frequentou qual Escola?"
"Eu vim da Dinamarca. Estudei em Durmstrang, mas o meu companheiro, Lorenzo Radamés, estudou aqui na década passada..."
Dinamarca...
Remus assentiu, lembrando-se da vez em que ele e os seus amigos não conseguiram preparar uma poção adequada para um bruxo inglês falar dinamarquês fluentemente na aula do Professor Slughorn e, após fugirem para não serem penalizados, o professor fizera uma demonstração na aula seguinte, entoando palavras com ênfase nas últimas sílabas.
Higia, ouvindo o sobrenome Radamés, ergueu os seus olhos escuros com algum conhecimento tácito, enquanto entornava o frasco da poção em um pequeno cálice de níquel e o passava para que Mikkelsen bebesse. Imediatamente, ela começou o preparo de outra medicação.
"Sim, o senhor Radamés... Estou ciente..."
Os olhos estreitos de Mikkelsen se mantiveram firmes, mesmo quando Higia entornou sobre o ferimento um líquido roxo, que, por um momento, parecia corroer a sua pele putrefata, mas, na verdade, estava limpando o machucado nas camadas mais profundas da pele. Se houve dor, o homem demostrou somente uma breve contração no canto da boca, fazendo-a parecer no máximo uma pressão desagradável.
"Que horror... Ele brigou com um dragão?" — retrucou Pettigrew, olhando com algum desgosto o membro de Mikkelsen.
Sirius respondeu de volta, dizendo baixinho:
"Dez pontos a menos para a Grifinória. Dragões não cospem Magia Negra, Pettigrew..."
O bruxo sendo atendido por Higia reparou nos quatro garotos que continuavam observando a cena, parecendo um pouco sem jeito, agora, ao terem sido surpreendidos. O homem chamado Mikkelsen sorriu para eles, dizendo:
"Acredite, meu jovem. Existem criaturas piores do que os dragões... Bruxos muito piores e modos muito piores de tentarem atingir alguém."
Pettigrew engoliu em seco, perguntando ao apontar o braço de Mikkelsen:
"Isso foi Magia Negra mesmo?"
Higia olhou por cima do seu ombro para os garotos, com uma expressão tensa, antes de voltar ao seu trabalho.
"Sim. Causada por um verme das Trevas implantado por um bruxo. A intenção seria que até o fim do dia o ferimento arrancasse o meu braço direito fora. O braço que eu uso a minha varinha. Mas, felizmente, consegui fazer a minha jornada até Hogwarts e sabia que poderia solucionar esse infortúnio aqui..."
Remus, fitando o homem de feições um pouco duras, mas com um sorriso gentil, perguntou:
"Por que o senhor não foi diretamente para o St. Mungus, em Londres?"
O homem espreitou um tempo o rosto de Remus e redarguiu com um tom um pouco mais frio, que, de alguma perspectiva, podia soar até como uma ameaça:
"Porque algumas coisas precisam ser mantidas em sigilo..."
Os Marotos fitavam aquele homem misterioso e Sirius não sabia se conseguia gostar dele ou não. Havia alguma aura, alguma energia ao seu redor que lhe inspirava uma hesitação, um temor. Uma vontade de não estar na mesma sala que ele.
Curiosamente, os rostos de Remus e de James pareciam desconfortáveis também. Tão desconfortáveis que o rapaz de cabelos castanhos, movendo os seus pés, declarou:
"Acho melhor irmos andando. Posso passar aqui mais tarde e pegar o tônico do Sirius depois..."
Pettigrew, no entanto, estando de braços cruzados e fitando o tratamento da ferida de Mikkelsen com uma careta empática de dor, interveio:
"Vai embora sem se despedir da sua enfermeira querida, Remus?"
"Depois eu falo com ela..." — havia um nervosismo na voz de Remus que o próprio rapaz não entendia. Subitamente, ele estava ansioso.
"Vamos..." — declarou James, movendo os seus pés e a sua capa vermelha com um gesto inquieto — "O pessoal do Quadribol tá esperando a gente..." — a sua voz parecia um pouco entrecortada como se algo lhe roubasse o ar.
Visto que Pettigrew não fez menção de se mexer, Remus anunciou com uma leve irritação:
"Eu vou indo na frente..."
"Espera, cara! Essa pressa toda é pra ir pra comemoração ou pra biblioteca? Será que o cdf Remus John Lupin não pode passar nem mesmo o final de semana sem enfiar a cara nos livros?"
Sirius pode ver a tempo Mikkelsen erguer o seu rosto do ferimento de um modo tão brusco que foi um milagre ele não deslocar a cabeça. Os seus olhos frios cravaram-se em Remus. Cravaram-se em Remus com tanta força que o rapaz chegou a dar um passo para trás.
"Mas o que...?" — perguntou ele não a alguém em específico.
Foi sem avisar Higia que Mikkelsen se levantou e caminhou com passos largos e apressados em direção a Remus. Ele espreitou o garoto com um ar de reconhecimento. Os seus olhos se detiveram primeiro nos olhos de retinas circundadas de amarelo. Em seguida, na poção de prata líquida e ditamno que o grifinório segurava com o rótulo legível. Por último, ele puxou o braço pálido de Remus, olhando os seus arranhões com um misto de surpresa e indignação.
"Solta ele"! — interveio Sirius laconicamente, afastando o braço de Mikkelsen com alguma violência.
"O que está fazendo?" — indagou James, colocando-se ao lado dos outros dois garotos.
Higia se erguera de sua cadeira com a varinha e o frasco da poção em suas mãos.
"Senhor Mikkelsen?"
Nesse instante, Madame Pomfrey voltou da sala contígua, trazendo o tônico de Sirius e explicando o motivo do seu atraso:
"Desculpem a espera, garotos... Misturei um pouco de vitamina no tônico do senhor Black e também..."
Madame Pomfrey se deteve, olhando de Mikkelsen para os garotos.
"Soren, o que está fazendo aqui?"
O homem se voltou para a enfermeira com uma expressão transtornada e apontou para Remus, dizendo:
"Poppy, eu que devia perguntar o que ele está fazendo aqui!"
A enfermeira trocou um olhar com a sua estagiária e, novamente, observou o bruxo e os garotos.
"Acalme-se, Soren! Podemos explicar!"
"Não, eu não vou me acalmar!" — vociferou Mikkelsen com um sotaque mais carregado — "De quem foi a ideia de trazer para cá o filho dos Lupins? Foi de Dumbledore?!"
Madame Pomfrey aumentou o tom:
"Você poderá obter as suas respostas diretamente com o diretor Dumbledore..."
"Poppy, você tem participado disso? Eu tenho colaborado com Dumbledore e a Ordem, mas não posso permitir uma atrocidade dessas..."
"Acalme-se!"
"O que passou pela cabeça de Dumbledore ao colocar gafanhotos dentro de uma plantação?"
"Ele está sob controle!"
"Por Merlin, ele é um licantropo, Poppy!"
A enfermeira fechou os olhos com pesar no mesmo instante em que um choque se abatia sobre Remus, fazendo-o recuar novamente. Ele é um licantropo...
James e Sirius estavam com os rostos muito pálidos e Pettigrew tinha a sua boca entreaberta.
"Ele está sob controle..."
Mikkelsen moveu as mãos com impaciência. A ferida em seu braço ainda visível e terrível.
"Licantropos nunca estão sob controle!"
O bruxo se voltou para Remus, avançando sobre ele e Sirius e James, num ímpeto, colocaram-se na frente de Mikkelsen. O homem espreitou os dois rapazes e soltou uma risada engasgada que não parecia encontrar uma graça genuína.
"Claro... Já formou a sua alcateia, Lobo? É inadmissível... Um lobo em plena puberdade numa Escola... O que Dumbledore vai fazer quando ele virar a cabeça dos seus alunos queridos e os transformar em um rebanho...?"
"ELE NÃO VAI FAZER ISSO!" — interveio Madame Pomfrey com impaciência.
Higia caminhou até a entrada da ala hospitalar, fechando a porta.
Remus tinha a mandíbula trêmula. Algo dentro de si estava assustado e exposto. Outra parte sua via a pulsação no pescoço de Mikkelsen e sentia um ímpeto sombrio.
"Licantropos são incontroláveis!" — declarou Mikkelsen novamente.
Remus engoliu em seco, falando com uma voz hesitante:
"O senhor conhece os meus pais? O senhor... o senhor sabe o que eu sou?"
"Temos um registro de controle para licantropos. Você foi um dos últimos a serem transformados. O filho único dos Lupins, filho do puro-sangue Lyall e da nascida-trouxa Hope. Tenho essa lista decorada na minha cabeça, garoto! E você não deveria estar aqui..."
Sirius interveio, sacando a sua varinha.
"Não... O senhor que não devia estar aqui. Remus é nosso amigo."
Mikkelsen estava com o rosto duro, fitando Sirius dos pés à cabeça. A sua capa vermelha.
"Você me agradeceria por estar intervindo se soubesse o que tem do seu lado. A minha unidade exterminou lobisomens que levaram bruxos à ruína não só se alimentando de famílias inteiras que eles mantinham em fazendas de humanos, mas também como coisa pior... Convencendo alguns bruxos a defendê-los até a morte. Você já começou a entrar na mente deles, Lupin? Já começou a confundi-los?"
Remus engoliu em seco. A pulsação no pescoço de Mikkelsen...
Madame Pomfrey interveio, falando pausadamente:
"O Professor Dumbledore vai explicá-lo que temos um lugar seguro em que o senhor Lupin passa os seus ciclos lunares."
"Por Merlin, Poppy! Lugar seguro?! Usávamos bestas umedecidas com poções e com as lanças cheias de feitiços para derrubá-los em campos de batalha e, ainda assim, quando os atingíamos depois de seus amantes os defenderem cegamente; de morrerem por eles, a criatura das trevas ainda estava viva! Então, não me diga que uma Escola é um lugar seguro para esse animal!"
James sacara a sua varinha também.
"Não fala assim dele!"
Sirius estava trêmulo. Bestas, campos de batalha, amantes...?
Do que Mikkelsen estava falando? Aquele ao seu lado era Remus. Um pufoso fofo de pele leitosa e franja bem cortada. O rapaz mais doce que conhecia. Com perfume de sabonete trouxa e um canino ligeiramente torto.
Madame Pomfrey disse com dentes cerrados:
"Eles são crianças! Não diga essas coisas na frente deles!"
"Os livros didáticos de todas as Escolas bruxas foram alterados para não se falar dos lobisomens como as criaturas atraentes e predatórias que são. Não queríamos os nossos melhores marchando como doentes para o mundo de depravação lupina. Eu vi uma família inteira ser perdida para um lobisomem só, sabiam? Vi filhos matando os próprios pais por um único licantropo. E pelo modo que o defendem, já estão presos a ele..."
Remus sentiu o seu rosto queimar com o olhar de Sirius, James e Pettigrew. Sentiu um som engasgado em sua garganta, arquejando. Ele estava muito quieto e sustentava o seu olhar cor de âmbar por trás das lentes dos óculos. A veia pulsante no pescoço de Mikkelsen era nítida. A linha do queixo, próxima ao pomo de Adão.
Sobrevivência. Camuflagem. Estratégia predatória e anti-predatória. Na jugular é mais rápido.
Remus endireitou os óculos com o seu tique, ouvindo a voz ritmada do Lobo se debatendo contra as paredes carnais do seu cérebro.
Cale-o.
Foi com um sobressalto que Remus saiu de seu silêncio no instante em que a porta da enfermaria se abriu novamente e bateu com um forte estrondo. O rapaz demorou para voltar o seu rosto e ver quem era. Subitamente, ele se sentia tonto. Nauseado com o gosto de bile na altura do paladar. A sua testa estava úmida.
O Professor Dumbledore chegava ao lado da Professora McGonagall. Os dois olhavam dos garotos para Mikkelsen com expressões austeras. Aparentemente, Dumbledore e McGonagall haviam ido encontrar o Auror e se deparavam com a cena conflituosa.
Foi o bruxo dinamarquês que quebrou o silêncio desagradável que se instaurou.
"Dumbledore, o que significa isso?"
"Eu que deveria perguntar o que significa toda essa comoção, Soren, quando você visita Hogwarts."
"É sério isso?! Lobisomens em Hogwarts?"
"Hogwarts acolhe a todos!"
"E os outros alunos sabem dessa generosidade perigosa?"
"Obviamente que não. Nem todos são generosos ou compreensivos..."
Mikkelsen apertou os olhos e ao colocar a mão na sua lateral, revelou a varinha em seu cinto.
"Até mesmo Grindelwald se deitou com lobisomens, embevecido pela loucura que eles trazem. Ele só não foi levado à ruína porque teve a perspicácia de matá-los, antes que se perdesse. O senhor, com esse menino, quer seguir os passos do seu...?"
"Já basta, Mikkelsen! Não permitirei que desrespeite a mim e aos meus alunos com insinuações monstruosas! Posso garanti-lo que o senhor Lupin é um dos nossos melhores alunos e é filho de dois bruxos poderosos que o guiam por uma linha digna... Ele é um bom garoto e cuidamos para que ele se torne alguém honrado no mundo bruxo..."
O rosto sempre gentil de Dumbledore ostentava linhas bem definidas, duras, próximas a sua barba branca. O diretor de Hogwarts parecia genuinamente aborrecido.
"Temos em Durmstrang a mácula que Grindelwald deixou. Quer instaurar mácula em Hogwarts também?"
"Hogwarts já tem as suas próprias máculas. Mas garanto que o senhor Lupin não é uma delas..."
"O Ministro Johnson está ciente desse desatino?"
Num momento descolado da realidade, Remus, que ainda estava tonto, observou que o inglês de Mikkelsen era muito bom porque ele usava a palavra desatino.
"Hogwarts é para todos que possuem uma gota que seja de sangue bruxo! Fico feliz que o Ministro e eu compartilhamos do mesmo ideal..."
Mikkelsen passou a mão pelo rosto e, parecendo ainda incrédulo, se largou em sua cadeira.
"Um licantropo em Hogwarts então. E os pais dele na Ordem... Quer mesmo que nós confiemos em vocês?"
Dumbledore respirou fundo, entrelaçando os seus dedos. A Professora McGonagall se mantinha ao seu lado com um olhar austero.
"Desejo que confiem nas minhas decisões, Soren. Lamento pelo que tenha sofrido e por sua perda, mas o senhor Lupin não é culpado pelo que houve com o senhor quando..."
"Basta! Chega!" — cortou-o Mikkelsen com os olhos vermelhos e erguendo a sua mão.
"Seus pais eram pessoas boas, mas com um medo terrível do que não entendiam. O seu irmão e a sua irmã eram inocentes..."
"Chega, Dumbledore!"
"...Mas os seus pais perderam os seus irmãos no dia em que tentaram reparar um mal com outro mal..."
"EU JÁ DISSE BASTA!BASTA, DUMBLEDORE!"
Mikkelsen tinha todo o seu rosto alterado por uma dor genuína. Não havia vestígios do homem elegante e impassível que entrara na enfermaria. Seu corpo estava enrijecido.
Em poucos minutos, naquele confronto em que ele expunha Remus, ele se tornara destruído e triste.
A Professora McGonagall, observando Mikkelsen se erguer e exibir novamente o seu cinto com a varinha, declarou:
"O senhor é um Auror treinado para proteger pessoas. Não para intimidar alunos de uma Escola e professores. Recomponha-se, Soren! E trate de não cometer a indiscrição de criar uma confusão, expondo a condição do senhor Lupin."
"Tampouco poderá expor Lyall e Hope dentro da Ordem. Nem todos têm conhecimento da licantropia de Remus. Sua discrição é exigida! E é o requisito para que prossigamos com a aliança europeia de combate às forças com as quais estamos lidando... O nosso inimigo é outro e não podemos colocar o nosso trabalho a perder por conta de rachaduras dentro da Ordem. Posso contar com o senhor?" — insistiu Dumbledore, retomando a sua fala tranquila e calma.
Mikkelsen respirou fundo, olhando os professores diante de si. Depois, observou Madame Pomfrey que tinha a mão de Higia apoiada em seu ombro. Por último, fitou os grifinórios com as suas pupilas terrosas se demorando em Remus. Havia um declarado ódio em sua expressão.
Dumbledore prosseguiu após um minuto arrastado e silencioso intercalado pelo ruído distante da gritaria do time da Lufa-Lufa, que treinava no estádio e dos estudantes que perambulavam pelos corredores:
"Temos assuntos importantes para tratar em minha sala, após Madame Pomfrey e a senhorita Bhasin cuidarem do seu ferimento, Soren. Acho que podemos dar essa cena lamentável de agora por encerrada... Afinal, estamos em Hogwarts e permita-me dizê-lo que não aceitaremos interferências nas nossas políticas internas..."
Mikkelsen se forçava a se recompor e fez um aceno de cabeça discreto, antes de desviar os olhos de Remus com uma expressão pesada. Com a sua voz profunda, Dumbledore parecia, com muito esforço, ajudar o homem diante de si a recobrar alguma calma.
"Peço aos senhores que retornem para a sua Casa e não mencionem com ninguém o que houve aqui. É de extrema importância a descrição e o silêncio. Mas gostaria de conversar com os senhores em minha sala mais tarde. Creio que tenham algumas perguntas que precisam de respostas, após tudo o que ouviram aqui. Minerva os buscará." — instruiu o diretor de Hogwarts aos Marotos.
E essas foram as últimas palavras de Dumbledore que os dispensava com delicadeza.
Sentindo ainda a sua aura pairar ao redor em um estranho torpor, Remus só moveu os pés quando Sirius tocou as suas costas e os rapazes se puseram a caminhar até a saída.
Antes, no entanto, Mikkelsen fitou os quatro rapazes uma última vez. Remus no centro. As capas vermelhas de Quadribol de Sirius e James se movendo atrás deles. Pettigrew com um olhar um pouco injetado. O bruxo dinamarquês declarou então:
"Uma alcateia? Um rebanho? Por quanto tempo vai reprimir a natureza do Lobo, Dumbledore? Ele não é um garoto. Não é um cachorrinho dócil que vai se deitar de barriga pra cima se o acarinhar. Ele é uma criatura das Trevas!"
Remus se sentiu enrijecer ao ouvir aquelas palavras. Sentiu um braço protetor de James ao redor do seu pescoço. Sentiu os dedos de Sirius se afundarem em seu ombro. Sentiu uma estranheza de si para consigo mesmo enquanto os amigos o circundavam.
Ele moveu a sua gengiva, erguendo-a involuntariamente um pouco, como um animal acuado. Duas, três vezes enquanto tinha a respiração curta e fitava o Auror. O seu canino torto, evidente.
"Assassino." — Remus sentiu a palavra se formando em seus lábios, sem proferi-la.
E por último, enquanto deixava a ala hospitalar, o rapaz ouviu a voz rouca do Lobo se erguendo das profundezas de seu sentir mais inacessível.
Uma voz raivosa. Quase um rosnar. Rasgando em sua garganta porque partia dele. E rangendo nos seus ouvidos porque era escutada por ele.
"A porra de um Auror caçador de lobisomens em Hogwarts! Um assassino. Um predador da nossa espécie. Precisa se livrar dele, garoto... Faça isso! E faça isso agora!"
