Esclarecimento: Só reiterando que esta história não me pertence, ela é uma adaptação do livro de mesmo nome, de Sara Wood, que foi publicado na série de romances "Bianca Especial de Férias", da editora Nova Cultural.


Capítulo 5

Sesshoumaru olhou fixamente para Rin por mais alguns segundos, depois, voltando-lhe as costas, afastou-se pelo jardim. Perplexa, decepcionada, Rin seguiu-o com o olhar.

O desejo cedia lugar à frustração. Desorientada, perguntou-se o que teria sido feito de seu equilíbrio emocional, seu jeito reservado de encarar a vida. Sesshoumaru a despira por completo dessas qualidades com aquela sensualidade indócil, perigosa.

Era impossível negar o que se passava entre eles, Rin admitiu, desanimada. Uma corrente oculta, criada pelas palavras comoventes de Sesshoumaru sobre tudo o que os rodeava, pela vibração que ele demonstrava pela vida, ligava-os um ao outro. O lirismo dele a cativara, envolvendo-a também no amor fervoroso que dedicava a Jerusalém. Sesshoumaru a convencera de que partilhavam uma experiência incomum e absorvente naquela cidade repleta de mistérios. No entanto, agora parecia tão assustado quanto ela própria em relação aos sentimentos e sensações incontroláveis que os uniam.

Rin sentia-se desnorteada. Suas defesas haviam sido demolidas no turbilhão de emoções. Mas era aquilo o que desejava ? Sesshoumaru não se contentaria com uns poucos beijos e olhares lânguidos. Logo exigiria mais e lutaria para consegui-lo com armas perigosas, como carícias persuasivas e o efeito embriagador de seus olhos dourados. Ela teria forças para enfrentá-lo ? Saberia como detê-lo ?

Ainda imersa nessas inquietações, ela foi para a sala de jantar. A longa mesa fora arrumada com capricho, com queijos, frutas e algumas garrafas de vinho. No entanto, os dois foram os únicos a almoçar ali. Os outros dez hóspedes, todos franceses, haviam viajado para a Galiléia.

Um jovem bastante gentil serviu-lhes lasanha, uma boa porção de salada, tudo acompanhado por fatias de pão quente e crocante. Sesshoumaru e Rin comeram em silêncio, sob a sombra de uma árvore que se projetava através da ampla janela e desenhava-se sobre a toalha. Ele parecia perdido em pensamentos muito particulares. E, quando Rin fez alguns comentários por pura polidez, ouviu por resposta monossílabos evasivos. Mas o teimoso silêncio do companheiro de refeição ajudou-a a recompor, pelo menos na aparência, a calma fria e impessoal de que sempre se orgulhara.

Além das grossas paredes de pedra da hospedaria, soava o ruído suave e agradável de um ancinho revolvendo a terra. De onde estava, Rin via um garoto limpando os canteiros de lírios do pórtico. Outros ruídos amenos e suaves enchiam o ar, como o zunido das abelhas e o cascatear das águas da fonte. Uma luminosidade doce enchia a sala de refeições. De repente, ela sentiu-se tocada pela beleza poética da natureza. O coração apertou-se dentro do peito, causando-lhe uma repentina vontade de chorar.

- Desculpe - Sesshoumaru murmurou - Não devia ter tocado em você. Não sei o que deu em mim...

Distraído, ele girou o copo de vinho entre as mãos antes de beber o primeiro gole.

- Não tem importância - ela respondeu - Certas coisas fogem ao nosso controle. Às vezes, a proximidade e as emoções fortes pregam peças em nossos sentimentos. Mas não fique aborrecido, eu compreendo... afinal, não é a primeira vez que isso nos acontece, não é mesmo ?

Ele sacudiu a cabeça com tristeza.

- Logo eu, que sempre critiquei homens que se envolvem com mulheres casadas... quando a beijei na galeria, não sabia nada da sua vida particular, mas agora...

Rin baixou os olhos. Já não sabia se valia a pena sustentar aquela mentira. Usara-a como um escudo contra as investidas de Sesshoumaru, mas nem isso bastara para conter a atração entre os dois.

- Você é casada, não é ? - ele insistiu, ansioso; depois, esboçando um sorriso desconsolado, prosseguiu: - Há momentos em que eu quero me enganar, mas não podemos fugir dos fatos. Há pessoas que não se importam com essa situação, mas eu acho que...

- Eu não sou mais casada - ela interrompeu-o, decidida - Divorciei-me de Bankotsu, faz alguns meses.

Sesshoumaru alargou o sorriso, o rosto inteiro iluminado por uma expressão de alívio. Num gesto impulsivo e caloroso, segurou as mãos de Rin com carinho.

- Por que não me contou ?

- Achei que seria uma boa desculpa para me proteger. E quase deu certo, não foi ?

Ele acariciava-lhe as mãos, ignorando por completo a ironia amarga na voz dela. Um calor aconchegante a invadiu ao sabor do toque dele e Rin nem pensou em interromper o contato. Por que parar, se lhe causava tanto prazer ?

- Você não precisava se defender desse jeito - ele ponderou - Era só dizer não, o que, aliás, você faz como ninguém...

- Não quero me envolver, Sesshoumaru. Meu casamento e meu divórcio ainda são muito recentes. E não foram experiências nada agradáveis, acredite !

- Mas eu também não quero me envolver. Viajar, escrever, conhecer pessoas, mulheres... é dessa vida que eu gosto !

Rin encarou-o, frustrada. Aquela frase fizera com que se lembrasse de Bankotsu. Para o ex-marido, mulheres eram como acessórios descartáveis, interessantes apenas enquanto não aparecia nenhuma complicação sentimental. Livrar-se delas era tão simples quanto se desembaraçar de um objeto incômodo... a mágoa daquelas recordações encheu-a de amargura.

- Pois eu não penso assim - assegurou - Qualquer aproximação entre nós representaria um envolvimento para o qual não me sinto preparada no momento. Por isso quero evitá-lo. Mas, agora que conheço seu modo de pensar, vou tomar ainda mais cuidado. Vou encarar tudo o que acontecer conosco com naturalidade, fatos banais na vida de um homem atraente.

- Não seja boba, não foi nada disso que eu quis dizer ! Por acaso você acha que aquele beijo foi uma coisa banal para mim ? Foi um momento lindo, que mexeu fundo comigo...

Então, Sesshoumaru precisava ser provocado para dizer o que realmente sentia. Saber se controlar, esperar a reação do outro tinha essa grande vantagem, Rin pensou com sagacidade. Mas ela saberia mesmo se conter ? Tinha de descobrir. Afinal, ele deixara muito claro a vida que escolhera. E não havia lugar para ela naquele esquema de descompromisso.

- Sesshoumaru, não quero ser grosseira, mas, por favor, não se aproxime mais de mim. Esse tipo de envolvimento não me interessa e, para ser sincera, nenhum homem me faria mudar de opinião.

- Duvido ! Se eu me vestisse melhor, segundo os seus padrões, é claro, você até ficaria envaidecida com minhas atenções !

Rin deu de ombros. A recusa ferira o orgulho de Sesshoumaru e ele apenas tentava uma desforra. Tolice responder à provocação. Ficou em silêncio, a cabeça baixa para evitar a intensidade do olhar de Sesshoumaru.

- Ele a magoou muito, não é ? - ele perguntou, depois de alguns momentos.

- Bankotsu ? Ele quase me destruiu...

- Perdoe-me... agora entendo por que está sendo tão cautelosa.

- É isso mesmo. Jurei que ninguém mais vai me ferir de novo.

- Por que ele casou com você ?

- Acho que foi por causa da minha indiferença. O machismo dele não suportou a idéia de que houvesse uma mulher capaz de resistir ao seu fascínio... conquistar-me tornou-se um desafio irresistível.

- E você, por que casou com ele ?

- Por causa da magia do Lago da Galiléia - ela zombou, amargurada - Na conversa, ele foi muito persistente, lisonjeiro, convincente... não admira que tenha ganho um prêmio como melhor vendedor da companhia naquela ocasião ! Sabia como fazer uma excelente imagem de si mesmo ! Eu sempre havia mantido uma distância segura dos homens. Mas bastou um momento de descuido para pagar um preço bem alto, talvez pelo resto da vida... ele era elegante, simpático, rico e atencioso. Perfeito para qualquer moça, não acha ?

- Não. Ficam faltando qualidades como caráter e amor.

- Eu pensei que ele me amasse ! Mas, se gostasse de mim pelo menos um pouco, jamais teria sido tão estúpido...

Rin interrompeu-se. Sesshoumaru não era a pessoa mais indicada para ouvir confidências tão íntimas. Na certa, interpretaria seu gesto como um meio de se fazer de vítima e conquistá-lo. Afinal, ele já a tomara por uma aventureira antes...

- Estúpido ? - ele repetiu, desconfiado - Isso significa pouca inteligência ou brutalidade, mesmo ?

- Digamos que ele... não tinha muita consideração comigo e ponto final ! Não quero mais falar neste assunto.

- Será que você não era muito perfeccionista ?

- Como assim ?

- Talvez você fosse muito exigente com ele, ou esperasse demais do relacionamento, muito mais do que ele poderia lhe dar...

- Ah, então fui eu quem errou, no final das contas ? Pois fique sabendo que ele ficou completamente bêbado no dia do nosso casamento. Tiveram de me ajudar a carregá-lo para casa. Muito lisonjeiro para uma noiva, não acha ?

- Eu entendo a sua revolta. Mas você já se perguntou com honestidade por que ele fez isso ? Não discuto o mérito da questão, talvez ele fosse mesmo um péssimo marido... mas quem sabe, pelo menos na primeira noite, você não o tenha intimidado ? A intenção dele deve ter sido ganhar coragem para enfrentar a "Madame Perfeição"...

- Eu quase esqueci que você faz parte dessa confraria de calhordas ! - Rin explodiu, indignada - Nem sabe direito o que aconteceu, mas as mulheres são sempre culpadas ! Sempre desculpam um ao outro, sempre se perdoam ! Para nós, restam a recriminação e o moralismo hipócrita ! Porque vocês são os primeiros a desejar as conquistas fáceis, os casos passageiros. O que seria de vocês se todas as mulheres pensassem como eu ? Por isso mesmo, coloquei um ponto final nessa história de amor e não quero mais nada com homem nenhum. Vocês são todos iguais !

Erguendo-se da mesa, retirou-se sem terminar a refeição. Mal continha as lágrimas de raiva e decepção. Ainda assim, forçou na voz um tom casual antes de deixar o refeitório de vez:

- Aonde vamos esta tarde, sr. Taisho ?

- Acho que... o ideal seria usarmos as energias que esse almoço nos deu para caminharmos bastante. Quem sabe assim eu me livre dessas teias de aranha que deixei se formarem no meu cérebro sem perceber...

- O senhor manda - ela concordou com frieza, ignorando o comentário.

Durante a tarde inteira, os dois trabalharam sem descanso, num relacionamento produtivo, mas impessoal. Rin mantinha certa distância de Sesshoumaru, tratando com ele apenas dos assuntos relativos às fotos.

Chegando ao Portão das Flores, ela substituiu o filme pela primeira vez. Sesshoumaru ajudou-a sem, contudo, trocar sequer uma palavra com ela. No Monte das Oliveiras, ele também se restringiu a falar dos melhores ângulos para as fotografias. E, para Rin, embora emocionada pela beleza do lugar, a visita perdeu parte do encanto sem as histórias de Sesshoumaru.

Ela sentia-se infeliz como nos tempos de casada. A barreira criada entre os dois a magoava, a deixava mal. Como manter uma convivência tão desgastante durante as próximas semanas ? Após ter conhecido o bom humor espontâneo de Sesshoumaru, não se contentava com aquela polidez fria e forçada. Depois de algumas horas, a situação se tornou insustentável.

- Escute, Sesshoumaru, nós teremos de conviver por vários dias. Não quero intimidades, nem com você nem com outro homem, pelo menos por enquanto. Meu casamento me deixou marcas profundas, não posso esquecer as más lembranças num piscar de olhos. Mas será que não poderíamos ser bons amigos ? Sua amizade é importante para mim...

Fitou-o, ansiosa. Jamais fora tão sincera com alguém, sem dar a mínima importância para as conseqüências de tal atitude. Naquele momento, só se preocupava em recuperar o carinho de Sesshoumaru.

- Entendo muito bem - ele retrucou, sério - Você prefere um relacionamento sem malícia, sem compromissos e sem grandes complicações, não é isso ? Enfim, quer que eu seja um amiguinho descartável...

- Quero que seja um "amigo" !

- Tudo bem, eu compreendo. Acho até que você "pensa" que está sendo sincera consigo mesma... mas não acredito que tenha se enganado quando retribuiu meus beijos com tanto ardor hoje cedo.

- Pois eu acho que me enganei, sim. Passamos uma manhã ótima e, quando você me beijou, interpretei como um agradecimento pelos momentos agradáveis. Pelo menos da minha parte foi só isso.

Ele olhou-a com ar de lástima.

- Então, me enganei muito a seu respeito, Rin. Nunca vi uma mulher agradecer com tanto empenho a uma simples manhã...

- Talvez não seja a meu respeito que você tenha se enganado. Muitas mulheres podem fingir gostar de seus arroubos sexuais. Eu mesma fiz isso durante dois anos de casamento, com excelentes resultados.

- Não duvido que isso seja verdade ! Mas não julgue os outros por si mesma, sra. Taniguchi, porque a maioria das pessoas tem sentimentos, sensações, desejos ! Você desconhece tudo isso, então não vale a pena eu perder tempo tentando lhe ensinar. Se isso a deixa feliz, não tenho mais vontade de me aproximar de você... e, agora, acho melhor voltarmos para a hospedaria. O clima ficou pesado demais para trabalhar.


Rin preparou o tripé, procurando o melhor ângulo para a foto. Ao lado dela, Sesshoumaru observava com paciência os preparativos. Sabia que boas fotos exigiam cuidado e atenção.

Haviam esperado o momento certo, ela concluiu satisfeita enquanto fixava a câmera no tripé. A luz do entardecer dourava a cúpula da Capela da Ascensão, ao fundo da qual o Monte das Oliveiras reluzia no fulgor avermelhado do poente. O céu, colorido de tons intensos e inesperados de azul, lilás e roxo, conferia ao conjunto um encanto tocante, muito melhor do que qualquer jogo de luzes artificial.

A autorização especial para fotografar do alto da Igreja do Santo Sepulcro viera bem a calhar, ela refletiu. Graças ao bom relacionamento de Sesshoumaru com as autoridades eclesiásticas locais, seria possível eternizar aquela imagem tão especial.

O trabalho dos últimos dias não havia sido fácil. Cada foto exigia grande dose de paciência e sensibilidade: era preciso encontrar o melhor enquadramento, a luminosidade mais adequada, o enfoque mais atraente. Fugir do tradicional, do lugar-comum, era a palavra de ordem para conseguir material inédito em cenários e situações milhares de vezes já retratados. E o estudo de cada caso demorava horas, custava muita pesquisa e discussão...

Discussões cordiais, Rin lembrou com um suspiro. Desde o dia em que haviam conversado, cordial era a palavra adequada para qualificar a convivência entre ambos. Embora muito exigente, ele colaborava o máximo, sempre polido, atencioso... e nada mais.

- Tudo pronto ? - ele perguntou.

- Perfeito.

- Então, procure pegar o Monte das Oliveiras em segundo plano, centrando o foco na Capela da Ascensão. Use as lentes amarelas, para reforçar a idéia de espiritualidade.

Rin seguiu as instruções à risca, alterando o foco com perícia, quando necessário. Em poucos minutos, concluiu o trabalho, ainda a tempo de admirar a paisagem magnífica pela última vez. Logo depois, as sombras da noite envolveram a cidade, dando por encerrado o trabalho daquele dia.

- Teremos de acordar bem cedo amanhã, Rin. Ainda preciso de algumas imagens do Monte das Oliveiras, mas focalizado do outro lado da cidade.

Sesshoumaru cofiou a barba, que começava a crescer de novo. O olhar dele perdia-se no lusco-fusco das luzes que se acendiam. Mas por onde andariam seus pensamentos ? Uma angústia estranha dominou Rin diante da impossibilidade de encontrar a resposta.

- A visão deste lugar me tocou fundo - ele comentou num murmúrio - Nunca vi nada tão bonito !

Rin nada disse. Desarmou o tripé, acondicionando-o com cuidado junto com o resto do material. Os gestos hábeis, porém, encobriam uma súbita fragilidade interior. Lágrimas teimosas molhavam-lhe os olhos, talvez por causa do impacto das imagens emocionantes. Seria essa a razão de sua tristeza ?

- Posso ajudá-la ? - Sesshoumaru ofereceu-se, aproximando-se. Então, notou-lhe o rosto lavado de lágrimas e fitou-a por um momento, mudo de espanto. Rin correspondeu àquele olhar com intensidade, pela primeira vez sem vergonha de exibir os sentimentos.

- A paisagem conseguiu um milagre - ele comentou por fim, com indiferença - Me provou que você chora, como todo mortal comum.

- Que frase criativa ! Digna de um escritor !

Ele fez uma leve reverência, agradecendo o elogio.

- Sairemos às oito da manhã, sem falta - ele avisou, descendo as escadas.

Rin seguiu-o, revoltada. Não era à toa que sempre escondera com cuidado as próprias emoções ! Detestava servir de chacota ou ser alvo da piedade alheia. Sesshoumaru parecera diferente dos outros, mas, agora, tratava-a com a mesma superficialidade e o mesmo desinteresse.


Na manhã seguinte, durante o café, uma nova hóspede apareceu na sala de refeições. A pele bronzeada da garota valorizava-lhe o corpo belíssimo, realçado pela camiseta decotada e a ousada minissaia. Aproximou-se deles com um sorriso amistoso.

- Olá, desculpe interromper, mas você é escritor, não é ? - foi logo perguntando. - Quando Luigi me falou que você estava aqui na hospedaria, mal pude acreditar ! Usei seus guias várias vezes e admiro muito o seu trabalho ! Estava doida para conhecê-lo !

- Eu é quem fico feliz em conhecê-la. É bom saber que sou útil a uma moça bonita como você.

- Obrigada, sr. Taisho !

- Por favor, me chame de Sesshoumaru...

- Então está bem, Sesshoumaru.

A garota tornou a sorrir, o que a deixou ainda mais atraente. Rin baixou os olhos, mordendo a torrada com força.

- E então, Sesshoumaru, quando vai fazer uma pausa no trabalho ?

- Ainda não sei... isso depende mais da sra. Taniguchi do que de mim. Afinal, praticamente a forcei a fazer as fotos para o meu próximo guia...

A garota olhou para Rin, que esboçou um sorriso polido, retribuindo o cumprimento com uma ligeira inclinação de cabeça. Por um instante, pensou ver no rosto da garota um claro desapontamento.

- Mas você ainda não me disse o seu nome - Sesshoumaru interferiu, insinuante.

- Ayame.

- Um belo nome, aliás... será ótimo contar com a sua companhia. Eu e a sra. Taniguchi trabalhamos juntos, mas nosso relacionamento se restringe ao horário comercial. Nas horas de folga, cada um faz o que desejar. Em geral saímos juntos, mas você seria muito bem-vinda ao grupo. Eu estava pensando em convidar a sra. Taniguchi para jantar no King David Hotel qualquer noite dessas. Você quer nos acompanhar ?

Rin disfarçou a surpresa. Desde que chegara a Jerusalém, Sesshoumaru não a convidara nem para tomar café no bar da esquina depois do "horário comercial". E também não comentara nada com ela sobre esse jantar...

- Você vai gostar, tenho certeza - ele insistiu - Poderemos jantar, dançar um pouco e, depois, dar uma esticadinha... o que me diz ?

Rin sentiu uma raiva sufocante. Quem era aquela intrusa, alvo de tantas atenções e do charme de Sesshoumaru ? Não queria ir àquele jantar... mas o que não aconteceria em sua ausência ? Se desse a ele a oportunidade de ficar à vontade com Ayame, na certa os dois não perderiam tempo !

Ficou tensa ao notar a própria indignação. Se o possível relacionamento entre Sesshoumaru e Ayame a incomodava tanto, era porque estava com ciúme dele ! A constatação provocou-lhe um profundo abalo.

- Ah, querido, não sei se posso ir ! - a jovem retrucou com ar de lástima - Preciso viajar para Tel Aviv e, além do mais, eu não trouxe nenhuma roupa mais discreta. Meu vestido de noite é leve e transparente, e tenho medo de ofender alguém. O pessoal desta terra me parece um pouco... conservador demais !

- Preconceito seu, bobinha ! Como todas as grandes cidades do mundo, Jerusalém também tem seu lado boêmio. Caso contrário, não fariam aqui um restaurante como o do King David Hotel, com música e pista de dança. E, além disso, sou inteiramente a favor de roupas transparentes.

O tom de insinuante malícia na voz de Sesshoumaru fez Rin estremecer de irritação. A moça mal o conhecia e o deixava segurar-lhe a mão na maior intimidade ! O que não fariam durante o jantar, com todo um ambiente para favorecer a imaginação ?

Quando Ayame se afastou, prometendo fazer o possível para aceitar o convite, Rin relaxou um pouco. Mascarou o mau humor com um sorriso. Sesshoumaru jamais perceberia o quanto estava magoada, jurou para si mesma.

- Moça simpática, não ? - comentou com naturalidade - Parecia conhecê-lo há séculos !

- Gosto de gente franca, que vai à luta pelo que deseja. Na minha opinião, certos maneirismos só servem para disfarçar o medo de viver... mas pensei que você não tivesse gostado dela.

- E o que lhe deu essa impressão ?

- O jeito dela. Afinal, vocês duas são o extremo oposto uma da outra... na verdade, em certos momentos, pensei que você estivesse com ciúme...

Foi um prazer para Rin esboçar o sorriso mais calmo do mundo, sacudindo a cabeça com superioridade.

- Atitude bem típica de seu ego exagerado ! - retrucou - Pensa que o mundo gira em torno de você... acho um pouco cedo para essas intimidades, mas, enfim, cada um tem seu jeito de encarar a vida.

- Ainda bem que é assim ! Sou daqueles para quem qualquer hora é hora, qualquer lugar é lugar. Não importa língua ou nacionalidade, apenas os sentimentos.

Rin fitou-o, indignada.

- Chama a isso de sentimentos ?! Você age como um animal ! Não me admiraria se levasse essa... menina para a cama !

Mordeu o lábio, arrependida. Não tinha o direito de ditar regras de comportamento a Sesshoumaru. E, quando ele a fitou por alguns instantes, com um brilho de vitória nos olhos dourados, percebeu que caíra numa armadilha.

- Por que não, se ela também quiser ? Garanto que vamos nos divertir. Não tenho tido muitas alegrias desde que cheguei. Quem sabe se Ayame não dá um jeito nesse tédio ?

Rin afastou a cadeira, num gesto brusco.

- Já são quase oito horas, vou buscar o material - levantou-se e dirigiu-se para o quarto. Fingiu não notar os olhos de Sesshoumaru fixos nela, numa expressão de censura.

Ele a atraía, Rin admitiu a contragosto. Era um homem sedutor e envolvente, além de ótimo companheiro. Depois de meses de completa solidão, era natural que tantas qualidades a impressionassem. Por isso, se ressentira ao vê-lo dispensar atenção a outra mulher. Ayame agiria do mesmo modo, se estivesse no lugar dela...

Rin passou a maior parte do dia repetindo esses argumentos para si própria. Entretanto, a animação de Sesshoumaru após o encontro com Ayame a irritava profundamente. Escondia tal sentimento com empenho, concentrando-se o máximo possível no trabalho. Não havia remédio melhor para acalmar as emoções confusas que se digladiavam com sua vontade.

Sesshoumaru nunca demonstrara tamanho bom humor. Desde o primeiro dia de trabalho ela não o via rir e contar piadas como agora. Talvez adivinhasse o sofrimento dela e o encarasse como um troféu à própria vaidade !

Teve vontade de abandoná-lo ali mesmo, em plena rua, e voltar ao hotel. No entanto, a perspectiva de conhecer o Domo da Rocha causava-lhe uma curiosidade maior que a raiva.

O templo fazia jus à fama. As telhas persas, trabalhadas nas tonalidades de cobalto, azul-marinho e esmeralda, possuíam debruns dourados, bem como grossas portas de madeira nobre e escura. Tudo isso contrastava lindamente com as paredes de um branco imaculado, que ganhavam um aspecto etéreo e irreal graças ao reflexo das cores celestiais da cobertura. Impressionada, Rin concluiu que aquele era, sem dúvida, um dos edifícios mais surpreendentes do mundo.

- Esse é um dos mais perfeitos santuários islâmicos - Sesshoumaru comentou.

- Dá para notar... tudo aqui parece feito nas proporções exatas. A mesma coisa acontece com o Taj Mahal, por exemplo... não é incrível ?

- Mais do que incrível, é mágico. Esse tipo de obra, feito por mortais comuns, como nós, me enchem de respeito pela raça humana.

As palavras dele exprimiam os sentimentos de Rin. E, somando-se à emoção inspirada pelo magnífico templo, uma cumplicidade gostosa e aconchegante encheu-lhe o coração. Era como se Sesshoumaru e ela fizessem parte de uma unidade, compartilhando sensações comuns.

- Mas o que um santuário islâmico faz em Jerusalém ? - Rin perguntou, curiosa.

- Apenas uma coincidência histórica. Segundo a tradição, neste local Abraão se dispôs a sacrificar Isaac. Aqui também se ergueu o grande templo de Salomão. E daqui também Maomé voou para o paraíso... mas agora comece a fotografar enquanto eu vou lá dentro tentar conseguir uma autorização para tirarmos algumas fotos da parte interna.

Rin concentrou-se em obter os melhores ângulos do edifício. Já conseguira uma série de fotografias quando Sesshoumaru se aproximou, apressado.

- Rápido ! - ele gritou a uma certa distância - Consegui a licença, mas vamos depressa antes que mudem de idéia ! Deixe o que não precisar aqui fora e leve só o necessário para não chamar muita atenção...

- Não posso deixar minhas coisas aqui, Sesshoumaru ! É um equipamento caríssimo !

- Ora, deixe disso ! Ninguém vai roubar seu equipamento, as pessoas vêm aqui para se livrar do pecado, não para conseguir mais alguns. Ande !

- Sesshoumaru, não é apenas pelo valor dos aparelhos, mas precisamos deles para trabalhar. Imagine se algum turista resolver carregá-los !

- Ora, por Deus, Rin ! - ele berrou, descontrolado - Pare com esse seu pessimismo. Todo mundo deixa as coisas aqui fora e ninguém rouba !

- Como é que você sabe ?

Exasperado, ele pegou-a pelo braço e puxou-a para perto de si.

- Deixe o que não for necessário aqui e traga apenas a câmera e as luzes. O mais difícil de se trabalhar com você é lidar com sua cabeça dura ! Ande, vamos rápido !

Contendo uma resposta ácida, ela deixou o equipamento desnecessário e a maleta térmica no chão. Em seguida, tirou os sapatos e entrou no templo.

Enquanto os pés nus afundavam em suaves tapetes persas, Rin arrependeu-se da própria teimosia. Ninguém seria capaz de uma atitude mesquinha quando saísse daquele lugar. Uma serenidade altiva desprendia-se dos pilares elevados que se erguiam em direção à imensa cúpula de ouro. E a combinação das cores suaves das paredes com os adornos de ouro maciço fazia qualquer ser humano tomar consciência da própria insignificância.

A luz do Sol, filtrada por delicadíssimos vitrais, enchia o recinto de uma luminosidade cálida e doce. Muda de emoção, Rin preparou a câmera e fotografou a pegada do cavalo de Maomé, gravada numa rocha no centro do templo.

- Trouxeram este bloco de pedra de algum lugar sagrado ? - ela perguntou, tentando captar os reflexos dourados da luz solar sobre a pedra.

- Não. Segundo se diz, esta rocha é o cume do rochedo do qual se originou o mundo.

- E por que tem aquele buraco ?

Ela apontou discretamente para uma cavidade da largura de um punho fechado escavada na pedra e iluminada por poderosos holofotes.

- É para a água e o sangue escorrerem até a cisterna - ele explicou - Este lugar era um altar de sacrifícios antes de Maomé saltar daqui para o paraíso... agora, vamos descer. Quero lhe mostrar uma caverna, onde rezou Alexandre, o Grande, e outros homens importantes.

Guiou-a até escadas rústicas de pedra enegrecida pelo tempo. Ao final dos degraus, se depararam com uma gruta, escavada sob o cume do monte.

- Imagine só... - ele murmurou, os olhos brilhantes de emoção - Dez mil homens trabalharam duro neste lugar para construir um templo, judeu, na época de Herodes. Os escravos retiravam essas pedras e com elas percorriam quilômetros até aqui. Depois, esculpiam cada bloco, aparando-os e tornando-os mais lisos que uma pedra de gelo antes de juntá-los. Tanto trabalho para o templo ser destruído anos mais tarde !

- Quer dizer que ele foi reconstruído ?

- Completamente. Todas as vezes que este lugar foi profanado e destruído, ressurgiu das cinzas, como Fênix. Nem sempre representando a mesma religião, mas sempre voltado para Deus. Toque estas paredes de pedra. Imagine quantas lembranças guardam...

Enquanto falava, Sesshoumaru inclinou-se, acariciando as rochas com as mãos. O cabelo prateado, a barba que, na penumbra, parecia muito escura e a pele bronzeada lembraram a Rin um guerreiro sarraceno.

No entanto, os olhos irradiavam uma luz doce, suave, como no dia em que ela o conhecera.

Sesshoumaru prosseguiu com suas histórias sobre cavaleiros, damas belíssimas, reis, pastores e soldados persas. Rin observava-o com admiração... e amou-o por ser como era. Mas, ao mesmo tempo, zangou-se consigo própria por se deixar arrastar pelos sentimentos. Aquela cidade, com sua incrível beleza, e o incontestável charme de Sesshoumaru a seduziam e a empurravam para um abismo de paixão e de desejos.

Um abismo do qual Sesshoumaru era senhor absoluto. Um arrepio percorreu-a por inteiro ao se dar conta daquele turbilhão de sentimentos e sensações avassaladoras. Se ela cedesse à tentação da voz suave daquele homem, ele a invadiria por completo, a dominaria sem lhe dar chance de defesa, como um guerreiro sarraceno com as terras conquistadas. Então, tomaria dela apenas o que lhe interessasse, depois partiria, ansiando por novas aventuras.

Insegura, achou melhor evitar aquela proximidade perigosa. Afastou-se dele, subindo devagar as escadas até a parte superior do templo. Sesshoumaru demorou ainda alguns momentos para segui-la. E Rin foi andando, distraída, até alguém atravessar-lhe o caminho.

- Você é inglesa ?

A pergunta vinha de um jovem árabe de olhos argutos, misteriosos, penetrantes. Usava uma jaqueta de tweed bastante surrada sobre a túnica e lhe impedia a passagem com o corpo musculoso.

Rin disfarçou a custo o sobressalto. Não estava disposta a conversar e demonstrou isso claramente ao desconhecido, lançando-lhe um olhar frio e desencorajador.

- Sou, sim - respondeu apenas.

O homem sorriu, exibindo dentes branquíssimos e perfeitos, num belo contraste com a pele escura.

- Gosto muito dos ingleses - disse - Trabalho com Kikyou Asakura...

- É mesmo ? - Sesshoumaru já se aproximava deles, interessado - Estava com ela durante as escavações de Jericó ?

- Não, mas trabalhamos juntos na Cidade de Davi - o outro informou, orgulhoso - É uma mulher extraordinária... embora não tão linda quanto esta senhorita.

Rin baixou os olhos diante do modo insinuante como o estranho a fitava.

- Obrigada, senhor - murmurou de má vontade; e, voltando-se para Sesshoumaru, pediu: - Vamos indo ?

- Não há pressa.

Ela percebeu na voz de Sesshoumaru uma raiva contida sob a aparente casualidade. Contente em forçá-la a uma situação constrangedora, ele ainda se irritava contra ela ?!

- Gostaria muito de conversar um pouco mais sobre essas suas experiências - Sesshoumaru sugeriu, olhando o homem com simpatia - Agora estamos trabalhando, mas seria um prazer reencontrá-lo para ouvir suas histórias.

- Você será bem-vindo à minha casa... vocês dois.

- Obrigada, senhor, mas não posso - Rin interferiu - Tenho de separar o material à noite.

- Pois eu ficarei honrado em aceitar sua hospitalidade - Sesshoumaru ajuntou, sorrindo - Você é muito gentil.

- A honra será minha. Poderemos falar um pouco da Inglaterra também. Morei lá por algum tempo, em Bournemouth... conhece ?

- Só de passagem.

- Um lugar frio, mas com chuvas agradáveis... - Sesshoumaru riu.

- Para os ingleses, chuvas nunca são agradáveis - brincou - Prefiro o clima daqui.

- Sempre queremos aquilo que não temos, não é mesmo ?

A voz do homem tornou-se mais profunda e suave ao pronunciar aquelas palavras. Rin sentiu sobre si o peso daqueles olhos negros, questionadores e misteriosos, e os enfrentou com frieza.

Depois de conversarem mais um pouco, os dois anotaram os nomes e endereços um do outro. O desconhecido despediu-se deles com uma saudação oriental e se afastou. Sesshoumaru e Rin deixaram a mesquita. E, quando não podiam mais ser ouvidos pelo árabe, ele voltou-se para Rin, irritado.

- Como você é atrevida ! - protestou, num desabafo.

- O quê ?

Rin o encarou, sem entender a razão de tanta raiva. Jamais o vira furioso daquele jeito. A testa franzida e os olhos chamejantes não deixavam dúvidas da revolta dele.

- Sente... eu disse para sentar !

Assustada com o grito, ela sentou-se na mureta baixa rente à calçada. Atônita, percebeu o olhar curioso dos transeuntes sobre eles.

- Pois muito bem, moça... - Sesshoumaru acomodou-se ao lado dela - Aquele homem é um dos juízes do Haram al-Sharif, o tribunal deste santuário. Se tivesse se dado ao trabalho de olhar direito para ele em vez de ignorá-lo afrontosamente, teria notado a insígnia oficial na jaqueta !

- Só por isso eu devia me derreter em sorrisos ? Não viu o modo como ele me olhava ?

- Como um homem olha para uma mulher interessante ! E daí ? Não sabe sair dessas situações com um mínimo de gentileza ? E não por causa do cargo dele você deveria ser cortês. Ele é um ser humano interessante e agradável, e você o tratou como um monte de... porcaria ! Não aceito isso, ouviu bem, Rin ? Uma parte importante do nosso trabalho consiste exatamente em conversar com pessoas, fazer contatos, conseguir informações que ninguém obteve antes. Como acha que eu consigo escrever meus livros ? Garanto que não é com as migalhas que os Departamentos de Turismo me oferecem oficialmente - após uma breve pausa, ele continuou: - Certos detalhes só se descobrem falando com o povo, ouvindo-o, vivendo com ele ! Por isso, preste atenção: em primeiro lugar, não vou deixar seus preconceitos estragarem minhas possibilidades de contato. Em segundo lugar, se as coisas continuarem assim, não vejo mais condições de trabalharmos juntos. Detesto quem se sente superior aos outros e, por isso, trata todo mundo com desprezo. Há um limite para separar atitudes profissionais e pessoais e, no nosso caso, as duas coisas estão muito ligadas.

Rin jamais se sentira tão mal em toda a vida. As palavras de Sesshoumaru ecoavam-lhe aos ouvidos, desmascarando-lhe pela primeira vez a pose segura e distante. Baixou a cabeça, humilhada.

- Em nosso caso, as duas coisas estão muito bem separadas - retrucou, em voz baixa - Nós apenas trabalhamos juntos.

- É isso o que eu não entendo ! Por que se mostrou tão grosseira com aquele homem ? Por medo de me fazer ciúme é que não foi !

- Porque pensei que ele fosse um conquistador barato. Em todo lugar do mundo, eles sempre aparecem quando vêem uma mulher sozinha... eu só estava tentando não me aborrecer.

- Não podia esperar um pouco para ter certeza ? Se ao menos observasse os olhos dele com um pouco de atenção, descobriria se estava sendo sincero...

Rin fitou-o com um sorriso amargo.

- Se fosse tão simples assim, eu não teria me casado com um canalha ! Já estive em várias partes do mundo, Sesshoumaru. Em todas elas, sem exceção, encontrei homens prontos a se aproveitar de mim, de alguma forma. O único jeito que encontrei para me defender foi cortando ao máximo as possibilidades de aproximação.

- Devemos sempre dar às pessoas o benefício da dúvida, antes de repeli-las ! Você nunca concede oportunidade a ninguém, Rin. Simplesmente vai colocando os outros de lado como roupa velha...

- Pois fique sabendo que já dei chances demais a todo mundo - ela interrompeu-o, descontrolada - Foi a maldade humana que me obrigou a redobrar minhas defesas. Se eu não fizesse isso, acabaria vítima de algum desses oficiais, autoridades diplomatas com quem sempre tenho de tratar.

- Se tem sofrido tanto assim, por que não escolhe outra carreira e muda de vida ?

- Por que você não pára de respirar ? Minha carreira é mais do que o ar para mim. Apostei tudo nela e essa é uma das poucas coisas das quais não me arrependo. Fiz um curso completo na London Polythecnic à minha própria custa, contra a vontade de minha tia, que me criou. E, quando ela morreu, deixou toda a fortuna para a Igreja, porque não queria financiar a "carreira artística" que eu havia escolhido. Fiz das tripas coração para me sustentar por mais de um ano. Até que, um dia, venci um concurso de fotos e ganhei uma bolsa de estudos de um ano de uma grande companhia de petróleo. Foi a melhor época da minha vida ! Eu fotografava para eles, mas tinha tempo para trabalhar por conta própria também. Comecei a montar meu arquivo para, um dia, fundar uma agência. Quando a bolsa terminou, eu já possuía bastante material e, com o fruto de algumas economias, viajei pelo Oriente Médio para cobrir uma área maior.

- Foi então que começaram as dificuldades, pelo que entendi... você nunca pensou em mudar de ramo ? Fazer fotos de moda, por exemplo...

- Sempre adorei viajar, conhecer lugares novos, povos diferentes. É lógico que havia um lado da profissão do qual eu não gostava, mas você não pode se deixar vencer às primeiras dificuldades... até hoje enfrento problemas, a agência depende de empréstimos, mas o prazer que sinto na minha carreira compensa tudo ! Ainda tenho muitas batalhas a vencer, mas me orgulho de ter lutado sem precisar me corromper... para você, é muito fácil me julgar, apontar minhas falhas e defeitos. Tem a vantagem de ser homem, o que ainda significa muito neste mundo parcial e machista. Mas eu só contei com minha vontade e com minha capacidade para chegar onde estou. Fui me moldando conforme as situações, me adaptando e me reprimindo de acordo com as necessidades. Os remendos nunca ficam perfeitos, mas servem para tapar os buracos.

- Admiro sua coragem, sua garra para conseguir seus objetivos... mas, para ser sincero, acho que exagera com essas suas defesas !

- Os homens estão sempre à procura de aventuras, de novos desafios. Essa minha mania de independência mexe com os brios de todos os que conheci até hoje. E, se eu não me defender, vai ser bem fácil sair perdedora...

Sesshoumaru mal ouvira as últimas frases, distraído em observar o rosto delicado de Rin.

- Você está certa, você mexe mesmo com os homens - ele concordou com um sorriso - Mas é sua beleza que os desnorteia.

- Não diga asneiras ! Também tenho espelho em casa, sabia ? Esteticamente, eu sou...

- A estética que se dane ! Beleza é conjunto, charme, carisma, movimento. Se analisarmos partes isoladas, nem Elizabeth Taylor é bonita. Acredite em mim, você é linda !

- Obrigada - ela murmurou, baixando a cabeça. Uma onda de intensa felicidade a invadiu. A tia sempre a acusara de não se dar o devido valor, e talvez tivesse razão.

- Nunca nenhum outro homem lhe disse isso ? Nem seu ex-marido ?

- Vários me disseram, mas eu nunca acreditei. Alguns estavam apenas sendo gentis e a maioria desejava me adular... você sabe o quanto um elogio bem empregado pode render, não sabe ?

Sesshoumaru sacudiu a cabeça, desolado diante da ironia dela.

- O que fez você ficar descrente desse jeito ? Ninguém nasce com tanta amargura dentro de si !

- Pois eu sou assim desde que me entendo como gente. Não sou amarga, sou realista.

- Você tem família ?

- Não.

- E como era essa sua tia ?

Rin soltou um suspiro fundo. Se Sesshoumaru soubesse toda a história, pensaria duas vezes antes de julgá-la pelas aparências.

- Nunca falei sobre isso com ninguém, nem mesmo com Bankotsu. Mas, diante das circunstâncias, acho melhor você saber de tudo. Talvez assim me entenda um pouco melhor... a família de minha mãe era rica e tradicionalista, cheia de preconceitos rígidos contra tudo. Minha mãe era a ovelha negra: romântica, rebelde e imatura. E, quando estava com dezessete anos, veio a prova definitiva de que se desgarrara por completo: ela engravidou de um dos empregados da casa, o chofer de meu avô.

Rin parecia morder as palavras. Entretanto, o fazia de mau jeito, espalhando por dentro de si própria o amargor contido nelas.

- Acho que não deveria se referir a seu pai como alguém sem importância alguma na sua vida... - ele sugeriu - Sua mãe o amava muito ?

- Não sei. Ele foi embora antes mesmo de eu nascer. Meus avós o despediram e nunca mais se ouviu falar nele. E minha tia nunca se referiu aos sentimentos de um pelo outro.

- Era de se esperar...

- A família inteira ficou contra minha mãe. Suportaram a presença dela durante a gravidez, mas a proibiram de sair de casa para que as pessoas não a vissem na rua. E, quando eu nasci, ela morreu... complicações no parto, me parece.

- Coitadinha !

- Meu avós tomaram conta de mim até morrerem. Depois, minha tia solteira assumiu a responsabilidade de me educar.

- Imagino o que foi sua infância nessa casa ! Toda a severidade do mundo e muito pouco afeto...

- Acertou em cheio. Os padrões morais de meus avós sempre foram muito rígidos. Comigo, então, foram ainda mais exigentes porque não queriam que eu cometesse os mesmos erros de minha mãe. Não me faltava nada de material, mas era raro um carinho, um afago... no fundo, eu sei que todos eles me amavam e só desejavam o melhor para mim, à moda deles...


Enquanto Rin contava passagens de sua infância, Sesshoumaru a ouvia pensativo. Veio-lhe à cabeça a imagem de uma senhora amarga e preconceituosa, alertando-a dia e noite sobre os perigos do mundo. Criada num ambiente tão frio e árido, não admirava que Rin erguesse tantas defesas ao redor de seus impulsos.

Ela não merecia um julgamento rigoroso. Fora forçada pela situação a agir como agia e até a se casar com o primeiro homem disposto a lhe dar um pouco de carinho. E, como se não bastasse, saíra do casamento com uma visão ainda mais deturpada sobre sexo...

Que crime condenar uma pessoa com tantas qualidades a uma vida de medos e solidão ! Alguém tinha de dar a Rin um pouco de alegria. Ela precisava de um amigo, alguém que fosse digno de sua confiança sem lhe pedir nada em troca.

Sesshoumaru admirou-lhe a beleza dos olhos castanhos, agora calmos como o pôr-do-sol de um dia radioso. Decidiu de repente ser esse amigo, essa ponte de contato dela com o mundo. Com ele, Rin teria tempo para confiar nas pessoas e, depois, quem sabe, renascesse para o amor... resgatá-la daquela solidão parecia-lhe tão urgente quanto salvar um tesouro da destruição.

Quando Rin se calou, ele segurou-lhe as mãos com afeto.

- Fico muito honrado por merecer sua confiança e vou arriscar um palpite. Sabe, acho que sua tia não lhe contou tudo o que aconteceu de verdade entre seus pais. Você me disse que não o conheceu e me pergunto se não teria sido bom se isso acontecesse.

- Não sei, não... é muito difícil ser justo quando se conhece apenas um lado da história. Tenho idéias muito bem definidas a respeito de meu pai. Embora saiba que muitas delas estão carregadas de preconceitos, não sei se estaria preparada para aceitar o jeito dele de pensar. Acho que conhecê-lo não seria uma experiência positiva para nenhum dos dois.

- Pois eu acho que sim. Só o fato de você reconhecer que foi induzida a não gostar dele já é um grande passo. Significa que não se conformou com as imposições de sua tia, tanto em relação a ele quanto às outras pessoas. E tudo o que se precisa para mudar é um pouco de disposição... - e, sorrindo, ele acrescentou: - Acho que sua tia não ia gostar nem um pouco de mim.

- Disso pode ter certeza ! Você tem tudo o que ela desaprovava numa pessoa... a começar pelo fato de ser homem !

- E esse é um defeito sem remédio ! Ainda por cima, sou um verdadeiro exemplo de desmazelo para os padrões dela, não é ? Minha casa é um caos completo, nunca encontro nada quando preciso... mas nem por isso sou indiferente com a vida, entende ?

- Para ser franca, nunca conheci alguém mais interessado na vida do que você. E não acredito que seja tão desorganizado assim.

- Pois pode acreditar ! Minha mãe é botânica e está sempre ocupada demais para ser uma dona de casa perfeita. Meu pai é quem se dedica um pouco mais. Está sempre entre a garagem e a cozinha.

- Ele não trabalha ?

- Trabalha, claro. Só que, de uns anos para cá, ele virou a mesa. Passou anos escrevendo roteiros para televisão, mas, um belo dia, voltou para casa com um carregamento de madeira. Dali em diante, passou a entalhar móveis.

- Seus pais têm mesmo uma mentalidade bem arejada ! Você teve uma educação bem descontraída, não é mesmo ?

- Eu, três irmãos, quatro irmãs, nossos dois cavalos, três cachorros, vários gatos e toda espécie de animais de estimação que você possa imaginar ! Éramos uma família grande, mas nunca nos faltou nada, principalmente amor. Até hoje, eu adoro ir até a casa de meus pais.

- Quer dizer que você mora sozinho ?

- Sim, num apartamento em Londres. Mas nunca parto para uma viagem sem antes passar pela casa de meus pais. Reunimos a família e fazemos uma festinha. Quando vou embora, minha mãe se despede de mim como se eu não fosse voltar nunca mais. Acho que, na cabeça dela, eu vou me casar com a filha de algum cacique ou então serei morto por um extraterrestre...

- Você deve ser o filho predileto dela...

- Minha mãe adora todos nós. Também morre de medo quando Inuyasha viaja.

- Inuyasha é aquele da galeria.

- Sim, ele mesmo. Nós o chamamos de "o economista bem-comportado". Tem uma grande aptidão para questões financeira único que não quer nada com aventuras... - erguendo-se da mureta, Sesshoumaru puxou-a pelo braço - Agora, moça, vamos continuar nosso trabalho. Já conversamos demais por hoje. Quero ver se conseguimos algumas fotos dos Estábulos de Salomão. E precisamos nos apressar para conseguirmos tirá-las ainda hoje.

- Não vamos até a Casa D'Oro para almoçar ?

- Não, nós perderíamos muito tempo. Melhor comermos alguma coisa numa das barracas. Eu ainda quero passar no Muro das Lamentações. Se formos à hospedaria, não teremos mais coragem de recomeçar.

Na primeira praça por onde passaram, havia diversas barracas vendendo lanches típicos. Rin olhou com desconfiança para a comida, com medo de não apreciá-la. Mas, quando Sesshoumaru lhe entregou o sanduíche com bastante molho, achou o sabor delicioso e exótico. Os dois sentaram-se numa pedra e comeram com calma, conversando de maneira amigável e descontraída.

- Você se sujou toda - ele zombou - Será que o seu está mais gostoso do que o meu ?

- Quer um pedacinho ? - ela lhe estendeu o sanduíche.

- Não, eu preciso me cuidar ! Senão vou engordar cem quilos durante esta viagem.

Rin sorriu, desconcertada. Quando se habituaria com o jeito espontâneo de Sesshoumaru ? Devorou o último bocado do pão e, pegando um lenço na bolsa, limpou as mãos e o rosto. Em seguida, foram para os Estábulos de Salomão, feitos de uma curiosa combinação de pedra e madeira nobre.

A engenhosa construção possuía requintes ousados para a época em que fora construída, inclusive uma combinação de aberturas estratégicas nas paredes. Tais orifícios garantiam aos cavalos uma ventilação perfeita nos dias quentes e, à noite, podiam ser fechados por pequenas portinholas.

Dali, foram para o Muro das Lamentações, imponente em sua cinzenta sobriedade de pedra bruta. Alguns fiéis haviam engastado flores nas fendas das rochas, conferindo à antiqüíssima muralha um toque de humanismo.

- Tente pôr em destaque o rosto daquele velho sentado na cadeira - Sesshoumaru pediu - Depois, bata outra foto mostrando os manuscritos que tem na mão. Aquelas são as preces pessoais dele. Acho que seria interessante mostrá-las.

Rin acertou as lentes e focalizou o velho. Depois, ajustou de novo a câmera e fotografou também os papéis. Aquelas fotos ficariam excelentes, pensou satisfeita. A experiência de trabalhar com Sesshoumaru estava sendo uma das mais ricas de sua carreira. Mais do que simples habilidade, exigia sensibilidade na escolha das imagens e capacidade de extrair delas algo especial e novo. E Sesshoumeru se mostrava um verdadeiro mestre em enxergar o lado oculto e emocionante das coisas mais banais.

Terminaram as fotos quando a tarde já caía. Os dois ficaram sentados por algum tempo, observando a solenidade das pessoas orando diante da imensa muralha. Em silêncio, ela acompanhava cada gesto de um senhor concentrado em suas preces. Parecia fechado num universo particular, alheio por completo aos problemas e à mesquinhez do mundo...

- Sesshoumaru, você está gostando do meu trabalho ? - ela perguntou, quando já voltavam à hospedaria.

- Estou, sim. Acho que nós dois estamos contentes com a maneira como ele está se desenvolvendo... formamos uma bela dupla, não concorda ? Eu nunca trabalhei com alguém capaz de entender tão bem o que desejo. Acho que é por visarmos o mesmo fim... - e, passando a mão sobre a barba, completou pensativo: - Ou, talvez, estejamos lutando por um começo em comum.


P. S.: Nos vemos no Capítulo 6.