A EXECUÇÃO DOS MORTOS
CAPÍTULO 14
CONFIAR
Needing you now to come into me
Feeling it slow, over this dream
Touch me with a kiss, feel me on your lips
When you're above feeling it still
Tell me it's love, tell me it's real
Touch me with a kiss, touch me with a kiss
Because this is where I want to be
Where it's so sweet and heavenly
I'm giving you all my, giving you all my
Giving you all my love
Giving you all my, giving you all my
Giving you all my love
All my love
(Heavenly – Cigarettes After Sex)
Laurent e Damen seguiram para a ala do jardim akielon recém-construído, sendo flanqueados por três guardas. Um dos homens segurava um lampião, liberando fumaça escura que tremeluzia no ar frio da noite, exalando o cheiro de azeite.
Diante deles, Jord caminhava com passos apressados, tendo Latifa em seu colo. A jovem desacordada estava envolta em uma manta de lã tingida que cobria todo o seu corpo e cujas franjas arrastavam nas lajotas frias.
Observando o caminho em que uma trilha de gotas de sangue se formara, Lauren se dirigiu ao soldado jovem que se mantinha próximo ao arco de pedra. O mesmo soldado que há poucos dias vira Damen e Laurent no caramanchão.
"Dê um jeito nisso. Nenhuma palavra sobre o que viu aqui, entendeu, soldado?" — ordenou o rei de Vere com uma voz autoritária, mas alguma tensão em seu timbre.
"Ahn, certo, Majestade!" — respondeu o homem, fazendo um gesto deferente e fitando o mármore branco com veios em que borrões vermelhos eram notórios.
A sala em um daqueles edifícios com arquitetura do sul havia sido preparada anteriormente e havia uma cama com lençóis limpos montada. Paschal os esperava, tendo sobre uma mesa entalhada frascos com líquidos divididos por rótulos herméticos; ervas; ataduras e sálvias.
"Coloque-a aqui em cima!" — orientou Paschal, dirigindo-se a Jord.
Latifa se mantinha muito pálida e estava ainda desacordada. Os seus cabelos loiros e cacheados estavam desalinhados e caíam por seu rosto muito branco.
Jord disse então:
"Fiz como aprendemos. Fiz a pressão ao redor da ferida. Por favor, examine-a."
Paschal se pôs, então, a examinar o corpo da jovem e rasgou a parte de cima do seu vestido desbotado, revelando a veste interna da sua roupa. Em seguida, o médico examinou a respiração e o pulso da escrava por alguns minutos, assim como as suas pupilas e declarou:
"Ela está viva e a ferida parece ter sido superficial. Preciso que me deem licença para que eu possa cuidar dela agora."
Laurent, Damen e Jord se retiraram do recinto, mantendo-se parados diante do edifício circundado por pilastras. O soldado próximo a um dos arcos de pedra deslizava sozinho um pano úmido pelo piso de mármore enquanto se mantinha agachado ao lado de um balde.
Mais adiante, vindo do outro arco de pedra, alguns soldados veretianos se aproximavam, portando lanças e trazendo um relutante Nikandros e o serviçal Isander em seus calcanhares.
O kyros de Ios praguejava em akielon e parecia ter uma expressão transtornada enquanto Isander tomava a sua posição deferente, apesar dos olhos inchados e avermelhados.
"Exaltado, por que me mandou trazer até aqui? — indagou Nikandros, deslizando o seu olhar pelos três homens parados.
Laurent foi quem respondeu:
"Não foi Damianos. Fui eu quem mandei chamá-lo..."
Nikandros respirou fundo, replicando:
"Eu sei, mas não estou com vontade de falar com você neste momento, Laurent! E sendo sincero, não tenho disposição também para você, Damianos! O que foi aquela cena no jardim? Como vocês dois se dizem percursores da abolição em seus reinos e enfiam uma espada numa escrava, sem um julgamento decente?"
O timbre de Nikandros era alto e ele não estava falando com os reis de Akielos e de Vere naquele instante, mas com os homens que conhecia.
Laurent pestanejou os seus olhos, cujas retinas circundadas de azul estavam sombrias.
"Você é muito sincero..."
Nikandros respondeu:
"Akielons são sinceros! Seu serviçal akielon está arrasado se não percebeu também, Laurent. Está mal por ter visto Latifa sendo executada daquela maneira. Por que mandou chamar Isander? Vai pedir para ele lhe prestar lealdade, beijando o bico de sua bota, apesar do que fez, Laurent? Por que mandaram me chamar?!"
Laurent respondeu, cruzando os braços.
"Sinto que se você pudesse, partiria do meu palácio hoje mesmo e nunca mais voltaria, Nikandros..."
"Honestamente, somente o meu juramento feito às nações-irmãs me impede de fazer isso agora."
Damen interveio, dizendo:
"Respeito a sua inconformidade, Nikandros. Mas precisamos fazer aquilo."
"Matar uma escrava surda que parecia apavorada e que pode ter sido ludibriada ou ameaçada por um nobre ou um rei?"
"Sim, precisávamos fazer todos acreditarem que Latifa estava morta." — retrucou Laurent, sem alterar a sua voz.
Nikandros ia responder algo, mas se deteve, estreitando o seu olhar.
"O que...? Fazer acreditarem?"
Jord, que tinha a mão na bainha de sua espada, disse então:
"Temi terrivelmente que tivesse acertado alguma artéria da escrava. Paschal a está examinando..."
Isander tinha o seu olhar erguido agora. Os seus olhos escuros olhavam de um homem para outro.
O kyros de Ios, após um prolongado silêncio em que se ouvia o crepitar do fogo nos candeeiros, voltou-se para os reis de Vere e de Akielos.
"Eu não entendo... O que foi tudo aquilo?"
"Uma ilusão..." — respondeu Laurent — "Uma ilusão que eu mandei os meus homens estudarem, após a primeira tentativa de execução do meu tio em Ios. Pensei que se, com alguma sorte, um patife poderia sobreviver a um golpe de espada, com intenção, um inocente também poderia sair ileso. Achei que a técnica não intencionada poderia ser utilizada ao meu favor em alguma ocasião. Tudo pode ser usado ao nosso favor se formos atentos o suficiente."
Os olhos de Nikandros procuraram os de Damen que aquiesceu. Laurent prosseguiu:
"...Eu mandei alguns dos meus homens de confiança aprenderem esse truque com a instrução de Paschal orientando os pontos mortais e não mortais de uma pessoa. Quando encostei no ombro de Jord, ele sabia o que tinha que fazer. É o nosso código."
Nikandros olhou ao seu redor. Havia uma porta fechada naquele jardim akielon que se mantinha ainda inacessível para os nobres e cortesões. Os guardas que trouxeram o kyros haviam ido embora e o soldado próximo ao arco de pedra seguira para o corredor, a fim de enxugar o chão.
Fora Nikandros e os reis, somente Jord e Isander estavam presentes. Como se pudesse ler o pensamento do akielon, Laurent declarou:
"...Você e Isander fazem parte dos Confiáveis. É por isso que mandei chamá-los."
Damen disse:
"Latifa havia jogado na lareira acesa um livro que Laurent lia, antes de ser presa. Ela estava querendo dizer alguma coisa. Não acreditamos que ela teve intenção de matar Laurent. Havia alguém tentando incriminá-la..."
"Uma boa parte do livro queimou, mas mesmo no carpete, pudemos vez um pó dourado que se desprendia das páginas do exemplar. Mandei que um dos boticários da cidade fosse buscado, a fim de avaliar o livro." — disse Laurent com a sua mão delicada tocando o queixo.
Nikandros perguntou:
"E por que precisaram fingir que executaram a escrava?"
Laurent respondeu:
"Porque se eu poupasse uma escrava patrana e mandasse prender o rei de Patras, haveria uma rebelião entre os homens de Torgeir."
"Poderia ter mandado prender Latifa também." — argumentou Nikandros.
"Não. Latifa sabe de algo muito importante e, possivelmente, tem a informação de quem tentou me assassinar e incriminá-la. Preciso que ela esteja segura. Alguém daqui de dentro do palácio conseguiu me alcançar e envenenar a minha comida. O meu leopardo e o imperador foram atingidos. Nada garantia que não poderiam alcançá-la também e cortarem a sua garganta. É importante que achem que eu acreditei na participação de Torgeir e que eu tenha mandado executar a única testemunha da tentativa de envenenamento. Todos precisavam ver Latifa desacordada e suja de sangue, sendo retirada dos fundos do palácio para crerem que ela morreu..."
Nikandros franziu o cenho.
"E você acredita na participação de Torgeir?"
Laurent e Damianos trocaram um olhar tácito.
"Não. Eu e Damen já vimos uma artimanha parecida quando o Regente tentou me matar e incriminar Damianos com provas akielons na época em que ele era um escravo em Arles. A intenção de alguma forma me soa familiar."
Nikandros pestanejou.
"Creio que você mandou prender Torgeir como um estratagema da sua mentira."
Laurent sacudiu o rosto.
"O veneno não funcionou comigo. Mas Afanas e Sorem foram envenenados. Se alguém está tentando incriminar Torgeir, a melhor forma de pará-lo é parar Torgeir. Mas se alguém quer iniciar uma guerra, pode tentar enfiar uma espada veretiana ou akielon no rei de Patras durante a noite e mantê-lo preso é zelar por sua vida e pela paz entre os reinos."
Nikandros olhou de Laurent para Damen. O rei de Akielos já estava familiarizado com as artimanhas do veretiano, mas havia alguma admiração no semblante do kyros que não estava habituado a conversar com os parâmetros da inteligência estrategista de Laurent. Havia um tom de alívio quando ele falou:
"Eu pensei o pior de vocês dois."
Laurent contraiu o canto de sua boca.
"Você e Isander na verdade. Só posso torcer para que a mentira tenho tido o mesmo impacto no restante do palácio. Mas eu precisava que vocês dois soubessem da verdade."
Isander estava sorrindo. Havia alívio também em sua expressão e nos seus olhos de cervo.
O kyros indagou:
"Por quê?"
Damen respondeu:
"Você é o meu amigo, Nikandros. Não poderia prosseguir sem o seu apoio. Preciso que esteja ao lado das nações-irmãs."
Laurent ajustou o bracelete dourado em seu pulso, dizendo:
"Vamos precisar de você e de Isander nos próximos dias, assim como dos outros Confiáveis. Vamos precisar nos movimentar porque quem está tramando contra nós, certamente, não está agindo sozinho..."
Houve um curto silêncio em que Nikandros se afastou um pouco, trocando algumas palavras com Isander e com Jord. Laurent se voltou, então, para a porta fechada da construção, tateando-a com a palma da mão ao dizer:
"Damianos, você se lembra que eu disse, certa vez, que o irmão de Latifa, Leon, seria dado como um escravo de companhia para mim quando eu tinha onze anos e que Latifa serviu à minha mãe pouco antes de ela morrer...?"
O rei akielon aquiesceu, fitando os dedos de Laurent, antes de se concentrar novamente no rosto do veretiano.
"Sim..."
Laurent respirou fundo e disse:
"Leon foi encontrado morto, boiando no rio próximo ao jardim, antes de nos conhecermos. Disseram que ele se afogou durante a madrugada..."
Damen franziu o cenho.
"Eu sinto muito, Laurent. Que fatalidade triste..."
O veretiano retirou os dedos da porta, tendo os seus olhos distantes. Uma contração repuxou por um segundo o canto dos seus lábios.
"Sim. Uma fatalidade..."
Depois de um tempo, Laurent voltou a falar com os olhos úmidos:
"E você se lembra, Damianos, que eu contei que o meu tio mandou executar os cachorros da minha família atrás do palácio, mentindo ao dizer que eles seriam doados para uma cortesã?"
Damen tocou na mão de Laurent, sentindo um estremecimento sombrio em seus dedos frios.
"Lembro..."
"Havia um dos cachorros que era muito ligado a mim e a Auguste e eu o escondi nas adegas, pedindo ajuda a Theodore porque não queria que ele fosse embora de Arles. Quando o meu tio perguntou por ele, eu menti, dizendo que ele havia morrido de saudades do meu irmão. Mas ele não morreu. Quando eu descobri o que aconteceu com os outros cães, eu o entreguei escondido a um nobre amigo do meu pai e ele foi morar em Toutaine. Ele viveu, Damen. Ele viveu. E foi morar em Toutaine."
Damen envolveu o corpo de Laurent em um abraço, sentindo-o frio e rígido em seu amplexo. Havia muitas coisas não ditas, mas o akielon entendia a linguagem sem comunicação do veretiano de se encostar em seu peito e ter os olhos fixos em um ponto distante. A tristeza era indizível em alguns momentos. Como se houvesse uma imoralidade em sofrer tanto.
Havia tantas coisas atiradas na morte prematuramente na vida de Laurent que, talvez, ele tenha entendido que deveria se aliar à ideia de morte de algum modo.
Quando a porta do edifício de pilastras brancas se abriu uma hora depois, Paschal declarou que Latifa ficaria bem. O seu ferimento já fora limpo e desinfetado. Uma faixa branca circundava o peito oscilante da jovem e ela se mantinha adormecida sob os lençóis.
Laurent se aproximou da cama, curvando-se e falando próximo ao rosto de Latifa. Ela era surda e não podia ouvi-lo, mas ele esperava que, de algum modo, as palavras a alcançassem.
"Eu sinto muito. Espero que um dia possa me perdoar por mandarem feri-la, mas foi a única forma que encontrei de protegê-la. Não vou deixar ninguém se aproximar de você, Latifa. Obrigado por tentar nos dizer a verdade. Perdoe-me, por favor..."
Quando retornaram para dentro do palácio, Laurent foi imediatamente ver Afanas na ala hospitalar e Damen observou que o leopardo era mantido deitado sobre uma mesa com um cobertor, tendo o seu peito arfando um pouco.
Kalina e o farmacêutico de Vask estavam na sala, assim como uma médica veretiana.
"Como ele está?" — perguntou Laurent com ansiedade transparente.
O farmacêutico de Vask, que atendia como veterinário dos leopardos em seu reino, explicou:
"Lavamos a boca de Afanas e fizemos a lavagem do estômago com carvão ativado e ele vomitou. Estamos acompanhando a sua frequência cardíaca e respiratória. Ele está estável, mas é necessário esperarmos algumas horas a mais para ver como ele reage. Fizemos uso da fórmula indicada pelo médico Paschal."
Laurent se aproximou da mesinha em que o filhote de leopardo adormecia e ajustou o cobertor de Afanas. Depois, acariciou a curva da orelha do animal, sussurrando-lhe algo inaudível e privado no ouvido. Damen constatou que os olhos do veretiano estavam vermelhos e o akielon tocou no ombro de Laurent de um modo apoiador quando ele se levantou.
Por último, os dois homens passaram diante da sala em que o imperador Sorem de Ver-Tan estava também sendo tratado e o procedimento de lidar com o envenenamento se sucedera de um modo parecido. Os médicos haviam utilizado medicações que induziam à desintoxicação e ao vômito e mantinham o paciente em observação cautelosa.
Quando rumaram para o Quarto Real, Laurent parecia abatido, cansado e com o olhar distante. Damen pediu que Jord vigiasse a porta do aposento por alguns minutos e anunciou que retornaria em breve.
Um quarto de hora depois, Damianos surgiu com uma bandeja de madeira com pratos de barro servidos de carne de cordeiro assada, pães, ervilhas, batatas e grãos de feijão. Ele colocou a bandeja na mesa diante de Laurent, arredando para um canto as duas pilhas de documentos que foram deixadas ali por Isander e dizendo:
"Sei que está triste e preocupado, Laurent, mas você precisa comer alguma coisa. Está muito pálido."
Laurent fitou a comida diante de si por um tempo.
"...Não se preocupe. É a comida que foi servida aos soldados akielons. Não houve casos de envenenamento na ala deles e eu mesmo preparei os pratos. É uma comida simples, mas pelo menos é melhor do que você permanecer com fome..."
O rei de Vere aceitou mordiscar um pedaço do pão de azeitona, dizendo:
"Coma um pouco você também, Damen."
Nenhum dos dois havia jantado ainda, pois a grande confusão se dera quando o veretiano e o akielon se preparavam para comerem as suas refeições.
Houve um silêncio irregular entrecortado pelas respirações de Damianos e de Laurent, o ruído do cordeiro e da hortaliça sendo remexidos no prato e da faca de cortar pão sendo utilizada. Quando a comida alcançou os seus paladares e estômagos, os dois reis perceberam que estavam, de fato, famintos e que o pessimismo que se formava em seus âmagos era agravado por aquela necessidade humana e banal.
De modo geral, não era a primeira vez que Damen e Laurent se deparavam com a tentativa de assassinato chegando sem avisar por uma porta esquecida aberta. Os dois se preparavam melhor para o confronto direto em que poderiam se defender com espadas, adagas e lábia, mas aquela era Arles e o nível de desafio da arena era árduo e aleivoso.
Alguns minutos depois, Damen envolveu os ombros de Laurent e o puxou para perto de um modo protetor e o rapaz se deixou abraçar, murmurando hesitante, após mastigar uma rodela de batata que levara à boca com um garfo.
"Desculpe-me por tê-lo desapontado."
Damen e Laurent haviam discutido no dia anterior, após o rei de Vere ser surpreendido no pátio de treinamento fumando narguilé e se agarrando com Pari de Skarva. Não havia alteração na voz do veretiano, mas alguma rigidez podia ser sentida em seu corpo.
"...Mas eu não beijaria a quarta esposa da imperatriz e nem a tocaria. Nada houve entre nós dois. Sou fiel a você e gosto de sê-lo, Damianos. Pari estava me instruindo sobre como satisfazer um amante na cama. Somente isso."
Damen se manteve um tempo quieto e replicou, sacudindo o rosto:
"Esqueça. Nada mais disso tem importância. É passado. Eu não sei como me sentiria se você tivesse sido envenenado, Laurent. Tive medo. O importante é que Afanas fique bem e o imperador também. Aliás, eu não tive nada com Sorem de Ver-Tan e não estou interessado nele. Não há com o que se preocupar. Eu também sou fiel a você."
Laurent se manteve durante alguns segundos mexendo com o garfo na tábua de carne, espetando a casca da abóbora assada. A lareira estava acesa e crepitante. Havia incenso sendo queimado sobre a cornija.
"Mas há uma coisa, Damianos. Você não pode sair pela porta todas as vezes que discutirmos..." — a voz de Laurent não estava alterada, mas havia um tom leve de mágoa nas palavras.
Damen aquiesceu e se voltou para o veretiano, colocando uma mecha de seu cabelo loiro atrás da orelha.
"Eu nunca vou para longe, Laurent. E partir nunca é um pensamento que me ocorre. Às vezes, eu só preciso de um tempo. Eu o procuraria amanhã para conversarmos. Estávamos ultrapassando limites e nos tornando reativos um com o outro no dia em que discutimos. Não queria magoá-lo e nem ser magoado por você, mas..."
Damianos se silenciou, desemborcando dois cálices de ouro de sobre a mesa e se pondo a servir refresco de laranja de um jarro bojudo de cerâmica.
"Mas nos magoamos..." — complementou Laurent, sem meandros.
Damen aquiesceu enquanto enchia o cálice de Laurent com refresco.
"...Me desculpe."
"Eu também o magoei. Perdoe-me."
Laurent levou o cálice aos lábios e sorveu um gole da bebida akielon, sentindo a acidez cítrica em seu paladar. Depois, falou, fechando os olhos um segundo para recuperar a coragem.
"Eu acredito em nós dois, Damianos. Acredito, mesmo o Conselho me fazendo exigências de casamento e herdeiros para assegurar o meu trono. Não tenho interesse nenhum em me casar com outra pessoa que não seja você."
Damen disse então:
"Eu também quero me casar de verdade com você. Se não gostar da ideia de ter filhos comigo, tudo bem. Não quero pressioná-lo, Laurent."
Laurent enrubesceu.
"Não é que eu não queira, Damen, mas até pouco tempo atrás, eu achava que sempre estaria sozinho. Gosto de pensar na ideia de ter filhos com você. E eu acho que você seria um bom pai. Mas eu não gostaria que nossos filhos fossem criados em Arles de forma alguma. Em Delfeur ou em Ios talvez..."
Damianos voltou o seu rosto rapidamente. Um sorriso involuntário ergueu os cantos dos seus lábios. A sua voz saiu ávida e ele tocou a mão de Laurent, apertando os seus dedos muito pálidos:
"Sim! Como quiser, meu rei. Como quiser."
Damianos beijou a mão de Laurent, que ruborizou com mais intensidade.
"Tem mais... Eu não conseguiria ser como Egeria que dividia Theomedes com Hypermenestra, Damen. Nem como Theodore que não se importava que Auguste dormisse de vez em quando com mulheres. Eu não divido. Eu sou egoísta e essa situação seria indigna para mim. Eu não dividiria o meu homem com um outro nobre, rei, rainha ou serviçal. Eu não consigo ser um amante submisso e permissivo akielon e nem como um veretiano que cumpre protocolos e se satisfaz com escravos. Precisamos ser honestos sobre isso. Quando eu disse que queria manter as coisas simples, me referia à liberdade entre amantes de não se comprometerem demais. Se você me oferecer mais, eu vou exigir mais de você. Entende isso?"
Damen ouviu atentamente as palavras do veretiano e ele deslizou o dedo pela maçã do rosto de Laurent que estava muito vermelha.
"Gosto quando você me diz claramente o que está sentindo, Laurent. Consigo compreendê-lo melhor assim. Eu já fiz muitas coisas enquanto era um príncipe em Akielos, mas nada em minha vida se compara com o que temos hoje. Não almejo amantes ou serviçais em minha cama. Tampouco quero que outras pessoas participem da sua cama. Será só nós dois, Laurent. Como tem sido desde que ficamos juntos. É isso o que eu mais quero."
Laurent tinha o rosto baixo e um sorriso se formava no canto de seus lábios. Ele murmurou um pouco hesitante:
"Você quer formar uma família comigo?"
Damen se aproximou e beijou a cabeça do veretiano, dizendo com um sorriso:
"Sim. A nossa família."
Laurent estava vermelho até as suas orelhas. Ele sorriu e aquiesceu em silêncio. Damen também sorria e os dois homens compartilharam aquela sensação acolhedora e calorosa que os envolvia por alguns minutos.
Depois, lembrando-se de algo que fora esquecido na confusão, Damianos alcançou a algibeira de seu quíton, retirando de dentro um papel amarelado que se pôs a desdobrar.
"...Aliás, você sabia da existência disto?"
Laurent voltou os seus olhos azuis para o documento e, com um movimento, puxou o candelabro sobre a mesa de carvalho mais para perto, iluminando o papel com letras rebuscadas. Após mais de um minuto de silêncio em que o rei veretiano leu desde a data até o carimbo real e a assinatura de Hennike, ele ergueu o seu rosto com uma expressão surpresa.
"É uma proposta de paz entre Vere e Akielos mediada pelo meu casamento com alguém da nobreza ou realeza de Akielos."
"Com a realeza. Você seria oferecido em casamento para mim, Laurent." —declarou Damen — "Está assinado pela rainha. Isso colocaria fim a qualquer ideia de guerra entre Akielos e Vere por Delpha."
Laurent voltou a conferir o papel com uma atenção meticulosa e replicou, após alguns segundos:
"O documento não está com o carimbo de aceite. Theomedes recusou a proposta."
"Não, Laurent! Meu pai e eu tínhamos uma boa relação e ele sempre me deixava a par sobre propostas de aliança e negociações entre os reinos. Uma proposta dessa importância trazida por um mensageiro ou embaixador de Vere em Akielos teria chamado atenção o suficiente e meu pai teria me deixado a par. Essa proposta nunca chegou a Ios! Nikandros também, cujos pais participavam da vida política ativamente, nunca ouviu falar deste documento!"
O olhar de Laurent estava escuro e ele levou a mão ao queixo. Ele parecia tentar alcançar algo, olhando para o fogo enquanto remexia o passado.
"O meu tio era o embaixador real, mas após a morte de minha mãe, ele foi rebaixado por Auguste e enviado para uma das propriedades reais em Fortaine para lidar com assuntos burocráticos menores."
Damen franziu o cenho.
"Rebaixado?"
Laurent assentiu.
"Auguste o afastou de Arles, logo após a minha mãe falecer. Creio que muito do ódio que o Regente deveria sentir por meu irmão se aprofundou nessa época. Ao mesmo tempo, foi nesse período que o meu tio conheceu Guion que o visitava na casa de campo real, bajulando-o e esperando colher vantagens certamente."
"Foi aí que o Regente se aproximou de Aimeric?"
"Não, meu tio conheceu Aimeric após os acontecimentos em Marlas, quando ele se hospedou, dessa vez, na residência de Guion durante a viagem para Fortaine."
"Suspeita de alguém que possa ter sido incumbido de entregar este documento ao meu pai?"
Laurent sacudiu o rosto.
"Eu tinha doze anos nessa época e não participava das atividades políticas. Mas me lembro nitidamente de Auguste, certa vez, enquanto estávamos jantando, receber um mensageiro e discutir algum assunto com o meu pai em uma sala isolada. Os dois pareciam transtornados e quando perguntei ao meu irmão o que acontecera, ele não me explicou, mas disse que um dos últimos desejos da nossa mãe fora um erro e que eu me casaria com alguém da corte de Vere que reconhecesse o meu valor e que ele e o meu pai escolheriam a dedo e não alguém bruto que me rejeitasse. Nunca entendi essa explosão de Auguste e por que estava falando de casamento comigo." — Laurent se deteve um segundo, meneando o seu rosto— "O bruto que me rejeitou deveria ser você. Pensando bem, acho que Auguste não gostaria de você não."
Damen entreabriu a boca, mas depois a fechou, sacudindo o rosto.
"Eu não o rejeitei!"
Laurent permaneceu pensativo.
"A minha mãe deixou que Auguste protelasse uma proposta de casamento ao máximo, mesmo ele sendo o príncipe herdeiro. É estranho ela tentar me empurrar para Akielos enquanto eu ainda era um menino. E eu não sabia que mamãe sabia que eu gostava de garotos."
Laurent ruborizou mais fortemente na última sentença. Damen se pôs, então, a folhear uma das pilhas trazidas do quarto de Nikandros para lá, procurando por um outro documento. Após alguns minutos, ele puxou para si um outro papel, entregando-o a Laurent.
"Achei isso aqui também. Dê uma olhada..."
Laurent se pôs a ler a escritura. Tratava-se da proposta de casamento de Auguste com uma prima de Kempt, visando manter a aliança da nação com Vere.
O rei veretiano apoiou a mão no queixo, dizendo:
"Disso, eu lembro vagamente. Kempt recusou a proposta de casamento de Auguste que foi levada pelo conselheiro Herode. Acho que houve alguma acusação contra o meu irmão que eu nunca soube do que se tratou afinal. De qualquer forma, há uma pessoa a quem devemos perguntar sobre esses papeis e já era um conselheiro de confiança do meu pai nessa época: Herode. Ele vai sair em viagem amanhã de manhã cedo, mas retorna em algumas semanas. Vamos procurá-lo!"
Damen assentiu, levando a taça de refresco aos lábios. Depois, disse:
"Se essas duas alianças houvessem sido colocadas em prática, nunca teria havido a guerra entre Akielos e Vere..."
Os olhos de Laurent se tornaram pensativos e ele espreitou o documento em que ele era oferecido em matrimônio à nobreza de Akielos. Uma breve ruga se desenhou em sua fronte e desapareceu na pele leitosa como se um pensamento emergisse na superfície de seu rosto e, depois, afundasse. Damen perguntou então:
"E o que você descobriu em sua pilha?"
"Nada além do que foi dito na reunião. Torgeir estava certo. Meu pai cedeu armamento, ouro e provisões para Patras em troca de lealdade irrestrita e a cessão do território inteiro de Ver-Vassel. O tratado está assinado pelo meu pai, pelo pai de Torgeir e pelo Conselho."
Damen se endireitou em seu assento, após refletir por um instante. Ele falou então:
"Sinceramente, eu não acredito que tenha sido Torgeir que tentou envenená-lo, Laurent. O rei de Patras me pareceu um homem sincero na reunião."
Laurent pestanejou os seus olhos azuis.
"E Vishkar?"
Damianos sacudiu o rosto.
"Não sei. Só acho que a imperatriz parecia transtornada demais com o envenenamento de Afanas e de Sorem de Ver-Tan. E quando você mandou prender Torgeir, ela quase pulou em cima de você disposta a proteger o amigo. Vishkar parece ser uma mulher perigosa, mas também espontânea em suas ações. Meu pai visitou Vask, certa vez, quando eu tinha quatro anos. Ele dizia que a imperatriz Betthany era uma mulher forte, mas ardilosa. Mas que a imperatriz herdeira era uma garotinha franca e de bons instintos..."
Os dois reis trocaram um olhar e Laurent tamborilou os seus dedos sobre a mesa, parecendo pensativo.
"Veneno, ringues clandestinos e provas falsas... O que isso tudo quer nos dizer, Damianos?"
Os próximos dias transcorreram agitados e a ordem de prisão dada a Torgeir se mantinha, a despeito dos membros da corte patrana e soldados continuarem sendo bem tratados no reino.
Torgeir estava sendo mantido em seus aposentos suntuosos com guardas veretianos postados diante da porta. Torveld tentou intervir junto a Laurent pelo irmão, mas sem sucesso.
Após uma audiência com Torgeir, no entanto, o embaixador patrano não insistiu novamente.
Laurent visitava Afanas várias vezes ao dia e uma luz de alegria perpassou os seus lábios quando o filhote de leopardo foi declarado fora de perigo, abrindo os seus olhos redondos e se agitando diante do rei veretiano. Sorem, por outro lado, apesar de ter sobrevivido, permanecia desacordado na maior parte do tempo e parecia muito fraco de acordo com o médico, tendo ainda febre e calafrios.
"É um veneno que reage de um modo muito específico de acordo com o paciente. O imperador possui o coração um tanto fraco e isso complica o caso. Quando ele puder falar, mandaremos chamá-lo imediatamente, Majestade." — disse o médico veretiano.
Entrementes, Latifa estava sendo tratada por Paschal e o fato de estar viva ainda se mantinha como um dado sigiloso. Uma escrava e uma ama de confiança foram designadas para ajudarem Paschal nos cuidados com a jovem.
Laurent resolveu agir finalmente quando um arauto de Enguerran chegou à Arles no mesmo dia em que um mensageiro das fronteiras da floresta ao norte se apresentou.
Houve um momento em que o rei veretiano se trancou na sala de reunião com os dois homens e enquanto os emissários transmitiam as suas mensagens, os olhos de Laurent se ergueram com surpresa e tensão. Ele permaneceu um tempo em silêncio, com os punhos fechados sobre a mesa, juntando aquelas peças intrincadas do quebra-cabeça em sua mente ávida por respostas.
Subitamente, ele se tornava a par sobre o que a companhia de circo transportava ao norte e o que a comitiva de Vask e Patras levavam em sigilo para o sul.
Falando mais com os próprios pensamentos do que com os dois informantes que tinha diante de si, o rei veretiano murmurou com um sorriso enviesado de compreensão:
"Então, é isso o que eles pretendem?"
(cut)
No dia seguinte, Laurent mandou que Isander reunisse os Confiáveis para um encontro que não se deu, dessa vez, na sala de reunião habitual, mas no próprio Quarto Real, a fim de não atrair a atenção das pessoas do palácio.
Laurent havia compartilhado o que descobrira no dia anterior com Damianos e, após uma noite em claro em que os dois homens se debruçavam sobre um mapa como nos velhos tempos, eles resolveram agir.
Os Confiáveis chegaram em pares e fora pedido que houvesse discrição ao se aproximarem do Quarto Real. Os guardas na porta os recebiam e os verificavam com desconfiança, antes que lhes dessem passagem com um movimento das suas lanças.
O primeiro a chegar foi o pontual lorde Berenger, acompanhado de Ancel. Em seguida, Charls e Guillaime. Loyse chegou de braços dados com Makedon. Nikandros veio em seguida, tendo ido buscar Paschal na ala médica. Jord também veio, tendo a sua espada embainhada.
Por último, chegaram Pallas e Lazar, que, por sua vez, pareceu tímido ao se encontrar no faustuoso aposento de vários quartos dos reis das nações-irmãs, com paredes e tetos altos ornamentados em ouro e com entalhes representando o palco de uma caçada. As espadas de Damianos e Laurent permaneciam, contudo, recostadas em um canto da entrada, entrecortando o luxo de modo afiado e silencioso.
Isander fechou as portas duplas com arabescos, enquanto todos se acomodavam ao redor da enorme mesa de madeira entalhada, sentando-se em cadeiras com espaldares altos e almofadas confortáveis. Depois, o serviçal se pôs a servir chá para todos em xícaras de porcelana com gravuras de ouro.
Laurent tinha os dedos entrelaçados diante do seu rosto e falou com a sua voz preguiçosa:
"Não há necessidade de eu reforçar que tudo o que dissermos aqui é estritamente confidencial. Ninguém além de Damen e dos serviçais entram no Quarto Real e espero que não comentem a vinda de vocês aqui nunca para ninguém. Preciso que realizem algumas tarefas enquanto eu e Damianos não podemos nos afastar da capital."
O olhar do veretiano pousou em Charls e Guillaime. O comerciante de tecidos tinha uma expressão cabisbaixa.
"... Como todos sabem aqui, houve uma tentativa de me envenenarem. Há um ou mais traidor em Arles. O meu jantar foi adulterado com o mesmo veneno utilizado na fronteira de Ver-Tan anos atrás durante a batalha de Vask e de Patras. Paschal o identificou rapidamente."
O médico veretiano ergueu o seu olhar para todos os presentes, tocando na ruga em sua fronte e se pondo a falar, após a exposição do seu nome.
"Trata-se de um veneno muito peculiar e que se cria em processos. Ele é feito a partir do gafanhoto que come plantas com uma espécie de fungo. Até então, o inseto não é venenoso. Mas quando alguns tipos de pássaros comem o gafanhoto, o fungo que passa a habitar o seu corpo reage com o suco gástrico da ave e o veneno é produzido a partir do excremento do pássaro. O contato do veneno com o corpo humano pode ser fatal, atacando os órgãos humanos rapidamente. Esse veneno é mais conhecido no Oriente, tendo sido trazido até o Leste por corsários. Após a guerra de Patras e Vask e o envenenamento dos soldados patranos, alguns médicos se puseram a estudar a substância. Os sintomas dela são muito característicos e rápidos. Quando vi o estado do imperador de Vask e a sua demanda constante por água, suspeitei que fosse o mesmo veneno utilizado na guerra e aconselhei o rei a consultar um especialista. O rei Aleron e Auguste temiam pelo veneno em terras veretianas e mandaram que produzíssemos um antídoto. E nós o temos. Ele é feito a partir do mesmo gafanhoto. A natureza é misteriosa, não é mesmo?"
Laurent prosseguiu então.
"O boticário que eu mandei buscar na cidade analisou a carne que o meu leopardo comeu e, de fato, foi constatada a presença do veneno. Contudo, não só a minha comida foi adulterada, mas o livro que eu estava lendo também..."
Lorde Berenger franziu o cenho.
"O livro?"
"Sim. O boticário da cidade disse que as páginas estavam repletas de um outro poderoso veneno que se estendia desde o papel branco até o refilo dourado do exemplar. Algumas horas manuseando-o seria o suficiente para eu permanecer de cama em um estado grave, tossindo e sem conseguir respirar direito. A única razão para eu não ter sido envenenado é que eu não havia lido a obra ainda. Eu começaria a lê-la no dia fatídico. E quem me trouxe o livro e o repassou a Isander foi... Charls."
Um silêncio se fez no quarto em que todos os rostos se voltaram para o comerciante veretiano. O seu assistente Guillaime se mantinha tenso e com a coluna ereta. Charls aquiesceu, fungando:
"Vossa Majestade me procurou no dia seguinte ao evento e, assim como lhe disse naquele dia, me coloco à disposição para ser preso se alguma dúvida pairar sobre os meus atos. Eu adquiri o livro em Kesus e o mantive fechado em meu baú durante a viagem inteira de vinda para Arles, abrindo-o somente para entregá-lo a Isander para que lhe repassasse na sua festa de aniversário, Majestade."
Damen se recordou de Charls entregando discretamente uma sacola para Isander durante a festa de aniversário de Laurent e mentindo que o conteúdo se tratava de alguns tecidos.
"Não duvido de você, Charls. E nem de Isander. Eu quem pedi que me trouxesse esse livro akielon de Kesus e que fosse discreto, entregando-o ao meu serviçal, mas acredito que alguém mal-intencionado tenha o ouvido falar sobre ele e tenha entrado em seu quarto escondido para envenenar as páginas. Você falou sobre isso com mais alguém?"
Charls pestanejou, tentando se recordar.
"Talvez, Majestade. Eu deixei o almoço do seu aniversário bastante alterado devido à bebida akielon que foi servida..."
Guillaime disse então:
"Falamos sobre esse livro no jardim, Majestade. Estávamos um pouco bêbados e havia pessoas ao redor. Mas também falamos aos guardas do que ele se tratava quando os soldados se puseram a inspecionar os nossos pertences ao chegarmos em Arles. Alguns dos homens tentaram confiscá-lo. Precisei dizer que o livro era destinado à Vossa Majestade e que eles não podiam ficar com ele."
Nikandros ergueu uma sobrancelha, indagando:
"Os soldados tentaram confiscar um livro akielon? Achei que a maioria deles não soubesse ler. Por que eles iam querer ficar com um livro...?"
Laurent enrubesceu. Charls e Guillaime fitaram o rei, selando os seus lábios. Foi Damen quem respondeu, dando o assunto por encerrado:
"Era um livro de pinturas de paisagens. Havia muitas ilustrações belas do mar de Ellosean e da ilha de Isthima. Bom, alguém envenenou o livro e havia uma tentativa de afetarem Laurent de uma forma ou de outra. O assassino pode estar entre as nações visitantes, mas isso não é garantido."
Ancel, que usava um tom de batom forte, tinha a boca pendendo frouxa.
"Acham que há espiões dentro da própria Arles?"
Laurent mantinha os seus dedos entrelaçados diante do rosto e os cotovelos apoiados na mesa entalhada. Ele respondeu com a sua voz arrastada, sem demonstrar emoção:
"Acho que sempre houve. Talvez, mesmo antes de eu nascer. Nos encontramos diante de uma trama que não acho que se iniciou hoje, mas há anos atrás. Uma trama que foi pensada pela cobra mais venenosa que já se arrastou por Arles: o meu tio."
Um silêncio encalmadiço se fez no quarto. Da sacada, ouvia-se o ruído de vozes distantes e órgãos musicais sendo afinados.
Makedon deslizou o dedo por seu queixo, dizendo de um modo simples e honesto:
"Aquele bastardo não morreu? O que ele ainda quer com os vivos?"
Foi Damen quem respondeu:
"De alguma forma, mesmo morto, a influência peçonhenta do Regente ainda paira sobre os seus apoiadores."
Makedon contraiu, então, as sobrancelhas, após respirar fundo:
"Vi o tipo de influência dele naquele puteiro que desmantelamos. Se o seu tio fosse um homem vivo, Laurent, eu teria prazer em enfiar uma adaga em cada olho dele, mas como se combate a porra de um homem morto?"
O rei veretiano contraiu o canto dos seus lábios, dizendo enquanto pegava um punhado das folhas envelhecidas de chá de um pote de porcelana azul e as amassava sobre a mesa, espalhando na madeira polida farelo verde cor de musgo.
"Da mesma forma que matamos o seu corpo. Atingindo um ponto vital; proporcionando execução pública e deixando uma lembrança de como tudo, mais cedo ou mais tarde, se acaba para os vivos. Principalmente para aqueles que criaram tantos inimigos. Precisamos interromper o plano de quem está por trás disso."
Loyse pestanejou os seus olhos verdes preguiçosos de pálpebras levemente caídas. Ela tinha os cabelos castanhos com fios prateados presos em um elegante coque na nuca e uma tiara de pérolas adornava as suas madeixas. As cores de suas roupas eram mais coloridas também e Damen refletiu, por um segundo, que Makedon, talvez, estivesse sendo uma boa influência para a nobre, que, até então, revestia-se por tons opacos, discretos e se relegava às sombras.
"Majestade, como podemos ajudar?"
Laurent olhou para Damen de um modo tácito. O akielon, então, se levantou, pegando um pequeno baú de madeira envernizada sobre a cornija da lareira. Havia um pequeno cadeado de prata que foi aberto pelo rei de Akielos e o cacifo foi trazido, então, para a mesa. O rei de Vere disse:
"Nos ringues clandestinos, os envolvidos nunca sabem além do que devem saber e, visando a segurança da operação e de todos, resolvi adotar esse padrão. Neste baú, existe uma carta escrita para cada um de vocês. Vocês devem lê-la com o seu companheiro destinado e não informar uns aos outros. Depois, queimaremos a carta aqui diante de todos, entenderam?"
Após Laurent falar, um silêncio se fez no ambiente em que todos tinham a sua atenção voltada para o baú de madeira envernizada que fora destrancado por Damianos e se mantinha sobre a mesa diante de Laurent.
Em seguida, os presentes aquiesceram, após se olharem brevemente. Laurent abriu o cacifo e se pôs a chamar os presentes.
"Lorde Berenger e Ancel. Podem ler o conteúdo da carta na sacada. Ancel tem se saído bem nas aulas de leitura, mas qualquer palavra que não seja compreendida, lorde Berenger poderá explicá-lo."
O cortesão e o escravo de estimação se ergueram em silêncio e, após uma mesura, Berenger tomou em suas mãos o envelope branco e seguiu para a sacada com balaústres. Ele não se demorou mais do que cinco minutos e se ele leu a carta para Ancel, não foi possível saber, pois a conversa entre os dois se manteve inaudível.
Quando eles retornaram, Laurent esticou a mão para recolher a carta e, recebendo-a de volta, queimou-a no fogo do candelabro, abandonando as labaredas e as suas cinzas sobre um prato de porcelana.
Os próximos a serem chamados foram Loyse e Makedon, que procederam da mesma forma. Depois, Charls e Guillaime. Nikandros e Isander. Em seguida, Pallas e Lazar receberam uma carta escrita em akielon, que Pallas deveria traduzir para o seu amante que não sabia ler em nenhuma língua. Por último, foi entregue um envelope a Paschal que se recolheu à sacada e que, quando retornou para o quarto, devolveu-o ao rei veretiano. O papel foi destinado ao fogo como os outros e se assomou ao monte de cinzas e pedacinhos brancos chamuscados sobre o prato.
Lazar e Pallas tinham os braços cruzados e as cabeças baixas, um tanto pensativos. De algum modo, todos pareciam ostentar o mesmo semblante de concentração como se relessem o conteúdo da carta com as suas mentes e o tatear inaudível da língua no palato, repassando linhas.
Quando não havia mais cartas e todos já haviam recebido as suas incumbências, Laurent falou:
"Jord não dispõe de uma carta porque a função dele é óbvia. Na ausência de Enguerran, ele é o capitão da Guarda Rea responsável pela minha segurança e da de Damianos. Aktis não está presente porque está cuidando da vigilância de Patras. Aqueles que devem deixar o palácio, devem fazer isso hoje à noite pelo caminho secreto atrás do castelo. É preciso discrição diante de todos e não quero que ninguém desconfie que saíram do palácio."
Damen trocou um olhar com Nikandros, que apoiou as suas mãos cor de oliva sobre a mesa, contraindo as sobrancelhas com um ar inquisidor.
"Cumprirei a minha função, mas tenho uma pergunta, Laurent."
O rei veretiano se recostou no espaldar de sua cadeira, tendo o pulso com o bracelete dourado apoiado no braço do assento.
"É livre para fazê-la, kyros."
Nikandros trocou um outro olhar com Damen, antes de perguntar:
"Se o seu reino está sendo alvo dos ataques de pessoas mancomunadas com o Regente, por que confia em nós?"
Laurent pestanejou os seus olhos gélidos, sem demonstrar qualquer alteração em sua expressão.
"É uma pergunta sensata, Nikandros..."
Os rostos daqueles que eram tidos como Confiáveis estavam voltados para o rei de Vere, que prosseguiu:
"...Todos vocês, de alguma forma, se quisessem acabar comigo ou com Damianos poderiam ter feito isso há dois anos atrás. Ou podiam ter se isentado de qualquer consequência para si mesmos, permanecendo apoiadores ou, no mínimo, imparciais perante o meu tio e Kastor. Existe um modo simples de se testar a lealdade de um homem ou mulher e foi o rei de Akielos que me ensinou esse método infalível. Você confia em alguém que o viu não somente sentado em um trono, tendo um séquito de seguidores, mas ajoelhado diante de outro trono, esperando por um destino incerto e sendo apostado como um cachorro perdedor. Creio que todos vocês se lembrem de quando fui preso em Ios para me submeter a um julgamento injusto e de como Damianos se juntou a mim, condenando a si mesmo à possibilidade de execução. Vocês também nunca titubearam, apesar de alguns aqui não gostarem da minha forma de agir. Vocês se colocaram em risco pela causa minha e da de Damen e, indiretamente, estiveram ajoelhados também diante do Regente e de Kastor. Obrigado por isso. Nunca pude agradecê-los propriamente."
Makedon pigarreou, após um silêncio que se demorou tempo demais, falando:
"Eu titubeei. Eu não confiei em você por um único segundo no início, Laurent."
Laurent assentiu.
"Sei disso. Mas, ao mesmo tempo, você permaneceu porque acreditava na causa de Damianos e não poderia deixar alguém como Kastor reinar em Akielos."
"Não, eu não poderia."
"Você foi honesto o suficiente como Nikandros e Pallas para deixarem claro que não gostavam de mim, Makedon. De algum modo, isso é mais sincero do que a corte de Arles em que muitos me chamavam de Alteza, mas por trás, se divertiam quando o meu tio me punia e retirava as minhas terras, correndo para bajulá-lo e me difamar."
Makedon respirou fundo, dizendo após olhar para Loyse com os seus olhos escuros.
"A minha desconfiança ficou no passado. Eu reafirmo a minha lealdade às nações-irmãs e será uma honra cumprir o que me foi designado."
Pallas, sentado ao lado de Lazar, fez um gesto deferente em direção a Laurent. E Nikandros aquiesceu em silêncio, como se a resposta dada pelo rei veretiano entrasse em conformidade com alguma parte sua.
Quando a reunião se encerrou, novamente o grupo deixou o Quarto Real em pares. Loyse e Makedon se demoraram um pouco mais no recinto porque Laurent precisou entregar a eles um documento fechado em um canudo de metal com o seu sinete, destinado a uma pessoa especial.
O casal deixava o corredor da ala real, quando uma voz atrás os chamou. Tratava-se dos conselheiros Jeurre e Chelaut. Os dois homens usavam roupas de veludo suntuosas e o medalhão do Conselho reluzindo sobre as suas vestes. O olhar deles se deteve na mão repleta de anéis de Loyse se dobrando sobre o braço forte de Makedon.
"Senhora de Fortaine!"
"Conselheiros!" — disse a mulher veretiana, com uma mesura educada, levantando um pouco a bainha do seu vestido de tecido verde e vermelho.
"De onde vem? Por que está deixando a ala real? Os cortesãos estão proibidos de circularem por esta área, depois do ataque que o rei Laurent sofreu." — disse Jeurre, observando Makedon dos pés à cabeça — "O rei tem estado recluso e nem mesmo dos conselheiros tem aceitado visitas. Tenho algo para dizê-lo, mas não pude ainda fazê-lo..."
Loyse inclinou o seu rosto com uma inocência teatral, abrindo um pouco mais os seus olhos vicejantes. Havia um persuadir dominante em seu sorriso quando ela levou a mão ao peito com surpresa e uma sensualidade que, normalmente, ocultava. Makedon constatou que Loyse, de fato, era uma serpente de Vere.
"É mesmo? Perdoem-me. Estávamos rumando para o meu quarto e viemos para cá por uma distração..."
Jeurre e Chaulet escancararam as suas bocas, fitando Makedon, um akielon mais jovem com o dobro do tamanho da mulher e trajando o quíton que revelava os seus músculos enrijecidos e a pele oliva.
Jeurre pigarreou, indicando o comandante do exército do Norte com um discreto movimento do queixo.
"Lady Loyse..."
A mulher poderia ter feito uma fortuna em alguma companhia de teatro, parecendo não entender a surpresa dos conselheiros e atirando ao esquecimento o fato de que ela e Makedon vinham do corredor que levava ao Quarto Real.
Ela trocou um olhar com Makedon e se adiantou, tocando com os dedos delicados o medalhão de Jeurre. Seus dedos circundados por anéis eram serpentes finas e ágeis deslizando sobre o conselheiro.
"Por favor, senhor conselheiro, imploro que seja discreto. Guion havia me dito, certa vez, que o senhor nutre o gosto por mulheres, assim como o conselheiro Chelaut. Quando chegamos a uma certa idade e nos tornamos viúvos, fica difícil negar os nossos instintos. Eu não posso mais gerar filhos. Não há tabu."
Makedon pestanejou com surpresa perante o absurdo do diálogo que se formava diante de si entre Loyse e os dois conselheiros. Em Akielos, uma nobre viúva ou solteira não deveria ficar se explicando para um bando de coscuvilheiros sobre as suas fodas. Tampouco, ele compreendia o olhar de julgamento dos veretianos. Ele era um homem forte e capaz, que podia satisfazer a atraente senhora de Fortaine, apesar de nada ter acontecido entre eles, além de gracejos, flertes e palavras alusivas.
Não que ele não desejasse alguma intimidade, mas a senhora de Fortaine parecia conduzir aquele cortejo com graça e um ritmo próprio. Makedon não estava acostumado com isso, pois as mulheres akielons eram mais diretas e era rápido um casal terminar em um enlace sexual. Ele nem mesmo sabia se ela o desejava de fato, apesar de apreciar a sua companhia e conversa. Mas agora Loyse estava insinuando que os dois iriam para a cama e se esse era o plano, ele a apoiaria.
"A senhora tem consciência de que isso é um absurdo na corte de Arles em que homens e mulheres só dormem juntos, após um matrimônio legal, não é mesmo, Loyse de Fortaine?" — declarou Chaulet.
Loyse deu um passo para trás ao constatar o olhar recriminador dos conselheiros. Makedon se adiantou, então, falando em seu veretiano quebrado e de verbos não conjugados na forma correta.
"Vocês, veretianos, deveriam perder o medo de bastardos e aprenderem a foder com quem sentem vontade. Foderem por prazer. Uma mulher deveria ser tocada por um homem, antes do casamento se ela assim o desejasse ou em sua viuvez. Pelo menos, dessa forma, ela não correria o risco de se casar com uma merda preguiçosa e ruim de cama feito o conselheiro Guion, antigo amigo dos senhores. Queiram sair da frente então. Preciso ir atender à lady Loyse, dando-lhe algo que preferimos fazer longe dos caramanchões, a não ser que queiram ver a minha benga, seus filhos de uma puta hipócritas!"
As bocas dos conselheiros pendiam frouxas, quando Makedon deu o braço para Loyse e os dois passaram por entre os dois homens, trombando um pouco em seus corpos.
A senhora de Fortaine tinha também a boca entreaberta e olhou de soslaio para o comandante do exército do Norte, sentindo a antecipação de uma risada em sua garganta e mordendo os seus lábios para retê-la.
Loyse não se recordava em sua vida de ter sido alguma vez defendida daquela forma por seu falecido marido e nem mesmo por algum dos seus filhos. Ela vinha de uma casa povoada por homens que a consideravam uma mãe virtuosa e de bom nascimento. Apenas.
Makedon se manteve em silêncio por algum tempo. Depois, pigarreou, dizendo:
"Desculpe-me. Não gostei do modo como estavam questionando a senhora..."
"Tudo bem." — replicou Loyse, mordendo os lábios novamente.
Quando chegaram ao corredor veretiano que levava ao quarto dos nobres, Makedon se desvencilhou do braço de Loyse com delicadeza, dizendo ao evitar o seu olhar verde que o deixava um tanto desconcertado.
"A senhora pode seguir daqui. Eu vou voltar para os meus aposentos e preparar as minhas coisas para partirmos de noite. Venho buscá-la para seguirmos até os fundos do palácio. Não se preocupe que será uma viagem segura e eu a protegerei de perto. Queira me dar licença..."
Makedon dava as costas, mas os dedos circundados por anéis de Loyse se fecharam no braço forte do homem mais jovem, dizendo:
"Espere..."
Houve um silêncio irregular, cercado por vozes de escravos; homens que trabalhavam nos pátios; cortesões que passavam por eles; cachorros latindo nos fundos e o canto dos pássaros nos jardins.
Loyse apertou os seus olhos verdes, dizendo:
"Obrigada por me defender, Makedon. Os conselheiros sempre me viram como a esposa de Guion ou a viúva de Guion. Me espanta saberem mesmo o meu nome."
Makedon sacudiu o rosto, declarando de modo resoluto:
"Dois parvos. Não me admira terem sido enganados pelo Regente durante uma vida inteira."
Loyse ainda tinha os seus dedos se fechando no braço oliva do comandante.
"Eu ainda posso gerar filhos." — disse a mulher, subitamente, erguendo o seu olhar, após tê-lo baixado por um segundo— "Estar comigo pode ser arriscado para um homem que teme bastardos."
Houve um breve silêncio e uma troca de olhares tácita. Makedon retorquiu então:
"Akielons não se importam nem um pouco com isso, lady Loyse. Mas se for um problema para a senhora, existem chás que as mulheres akielons utilizam para evitar uma gravidez indesejada. Além disso, existem modos durante a foda de se evitar filhos também. Podemos nos divertir, sem corrermos riscos."
Makedon sentia a pulsação em seu corpo e o ritmo do seu coração se acelerar e ele não entendia o porquê. Ele sentia um formigamento em seu braço na parte em que os dedos de Loyse se fechavam. Ele já dormira com inúmeras mulheres em sua vida, desde escravas até nobres curiosas sobre o trato de um general bruto do Norte. Ele não entendia por que a veretiana o deixava ansioso.
Loyse apertou os seus dedos sobre o braço de Makedon e foi ela quem fez o convite, parecendo dar um passo que as suas pernas ensaiaram a vida inteira dar.
"Eu gostei do que o senhor falou para os conselheiros. O senhor gostaria de vir até o meu quarto?"
O akielon e a veretiana se detiveram um segundo enquanto um grupo de nobres e crianças com vestes escolares passaram por eles.
Makedon engoliu em seco, dizendo:
"Não quero constrangê-la e nem criar embaraços para a senhora..."
Loyse sorriu. Makedon notou que sob a luz solar, era possível ver algumas sardas nas maçãs do rosto da veretiana e imaginou que o casamento com Guion deva ter sido o tipo de coisa arranjada que cortesões fazem, sem amor, sem compatibilidade e sem desejo.
Os cabelos castanhos da senhora de Fortaine tinham alguns fios prateados, mas Loyse parecia uma garota naquele momento com as bochechas levemente coradas. Ela era uma mulher de meia idade, mais velha que Makedon, graciosa e com o perfume de lírio exalando de si. O comandante akielon a achava a mulher mais bonita e desejável de toda Vere.
Era um erro deixar que uma mulher que gostava da companhia de homens se servisse de um que nunca se preocupara em satisfazê-la enquanto lhe fazia quatro filhos. Makedon se lembrava ainda da vez em que vira Guion há dois anos atrás quase, sendo conduzido em uma carruagem que se tornava ridícula graças a ele.
O conselheiro Guion, na ocasião, parecia um tanto parvo e um tanto arrogante, olhando Laurent de Vere e Damianos de Akielos de uma janelinha da sua cabine puxada por cavalos, que colocava a sua cara feia em um desfavorável destaque, sendo enquadrada por uma cortina um tanto vagabunda. Pouca Inteligência e arrogância era uma combinação triste para qualquer mortal ou imortal. Falta de caráter tornava tudo pior. A fealdade era só a cereja do bolo.
Parvo desgraçado.
Makedon esticou os seus dedos e acariciou uma mecha solta do penteado elegante de Loyse e prosseguiu:
"... O que uma cortesã veretiana sofisticada espera de um homem akielon bruto do Norte como eu?"
"Nunca fui tocada por um homem além do meu marido. Nunca dormi com um homem que quisesse estar comigo de verdade. Toque-me, se o senhor não estiver somente brincando comigo. Se sente desejo por mim de verdade."
Makedon deslizou os dedos até o rosto de Loyse e assentiu, após quase um minuto, não compreendendo o nervosismo, a antecipação em satisfazer aquela cortesã veretiana tão distante do seu mundo rude de soldados; guerras; lâminas de espada brilhando ao sol e cintos com marcas, contabilizando o número de inimigos abatidos. Mas, de algum modo, os dois estavam lá. Servindo em uma missão que envolvia os seus reis e os seus ideais.
Quando Makedon aquiesceu, ele se lembrou de como ele começara aquele flerte quase como uma brincadeira, mas se envolvera de um modo quase imperceptível. Ele, Makedon, que afirmava odiar veretianos há dois anos atrás e, amiúde, confrontou Laurent, não entendendo a sua cultura e a sua forma de lidar com as situações.
Talvez, a ideia central de cultura de Vere e cultura de Akielos, graças ao envolvimento de Damianos e de Laurent, estivesse se tornando cada vez mais porosa, híbrida, mesclada. Ou então, no fim das contas, tudo fosse ilusão de um mapa rabiscado sobre a terra, definindo o que homens e mulheres do norte e do sul eram, quando, na verdade, eram somente pessoas que podiam se sentir terrivelmente sozinhas dentro dos espaços e hábitos que lhes eram conferidos. A humanidade não tremulava bandeiras.
Makedon apertou os dedos de Loyse e os sentiu quentes e macios na palma de sua mão áspera pelo cabo da espada e rédeas do cavalo. E eles rumaram para o quarto da senhora de Fortaine.
O akielon fechou a porta do aposento enquanto a mulher libertava os seus cabelos espessos e ondulados com o tom castanho tocado pelo cobre e pela prata, deixando-os cair livres por suas espáduas.
Os dois se olharam, dispostos a despedaçarem os tabus de suas vidas, que os afastava e, ao mesmo tempo, os colocava um diante do outro, potencializando o que eram, mas, sobretudo, o que viriam a ser.
(cut)
Havia três carruagens de rodas raiadas estacionadas nos fundos do palácio durante a noite. Uma fina camada de névoa se desprendida do ar, cobrindo os gramados tomados por roseiras e por fontes sorumbáticas com estátuas de pedra esculpida jorrando água. No horizonte, era possível ver a arquitetura de torres gigantescas em branco e dourado com faixas de ouro tremulando ao vento da cidade palaciana.
Charls e Guillaime foram os primeiros a partirem, tendo a sua carruagem puxada por cavalos castanhos com crinas e caudas muito bem escovadas, codilhos brilhantes e resfolegando fumaça.
Logo atrás deles, Pallas e Lazar montaram em cavalos de pernas compridas e quartelas inquietas.
O rei de Vere, que se mantinha de pé ao lado de Damianos, próximo aos ciprestes, lhes disse:
"Hendric os encontrará na estalagem Raio de Sol. Tomem cuidado."
Os soldados assentiram e a atenção de Damianos se concentrou nas marcas de mordida que cicatrizavam ainda na mão e pulso de Pallas devido aos cachorros que ele dominara durante o desmantelamento do ringue clandestino há dias atrás.
"Não se coloque em risco, Pallas. Nos vemos daqui a alguns dias." — declarou o rei akielon.
Os próximos a partirem foram lorde Berenger e Ancel. O cortesão veretiano se mantinha discreto em roupas de viagem marrons muito sérias, mas Ancel não. O escravo de estimação usava uma capa de viagem vaporosa de veludo verde com uma estola felpuda branca ao redor de seus ombros, presa com um broche de diamante; luvas de seda e os cabelos ruivos amarrados em uma trança comprida de seis mechas, adornada com um fio de contas de esmeralda.
Lorde Berenger acarinhou a crina do cavalo malhado e Ancel deu um passo para trás quando o animal meneou a sua cabeça, pateando o chão e relinchando um pouco.
"Vamos logo entrar na carruagem, Berenger. Ainda tenho nervoso de cavalos." — disse o rapaz veretiano, sacudindo a mão diante de seu rosto e se adiantando até a escada do veículo.
O cortesão arqueou as sobrancelhas, dizendo:
"Você tem montado Ruby algumas vezes, Ancel."
"Ruby é um unicórnio dócil. Não um cavalo monstruoso. Venha..." — replicou o escravo de estimação, apressando o mestre.
Lorde Berenger sacudiu o rosto, parecendo se divertir com o rapaz.
O desenlace que se dava entre lorde Berenger e Ancel os colocava em um oposto muito claro em suas preferências e gostos, mas os dois pareciam se divertir juntos e isso lhes era o suficiente. Lorde Berenger gostava de mimar Ancel, satisfazendo os seus desejos incompreensíveis e espontâneos e o rapaz parecia retribuir com o seu afeto sincero e cheio de gracejos juvenis.
Laurent se voltou para lorde Berenger, dizendo:
"Um mensageiro já foi enviado para avisar os meus homens em Chastillon. A pessoa que devem trazer, certamente, vai vir de bom grado. Ele espera ansiosamente por isso, mas mantenham ele sob vigilância."
Berenger aquiesceu e a sua carruagem partiu, sendo puxada pelos cavalos quando o cocheiro Jean os colocou em movimento. Ao fazer a curva, foi possível se ver a mão enluvada de Ancel acenando por trás da janelinha do veículo como uma princesa faria para o seu séquito, antes que Berenger se antecipasse e fechasse a cortina, lembrando-lhe da instrução de discrição exigida pelo rei.
Damen coçou o seu queixo.
"Acha que é mesmo uma boa ideia mandá-los nessa missão?"
Laurent acompanhou com o olhar frio a carruagem rumar para o portão com os cavalos a puxando e disse, contraindo um pouco o canto dos seus lábios em um apóstrofo:
"Precisa ser eles. Não podemos perder Toby de vista. Fora eu e Nikandros, somente lorde Berenger e Ancel viram o rosto do escravo que sabe de algum segredo importante do Regente. Eles se sairão bem."
Em seguida, Makedon e Loyse foram despachados.
O comandante do exército do Norte não viajaria numa carruagem, mas em seu cavalo de pelos negros e reluzentes que viera do sul junto com ele. O homem se mantinha com roupas akielons de montaria confortáveis e folgadas. Em seu cinto, estava embainhada a sua espada de um lado e a adaga de outro.
Loyse trajava uma capa escura com um capuz repuxado até a sua cabeça por sobre o vestido suntuoso de laços entrelaçados em ilhoses. O canudo com o sinete do rei residia preso à faixa em sua cintura.
Ela fez uma mesura diante do rei veretiano e Laurent lhe disse:
"Já foi enviado um arauto até Toutaine. Meus homens os receberão na fronteira. Tomem cuidado."
Loyse aquiesceu e, antes de entrar em sua carruagem, Makedon deslizou os dedos até as espáduas da mulher, sussurrando-lhe algo no ouvido e Laurent contraiu de um modo quase imperceptível as suas sobrancelhas.
Makedon montou em seu cavalo encilhado e se despediu enquanto escoltava a carruagem da senhora de Fortaine.
Após eles partirem, não havia mais ninguém para deixar o palácio naquela noite. Damen e Laurent deram as costas para o jardim e seguiram para o interior do palácio, sentindo a friagem da noite adentrar o tecido de suas roupas.
Os dois foram visitar Afanas, que ainda estava sob observação na ala hospitalar e era atendido pelo farmacêutico de Vask e uma médica veretiana.
"A imperatriz de Vask e a sua consorte vieram ver Afanas mais cedo." — declarou a médica, baixando o seu olhar diante do rei.
"Ah, é? E como ela estava?" — indagou Laurent, sem alterar a sua voz.
"Nervosa." — respondeu a médica.
Damen retrucou, acariciando as orelhas do pequeno leopardo que voltou os seus olhos redondos para cima.
"Não me admira, tendo Afanas e o imperador passado por maus bocados."
Laurent disse, então, colocando-se de pé, após acarinhar o queixo do felino, e se dirigindo ao farmacêutico responsável por cuidar da saúde dos leopardos em Vask, assim como Kalina cuidava da sua alimentação e desenvolvimento.
"Ou existe outro motivo?"
O vaskiano de meia idade baixou os seus olhos claros e apoiou as mãos diante do corpo um tanto rechonchudo.
"Vossa Majestade Imperial ama os leopardos de Vask. Na guerra de Patras e Vask, ela ia implorar para os mercenários pouparem a vida dos animais quando eles tentaram invadir Skarva, preterindo a sua própria vida. Não confabularei sobre a imperatriz da minha nação. Vishkar é uma governante adorada por seu povo."
Laurent pestanejou preguiçosamente, dizendo:
"Mas estamos em meu reino, meu senhor. Não quero que Vishkar volte aqui. Afanas é um leopardo de Vere agora e foi envenenado há dias atrás. O senhor e Kalina têm a autorização de cuidarem dele, mas ninguém mais de Vask é permitido aqui, entendeu?"
O homem pareceu hesitar e retrucou com mau-humor, torcendo os cantos da sua boca sob o bigode espesso.
"Vou continuar trabalhando aqui pelo pequeno Afanas, não pelo senhor."
"Ótimo. É justamente por ele que está aqui." — replicou Laurent, secamente.
Em seguida, os reis visitaram o imperador Sorem de Ver-Tan, que já fora transferido para um dos quartos do palácio, cuja porta era vigiada por soldados veretianos dia e noite. O médico que permanecia ao seu lado sinalizou que o imperador apresentara uma melhora, após ser removido para os aposentos junto com os seus pertences, mas tivera uma recaída nos últimos dias, voltando a ter febre alta e calafrios.
Laurent olhou para dentro do quarto com a lareira acesa e as cortinas fechadas.
Sorem permanecia dormindo e virado de lado em sua cama suntuosa, tendo um pano úmido sobre a sua testa e o corpo coberto com lençóis pesados.
"Faça com que ele viva." — determinou o rei veretiano.
"Tentarei o meu melhor, Majestade." — respondeu o médico com uma mesura deferente.
Quando retornaram para o Quarto Real, Laurent e Damen rumaram diretamente para o banheiro na sala contígua do aposento em que a tina de louça havia sido preparada por Isander com água quente, sais e os apetrechos de banho.
Como sempre acontecia quando finalizavam o dia, os dois reis, ao se despirem, pareciam que desnudavam também a realeza que caía de seus corpos junto com as roupas severas; as responsabilidades; o engessamento; a tomada de decisões e as suas consequências.
Laurent enxaguou com os seus dedos empapuçados de sabonete perfumado e mirra os cabelos de Damen. Depois, ele teve um pano macio sendo deslizado por suas omoplatas relaxadas, após o akielon lhe fazer uma massagem demorada que lhe afrouxava as tensões.
Quando os dois homens se encontravam deitados em sua cama de lençóis limpos e sedas, Damen se rendeu àquele momento íntimo com Laurent e lhe acarinhou os cabelos úmidos, admirando-o sob a luz do lampião.
"Sabe, você não me contou por que, afinal, pediu que lhe trouxessem um livro erótico de um lugar tão distante quanto Kesus..."
Laurent ruborizou profundamente.
Damen se recordava ainda da surpresa que experimentara quando os dois conseguiram salvar com uma pinça comprida o livro que fora atirado ao fogo por Latifa. Folheando-o após o exemplar ser resfriado, Damen se deparou com pinturas fortemente eróticas de sexo entre dois homens em posições intrincadas até mesmo para um acrobata experiente.
Damen se recordava de que, quando tinha treze anos, esse mesmo livro fora roubado da biblioteca do palácio em Ios por um dos meninos mais velhos da corte e a obra passara de mão em mão, entre risos abafados e cochichos dos garotos. Damen ruborizara quando vira a pintura em tinta escura de um homem de pé penetrando o seu parceiro que se encontrava na frente, em posição invertida – com a cabeça no chão e as pernas levemente abertas viradas para cima. Seria risível o grau de dificuldade daquela posição sexual se Damen, com treze, não tivesse sentido a ereção latejar sob o seu quíton na ocasião.
Laurent, que tinha ainda os dedos de Damen em seus cabelos, respondeu, desviando o olhar:
"Eu gosto de ler..."
Damen mordeu os lábios, erguendo as sobrancelhas.
"Há pouca coisa escrita."
O veretiano tinha um tom de vermelho alastrando-se rapidamente até as suas orelhas.
"Estou tentando aprender melhor a cultura akielon..."
Damen cessou os movimentos de seus dedos, dizendo:
"Pedir para Charls e Guillaime lhe trazerem um livro pornográfico escondido de Kesus até aqui é realmente um investimento cultural."
Laurent fitou Damen, antes de desviar o seu olhar.
"Ouvi falar dessa obra e me disseram que era difícil de conseguir. Pedi a alguém de confiança que viajasse pelos reinos e tentasse achá-la. Acreditei que pudesse aprender..."
"Certo. Aprender é importante..."
Laurent se ergueu, apoiando-se em seu cotovelo, falando à luz da lareira.
"Você tem muita experiência e, às vezes, sinto que sou muito iniciante para as suas habilidades, Damianos. Sinto que sou um ignorante na cama."
Damen ergueu o seu rosto, fitando o veretiano.
"Não é uma competição, Laurent. Estamos aprendendo juntos um sobre o outro e você não é ignorante. Muito pelo contrário. As suas habilidades estão em alta conta com a realeza de Akielos."
Laurent moveu os lábios numa expressão contente que tentou conter.
"Sério?"
"Naturalmente."
Laurent aquiesceu com um sorriso vitorioso, mesmo não sendo uma competição. Após um tempo, ele falou, sem preparo:
"Você costuma se masturbar com frequência, Damianos?"
A pergunta súbita, quase soando como uma inspeção médica, fez Damen erguer novamente o seu rosto, com alguma surpresa, antes de contrair as sobrancelhas.
"O que?"
"Você disse que gostava quando eu dizia o que estava sentindo e que queria que eu conversasse esses assuntos com você. É sobre isso que eu estava falando com Pari de Skarva quando estávamos no pátio de treinamento..."
Damen se ajeitou na cama, sentando-se para fitar melhor Laurent e poder ceder a sua atenção completamente a ele.
"Certo... Bem, às vezes?"
"Pari me disse que eu deveria tentar. Eu não conseguia me tocar. Acho que me reprimia, mas no dia em que dormimos separados, eu tentei e foi muito bom. Eu consegui gozar usando as minhas mãos."
Damianos observou o rosto de Laurent sob a luz do fogo e ele se deparava novamente com aqueles hiatos no sexo de Laurent em que se alternava entre experiência profunda e desconhecimento também profundo. Nas primeiras vezes em que ficaram juntos, aquilo suscitara curiosidade em Damen, mas, atualmente, o akielon compreendia o que aquilo significava e o que significava cada avanço para o seu amante em direção ao próprio prazer. Havia tantas barreiras que o veretiano erguera para não sentir dor que o desmantelamento delas levava tempo e paciência para que não causassem também dor.
Damen tocou no rosto do veretiano, indagando:
"Foi bom?"
Laurent aquiesceu com um sorriso enviesado e um rubor em suas bochechas. Damen beijou o rosto do amante, murmurando em seu ouvido:
"Posso ver um dia?"
Era divertido observar os tons de vermelho e rosado que Laurent atingia em gradações complexas.
"Talvez..." — respondeu o veretiano, desviando o seu rosto com um sorriso tímido.
O akielon acariciou com o dedo a maçã do rosto do veretiano, dizendo:
"Estive pensando sobre o documento redigido por sua mãe, Laurent. Várias vezes, tenho me pego pensando como seria se tivéssemos sido jurados em casamento desde sempre..."
Laurent moveu os seus olhos azuis, deslizando os seus dedos pelo bracelete dourado do amante.
"O documento sugeria que eu me unisse em matrimônio com algum nobre akielon ou príncipe, mediante a minha concordância e a anuência dos meus responsáveis. Está muito confiante de que seria você, Damianos. É bem provável que você me achasse um menino irritante e com a cara enfiada nos livros, novo demais para o príncipe herdeiro de Akielos que já abatia homens e mulheres, montando-os a torto e a direito."
Damen riu-se, sacudindo o rosto.
"Você teria doze e eu, dezessete. Eu te acharia um pirralho mesmo, mas isso não impediria que nos tornássemos amigos e as outras crianças de Ios, certamente, teriam curiosidade sobre você. Mas quando você pisasse em Akielos com vinte e um, eu não ia deixar os filhos dos kyros se aproximarem de você nem um centímetro. Os akielons iam brigar por sua causa e eu teria que empunhar a minha espada e declarar: 'É o meu noivo. Eu quem me casarei com ele. Só eu o cortejo. Se afastem!'"
Laurent sorriu, dizendo:
"Você ia ter que agradar a minha família primeiro e acho que o meu pai e o meu irmão iam ser muito exigentes. Sabe, é estranho a minha mãe redigir um documento desses e, ao mesmo tempo, não. Casamentos entre pessoas do mesmo sexo não são comuns em Akielos e Vere, mas, ocasionalmente, podem acontecer em algumas famílias de Kempt."
Damen beijou a mão de Laurent, dizendo:
"A sua mãe era uma pessoa tão inteligente quanto você. A estratégia política dela era notável. Quando Herode retornar, vamos poder esclarecer os fatos com ele. Mal posso esperar."
Laurent assentiu, deslizando as pontas dos dedos pelo peito de Damen que estremeceu sob o seu toque. O akielon voltou o seu rosto para o amante, dizendo:
"...Então, retornando para o que falávamos antes, foi sobre isso que você e Pari de Skarva conversaram? Masturbação?"
Laurent deu um sorriso enviesado, falando:
"Entre outras coisas..."
Os dois homens se olharam e Laurent percorreu com a ponta do seu dedo uma linha até a barriga rígida de Damen. O akielon acompanhou o movimento do veretiano com o olhar.
"Não consigo imaginar como vocês dois chegaram a esse assunto..."
Laurent indagou então:
"Por que você não me toca, Damen, como conta que tocava os seus amantes em Akielos?"
As palavras de Laurent saíram ao mesmo tempo em que a ponta do seu dedo cessava o movimento.
Damen, que estava apoiado em seus cotovelos, respondeu rapidamente:
"Porque você não é eles."
Os dois homens se fitaram e Laurent murmurou, após um tempo:
"Achei que você havia me dito, certa vez, que se eu não tivesse medo de sexo poderia fazê-lo como quisesse..."
Damen permaneceu olhando Laurent e o veretiano prosseguiu com uma honestidade confiante:
"...Podemos fazê-lo de outras formas também, Damianos. Não precisa ser sempre devagar e carinhoso, apesar de eu adorar quando somos assim. Podemos ser também como fomos antes de nos despedirmos há um mês atrás. Na minha cabeça, existem muitas ideias..."
O akielon se lembrava que, em meio a discussão que tiveram há alguns dias atrás, o sexo fora um ponto sensível. Laurent estava finalmente se abrindo. Damen esticou o braço, colocando uma mecha do cabelo loiro do veretiano atrás da orelha, disposto a não o afastar.
"Na nossa despedida em Delpha, amor, nós quebramos a sua cama e você desmaiou em cima de mim no dia seguinte nos banhos. Paschal me advertiu que eu deveria me conter um pouco quando ele foi chamado às pressas porque, supostamente, eu acabaria matando-o!" — justificou-se Damianos.
Laurent pestanejou as suas retinas circundadas de azul enquanto crispava os lábios.
"Ninguém morre disso. Somos jovens e estamos apaixonados. Íamos ficar mais de um mês afastados. Mais fácil falar de prudência do que fazer. Fico enciumado quando ouço você falar dos seus amantes com quem você sempre parecia se divertir tanto, Damen. Mas, ao mesmo tempo, tenho várias ideias com as suas histórias. Boas ideias. Planos."
Damen franziu as sobrancelhas, fitando por alguns segundos o rosto vermelho do amante um tanto maroto.
"Tendo a mente que você tem, Laurent, já entendi que essa estimulação mental excita você. Mas, às vezes, independentemente do que Paschal falou, tenho receio..."
Laurent moveu os seus olhos, franzindo o cenho:
"Receio?"
Damen aquiesceu, deslizando a mão por seu pescoço e olhando para o lado um pouco constrangido.
"Como aconteceu no pátio de treinamento quando praticamos juntos da última vez. Você mexeu comigo e eu... disse coisas que não deveria dizer. Coisas desagradáveis que as línguas pérfidas dos quatro reinos falam ao nosso respeito... Quero dizer, vamos nos casar... Quero tratá-lo com o devido respeito e cortesia."
Laurent apoiou a mão no seu queixo, falando:
"Não foi desagradável o que você falou. Mas eu estava subindo pelas paredes e você se afastou. Odiei aquilo. Não me importo com o que as outras pessoas digam ao meu respeito e nem ao seu, Damen. Você não vai me desrespeitar só porque não somos românticos o tempo todo. Não vou amá-lo menos ou me sentir menos amado por fodermos às vezes, ao invés de fazermos amor."
Damen permaneceu um tempo olhando o veretiano. Laurent prosseguiu:
"...Sei que me respeita."
O akielon baixou o seu olhar. De fato, havia além do carinho um cuidado extra quando ele tocava Laurent. Ele temia ser bruto ou rude com o veretiano. E, quando se flagrava indo além, ele se refreava na maioria das vezes.
"Eu o respeito." — disse Damen, envolvendo a nuca do outro rapaz com os seus dedos e puxando o seu rosto para perto— "E eu o amo de verdade."
Laurent disse, aproximando o seu rosto do outro homem e sussurrando contra a sua boca:
"Também o amo. Não precisa ter medo de me quebrar, Damianos. Eu sou um homem inteiro. Podemos nos respeitar e ainda assim, sentirmos prazer com os nossos limites. Eu vejo como você me olha às vezes e creio que começo a entender os seus sentimentos."
Damen deslizou o seu dedo pelos lábios úmidos do veretiano, murmurando:
"E o que a sua mente de serpente sussurra para você quando eu o olho?"
Laurent moveu os seus cílios compridos.
"Que você, Damianos, cresceu numa nação em que o poder e a força são sinal de status e que os nutriu em si mesmo desde sempre, tendo em sua cama escravos submissos e bem treinados ou guerreiros que abatia na arena. Mas você se apaixonou por um outro rei com poder e força semelhantes e com o qual está ombro a ombro. Você ama a nossa igualdade, mas seus instintos, às vezes, oscilam. Assim como os meus."
Os olhos de Damianos pareciam betume à luz do fogo. Laurent falava sem alteração na sua voz:
"...O domínio parte de uma insegurança profunda de se tentar controlar algo por medo da imprevisibilidade e da própria vulnerabilidade. Já a passividade é um lugar seguro em que um indivíduo se abstém de todas as suas responsabilidades e das consequências das suas próprias escolhas. Não me surpreende todos em meu reino estarem tão apavorados com a ideia de abolição, sejam eles mestres ou escravos. Subitamente, todos vão ter que se enxergar de outra forma. A liberdade é assustadora. Tão assustadora que podemos voltar por espontânea vontade para a dominação ou submissão, sem subterfúgios. A liberdade é ilimitada. E perigosa."
Damianos acompanhava as palavras do veretiano e disse:
"Queremos liberdade para os nossos reinos. Que o nosso povo possa escolher que caminho seguir, sem estar abaixo ou acima de seus semelhantes."
Laurent contraiu o canto dos seus lábios.
"Vou lutar incansavelmente todas as vezes que me deparar com um ringue clandestino como aquele último que desmantelamos e vou punir um a um os envolvidos. Mas a nossa cama não é um ringue, Damianos."
"O que quer dizer, Laurent?" — indagou o akielon, semicerrando os seus olhos ao conseguir intuir um pouco o caminho pelo qual Laurent seguiria.
O veretiano respirou fundo e, se erguendo da cama, levantou-se, indo até um dos seus baús de cerejeira com veios escuros que estava fechado em um canto do quarto. Laurent retirou algo de dentro do móvel.
Houve um ruído de tilintar metálico e os olhos de Damen se detiveram no que o amante trazia em suas mãos. Tratava-se de uma corrente de ouro presa a um colar e a uma algema.
Era a corrente que prendia os escravos de estimação de Vere e era conduzida por seus amos, levando-os de lá para cá como animais de exibição. A corrente que Laurent usara quando se disfarçara de puto para invadirem o prostíbulo.
Damen se recordava ainda do peso e do cheiro metálico do artefato. Ele se lembrava da sua angústia quando tinha aquilo preso a si no tempo em que viveu em Arles, limitando os seus movimentos e dominando-o. Mas ele se lembrava também de algo mais que a corrente lhe despertava quando ele seguira com a comitiva de Laurent para a fronteira. Doera-lhe quando a coleira e a corrente foram removidas em Ravenel com um cinzel e um malho como se algo de si estivesse sendo arrancado junto também.
Foi um trabalho fácil para o ferreiro libertar um escravo. Mas Damen tinha o peito arquejante na ocasião, sentindo-se livre e preso ao mesmo tempo quando a coleira foi arrebentada. Livre para ser um rei. Preso dentro de um rei.
O homem que Damianos se tornara não existiria se ele não tivesse sido antes um escravo. Ele não conheceria os veretianos e Laurent como conhecia se tivesse permanecido em seu reino, alheio a tudo o que era diferente da sua condição. Ele não se permitiria repensar os valores e crenças do seu pai, tornando-se real para si mesmo e não a ideia inventada de algo que queriam que ele fosse. Paradoxalmente, a escravidão o libertara.
Deveria haver uma palavra que misturasse dor e prazer na linguagem akielon ou veretiana, assim como o agridoce mesclava o acre ao doce no paladar. Às vezes, as palavras não davam vazão ao mundo secreto e abstrato de um homem porque os homens não encaravam o seu sentir e ele permanecia pairando inominável e insubmisso como a bruma da noite nas ameias. Devia-se verbalizar ao menos a necessidade para as palavras serem fecundadas.
Mas Laurent concretizava o mundo, sem a necessidade de palavras. A sua mente de serpente conhecia outros caminhos. Ele deslizava entre os impasses.
"Quer colocar isso em mim?" — indagou Laurent, erguendo as suas retinas profundas e os aros da corrente.
Damen hesitou por alguns segundos e tomou o rosto do veretiano, enterrando a cabeça em seu pescoço delgado. Ele se manteve ali um tempo, quieto, envolvendo Laurent em um abraço. Sentindo a pulsação do veretiano. Tendo a respiração entrecortada e o rosto enrubescido. Havia uma vergonha. Havia uma terrível vergonha. E também subversão.
Porque, afinal, o desejo também é subversão.
E execução.
Damianos disse por fim:
"É esse tipo de ideia que você tem?"
"Entre outras, sim. Somos reis da porta do quarto para fora. Podemos ser quem quisermos aqui dentro. Somos dois homens, Damianos. Não existem regras para esse tipo de coisa. O Conselho, Vere, os kyroi e Akielos não têm nada a ver com isso. Faremos o melhor para o nosso povo, mas, na nossa cama, quero que nos deixem em paz."
Damen se sentiu novamente com dezesseis anos e reuniu a coragem para verbalizar algo que em sua cultura era imoral e decadente um rei dizer:
"Coloque a corrente em mim. Posso ser o seu escravo."
Teriam os antigos reis akielons Theomedes, Agathon, Treus, Thestos e Timon sentido uma fisgada em seus ossos sob a terra ou no vulto incorpóreo no mundo do além? Certamente, não. As ideias e tabus permaneciam como fantasmas pairando mesmo quando os mortos não se importavam mais com eles. Era melhor deixá-los ir embora, convidando-os a sair. Ou matá-los também.
"...Eu sou o seu escravo, Laurent." — disse Damen.
Houve um momento curto em que uma breve surpresa passou pelo olhar de Laurent, ao mesmo tempo que um sorriso discreto de satisfação repuxou os seus lábios. Ele se lembrou da maldita Pari de Skarva dizendo que, mesmo um rei, gostava de ser dominado.
Laurent não se importava no fundo com quem usasse a corrente, mas ele se importava com o modo como o seu desejo estava sendo acolhido e os dois podiam dar mais um passo no terreno seguro de seu relacionamento. Damen também precisava se entregar às vezes e eles estabeleciam novos parâmetros de confiança.
A voz de Laurent saiu seca, quando ele ordenou:
"Vire-se!"
Damen procurou rapidamente o olhar de Laurent, antes de evitá-lo e se colocar de costas. Ele sentiu os dedos delicados do rei veretiano rígidos em sua pele, fechando a coleira adaptada com um fecho que ele mandara um ferreiro ajustar.
O akielon experimentou o sentimento de agonia e satisfação se intensificar com a coleira. Ele experimentou algo mais que não sabia dizer o que era no mesmo instante em que se percebia ajoelhado sobre o colchão.
Laurent se deteve por um segundo e deslizou as mãos pelas costas de Damen onde as cicatrizes eram nítidas ainda, acalmando-o, mas o peito de akielon subia e descia, experimentando algo familiar. Depois, o veretiano lhe beijou o ombro de um modo doce, relembrando-o de quem os dois eram. E Damen sentiu o perfume de Laurent invadir as suas narinas.
"Quer isso mesmo?" — perguntou o veretiano atrás dele em um murmúrio.
"Quero..." — respondeu Damen, após arrastados segundos.
"Posso parar a qualquer momento. Basta que me peça..."
"Não pare..." — retrucou Damianos, ruborizando.
Laurent se ergueu, então, sobre o colchão, afundando o lençol de seda sob os seus pés e repuxando um pouco a corrente que ele enrolava no dorso da sua mão.
Com uma voz fria que proporcionou um arrepio em Damen, ele disse:
"Você tentou fugir do meu palácio? A vida em Arles como o meu escravo é tão insuportável assim, Damianos?"
O akielon se voltou e ergueu o seu olhar, fitando Laurent. Um déjà vu o assolou quando ele observou o queixo orgulhoso erguido, a mandíbula contraída, o olhar impassível e a túnica de dormir que, apesar de deixar o corpo do veretiano confortável, parecia ter alcançado uma severidade como se o caimento do tecido se moldasse à personalidade de Laurent.
"Eu tenho muitas ideias." — dissera o veretiano.
Claro que ele tinha. Aquela era uma parte de Laurent também e Damen já assumira para si mesmo há muito tempo que o amava completamente e que os dois eram compatíveis em camadas profundas e desconhecidas como a epiderme humana. E eles podiam ir tão fundo a ponto de deixarem tudo em carne viva.
"Sim, eu tentei fugir." — respondeu Damen, sentindo-se um pouco ridículo por interpretar algo que não era real, mas tendo a expressão austera de Laurent como algo verdadeiro demais para ignorar.
Laurent enrolou mais uma volta da corrente em sua mão, forçando Damen a empertigar o seu corpo.
"Estava pensando em lhe conceder alguns privilégios, mas após isso, não posso confiar mais em você, Damianos. Creio que lhe dei muitas liberdades. Hoje, você irá me servir."
O olhar de Damen procurou algum resquício do Laurent que estava sendo, há pouco, acariciado nos seus braços, mas ele via somente frieza e autoridade emanando da sua expressão desinteressada e áspera.
"Como posso lhe servir, Majestade?"
"Não lhe dei autorização para falar. Dispa-me!" — ordenou Laurent, pestanejando os seus olhos preguiçosos e se abaixando para fitar Damen.
O akielon se recordou das vezes em que despira e vestira Laurent, atendendo-o e exercitando o seu autocontrole. A ordem era peremptória e Laurent nada mais falou. Damen estendeu, então, as suas mãos de onde pendiam as correntes presas aos braceletes dourados e tocou na túnica de Laurent.
Era uma roupa de dormir de seda marfim sem muitos adornos, com poucos ilhoses e laços. Damen estava habituado a removê-la e a despiu por cima quando Laurent ergueu os seus braços muito brancos. Depois, removeu-lhe a calça folgada, revelando a sua nudez.
Damen sentiu o impulso de tocar com as suas mãos a pele macia do veretiano, os mamilos rosados que se mantinham intumescidos, a linha até a sua barriga e a sua virilha na qual alguma excitação já podia ser observada. Laurent, no entanto, fitou o akielon com indiferença, murmurando com secura:
"Tire a roupa."
Por um instante, Damianos sentiu um ímpeto de rir com nervosismo, pensando como teria sido se enquanto era mantido como um escravo em Arles se visse obrigado a, de fato, servir ao príncipe veretiano. Talvez fosse a sonhada oportunidade de tentar fugir. Mas talvez ele se rendesse ao prazer de ter Laurent próximo a si. Era injusto pedir que ele não perdesse a razão, estando deitado em uma cama com aquela figura magnífica que lhe atraía tanto por mais que o detestasse no início.
Damen se pôs a deslizar com alguma lentidão os dedos pelos nós de sua camisa, sabendo que era fitado por Laurent. Ele não entendia por que estava tão nervoso. Laurent sibilou um ruído de impaciência pelos seus lábios e avançou as suas mãos até a camisa de Damen, praticamente arrebentando os fios de dentro dos ilhoses. Houve um barulho do pano tendo as suas costuras arregaçadas e forçadas.
"Acha que tenho o dia todo para desperdiçar com um escravo? Ande logo, Damianos! Não vai querer me ver irritado!"
Damen se deixou ser observado por Laurent e ele quase pode ver uma curva nos lábios do veretiano em um sorriso, mas ela se dissipou muito rapidamente.
O akielon se apressou em se despir. Era difícil com a corrente e as algemas. Mas aquele Laurent tornava tudo possível quando não hesitou em usar a sua própria adaga para remover a roupa de Damen.
"Deite-se!" — ordenou Laurent, colocando-se de pé.
O akielon se deitou de costas sobre os lençóis de seda e observou Laurent nu, de pé sobre o colchão. Era uma visão magnífica o seu corpo bem talhado, os seus membros leitosos e toda aquela frieza que emanava dele, sendo iluminada pelo fogo da lareira e do lampião como se a sua pele fosse nata ou creme derretido.
Foi com um estremecimento que o akielon sentiu o pé pálido de Laurent tocar o seu peito. Ele sentiu o veretiano fixá-lo sob si, indagando enquanto deslizava a planta do pé até o seu ombro:
"Eu deveria puni-lo por tentar fugir. Mas, ao invés disso, vou dar-lhe a chance de se redimir."
Damianos pestanejou, sentindo um estremecimento em sua espinha e o desejo palpitar.
"E se eu não quiser obedecê-lo?"
Foi de leve, mas Damen arregalou os seus olhos quando sentiu uma leve bofetada dada com a parte lateral do pé de Laurent em sua face. As falanges de Laurent tocaram o rosto do rei de Akielos com censura.
"Calado. Você é o meu escravo. Se resistir, vai sofrer as consequências e vai ser um prazer para mim puni-lo. Talvez um prazer até maior do que aquele que pode me proporcionar." — declarou Laurent, arrastando o seu pé até o rosto do homem com alguma delicadeza— "Beije-me."
Damianos hesitou, segurando o calcanhar macio de Laurent em suas mãos. Acima de si, ele via o rosto erguido do veretiano com o seu olhar dardejando indiferença. O akielon se sentiu nu, completamente nu quando beijou o pé de Laurent próximo aos dedos delicados de unhas bem cortadas.
Em seguida, Damen sentiu um novo estremecimento quando Laurent deslizou a ponta do pé até o seu peito; a sua barriga rígida com músculos que experimentaram alguma cócega e se contraíram. Depois, o pé de Laurent o tocou em sua virilha e o veretiano, deliberadamente, esfregou os dedos por seu pau que se encontrava ereto.
"Acha que vou deixá-lo me montar? Não seja presunçoso..." — declarou Laurent com um tom frio e um aspirar de deboche.
"Tarde demais, querido." — replicou Damen, puxando Laurent por trás de seus joelhos e o fazendo se desequilibrar sobre a cama.
O rapaz tombou sobre o colchão ruidosamente por sobre Damianos e aquelas palavras, palavras do passado, talvez fossem o limite até onde podiam brincar. Os lençóis se desarrumaram um tanto e o akielon amparou o amante para que ele não se machucasse.
Laurent praguejou quando caiu sobre Damianos e o akielon, rapidamente, colocou-se sobre o amante, fechando os seus dedos nos dele e tendo as mãos sobre a sua cabeça.
Damen murmurou, então, mergulhando o rosto no pescoço do veretiano.
"Sou o seu escravo. Prometo me redimir, satisfazendo-o. O que quer que eu faça, Majestade?"
Laurent parecia ter se movido um pouco do papel que ele ocupava porque havia agora manchas vermelhas em suas faces. Ele não exalava mais indiferença e distanciamento. Fitando Damen, Laurent respondeu:
"Beije-me."
O akielon aproximou o seu rosto do de Laurent e mergulhou os lábios famintos em sua boca, sentindo a sua língua ser massageada com uma volúpia genuína. Ele sentiu um arrepio percorrer a sua pele, deixando-a áspera a sentiu o seu desejo latejar indômito, ansioso.
Enquanto se beijavam com desespero sequioso, Damen levou a mão ao próprio pescoço e desprendeu a coleira com um ruído metálico do fecho se abrindo. Os rostos dos dois se afastaram e Laurent viu um dos braceletes do akielon ser removido, logo após a corrente ser desprendida do outro.
Entendendo o que seria feito, Laurent se voltou e deixou que Damianos colocasse o colar nele e o bracelete em seu pulso. Ele pode ver o desejo faiscando no olhar escuro do akielon enquanto a libido palpitava em cada fibra de seu corpo.
"Agora, você é o meu escravo..." — murmurou Damen no ouvido de Laurent, lhe mordiscando o lóbulo macio com pequenos furos.
"Damen..."
Havia uma paixão honesta no olhar de Laurent ao receber a coleira. Ele deslizou para um comedimento sedutor ao mover a cabeça para trás, oferecendo o seu pescoço pálido. Damianos mergulhou os lábios na pele macia do amante e no metal duro da coleira.
Depois, Laurent fitou o akielon e, com uma lambida forte, como um animal de estimação domesticado, alcançou-lhe os lábios, arrancando de Damen o seu olhar mais alterado. Em seguida, o veretiano investiu a sua lambida na linha do queixo até o pomo de adão de Damianos.
Damen segurou, então, o rosto do amante e o beijou de um modo extremamente lascivo e sem comedimento. Beijou-lhe como beijava os escravos de Akielos quando ele ainda era um adolescente. Como se quisesse fazer aquilo do modo mais carnal e sexual possível. E Laurent se incendiou.
Os dois homens entrelaçaram os seus membros em beijos intercalados por carícias em meio aos lençóis. Damianos deslizou os lábios até as espáduas muito brancas de Laurent, aspirando o seu perfume fresco, o pulsar do seu corpo, os seus gemidos. Laurent era incrível e ele se sentiu inflamar como os troncos nas labaredas da lareira.
Os dois homens se mantiveram por incontáveis minutos naquela carícia de seus corpos em que os seus paus se tocavam, excitados. Laurent afastava mais as suas pernas, movendo-se um pouco. Às vezes, o pau de Damianos encostava em sua entrada e ele gemia, segurando os braços do akielon apoiado sobre si, provocando-o. Empurrando-se em sua direção, antes dos dois homens novamente se derreteram em beijos, carícias e movimentos que ensaiavam a foda.
Damen deslizou a sua mão até a virilha de Laurent e murmurou, arquejando:
"Você está encharcado."
"Você também." — gemeu o veretiano, inclinando a cabeça para trás quando sentiu os dedos de Damen deslizarem um pouco mais para baixo.
"Eu quero você." — sussurrou Damen no ouvido de Laurent.
"Sou o seu escravo. Como posso satisfazê-lo, Damianos?" — respondeu Laurent de olhos fechados, movendo-se nos dedos do akielon e apertando os lençóis.
Damen respondeu em akielon porque a sua consciência começava a ficar confusa e escorregadia como o seu corpo.
"Me mostre como os escravos de estimação de Vere fazem. Foda comigo como se fosse um."
Laurent pestanejou, cessando os movimentos da mão de Damen e tendo o rosto febril. Ele parecia tonto também de prazer quando se curvou sobre Damen, descendo a sua boca até o seu pau. As suas mãos subiram até as coxas do akielon enquanto ele entreabria os lábios um pouco avermelhados de tanto serem beijados.
Damen apertou os lençóis de seda, sentindo a língua de Laurent estimulando a cabeça do seu pau, pressionando suavemente a ranhura e replicando, depois, o movimento com mais força. A língua de Laurent se envolveu preguiçosamente em volta da glande antes de se estender a uma lambida longa e quente, molhada desde a base até a ponta.
Damen sentiu o seu corpo contrair e se abrir suavemente. Ele percebeu, após alguns minutos que ele evitava tocar Laurent, mas movia os seus quadris, ansiando por ritmo. Era tão bom.
Damen se viu entoando o nome do veretiano como um murmúrio inaudível e lhe tateou, finalmente, a tez pálida, sentindo o mergulhar de Laurent, que poderia levá-lo ao clímax se não o parasse. Puxando o ar para os seus pulmões e sentindo o seu corpo protestar, Damen afastou Laurent e, com delicadeza, puxou-o para perto, enrolando a corrente dourada no dorso de sua mão, a fim de encurtar a distância e limpando o fio de saliva do canto da boca do rei veretiano com o polegar.
"Eu quero foder você, Laurent." — disse ele em akielon— "Quero foder muito você. Quero gozar dentro de você. Preciso entrar em você agora."
Havia um rubor em Laurent que se alastrava de seu rosto até as orelhas, pescoço e peito. Ele tinha os lábios úmidos quando retirou a mão de Damen da corrente e se antecipou até a gaveta de sua cômoda, obedientemente, retirando um pequeno frasco de óleo de dentro do móvel.
Normalmente, era Damianos que preparava Laurent para o ato, umedecendo os seus dedos e deslizando-os cuidadosamente na entrada do amante. O akielon inseria os dedos e fazia movimentos suaves em direção ao umbigo de Laurent para estimulá-lo daquele modo eficiente e certo, atiçando o seu desejo.
Mas Laurent agia como um escravo de estimação faria e ele mesmo cuidou daquela tarefa. Ruborizando cada vez mais, o veretiano se serviu do óleo, derramando a solução na palma de sua mão, espalhando, em seguida, o líquido unguinoso por seus dedos.
Laurent se pôs, então, a forçar a sua entrada com a mão, gemendo baixo e sentindo o olhar de Damen sobre si.
O rei de Akielos sentia o seu desejo o açoitar impiedosamente com aquela visão privada demais, íntima demais e beijou Laurent enquanto o rapaz usava os dedos em si mesmo. Beijou-o, murmurando-lhe depois:
"Olhe pra mim enquanto faz."
Laurent ergueu as suas retinas circundadas de azul e Damen pode sentir a pele macia de seus braços se tornar arrepiada e o desejo em sua virilha latejar, faminto.
Após algum tempo, Laurent forçou a mão delicadamente no peito de Damen e o fez se deitar de costas na cama. O veretiano, então, deslizou, sentando-se de pernas abertas sobre a virilha de Damen, conduzindo o pau do amante até a sua entrada. As suas pernas estavam afastadas. Houve um gemido de Laurent enquanto ele descia o seu corpo vagarosamente, tendo os olhos fechados. Damen praguejava na sua língua materna, sentindo a cabeça de seu pau penetrar aquele calor oleoso; a pressão lenta para dentro do corpo do veretiano.
Um gemido mais prolongado deixou os lábios de Laurent, que moveu a cabeça para trás enquanto apoiava as suas mãos no peito de Damen. A resposta de seu corpo fora simultânea: um tremor, o movimento de músculos, o rosto corado e a franja desalinhada caindo pela fronte. Ele arquejou, deixando-se ser penetrado por inteiro até, finalmente, mover-se suavemente.
Damen experimentou os empurrões lentos e curtos, o vai e vem vagaroso, o calor delicioso de Laurent cavalgando sobre ele, conduzindo a sua satisfação. Era uma visão singular Laurent sobre si, regendo a foda; o ritmo da penetração com ele se movendo sobre a virilha de Damen deliberadamente; o deslocamento dos quadris como um escravo de estimação, talvez, fizesse com o seu amo...
Jogando um pouco o corpo para trás, Laurent apoiou as mãos nas coxas de Damen, favorecendo os seus movimentos curtos, no início, até se tornarem mais vigorosos e intensos posteriormente, alcançando o ponto em que a foda era tudo menos devagar e lenta. Damen apertou a cintura de Laurent o acompanhando e estocando contra ele, sem demasiado cuidado.
Aquilo lembrava o desespero com que os dois fizeram amor na ocasião em que Damianos se recuperara da ferida causada por Kastor em Ios e, após longas semanas de recuperação, ele e Laurent, finalmente, puderam dormir juntos. Com desespero, os dois se agarraram um ao outro, felizes por terem algo que, por muito pouco, não lhes foi tirado. Talvez os dois temessem um pouco ainda desaparecerem na ocasião.
Damen viu a luz mortiça tremeluzir na coleira de ouro de Laurent como se o metal amarelo derretesse ao redor daquele pescoço delgado e pálido com veias azuladas. Damen ainda tinha a corrente ao redor do dorso da sua mão e a puxou levemente, forçando Laurent a se curvar e beijá-lo.
Em uma fantasia explícita em um momento de devaneio, Damen pensou: e se houvesse sido o contrário? E se Laurent tivesse sido levado até Ios para ser dado como escravo de prazer ao príncipe herdeiro de Akielos?
Era bastante evidente que Laurent não permaneceria muitos dias em Ios porque a sua mente de serpente o conduziria para fora de qualquer prisão física na qual o colocassem. Talvez ele até convencesse os guardas akielons de que era a melhor alternativa abrirem a fechadura de sua alcova de bom grado; ceder-lhe um cavalo ágil; provisões e alguns homens para ajudá-lo no caminho de volta à Arles. E que Deus tivesse piedade do Regente porque a ira de Laurent o arrancaria do seu trono à base de cadeiradas. Talvez o veretiano até mesmo rachasse a cabeça do tio com o próprio trono.
Mas e se Laurent ficasse em Ios? E se a proximidade entre ele e Damen se desse de outra forma? E se naquela realidade inventada, os dois se tornassem amantes e lutassem juntos? E se em toda a realidade, os dois sempre terminassem juntos? Damen se apaixonaria por seu escravo veretiano de olhos insubmissos e com a majestade exalando por seus poros.
Ele o amaria sob qualquer circunstância. Essa era a grande verdade.
A visão da corrente de aros dourados caindo pelo corpo pálido de Laurent excitou Damen. O tilintar metálico. A visão do amante como um escravo de prazer disposto a satisfazê-lo em Ios.
No entanto, a satisfação maior parecia alcançar o próprio Laurent, cujos movimentos eram desesperados e vigorosos, abrindo-se cada vez mais para o akielon. A sua boca se mantinha entreaberta, sorvendo o ar. O seu corpo estava febril e ele se servia do prazer de servir ao seu mestre, permitindo que ele o estocasse cada vez mais fundo e com mais força.
"Damianos..." —_arfou Laurent com as suas unhas se cravando nos músculos das coxas do amante— "Damianos, eu vou..."
Não era a primeira vez que Laurent gozaria só com a penetração e Damen achava fascinante como aquele prazer parecia atingir rapidamente a base de todas as barreiras erguidas pelo veretiano, chutando-as, esmigalhando-as.
Apertando um pouco mais a cintura estreita de Laurent, Damen, na sua voz entrecortada, pediu, ordenou, concedeu que o veretiano, como escravo, se libertasse junto com os arrancos pulsantes de seu corpo embalado para trás. Laurent jorrou o fio perolado, quente como sangue em uma expressão estridente. O primeiro jato foi seguido por um segundo mais intenso quando Damen tocou em seu pau.
Após o gozo intenso, Laurent deixou que o seu corpo caísse pesadamente sobre Damen enquanto ele sentia o seu coração palpitar com força ritmada, parecendo querer ultrapassar o seu peito. O akielon o envolveu e lhe beijou a testa úmida, a maçã ruborizada do seu rosto do jeito carinhoso característico seu.
Houve um momento concedido a Laurent para que ele recuperasse o fôlego da sua respiração arquejante e curta enquanto ele sentia Damen com a respiração pesada sob si. O peito de Laurent estremecia enquanto o desejo do akielon ainda palpitava, penetrando ainda o seu corpo.
Após alguns breves minutos, Laurent sentiu os dedos de Damen abrirem ruidosamente o fecho da coleira, soltando-o. O akielon repetiu o mesmo movimento com o bracelete. E, com um gesto delicado, ele se desvencilhou do veretiano.
Depois, com um ato descuidado e característico, Damen deslizou a camisa da túnica de dormir por sua barriga, enxugando-se, antes de fechar a coleira ao redor do próprio pescoço e o bracelete ao redor do seu pulso.
Ele ainda não havia alcançado a sua libertação e Laurent, recompondo-se, sabia o que tinha que fazer.
Deslizando a mão pelos cabelos macios e escuros de Damen até o colar dourado reluzente em sua pele oliva, ele ordenou, recuperando o seu ânimo:
"Me foda, escravo!"
Laurent se virou de costas, assumindo o personagem que lhe cabia, antes de dardejar Damianos com um olha austero. Era como se a corrente virasse uma chave dentro deles.
Colocando-se de quatro, Laurent ofereceu o seu corpo ao akielon. Damen se colocou de joelhos e deslizou as mãos por aquelas vértebras, pelas costas firmes e muito brancas do veretiano. Depois, as suas mãos se fecharam ao redor das coxas alvas de Laurent, afastando a sua entrada um pouco mais à luz mortiça. Aquela visão rosada, ainda com os resquícios dos movimentos anteriores, acendeu o desejo de Damen como gravetos sendo friccionados, alastrando fogo.
Damen se empurrou, então, soltando um gemido curto ao penetrar Laurent. Aquele era o modo, talvez, que, como escravo, ele serviria ao rei veretiano. Laurent não concederia o seu olhar ao serviçal akielon e isso seria típico de sua personalidade quando era a de uma puta fria e cruel. Damen constatou, então, que se o servisse daquela forma, esforçar-se-ia para despertar a sua atenção.
Os movimentos de Damen se fizeram intensos enquanto ele puxava os quadris de Laurent para si com alguma rudeza, como era esperado, talvez, de um bárbaro. Era bom estar dentro do corpo de seu mestre veretiano. Era muito bom.
Laurent acompanhava os movimentos, gemendo novamente, sorvendo o ar e se entregando, mas mantendo o seu olhar fixo à frente.
Damen, sem se importar, desceu a palma de sua mão em um sonoro tapa que estalou no quadril de Laurent. O veretiano apertou os lençóis, após soltar um gemido mais forte e impotente.
Laurent concedeu, então, o seu olhar, se voltando para trás brevemente, antes de enterrar a testa no travesseiro e ordenar com a voz entrecortada:
"Me bate de novo, Damianos!"
Damen estalou a sua mão novamente e Laurent pediu que ele fizesse aquilo de novo, com mais força. E, enquanto penetrava Laurent com movimentos vigorosos, o akielon viu Laurent deslizar a mão até o seu próprio pau, excitado com tudo o que acontecia atrás de si.
A ordem veio clara e, em meio ao prazer avassalador, Laurent tentava sustentar a sua voz impositiva e desinteressada, sem mais tanto sucesso.
"Goze dentro de mim, escravo! É uma ordem..."
Era uma frase simples, peremptória, mas dardejou algo impiedoso no corpo de Damen como se deslizasse sob a sua pele. Damen se perdeu, então, no momento em que todo o seu corpo estava entregue. Houve a primeira pulsação de seu clímax enquanto ele sentia o prazer pressionar as paredes carnais de seu sexo. Todo um formigamento atravessava o seu corpo e a sua visão se embaçava até que ele, com um gemido profundo, se esvaziou dentro de Laurent, puxando-o mais para si.
Damen sentiu o seu corpo trêmulo e febril sob os movimentos involuntários ainda da sua pélvis. Extenuado e pleno. E ele ouvia o ruído de Laurent ainda se tocando.
O akielon retirou o seu membro úmido de dentro de Laurent e o deslizou por sua entrada em um gesto provocante quando percebeu que o veretiano fazia um inconfundível movimento sexual para trás. Laurent se esfregava em seu pau e, após alguns segundos, enquanto se tocava, declarou, sem forças:
"Eu vou gozar de novo..."
Damen, com um gesto rápido e viril, deitou Laurent de costas na cama e começou a estimulá-lo com a boca, após puxá-lo por trás dos joelhos em direção ao seu rosto.
Damen permitiu que Laurent gozasse em seus lábios, tendo as mãos do veretiano apertando os seus cabelos enquanto ele quase gritava com o prazer atravessando como uma lança afiada o seu corpo trêmulo.
Damen sentiu Laurent rijo em sua boca até o amante se entregar, arrebentando-se. Ele, então, sorveu o prazer líquido que o preencheu, engolindo-o, como era esperado que um escravo akielon obediente fizesse.
Laurent estava sem forças quando Damen o envolveu em seus braços. O próprio Damen sentia o seu corpo lânguido e extasiado quando adormeceu com a coleira ao redor do seu pescoço, da mesma forma que Laurent tinha a corrente dourada ao redor do dorso da sua mão, sob o travesseiro.
(cut)
As pernas dos dois homens se mantinham entrelaçadas e Laurent, antes de adormecer completamente, envolvendo em seu amplexo o amante akielon, observou-o à luz mortiça, sentindo-se realmente nu na cama com o homem em quem confiava.
Com o homem que era o seu rei. Damianos de Akielos. A sua família. O akielon que, assim como Laurent, carregava um mundo dentro de si feito um país repleto de planícies, florestas, montanhas, céu com vaga-lumes e veias de rios. Uma nação disposta a se ampliar ainda mais, unindo-se a outra em foda, amor e geografia.
Damen e Laurent não eram dois escravos. Nenhum homem era. Eles eram dois homens que se escolheram e brincavam com o poder porque podiam em seus devaneios renunciá-lo. Era tudo fantasia. A irrealidade fazia parte também da vida. Não feria. Não subjugava. Irrigava a terra sequiosa dos dias. Proporcionava prazer físico e psicológico porque alguns precisavam foder também com a mente.
Na plenitude das felicidades de Laurent e Damen, cada pequena descoberta era um pedaço de outra suprema felicidade.
O medo cativava.
O amor libertava.
E no meio disso tudo, havia dois reis coroados.
(cut)
No dia seguinte, pouco antes de rumarem para a ala patrana do palácio, Damen se deteve um tempo, fitando o amante veretiano. Os dois haviam feito amor de uma forma delicada durante a manhã e se banharam juntos na tina de louça.
Damen e Laurent trajavam agora as suas roupas suntuosas reais e deixariam em breve a mesa do café da manhã que Isander preparara.
"O que foi?" — indagou Laurent, tomando um último gole do seu cálice de leite com mel enquanto Damianos o observava.
O akielon esperou que Isander se afastasse um pouco e disse:
"Nada. Só me surpreendi com você novamente."
"Por causa do sexo incrível de ontem?" — inquiriu Laurent, erguendo as sobrancelhas pálidas.
"Por tudo. Você é incrível, Laurent. O sexo incrível é só uma parte de tudo o que você é." — respondeu Damianos, se aproximando e roubando um beijo do rosto ruborizado do veretiano — "Você é o meu noivo incrível."
Laurent retrucou um pouco baixo:
"Você está muito feliz com a possibilidade de um arranjo matrimonial."
"Pode acreditar que sim." — respondeu Damen com um sorriso enviesado. — "Será assim a nossa vida de casado?"
"Talvez. Só não podemos deixar as crianças descobrirem os nossos brinquedos."
Damen sorriu, parecendo satisfeito como se a paz mundial houvesse sido decretada.
Laurent permaneceu observando, então, Damen morder um caqui distraidamente até o akielon se deparar com o seu olhar.
"O que foi?"
Ruborizando mais profundamente, Laurent respondeu, fazendo os lábios do akielon se erguerem imediatamente.
"Nada. Você também é incrível, meu futuro esposo."
Como um casal de namorados no ápice do cortejo, Damen e Laurent deixaram o Quarto Real de mãos dadas. Antes, no entanto, o veretiano se deteve na porta, dirigindo-se a Isander.
"Esteve com Latifa e Paschal ontem?"
Isander, fazendo uma mesura e baixando os seus olhos escuros de cervo, aquiesceu.
"Sim. O kyros Nikandros me acompanhou e fomos discretos. Ela está se recuperando bem e tentei lhe dar o seu recado, Sua Majestade. Latifa estava muito assustada, mas agora, parece mais calma e parece entender um pouco melhor o que está acontecendo. Creio que ela tentou nos dizer algo, mas o doutor Paschal disse que ela não deveria se agitar."
Laurent não deixava o seu quarto com frequência naqueles dias, após a tentativa de envenenamento e julgou que a sua ida constante ao jardim akielon recém-construído poderia suscitar curiosidade e perguntas inconvenientes. Ele instruíra Isander e Nikandros para que visitassem com discrição a escrava patrana diariamente.
Damen perguntou então:
"Isander, você consegue se comunicar com Latifa? Entender quem esteve por trás do envenenamento e quem a ludibriou?"
O serviçal akielon sacudiu o rosto.
"Infelizmente, não, Exaltado. Conseguimos estabelecer uma comunicação simples, mas nada tão complexo e elaborado. Queiram me desculpar."
Laurent falou:
"Não tem importância. Saberemos em breve o que se sucedeu afinal."
Damianos e Laurent seguiram para a ala do palácio em que os patranos estavam hospedados, sendo flanqueados por Jord, Aktis e mais três soldados que os esperavam no fim do corredor do Quarto Real. Eles atravessaram os arcos de pedra, os pequenos jardins tomados por flores-de-lis e jasmins-manga até alcançarem os corredores de Patras.
Era possível se observar nos sofás confortáveis da ala, os cortesões patranos estreitando os seus olhares com alguma ferocidade. Foi possível ver os soldados tocando no cabo de seus machados na cintura.
"Viemos em paz." — declarou Jord, encarando um dos soldados de Torgeir que o seguiu com o olhar.
As mulheres da corte de Patras tinham as pernas cruzadas sob os seus vestidos justos com mangas largas e barras com caudas e cavas enquanto se acomodavam relaxadamente nas almofadas e os homens de túnica e chapéu, estando muito enfeitados com joias de ouro amarelo, sustentavam os olhares fixos e ininterruptos sobre os visitantes. Aquele era o ninho das águias.
Houve um murmúrio de protesto entre os nobres e uma agitação indignada se içou. Todos os patranos estavam sendo mantidos prisioneiros no palácio, juntamente com o seu rei. Naturalmente, aos cortesões era dada a liberdade para que transitassem pelo palácio e desfrutassem de seu entretenimento, mas todos pareciam leais a Torgeir, que estava proibido de deixar o seu quarto.
Quando alcançaram a porta dupla dos aposentos do rei de Patras, Damen e Laurent se depararam com um pequeno grupo de pessoas, além dos dois soldados veretianos com lanças que permaneciam à porta, vigiando a entrada.
Diante da porta, encontravam-se Torveld acompanhado de Erasmus, assim como a imperatriz Vishkar, ao lado de lady Vannes e a escrava vaskiana Talik.
Houve um gesto deferente de todos os presentes, exceto por Vishkar que avançou para os reis, erguendo o seu dedo diante do rosto. Sua expressão era furiosa.
"Isso é ridículo! Além de manterem Torgeir prisioneiro, ainda por cima, proibiram que eu visite Afanas! O que pretende, Laurent de Vere? Humilhar Patras e Vask?"
Jord se colocou diante dos reis, levando a mão ao cabo de sua espada, assim como Aktis. Uma agitação se fez entre os soldados patranos e um deles se aproximou com o machado em punho, flanqueando a imperatriz de Vask.
"A senhora não concorda com as leis de Vere, mas deve se manter prisioneira aqui sob suspeita de um atentado!" — respondeu Laurent, sem alteração em sua voz— "Mas se está tão insatisfeita em meu reino, posso pensar na possibilidade de a senhora ir embora."
Vishkar pestanejou os seus olhos bicolores.
"Muito engraçado, Estrela de Vere! Sabe que não posso partir, tendo o imperador de cama, Afanas se recuperando e o meu raffie,Torgeir, preso!"
Laurent respondeu com azedume:
"A senhora parece se doer mais por Afanas e Torgeir do que pelo imperador. Proibi-la também de visitar Sorem de Ver-Tan, mas a senhora nem percebeu. Deve ser porque não se preocupa tanto assim com o bem-estar do seu esposo envenenado!"
"A nossa relação é difícil!"
"Ou a senhora é a responsável pelo que aconteceu com ele, estando alinhada a Torgeir?!"
"Não acuse o nosso rei!" — vociferou o soldado patrano, alterando o tom.
"Fale baixo, soldado!" — interveio Aktis, ameaçando-o com um pesado sotaque akielon.
Uma tensão se fez. Torveld e lady Vannes se colocaram entre os homens, afastando-os com uma expressão severa. O embaixador patrano declarou:
"Por favor, vamos manter a calma! Eu e Erasmus viemos visitar o meu irmão e a Vossa Majestade Imperial veio nos acompanhar. Não queremos confusão. Viemos em paz."
Lady Vannes, que usava adornos de Vask adaptados à moda veretiana, disse, abaixando o seu rosto com a diplomacia que a sua ocupação de embaixadora lhe proporcionava:
"Vossa Majestade Imperial, nós interagimos todas as vezes que Vere e Vask estreitaram laços comerciais. Eu a respeito muito, assim como a nação veretiana lhe tem em alta estima. Por favor, não façamos uma cena. Estou certa de que tudo será esclarecido em breve."
Laurent olhou tacitamente para lady Vannes, que tinha a escrava Talik ao seu lado e forçava os outros a observarem a situação com uma sensatez inteligente.
Erasmus, com um hábito que era difícil de remover de si, mantinha uma expressão deferente perante Damianos, rei de Akielos, mesmo tendo o seu braço ao redor do braço de Torveld.
Laurent respirou fundo e fez um gesto para que Jord e Aktis baixassem as suas armas.
"Viemos também em paz. Precisamos conversar com o rei Torgeir, mas esperaremos que falem com ele primeiro."
Vishkar fitava Laurent com uma expressão ainda aborrecida e havia manchas escuras sob os seus olhos como se ela não houvesse dormido o suficiente. Ela foi a primeira a empurrar a porta, não se importando em trombar o seu ombro contra os dos soldados veretianos. A imperatriz foi seguida por Torveld e Erasmus e a porta se fechou atrás deles.
Laurent, Damen, Vannes e Talik se recolheram a um canto da janela do corredor de quadrados ensolarados e de vitrais coloridos com estrelas e pássaros. A cortesão vaskiana falou baixo, olhando ao seu redor:
"Majestade, eu agi ontem conforme me orientou. Realizei uma pequena festa entre o meu séquito e conseguimos inserir o soldado vaskiano Gene, graças à Talik. Ela o convidou para beber e eles conversaram um pouco, próximo ao jardim geométrico."
Damianos observou a escrava vaskiana e se recordava de conversar com ela enquanto fora um escravo em Arles. A mulher pouco havia mudado, tendo o seu porte exuberante com músculos à mostra e a pele dourada como se ela houvesse acabado de sair de um banho de sol.
Talik disse, fitando Laurent diretamente em seus olhos:
"Apesar de eu ser uma escrava de Vere, eu nunca trairia o meu povo, Majestade. Vishkar é a melhor coisa que aconteceu à minha nação, assim como a sua mãe, Betthany, foi a pior imperatriz que um reino pode ter. Eu não posso me colocar contra o meu povo..."
Laurent tocou no ombro da mulher, que era uma cabeça mais alta do que ele.
"Eu sei, Talik. Não pediria isso de você. Estamos tentando desenrolar um novelo e não incriminar a imperatriz de Vask."
Damen, que sabia que Laurent designara Vannes e Talik para colherem informações entre os vaskianos, espreitou lady Vannes que mantinha um olho na conversa e outro, nos patranos que os observavam.
Talik apertou as suas falanges e falou:
"Gene disse que era um cavalariço na época da guerra de Vask e de Patras, mas que atuou no fim da guerra também como soldado. Ele disse que muitas coisas não são faladas por Torgeir e Vishkar porque muitas dúvidas pairaram sobre o fim da guerra e sobre as negociações das fronteiras. Que Torgeir e Vishkar usaram a fronteira de Ver-Vassel para ganharem tempo e que se aliaram antes de a guerra chegar ao fim. Ele disse também que Somalia era uma comandante excepcional, amada pelos vaskianos e pelos patranos."
Os olhos de Laurent se estreitaram.
"Somalia envenenou a água patrana da fronteira de Ver-Tan, não foi? Como os patranos podem amá-la?"
Talik prosseguiu:
"Gene disse que alguns acreditam nessa versão dos fatos, mas há incertezas. Ele mesmo ouviu uma vez Torgeir dizendo para Torveld em uma visita à Skarva que não foi Somalia quem envenenou a água do poço."
Damen falou, contraindo as sobrancelhas escuras:
"Então, foi Patras que envenenou os seus próprios soldados para cavar uma retaliação suja de guerra?"
Talik torceu o canto de seus lábios e tinha a trança comprida se movendo sobre o seu peito com a respiração ansiosa.
"É aí que as coisas começam a ficar estranhas, Exaltado. Majestade, Vere serviu também em Patras?"
Laurent franziu o cenho.
"Não que eu saiba. Enviamos provisões, ouro e armamentos, mas não havia nenhum documento falando sobre soldados nossos servirem em Bazal. Eu lembro que Auguste, minha mãe e mesmo o meu pai não queriam esse tipo de envolvimento direto com a guerra."
Talik sussurrou:
"Gene disse que Somalia havia escrito uma carta para Vishkar, antes que o acampamento de Ver-Tan fosse tomado pelos patranos. O antigo imperador Ishmael e Sorem escaparam por pouco da retaliação, sendo enviados para Skarva como os amigos jurados da imperatriz, pouco antes da fronteira tombar."
"Mas a imperatriz e Sorem não se dão bem hoje em dia..." — comentou Damen.
Talik pestanejou os seus olhos castanhos.
"Sim, Exaltado. Gene disse que houve uma rachadura no relacionamento dos dois quando Vishkar se casou com Pari de Skarva. Tentei arrancar de Gene os motivos, mas ele foi esquivo e disse que era algo confidencial e que Nabsib, o chefe da Guarda Imperial, o mataria se ele desse com a língua nos dentes."
Laurent disse, numa voz apressada:
"Nabsib é o leão de chácara da imperatriz e não vai deixar ninguém abrir o bico. Ele e Aktis dormiram juntos algumas vezes, pelo que eu soube, mas além de eles entenderem pouco um o idioma do outro, não falaram de nada relativo aos seus governantes, pelo que eu descobri."
Damen moveu a sua cabeça, voltando-se para Laurent, após observar Aktis à distância trocando algumas palavras com Jord.
"Como sabe disso, Laurent?"
"Eu sei de tudo o que acontece no meu palácio, Damianos. Só não sei da trama que está sendo trançada às minhas costas e isso está acabando comigo. Huet viu Aktis e Nabsib juntos e me indagou se isso seria um problema."
"Aktis é leal. Não faz diferença com quem ele dorme." — declarou Damen.
Talik falou, tocando o nariz com o indicador e o queixo com o polegar.
"Bom, Nabsib também parece ser leal ao império. Assim como Gene, apesar de Gene ser um tanto boca de sacola. Gene disse algo que pode ser importante, Majestade. Somalia havia mencionado na carta escrita para Vishkar que Vere estava na fronteira."
Laurent entreabriu a sua boca.
"Vere...?"
"Vere esteve na fronteira de Patras e de Ver-Tan quando o envenenamento dos soldados aconteceu, Majestade..."
Houve um silêncio entrecortado pelos ruídos do palácio. Laurent empalideceu e Damen perguntou:
"Talik, foi o Regente que foi até a fronteira?"
A escrava sacudiu o seu rosto, dizendo:
"Isso, eu não sei dizer, Exaltado. Nem Gene. Somalia levou essa informação com ela para o túmulo. Ishmael, o primeiro imperador, morreu há anos atrás. Só há uma pessoa que esteve na fronteira de Ver-Tan e sobreviveu ao que aconteceu lá – Sorem de Ver-Tan."
Laurent disse:
"Se ele soubesse de algo, não contaria à própria esposa?"
"Não, se não confiasse nela..." — falou Damen— "Saber demais seria uma boa razão para ser envenenado?"
Lady Vannes interveio, dizendo:
"Exaltado, eu respeito a imperatriz Vishkar. É cedo para tirarmos conclusões. Sou a embaixadora de Vask e estive em Skarva muitas vezes. Vishkar é uma mulher forte, honesta e, sinceramente, não acredito que ela esteja por trás do que aconteceu. Talik também acredita nela."
Talik respirou fundo, antes de dizer:
"Quando eu vim para Vere, eu tinha quinze anos e fui realojada junto com outros escravos enquanto Vask se reerguia. Meu pai morreu na invasão de Skarva pelas mãos dos mercenários de Patras e a minha mãe era viciada em narguilé. Eu era muito jovem na época, mas lembro que a imperatriz Betthany arrastou a nação para uma guerra contra Patras que muitos eram contra. Foram tempos difíceis, Majestade. Muita fome e pobreza. Muita violência e doença. Mas a imperatriz Vishkar, a filha do sol, é uma boa pessoa. Ela caminhava entre os homens comuns. Havia um boato na época. Um boato terrível de que... Betthany queria se livrar da própria filha e, por isso, a enviou para a fronteira."
Damen estremeceu:
"Se livrar da própria filha herdeira? Por que uma mãe faria isso?"
Lady Vannes respondeu, levando a mão ao queixo, pensativa:
"É uma boa pergunta, Exaltado. Mas Vishkar, de fato, serviu na guerra com catorze anos. Ouvi esses rumores mencionados por Talik em Skarva. Uma mãe ou um pai amoroso tentaria forjar uma heroína com voz de criança ainda e sem peito em meio a homens brutos num fim de mundo qualquer? Eu acho que não..."
Laurent se recordou do front em Marlas do qual Auguste e Aleron o mantiveram afastado o tempo todo, sendo categóricos na ordem de que queriam Laurent longe da guerra contra Akielos. Laurent tinha treze na ocasião. Mas Vishkar fora mandada de seu palácio para conviver entre soldados e homens inimigos por quase uma década na fronteira, sendo somente um ano mais velha do que Laurent. Ele nunca havia parado para pensar nisso.
Subitamente, o jeito arredio e desconfiado da imperatriz vaskiana fazia algum sentido. Ele se lembrou de Guion empurrando o próprio filho Aimeric em direção a um despenhadeiro. Duas vezes.
Com um assentimento de cabeça, Laurent agradeceu à Talik e lady Vannes. As mulheres fizeram mesuras deferentes e se retiraram, rumando para os jardins.
Damen e Laurent seguiram, então, para o quarto de Torgeir, empurrando as portas duplas flanqueadas pelos soldados. Jord e Aktis os seguiram de perto.
O quarto era amplo, arejado e luxuoso. Torgeir se mantinha sentado confortavelmente em uma poltrona com couro de boi em seu espaldar. Ele tinha os cabelos presos em um coque na nuca e os olhos contornados de kajal. A sua mão descansava no braço da poltrona e, ajoelhada ao seu lado, com a cabeça em seu colo, estava Vishkar que, rapidamente, ergueu-se, semicerrando o olhar ao fitar o séquito e enxugando algo em seu rosto.
"Bom dia, Torgeir!" — cumprimentou Laurent, sem alteração na voz.
"Laurent de Vere, Damianos de Akielos, o que os trazem aqui? Vão finalmente me deixar partir?"
"Isso, eu não posso fazer, Torgeir de Patras. Não enquanto o caso da tentativa de assassinato em meu reino não for solucionado."
Torgeir entrelaçou os dedos circundados por anéis diante do rosto.
"E você obteve sucesso em sua investigação, Laurent? Me libertará quando descobrir a verdade ou, na falta dela, agirá como um tirano e mandará um de seus homens enfiar a sua espada em mim que nem fez com aquela pobre escrava surda?"
Torgeir possuía uma voz naturalmente rouca, mas ele não se alterava ao verbalizar as palavras.
"Havia provas contra Latifa..." — disse Damen.
Vishkar interveio:
"Ah, por favor, qualquer um pode mandar alguém costurar um boneco e cravar nele palavras de ódio! Aquela escrava estava tremendo de medo e pode ter sido manipulada. Achei que pudesse acreditar na abolição, Laurent e Damianos, mas vejo que os boatos talvez sejam verdadeiros..."
"Quais deles?" — indagou o veretiano, com frieza.
"O que diz que a história das nações-irmãs abolicionistas é uma farsa para tentarem angariar o que o rei Aleron não conseguiu!"
Laurent respondeu com um sorriso enviesado, mas sem indício de alegria:
"E o que papai não conseguiu?"
"A rica Ver-Vassel e sabe-se lá mais o que Aleron poderia tentar levar de Vask e de Patras."
"É por isso que acredita que meu pai mandou homens seus para a fronteira de Ver-Tan, a fim de fortalecer a retaliação dos patranos?" — inquiriu Laurent.
Houve o ruído de algumas vozes nos portões e latidos de cachorro. Vishkar pareceu se atentar aos barulhos, antes de trocar um olhar tácito com Torgeir, empertigando-se. Damen esperava que houvesse alguma elaboração, antes de Laurent jogar aquela recém-descoberta verdade contra a imperatriz.
"Não sei. Foi Aleron no fim das contas? Devo crer que sim já que sabe desse fato, Laurent..."
Torgeir olhou dos reis para a imperatriz com alguma expectativa. Laurent replicou:
"Se os homens de meu pai estivessem envolvidos, a guerra não teria terminado com um contrato de paz. Os veretianos iriam até o fim atrás de Ver-Vassel e não a perderiam."
Vishkar sorriu, dizendo com amargura:
"Ora, vocês perderam Delfeur para Akielos!"
Laurent estreitou o seu olhar e Damen interveio com uma expressão dura:
"Cuidado, senhora! Não ouse cruzar essa linha!"
"Vocês dois que estão cruzando linhas! Vocês têm mantido Torgeir preso aqui injustamente! Torgeir é uma das melhores pessoas que conheço e não merece essa desconfiança! Foi graças a ele e Torveld que conseguimos dar um desfecho para a guerra. Sinceramente, é lastimável saber que os homens de Aleron contribuíram para ajudar na derrubada da fronteira de Ver-Tan, aliando-se ao antigo rei de Patras, sendo que Vask e Vere tiveram sempre um convívio pacífico!"
"Não foi o meu pai!" — retrucou Laurent — "Ele nunca enviou homens para Ver-Tan!"
Vishkar meneou o rosto.
"Como pode ter tanta certeza? Você era uma criança na época!"
"Eu era uma criança, mas eu me lembro desse período! Auguste me contaria se algo assim tivesse acontecido. Ele sempre achou uma péssima ideia se envolver na guerra."
Torgeir ergueu a mão, tomada por anéis grossos ao redor das suas juntas e falou num tom pausado:
"Meu pai não era flor que se cheirasse e estava obcecado com a ideia de Patras vencer a guerra. Ele fez negócios escusos com mercenários e Vere, mas não consegui obter informações apuradas em Bazal sobre Ver-Tan. Se não foi o rei Aleron quem mandou os seus homens para Ver-Tan, quem esteve lá enquanto os meus homens eram envenenados? Aliás, como você e Damianos sabem dessa história, Laurent de Vere? Vishkar e eu a mantivemos sob sigilo."
Laurent retorquiu, secamente:
"Aparentemente, nem tanto sigilo. É fácil ir atrás de informações."
Torveld, que se mantinha calado até então ao lado de Erasmus, disse:
"Eu era o embaixador de Patras já nessa época e lidava com o seu tio, que era o embaixador de Vere, e o comerciante de escravos real, Laurent. Mas, após um tempo, eles não voltaram mais à Bazal. Como meu irmão disse, nosso pai não era flor que se cheirasse e nunca gostamos dos métodos dele. Não colocaria a minha mão no fogo por meu pai, mas pelo meu irmão, sim..."
Torveld se deteve por um instante e Erasmus tocou em seu ombro com dedos delicados, apoiando-o. O embaixador patrano prosseguiu:
"...Torgeir ficou colérico pelo jeito que puniram a escrava Latifa, que pertenceu à nossa falecida irmã Tília e eu devo dizer que eu também! Torgeir é honesto e bom e eu vim hoje aqui com um propósito. Eu confessei ao meu irmão que eu e Erasmus estamos envolvidos na suspensão das atividades dos escravos de prazer em Bazal. Aliás, eu havia confiado esse segredo a você, Laurent de Vere, pela estima que tenho por você e por Damianos! Como podem pensar que alguém como o meu irmão, que sofre por seus escravos, financiaria ringues clandestinos e atentaria contra um rei e um imperador?"
Houve um silêncio curto, antes de Damen dizer de um modo apaziguador:
"Só precisamos de algum tempo para as coisas se esclarecerem, Torveld..."
"Exato! Aliás, vim aqui para saber se o rei de Patras precisa de alguma coisa. Se está sendo bem tratado ou tem alguma reclamação..." — adiantou-se Laurent.
Torgeir se ergueu, falando ao tocar em seu cinto grosso de couro.
"Não há reclamações quanto a isso, mas não nasci para ser um homem cativo."
"Nenhum homem nasceu para sê-lo, Majestade." — afirmou Laurent de um modo contundente.
Torgeir deu alguns passos até a sacada de seus aposentos, observando por sobre os balaústres a paisagem. Ouvia-se uma agitação distante que poderia ser do cavalariço encilhando os cavalos ou de algum carregamento chegando em carruagens puxadas por bois.
"A confissão de Torveld sobre o apoio dele aos escravos em paralisação me surpreende e, ao mesmo tempo, não. Desde que conheceu Erasmus, meu irmão mudou muito e também vem demonstrando simpatia com os argumentos abolicionistas dos estudiosos de Bazal."
Torveld respirou fundo, falando:
"Às vezes, a vida nos coloca em posições que nos suscitam aprendizados profundos. Houve mudanças em Patras e Vask quando você e a imperatriz Vishkar subiram ao trono, Torgeir. Vocês não fizeram o que foram ensinados a fazerem, meu irmão. Oh, não! Fizeram muito melhor. Talvez a abolição seja um caminho inevitável proposto pelas novas gerações. Você não está tão velho a ponto de não acolher as mudanças, Torgeir..."
Erasmus, que vestia uma túnica ao estilo patrano, justa e de mangas largas, pestanejou os seus cílios claros. Ele tinha uma argola fina de pingentes de diamante ao redor de sua cabeça, emaranhando-se em seus cachos loiros. Com um gesto deferente e, em um patrano muito límpido e sonoro, o rapaz falou:
"Eu conheci o pior tratamento que um escravo pode ter nas mãos dos homens do Regente aqui em Arles, Majestade. E conheci o melhor tratamento em Bazal, nas mãos do mestre Torveld graças ao rei Damianos e ao rei Laurent que olharam em minha direção em um momento em que eu me sentia invisível e triste. Achando que a minha vida seria um martírio infinito até o dia da minha morte. Eu sou um escravo treinado para ler e entoar canções e pouco sei a respeito dos estudiosos de Bazal que leem livros sobre abolicionistas, Majestade. Mas sei que pessoas não deviam sofrer daquele modo. Aqueles escravos em Bazal eram abusados e bastou eu contar para eles a minha história para eles sonharem com algo além de suas condições." — Erasmus hesitou, olhando para Torveld e prosseguiu, após ele aquiescer— "Somos treinados para demonstrarmos alegria e sermos gentis sempre. Mas somos pessoas e, muitas vezes, sentimos também medo e sofrimento. Estamos vivos no fim das contas."
O rei Torgeir observou o rosto do escravo, após fitar Torveld longamente, sem demonstrar qualquer sinal de irritação ou ofensa. Ele voltou a tocar em seu cinto, tomado pelo costume, talvez, de checar a presença do machado em sua cintura. Nesse instante, uma comoção se fez nos corredores, após o rei patrano verificar mais uma vez os jardins da sacada de seu quarto.
Se Torger ia falar algo, não foi possível dizer, pois uma agitação de vozes patranas entrecortadas por uma voz akielon conhecida de Damen e Laurent se sobrepôs, chamando pelo Exaltado. Damianos se voltou para a porta imediatamente e Laurent disse com uma autoridade impessoal:
"Que confusão é essa?"
Houve batidas na porta e, quando ela foi aberta, todos se depararam com Pari de Skarva sendo segura por Lydos e outros soldados akielons, assim como o chefe da Guarda Real de Vask, Nabsib, era flanqueado por guardas de Laurent.
Pari e Nabsib usavam roupas escuras e simples, que mantinham somente os seus olhos de fora, mas, sendo descobertos pelos soldados, os seus rostos haviam sido expostos.
Havia hematomas nas faces de Pari e de Nabsib, assim como em Lydos e nos outros homens. Visivelmente, houvera uma briga feroz, antes dos dois vaskianos serem capturados e todos pareciam um tanto desgrenhados e arfantes.
"O que houve, Lydos?" — indagou Damen, deslizando o seu olhar pelo grupo.
"Exaltado, vimos Pari de Skarva e o chefe da Guarda Imperial tentando deixar o palácio pela trilha das florestas! Prendemos os dois em tentativa de fuga e eles resistiram à prisão! Resistiram muito! Eles arrancaram da minha mão o tridente!" — explicou-se Lydos com uma pálpebra inchada, um hematoma no queixo e um tom um tanto queixoso.
Vishkar, com uma expressão nervosa, adiantou-se:
"Tirem já as mãos de cima da minha esposa e do chefe da minha guarda!"
Pari tentava se libertar e praguejou em vaskiano, dando um tapa na mão de Lydos.
Laurent olhou de Vishkar para Pari, dizendo com a sua voz preguiçosa:
"Ora ora, eu já estava prestes a perguntar por sua adorável consorte, Majestade Imperial. A senhora não parece surpresa com a informação e não acredito que esses dois leopardos tenham um romance secreto e estejam partindo do palácio, deixando-a para trás!"
Vishkar retorquiu, falando entre dentes:
"Soltem já Pari e Nabsib!"
Houve um silêncio, antes que Damianos fizesse um movimento para que Lydos e os outros akielons soltassem Pari. O gesto foi imitado pelos guardas veretianos.
Vishkar correu para abraçar Pari, envolvendo-a protetora em seus braços e Nabsib se colocou diante das duas mulheres de um modo leal. Seu olhar escuro dardejava os guardas reais de uniforme em detalhes azuis e vermelhos, agindo sincronicamente. Sempre sincronicamente.
"Por que iam deixar o palácio?" — indagou Damen, após trocar um olhar com os seus homens e Laurent.
"Porque eu não nasci para ser uma prisioneira!" — respondeu Pari, tendo os lábios partidos e se movendo com raiva — "Eu sou uma guerreira!"
Laurent falou de um modo gélido e, ao mesmo tempo, impaciente:
"Vocês não facilitam as coisas! É por isso que Vishkar escolheu o dia de hoje para visitar Torgeir, sabendo que eu e Damen viríamos? É por isso que Torgeir não para de olhar pela sacada? Tentavam nos distrair enquanto eu e Damianos estávamos aqui? Achavam mesmo que as florestas do meu palácio não eram vigiadas?"
Vishkar respondeu:
"Me mantenha prisioneira, mas deixe Pari e Nabsib partirem, Laurent. Eles precisam ir embora!"
"Por quê?"
"Há coisas maiores em jogo. Coisas que envolvem pessoas inocentes, pessoas importantes. Por favor, me mantenha aqui se acha que eu sou uma ameaça, mas deixe Pari ir embora!"
Houve um momento em que Laurent e Vishkar se encararam. As retinas circundadas de azul sustentaram o olhar cinzento e o outro, cor de âmbar. Por fim, Laurent retorquiu com um olhar incisivo:
"Lamento, Vossa Majestade Imperial! Guardas, levem os dois para os seus quartos e os mantenham sob vigilância dia e noite."
Lydos hesitou. Não foi ele, mas um outro soldado quem separou Pari de Vishkar e a saiu puxando pelo pulso trêmulo. A mulher se agitou e fez algo que quem a via, não podia imaginá-la fazendo, dado o seu porte confiante e expressão combativa. Ela soltou um soluço e se pôs a gritar entre lágrimas, falando em vaskiano:
"Me soltem! Me deixem sair! Vishkar, precisa ir ajudá-la! Vishkar, por favor, eu preciso ir cuidar dela! Ela é só uma garotinha!"
Vishkar empurrou o soldado, mas não foi possível ela impedir que a sua consorte fosse presa. Vishkar era uma imperatriz e os homens não ousaram tocá-la, mas os seus olhos estavam úmidos e ela vociferou com raiva:
"Laurent, precisa deixar Pari partir! Isso não é algo que tenha a ver com Vere! Não tem a ver nem com você e nem com Damianos! É algo que envolve Vask e a mim!"
Laurent retrucou, dizendo:
"Vere, Vask, Akielos e Patras são nações que estão mais ligadas do que imagina, Vishkar. Creio que isso tenha a ver sim com a minha nação se não percebeu ainda!"
Vishkar contraiu as sobrancelhas, encarando Laurent. Depois, ela se voltou para Damen, fechando os olhos e respirando fundo, antes de dizer para o akielon como se tivesse ponderado e feito uma escolha difícil:
"Damianos, não se ponha contra mim! Pari precisa ir para o norte porque há pessoas muito importantes para nós nos esperando lá. Eu nunca gostei do método sujo da minha mãe de barganhar ou conseguir as coisas. Mas se não deixar Pari e Nabsib partirem, precisarei agir de um modo detestável. Não me resta outra opção. Por favor, não me obrigue a isso!"
A imperatriz falava diretamente com Damen. Laurent franziu o cenho enquanto Damen perguntou, sentindo a tensão se instaurar ao seu redor:
"O que a senhora quer dizer com isso?"
Houve silêncio e, quando Damen entreabria os seus lábios para insistir, a sua intenção foi sobrepujada por um grito distante e agudo. Depois, outro grito. E outro.
O grito foi sendo passado adiante em algum ponto como o ruído contagioso da trompa ou de um clarim em batalha, até que ele chegou mais nítido no corredor patrano. Estridente e agourento como se entoado por pássaros de rapina, ele se elevou.
Os homens se voltaram para a porta quando, minutos depois, um guarda franzino e veretiano, portando a sua lança, chegou esbaforido, falando com a respiração entrecortada e arquejante:
"Majestade, precisa ver isso!"
(cut)
Foi um escravo quem gritou primeiro em um quase falsete, deixando a sua bandeja de prata com o café da manhã tombar no chão, espalhando uvas; pão fatiado; mel e leite sobre as lajotas do corredor. Uma maçã rolara pela tapeçaria do quarto debilmente feito uma bola sem direção atingindo o vazio.
Em seguida, um soldado veio correndo ver o que se sucedera e se pôs também a gritar. Uma cortesã berrou depois e todos se comunicaram por um medo contagioso, imerso na instabilidade daqueles dias em que se tentava assassinar um rei e um imperador na capital de Vere. Gritar era quase um ato involuntário.
Quando Damen e Laurent chegaram ao local, sendo acompanhados por seus homens, Laurent deu um passo para trás, levando a mão à boca. Depois, rapidamente, o seu corpo se tensionou num gesto combativo.
Jeurre, membro do Conselho veretiano, estava com o seu corpo atarracado e nu deitado sobre as sedas e cetins de seu colchão, tendo um corte profundo em sua garganta. Havia sangue, muito sangue que se alastrava desde os tecidos até o tapete. Ao seu lado, estava uma jovem de cabelos loiros e ondulados, pálida e fria, com uma faca enterrada um pouco acima de seus seios nus. Laurent reconheceu a mulher como uma das escravas de Vere.
Os soldados se mantinham petrificados, observando os dois amantes com os membros entrelaçados e mortos, deitados cada um em um lado oposto da cama faustosa.
Laurent falou, como se ainda tivesse a sua respiração presa:
"Isolem a área e reúnam o Conselho imediatamente! Quero saber onde está o soldado encarregado da segurança do conselheiro Jeurre!"
Houve uma correria de homens andando em diferentes direções no quarto, entrando e saindo pela porta. Alguns deles empurraram para o lado com o pé, os pedaços de cerâmica fina, a bandeja de prata, o cálice e o restante de comida espalhada no chão, varrendo-os do caminho e desobstruindo a passagem.
Damen, após alguns minutos em que se concedeu algum choque pela cena que presenciava, aproximou-se da cama, movendo um pouco os lençóis ensanguentados.
A mulher tinha os seus olhos fechados e os cabelos loiros caídos por seu rosto em formato de coração, que estava repleto de pintura, assim como os seus ombros, braços, seios e barriga. As suas pernas se mantinham unidas, ocultando-lhe a nudez.
Aktis, que foi encarregado de inspecionar o quarto, disse, após verificar uma bolsinha de pano simples largada sobre uma mesa de madeira entalhada junto com as roupas dobradas da escrava:
"Majestade, veja!" — disse ele, entregando a bolsa ao rei veretiano.
Laurent checou o alforje de tecido barato, sentindo o seu peso compacto e o abrindo. A pequena bolsa estava repleta de moedas de ouro veretianas, cunhadas com o perfil do rosto de Laurent coroado com as estrelas de Vere ao redor de sua cabeça.
Damen observou a cena e voltou a sua atenção novamente para os dois cadáveres sobre a cama. Ele se aproximou de Jeurre, observando os seus membros um tanto flácidos manchados da tinta dourada que cobria o corpo da escrava. Uma grande quantidade do pó da maquiagem se concentrava em seus lábios entreabertos que estavam um tanto avermelhados como se houvessem sido mordidos.
O soldado que era encarregado da vigilância de Jeurre foi achado e trazido até o quarto. Ele era um rapaz jovem e levou a mão ao estômago quando viu o conselheiro morto. Laurent se antecipou até ele, com a voz alterada e o rosto muito lívido:
"Como isso aconteceu?! Por que não estava fazendo o seu trabalho, soldado?"
O homem gaguejou e se atrapalhou, mas no fim, conseguiu falar, ajoelhando-se e se explicando com a voz embargada:
"Majestade, perdão! Perdão! Eu permanecia na porta do conselheiro Jeurre todas as noites, mas, ontem, ele me pediu para deixá-lo sozinho. Ele me deu uma ordem! Disse que depois do jantar, era para eu ir para o meu quarto e não o incomodar. Não me restou outra opção senão obedecê-lo, Majestade. Eu sinto muito..."
Damen, com uma concentração analítica, observava os mortos ainda. Ele estava silencioso e pensativo.
A garganta de Jeurre estava cortada e a mulher estava deitada em uma posição em que ela poderia ter enfiado o punhal em seu próprio coração. Do que se tratava aquilo? Houvera uma briga de amantes?
A escrava matara o conselheiro e, em seguida, matara a si mesma, arrependida? Ele a pagava para que passasse por cima do tabu da corte veretiana e dormisse com ele?
Jord se aproximou de Damen, dizendo ao espreitar os dois veretianos mortos:
"O nome dela é Aimée. Dizem que era a prostituta de um bordel antes de vir para a corte. Acho que ela serve à esposa do conselheiro Chelaut, que está em Lys."
Damen estreitou o seu olhar, tentando juntar os pedaços daquela cena.
Em Akielos, era dito que havia alguns sacerdotes capazes de falar com os mortos. Pessoas sensitivas que, muitas vezes, perdiam-se em suas elucubrações a caminho de casa, amiúde, se surpreendendo diante de um corpo sem carne que murmurava uma verdade sem voz. Espíritos que pediam por justiça, sequiosos demais pelos assuntos da vida para aceitarem o deixar ir da morte enquanto cercavam os prelados.
Alguns sacerdotes até se utilizavam de ervas alucinógenas para alcançarem esse contato espiritual e essas histórias povoavam as narrativas dos escravos idosos de Ios quando eles queriam assustar as crianças teimosas e egoístas do reino.
Damen pouco sabia sobre os assuntos espirituais da morte e pensaria neles quando chegasse a sua hora, mas ele achava que algo como um corpo morto poderia falar também. Não com palavras. Não através de fantasmas ou sacerdotes. Mas por meio do rastro da substância se ausentando da carne e deixando um invólucro vazio.
A ausência do soldado durante o turno da noite se justificava para alguém como o conselheiro Jeurre poder encontrar uma mulher às escondidas, quebrando o tabu veretiano, sem ser descoberto ou chantageado.
Havia dinheiro envolvido e a mulher se preparou para visitar o conselheiro, evidenciando que a relação era consensual.
Um desentendimento era passível de acontecer entre qualquer casal.
Uma violência que culminaria com a morte sobre uma cama?
Isso era um ato que podia ser cometido por uma mente perturbada e violenta ou por alguém com medo. Não era comum, mas poderia ocorrer, sobretudo, no caso de um homem usar de violência contra uma prostituta e ela feri-lo para tentar se proteger.
Mas um outro suicídio após Theodore não era coincidência demais? Aimée amava tanto Jeurre a ponto de atentar contra a sua própria vida, depois de feri-lo mortalmente?
Ou ela temia que o seu destino fosse o mesmo supostamente reservado à escrava Latifa?
Não. Se Aimée quisesse fugir, poderia fazê-lo, tendo a porta não vigiada pelo soldado de Jeurre e o caminho livre. Ela podia partir, recolhendo o seu ouro e torcendo para não ser identificada ou acusada pela morte do conselheiro. Afinal, ninguém os havia visto juntos...
Por que os escravos de Vere estavam se matando?
A liberdade era tão assustadora assim para eles?
Talvez, fosse.
A não ser que...
...Os escravos de Vere não estivessem se matando.
O pensamento ocorreu a Damen quando ele viu o pó da maquiagem próximo à coxa da mulher, caído discretamente sobre o lençol de seda e sobre a sua pele leitosa.
Damianos fez um gesto que causou algum constrangimento e rubor em Jord que era partidário do tabu de Vere e não se aproximava de mulheres. O akielon virou a mulher sobre o colchão e abriu as suas pernas brancas, revelando a sua vagina.
Damen já estivera com mulheres o suficiente para perceber que havia algo de errado. A primeira coisa que o fez franzir o cenho foi a pele delicada muito inchada e a vermelhidão excessiva da vagina da escrava, visível mesmo através do pó dourado que descia da fina penugem até a vulva.
Jord ruborizou, dizendo:
"Exaltado..."
"Jord, traga o candelabro para perto e abra as cortinas!"
O soldado veretiano cumpriu a ordem dada com o rosto ainda vermelho, e passou o candelabro para o rei akielon, que iluminou o púbis da escrava, inspecionando-a com cuidado. Depois, aproximou a luz do fogo do rosto de Jeurre, dizendo:
"Laurent, venha cá! Acho que vai querer ver isso!"
O rei veretiano se aproximou a tempo de ver Damen reaproximando o fogo das pernas afastadas da escrava. Erguendo uma sobrancelha, ele disse:
"O que houve?"
"Percebe que a tonalidade de dourado do pó que se concentra aqui é diferente do pó que se encontra no rosto e nos braços dela?"
O veretiano franziu o cenho, acompanhando a luminosidade guiada por Damen. Olhando de relance, parecia o mesmo tom de dourado, mas se fosse dedicada atenção, era possível se perceber que não apenas a tonalidade era diferente, mas a granulação do pó também. A do púbis da mulher parecia mais fina e triturada do que o pó de maquiagem que se espalhava pelo restante de seu corpo.
Laurent fitou Damianos, sabendo aonde ele queria chegar. Damen, então, aproximou a luz do candelabro do rosto de Jeurre, cuja boca inchada estava tomada pelo pó fino e dourado.
Aquele era o pó que o boticário identificara no livro de Laurent que fora atirado ao fogo por Latifa.
Aimée, a escrava morta, era o recipiente de um veneno potente e mortífero. A boca de Jeurre, certamente, tocara a vagina da mulher num ato de felação e, através do corpo da escrava, ele fora envenenado. Com os olhos azuis arregalados, Laurent falou para Jord:
"Vá à cidade buscar o boticário imediatamente, Jord! E não comente isso com mais ninguém!"
O guarda veretiano fez uma mesura deferente e deixou o quarto, parecendo um tanto atarantado pela sucessão de acontecimentos naquela manhã. Ele chegou mesmo a escorregar, pisando por acidente na maçã do café da manhã de Jeurre que permanecia esquecida, após ter rolado sobre o tapete.
Huet, que voltava, quase trombou com Jord e anunciou ao rei veretiano:
"Majestade, os conselheiros Audin e Mathe já foram informados e estão em estado de choque. Eles estavam tomando café da manhã juntos no Salão Principal e estarão na sala de reunião em uma hora. Ainda estamos tentando localizar o conselheiro Chelaut..."
"Certo, obrigado, Huet..." — respondeu Laurent, apertando os olhos e se permitindo sentir pela primeira vez a comoção da manhã e a confusão mental que aquilo lhe proporcionava.
Huet se demorou um pouco mais, olhando do rei akielon para o rei veretiano.
"Tem mais uma coisa, Majestade... Os homens que vigiam o quarto do imperador de Vask me pediram para avisá-lo. Sorem de Ver-Tan finalmente acordou e implora para ver o senhor e o Exaltado imediatamente."
(cut)
Sorem se mantinha sobre a cama luxuosa do aposento que lhe foi concedido. As cortinas de veludo do quarto estavam abertas e o recinto era tomado pela claridade fulgurosa que tornava a pele branca feito algodão do vaskiano quase translúcida.
O imperador moveu as cobertas pesadas sobre o seu corpo, estando sentado à cama e recostado em travesseiros. O seu olhar vicejante era firme e, ao mesmo tempo, as pálpebras lhe davam um ar cansado. Sob o sol, o tom das suas retinas eram cor de âmbar.
O médico veretiano se mantinha ao lado de Sorem, examinando o pulso fino de veias azuladas do vaskiano. Os pertences do imperador que haviam permanecido, até então, no quarto do conselheiro Audin, foram trazidos para lá. Havia alguns pássaros saltitando em puleiros dentro de uma enorme gaiola de grades douradas enquanto uma melodia ritmada deslizava pelas siringes das aves.
Damianos foi o primeiro a falar, unindo as palmas das mãos no cumprimento característico de Vask.
"Está se sentindo melhor, Vossa Majestade Imperial?"
Sorem assentiu e respondeu com uma curvatura delicada de seus lábios. A túnica branca o encerrava em uma alvura ininterrupta e estridente. Quase sobrenatural.
"Sim, Damianos. Graças a sua preciosa ajuda e aos cuidados dos médicos de Arles."
Laurent se moveu com algum desconforto e se dirigiu ao médico veretiano, dizendo:
"Pode nos deixar a sós um instante, Moreau? Mando lhe chamar quando encerrarmos aqui."
O médico fez uma mesura deferente, tendo as mãos diante de sua túnica de tecido cru e se retirou, fechando a porta atrás de si.
Laurent voltou os seus olhos azuis e desinteressados para Sorem, então, ocupando a cadeira vazia ao lado do homem e dizendo ao acomodar o seu corpo feito um gato que tomava um assento para si:
"O senhor ficou desacordado por vários dias. Creio que o veneno tenha causado um estrago em seu corpo. Ainda pode passear pelo castelo com o rei de Akielos?"
Havia uma impessoalidade fria nas palavras de Laurent e Damen o fitou por um instante, perguntando-se intimamente se o veretiano guardava ainda rancor do imperador pelo mal-entendido que se sucedera quando ele surpreendeu o vaskiano com Damianos, diante da porta de seu quarto.
Sorem sorriu com algum constrangimento, dizendo:
"Espero que sim, Vossa Majestade de Vere..."
"Pois eu espero que não." — replicou Laurent, secamente— "Pouco me interessa se fode com homens ou mulheres, Sorem de Ver-Tan, e pode continuar flauteando com o conselheiro Audin se não controla os seus instintos polígamos, mas o rei de Akielos é o meu amante. Amante não é a palavra. Ele é o meu noivo. Sei que o deseja e que ele é atraente, mas Damen não o montará. Ele não o quer e o rei de Akielos só leva a mim para a sua cama. Você não é importante para ele e, sinceramente, não faz o tipo de Damianos." — Laurent finalizou a última sentença, dardejando com desprezo o imperador de Vask dos pés à cabeça e tendo os lábios contraídos com desdém.
Damen, que se mantinha de pé, colocou a mão no ombro de Laurent, ruborizando até as orelhas e tendo o rosto quente. O imperador teve um tom sanguíneo sobrepujando o seu rosto pálido e replicou, com a voz hesitante:
"Foi um mal-entendido, Majestade."
"Não me interessa. É um aviso."
Sorem, com o rosto vermelho ainda, aquiesceu, cravando o seu olhar sobre as cobertas.
"Sim, Majestade."
Laurent deslizou o dorso da mão preguiçosamente sob o queixo, falando:
"O que quer afinal?"
Sorem ergueu o seu rosto e, ao se deparar com a expressão austera de Laurent, voltou a sua atenção novamente para as cobertas.
"Contar o que houve comigo..."
Damianos, pigarreando, disse com a tensão ainda de sua mão sobre a espádua de Laurent:
"Sorem, no dia em que você desfaleceu, você me procurou no quarto de Nikandros e disse que havia descoberto algo que precisava me dizer..."
O vaskiano apertou os dedos sobre o cobertor e ergueu o seu rosto, reunindo coragem. Sorem respondeu, sem meandros:
"Vishkar e eu crescemos juntos. Somos amigos desde sempre, mas ela me enganou. Pelos deuses, ela me enganou, Damianos! Eu sempre achei que Pari havia corrompido a personalidade e caráter da imperatriz, mas tudo começou em Ver-Vassel. Tudo começou muito antes. Ela se mancomunou com Torgeir!"
Damen franziu o cenho, dizendo:
"Como sabe disso?"
"Ouvi uma conversa dela com Torgeir em seu quarto. Os dois diziam que precisavam agilizar a morte de Laurent de Vere e Torgeir estava impaciente. Ele disse que queria rumar logo para Bazal e armar os seus homens. Como lhe disse, Exaltado, Vishkar almeja anexar Vere e Torgeir deseja Akielos para explorar a nação ao máximo e se apropriar das suas riquezas. Nós, vaskianos, nunca entendemos como e por que a guerra de Vask com Patras cessou abruptamente. Houve um pacto. Um pacto sombrio de Vishkar e Torgeir entregarem um ao outro uma nação abundante ao invés de um país destroçado e sugado pela miséria."
Laurent moveu o seu olhar azul para Damianos, antes de aproximar um pouco mais o seu corpo de Sorem.
"Por que Vere e Akielos?"
"Refleti sobre isso e a única constatação que alcancei é que, talvez, Torgeir nunca tenha perdoado Akielos pela tomada dos fortes em Aegina e das rotas comerciais quando Patras pediu abrigo político para a princesa Enone, os seus herdeiros, os nobres de Bazal e os escravos. Talvez, Vishkar nunca tenha se esquecido também do acordo em que Ver-Vassel era prometida ao rei Aleron. Não é só uma guerra! É retaliação, Majestade!" — respondeu Sorem com uma voz nervosa.
Laurent cruzou as pernas com algum relaxamento e envolveu o joelho com as mãos.
"O senhor serviu em Ver-Tan."
Sorem moveu o seu rosto na direção de Laurent, assentindo.
"Sim, Majestade."
"Então, pode nos ilustrar melhor o que houve naqueles dias."
O imperador pestanejou os seus cílios longos, movendo a face bela.
"Por que o interesse em Ver-Tan?"
Laurent tocou na mão de Damen que repousava em seu ombro e disse:
"Porque foi lá que a guerra virou. Foi lá que a comandante Somalia de Ver-Tan morreu. E foi lá que os soldados patranos foram envenenados com um veneno que foi posto na minha comida e somente não me afetou porque Afanas havia comido um pedaço de carne. Um único pedaço de carne derrubou e quase matou um leopardo. E o senhor foi intoxicado pelo mesmo veneno."
Sorem se permitiu respirar fundo, fechando os seus olhos brevemente. A sua voz era embargada quando ele falou:
"Eu sofri pelo que aconteceu com o pequeno Afanas e fico aliviado que algo pior não tenha acontecido nem com ele e nem com você, Laurent de Vere."
Sorem desviou, então, o olhar para um canto do quarto. Os seus cabelos escuros caíam por sua tez alva e as suas esclarelas se avermelharam. Ele prosseguiu:
"...A tomada da fronteira de Ver-Tan pelos patranos foi conturbada e violenta. A minha mãe morreu, mas pouco antes, ela mandou que eu e Ishmael de Skarva voltássemos para a capital. Eu queria ficar ao lado de minha mãe, mas ela disse que alguém deveria olhar por Vishkar e pelo império. Os mercenários de Patras não tinham clemência."
"E quem envenenou a água da fronteira?"
Sorem espreitou Laurent, respondendo com a voz um pouco alterada:
"Se acredita nos boatos de que foi a minha mãe, está enganado, Majestade! Esse não foi um tópico solucionado, mas se quer saber, acredito que tenha sido os homens de Torgeir ou, então, o rei de Patras, cujo juízo já estava comprometido no fim da vida, segundo ouvi rumores."
Laurent apoiou o pulso delicado na cadeira, revelando um pouco do bracelete dourado circundando o seu braço. A sua expressão se mantinha impessoal e distante como se ele falasse sobre o tempo e as estações enquanto Damianos se mantinha de pé e um pouco inclinado para a frente, com uma atenção concentrada.
"Sorem..." — começou Laurent, com a voz ainda sem alteração — "Lamento que o meu pai tenha feito uma barganha sobre Ver-Vassel com o antigo rei de Patras e concedido provisões, ouro e armamentos para a nação inimiga de Vask. Mas eu não podia imaginar que homens de Vere tivessem estado na fronteira de Ver-Tan."
Sorem baixou o seu rosto por alguns segundos e apertou os tecidos dos lençóis sobre o seu corpo.
"Havia..." — disse o homem, contraindo um músculo do seu maxilar— "Vishkar lhes contou, não foi?"
"Quem eram?" — indagou Laurent, fechando brevemente a mão no braço da cadeira e falando baixo ao estreitar o olhar, como se compartilhasse um segredo.
O imperador ergueu as suas retinas circundadas de verde amarelado, inclinando um pouco o rosto.
"Havia alguns soldados acompanhando um homem importante de Vere. Achei que ele poderia ser um apoiador de Aleron, mas estava enganado. A minha mãe descobriu a muito custo a verdade. Ele não estava lá a mando do rei. Estava lá a mando do Regente para garantir que Ver-Tan fosse invadida."
Houve um silêncio e Laurent franziu por uma fração de segundos as suas sobrancelhas pálidas.
"Quem?"
Sorem respondeu com uma assertividade óbvia.
"Ora, o conselheiro Chelaut."
Damianos sentiu uma tensão percorrer o seu corpo e percebeu que ela era um resquício de algo que perpassava Laurent como uma lâmina.
"Chelaut?!"
"Sim." — respondeu Sorem.
Laurent entreabriu os seus lábios, antes de fechá-los e se voltar para o imperador.
"Como o senhor foi envenenado?"
Sorem pestanejou com uma expressão irritada como se uma lembrança ruim o atormentasse.
"Pari me convidou para fumar narguilé com ela, dizendo que havia descoberto coisas importantes sobre o império de Vask e que suspeitava das atitudes de Vishkar. Eu me abri para ela, achando que podia reconquistar uma aliada entre o meu povo, mas o tabaco que ela usou estava misturado a veneno, suspeito eu. Logo após, eu passei mal e rumei para o quarto do kyros de Ios para falar com Damianos e as coisas se sucederam como já sabem."
Laurent sustentava aqueles olhos claros ininterruptamente. Damianos perguntou:
"Sorem, acha que Vishkar e Torgeir estão por trás dos ringues clandestinos também?"
O imperador se manteve em silêncio por um instante e depois, respondeu:
"Eu não sei. Mas, pensando bem, ringues são lugares que movimentam muito dinheiro e se Vask e Patras pretendem acumular ouro e angariar aliados veretianos e akielons contra as nações-irmãs, talvez os ringues clandestinos pudessem ser um bom investimento."
Laurent ergueu uma sobrancelha como se refletisse, inquirindo a seguir:
"Acha que Torgeir poderia ter negócios escusos próximo a Aegina e enviar escravos clandestinos de lá para Vere?"
"Sim. Seria fácil para ele usar o porto daquela região. Isso justificaria os escravos trazidos por navio para Arles."
Laurent tinha o olhar fixamente em Sorem.
"E o que o senhor deseja de Vere e de Akielos?"
Sorem se concedeu algum tempo, antes de unir as palmas de suas mãos no cumprimento característico de Vask e murmurar com a sua voz entrecortada, como se sentisse dor:
"Em nome de Vask, Vossa Majestade, eu imploro à Vere asilo político. Skarva não é mais um lugar seguro para mim e não tenho para onde voltar. A minha própria esposa atenta contra a minha vida, estando aliada à quarta consorte, aos seus homens e à Patras. Ela pode estar por trás da tentativa do assassinato de Vossa Majestade também, estando mancomunada com Torgeir. Eu peço que, por favor, me acolha em Vere..."
Damianos espreitou a cabeça escura do homem se curvando em um gesto de súplica e quando ele ergueu os seus olhos, estavam úmidos e avermelhados.
"Se houve uma tentativa de golpe contra Laurent, a declaração de uma guerra pelas nações-irmãs é inevitável..." — disse Damen.
Um soluço deixou os lábios do imperador e ele levou a mão à boca, sufocando-o.
"Gostaria de impedir que a minha nação passasse pelo sofrimento de quase uma década atrás, mas..."
Sorem não terminou a sua frase e, após alguns minutos, Laurent disse, levantando-se:
"Preciso levar o seu pedido ao Conselho, imperador, e discutir a questão com o rei Damianos, mas tentarei intervir por sua solicitação."
O vaskiano se curvou algumas vezes, tendo as mãos unidas diante do rosto num gesto de deferência.
"Obrigado, Majestade."
Damianos fitou Sorem por um tempo com os seus olhos escuros e comentou, colocando a mão ao redor do braço de Laurent. O bracelete dourado, reluzente em sua pele oliva, também se revelou sob o quíton.
"Foi uma sorte para nós o senhor poder vir para Arles e conseguir deixar Skarva, sem ser impedido pelos homens do império, já que Vishkar não queria que o senhor saísse de Vask..."
Sorem aquiesceu, dizendo:
"Foi uma boa ideia usar uma das rotas de Belloy que já estou acostumado. Eu lamento muito por tudo o que aconteceu em Vask, Exaltado. Lamento por Yuliya e Yelena, as gêmeas filhas do império que foram deixadas em Skarva por uma mãe inconsequente e que, por causa dela, as meninas crescerão numa guerra. Eu as amo como se fossem minhas próprias filhas..."
Damen se deteve um tempo, fitando o homem e declarou com uma voz firme, fazendo o cumprimento de Vask:
"Precisamos ir agora. Descanse, Vossa Majestade Imperial."
Quando o rei akielon e o rei veretiano fecharam a porta atrás de si, os dois homens trocaram um olhar tácito e longo. Damen tocou na mão de Laurent, sentindo-a gelada entre os seus dedos e o veretiano relaxou um pouco os ombros rígidos, como se tirasse dois alforjes pesados de suas costas.
"Damen..."
"Eu sei."
O rei veretiano se antecipou, dizendo para um de seus homens:
"Diga aos conselheiros que vou me atrasar para a reunião."
"Certo, Majestade!"
Demorou somente alguns minutos para que um outro soldado usando a libré da Guarda Real e a estrela de Vere em seu peito se apresentasse também diante do rei veretiano, alcançando-o sob o arco de pedra. Ele era um dos soldados mais velhos com uma expressão sisuda e o cenho franzido por rugas profundas.
"Sua Majestade, encontramos o conselheiro Chelaut. Ele estava andando sem rumo próximo ao lago. O conselheiro estava tomando vinho, fumando e parecendo abalado..."
Laurent retorquiu com uma expressão austera:
"Recolham-no e o levem para uma sala separada. Não deixem que ele se junte ao Conselho e não o pressionem. Eu vou falar com ele, após tratar de um assunto de extrema urgência..."
Quando Damen e Laurent alcançaram a ala patrana, a hostilidade dos patranos ainda imperava e, sem se anunciarem, os dois reis abriram a porta dupla dos aposentos do rei Torgeir.
O recinto, pouco havia mudado desde que partiram. Torveld e Erasmus já haviam ido embora, mas Vishkar se mantinha, sentada sobre o tapete e tendo a sua cabeça de fios lisos, curtos e escuros sobre o colo do rei patrano. Ela parecia uma garotinha, mas o vislumbre demorou somente algum instante, antes de ela se colocar de pé, empertigando-se em uma postura alarmada.
Damianos bateu a porta atrás de si, trancando-a num ato resoluto e definitivo.
"O que pretendem fazer, Laurent de Vere e Damianos de Akielos?" — indagou Torgeir, levantando-se da sua poltrona também e tateando o cinto.
"Acabar com o que começou há anos atrás." — replicou Laurent, com alguma tensão em sua voz.
Vishkar, que tinha os olhos fundos como joias encrustadas em uma cova, disse, tocando os seus dedos muito brancos nos dedos de Torgeir:
"O que querem conosco, Laurent?"
"Uma guerra." — respondeu o veretiano, fixando o seu olhar azul e gélido— "Uma guerra das nações-irmãs contra Vask e Patras."
