A EXECUÇÃO DOS MORTOS

CAPÍTULO 15

O DRAGÃO DE SANPELIER

He had all his guns and
All his guns were blazing
Put his arms around me, so amazing
He had all his guns
All his guns were blazing
Put his arms around me, so amazing
Amazing, amazing, amazing

(Serene Queen – Lana Del Rey)

*Capítulo com referência aos short stories 'Pet' e 'Green, But For a Season' de C. , infelizmente, não publicados no Brasil, mas com a tradução feita por fãs disponível em algumas plataformas como o Scribd.

Ancel dormiu durante toda a noite enquanto lorde Berenger mantinha um lampião aceso dentro da carruagem, dedicando a sua atenção a um conjunto de papeis que ele examinava em seu assento acolchoado.

Lorde Berenger parecia não se incomodar com o sacolejo da estrada ao longo do qual o vagão triturava pedras e poças irregulares no caminho, diferentemente de Ancel, que usara um travesseiro de plumas sob o seu rosto para poder descansar.

Quando acordou, bocejando, o escravo de estimação pestanejou os seus olhos verdes e afastou a cortina de veludo, observando a estrada.

A carruagem havia viajado a noite toda e o início da manhã estava um tanto escuro com uma fina neblina na paisagem de árvores e vinhas, estendendo-se pelo chão batido de casinhas distantes.

Seis soldados se juntaram à comitiva em Chastillon e flanqueavam o vagão de rodas raiadas.

"Não acredito que você ficou lendo esses papeis chatos a noite inteira, Berenger." — comentou Ancel, voltando a fechar a cortina e endireitando a estola sobre os seus ombros.

Berenger sorriu, sem erguer os seus olhos escuros e quentes.

"Preciso manter os negócios em Varenne em ordem, mas pude dormir algumas horas."

"Deveria dormir mais tempo. O rei lhe pagou uma quantia extravagante para que fôssemos para Barbin e estamos em um passeio."

Berenger parecia se divertir, movendo os seus olhos rapidamente para fitar Ancel.

"Não estamos aqui por causa das doações do rei, mas para ajudá-lo. E eu preciso manter os meus negócios em ordem se você ainda quer desfrutar do luxo, das sedas e das joias das quais tanto gosta..."

Ancel retirou um espelhinho cinzelado de seu baú de madrepérola e fitou o seu reflexo, tateando com a ponta do dedo as pálpebras.

"Como se eu acreditasse que essa papelada toda tem a ver comigo e não com os escravos traficados resgatados que você tem realojado em Varenne como trabalhadores do campo, comerciantes e serviçais, Berenger."

Quando a manhã avançou, houve uma pausa na viagem para que os cavalos descansassem e Jean, o cocheiro, junto com os soldados pudesse dormir um pouco. O lugar escolhido foi uma estalagem bem equipada, com uma frente bonita, canteiros bem cuidados e com outras carroças estacionadas.

Lorde Berenger, dando um tapinha nas costas de Jean, dispensou-o, mandando que ele se encaminhasse para o quarto que foi alugado junto ao dono do estabelecimento. O próprio cortesão cuidou dos cavalos, conduzindo-os ao estábulo dos fundos da pousada.

Na cocheira, já havia outros animais rodeados por feno e com as cabeças enfiadas em comedores de latão cheios de curgetes e cenouras. Berenger alisou a crina dos dois animais e os deixou sob os cuidados do cavalariço.

Ao rumarem para o interior da taverna da estalagem, Ancel pulou por cima de um monte escuro esverdeado e abatumado diante da entrada do estábulo, erguendo a sua capa de veludo para que não sujasse a barra.

"Acho que se você pudesse escolher, Berenger, você teria nascido cavalo..."

Lorde Berenger respondeu, tendo o seu braço envolvido por Ancel:

"Eu gosto de cavalos. O meu pai era um colecionador de cavalos e eu gostava de passear pelos estábulos com ele, aprendendo os nomes das raças, as características e o cuidado com cada animal."

Ancel, forçando o cortesão veretiano a desviar de outra armadilha deixada pelos equinos, respondeu:

"Sorte a sua. O meu pai era um trapaceiro e a minha mãe não falava muito dele, mas acho que ele lidava com algum tipo de comércio relacionado a bois e vacas pelo que entendi. E o coitado não era a mais linda das criaturas. Ele mesmo tinha uma cara de boi, segundo ouvi dizer..."

Berenger caminhou com Ancel ao seu lado, dizendo:

"Entendo. A sua beleza, então, veio totalmente de sua mãe."

Mas a cabeça para os negócios veio do pai, Ancel se pegou pensando.

A estalagem era um lugar arrumado, cujas vigas do pátio foram pintadas de branco, a fim de conferir ao recinto um toque mais acolhedor. Um cervo ardia nas labaredas do fogo a lenha e, mais adiante, havia barris fechados, sendo iluminados por candeeiros acesos. Um rapaz franzino se movia de um lado para o outro, atendendo aos clientes nas mesas com cálices de lata cheios de bebida quente.

O cheiro de comida era gostoso, e lorde Berenger se dirigiu ao atendente que tinha um dos olhos vesgos e a dentição um tanto comprometida.

"Você levou as refeições dos homens que chegaram junto comigo para os seus quartos?"

"Sim, mestre." — respondeu o rapaz, prontamente— "Os senhores vão querer comer alguma coisa?"

Lorde Berenger escolheu o cálice de vinho quente acompanhado de pão branco, mas Ancel escolheu a torta de frutas com mel, leite, queijos macios, pão fatiado, cidra, um ovo cozido e uvas. Por último, o escravo de estimação pediu uma tigela pequena de sopa com frango e batatas.

"Ele come com vontade. Deve ser um escravo bem caro..." — comentou o atendente, retirando os pratos e se demorando um pouco do lado da mesa que Ancel ocupava.

O olhar do rapaz bastante jovem se concentrava um tanto absorto no luxo que revestia o escravo de estimação veretiano e em suas joias. Havia também uma admiração distante pela beleza de Ancel e seu ar cheio de vivacidade.

Ancel, por sua vez, roendo ainda um pedaço de osso de galinha com as mãos, dardejou o rapazinho com o seu olhar verde, levando o comentário para o lado pessoal ao rosnar:

"Como com o seu dinheiro por acaso?"

Pedindo desculpas, o atendente se retirou, ruborizando enquanto equilibrava em uma bandeja todas as louças da refeição que ele recolhera. Lorde Berenger arqueou as sobrancelhas.

"Precisava disso?"

"Ora, e como ele vai aprender?" — retrucou Ancel, movendo um pedaço da asa do frango de sua tigela e a colocando no pires diante de Berenger — "Coma um pouco mais. Você emagreceu desde o episódio do ringue em Arles. Sua jaqueta está folgada."

Lorde Berenger deslizou as mãos por suas roupas, alisando o tecido e parecendo conceder alguma atenção a si mesmo pela primeira vez em semanas. Ele seguiu a recomendação do escravo de estimação e mordiscou a carne, apreciando o gosto não muito gorduroso. Por fim, falou:

"Estava bom. Acho que vou pedir uma sopa para mim também."

Mal ele terminou a frase, Ancel ergueu a sua mão no ar, estalando os dedos. O atendente se materializou ao seu lado com um sorriso.

"Mais comida? Outro bolo?"

"Uma sopa para o meu mestre." — disse Ancel, apontando para Berenger.

Lorde Berenger sorriu. Ele gostava quando Ancel tomava a frente e fazia as coisas acontecerem com os seus gestos confiantes e relaxados.

O escravo de estimação cruzou as suas pernas, brincando com o cálice ao girar o restante de leite e mel dentro do copo. Alguns homens sentados às mesas ao lado fitavam o rapaz veretiano com interesse, admirando a sua beleza envolta em sedas requintadas.

"Deveríamos passear juntos mais vezes." — comentou Ancel.

Lorde Berenger respondeu:

"Não está satisfeito em Arles?"

"A capital é divertida, mas muitos nobres têm viajado para Akielos agora que as fronteiras das nações-irmãs estão abertas. Nunca vi o mar."

Lorde Berenger apoiou o queixo em sua mão e comentou:

"Eu já vi o mar em Ladehors. É fascinante. Posso levá-lo lá e também a Akielos futuramente se houver a oportunidade. O kyros Nikandros nos convidou para visitar a sua propriedade em Ios."

Ancel moveu o seu rosto, parecendo pensativo.

"Há histórias de que dragões da água vivem no mar de Ellosean e dragões do fogo sob a terra vermelha de Sanpelier. Eles foram vistos por soldados akielons na guerra, mas somente aqueles que falam com animais selvagens e que têm o coração puro podem se comunicar com os furiosos dragões, sem terem as suas caras devoradas ou queimadas."

Lorde Berenger tomou um gole do seu vinho quente, sorrindo.

"Criaturas assim não existem, Ancel! Essas histórias são faz-de-conta que os pais contam para assustar as crianças."

Ancel deu de ombros.

"Minha mãe me contava essas histórias, mas muitos dos garotos dos bordeis de Sanpelier falavam também sobre elas. Não é porque não se vê dragões que eles não existam. Eu gosto de faz-de-conta."

Ancel se silenciou quando o atendente trouxe uma tigela de cerâmica com sopa fumegante e a colocou diante de Berenger. Os homens que olhavam na direção de Ancel cochichavam entre si, discutindo sobre a sorte que lorde Berenger tinha por ter diante de si o rapaz mais bonito da taverna.

O escravo de estimação pestanejou os seus olhos vicejantes, antes de tomar coragem e falar sobre algo que vinha protelando e sobre o qual pensava com frequência, sem se preocupar com a mudança de assunto:

"Como ficaremos depois que os contratos de escravos forem extintos?"

Berenger, que remexia o caldo com uma colher prateada, deteve-se, fitando Ancel. Depois, ele disse:

"Quando a abolição for promulgada pelo rei e pelo Conselho, nada mudará. Eu continuarei sendo responsável por você e por seu sustento se ainda desejar a minha companhia..."

Ancel tomou o último gole de sua bebida e depositou o cálice vazio sobre a mesa de nogueira, contraindo um pouco as sobrancelhas.

"Mas o que seremos?"

Lorde Berenger soprou o caldo que levava à boca, antes de falar:

"Existe a instrução para que contratemos os escravos de estimação como serviçais e..."

Ancel girou os olhos nas órbitas, dizendo:

"Que destino terrível! Eu sou o melhor prostituto de Vere. Não posso terminar os meus dias, sendo um criado com vassoura e pano na mão em Varenne. Seria de uma escassez infinita..."

Lorde Berenger sorveu um pouco de sua sopa, antes de replicar:

"O que deseja ser então?"

"Eu sou um prostituto..."

Lorde Berenger contraiu o canto dos seus lábios, enxugando-os com um guardanapo.

"Você não é um prostituto desde que foi morar comigo, Ancel. Sabemos disso. Tampouco é um escravo."

Ancel olhou ao redor e a sua atenção cruzou com a dos homens que o fitavam. Havia um deles com um rosto anguloso, bonito e de cabelos loiros, deslizando a concentração em sua direção. O homem sorriu para Ancel, mas Ancel não sorriu de volta.

"O que eu sou então? O que somos, Berenger?"

O cortesão veretiano ergueu o seu olhar escuro e ele tateou a mão do rapaz sobre a mesa.

"Você é livre para ser o que quiser, Ancel. E o que somos foi dito no dia em que apostamos juntos todas as nossas fichas no príncipe herdeiro de Vere."

O rapaz ergueu o seu queixo orgulhosamente um pouco, dizendo ao sorrir:

"O rei disse que sou inteligente e que devo participar de algumas reuniões do Conselho. Eu consegui ler a carta escrita pelo rei quase que inteiramente sozinho."

Berenger assentiu.

"Você é inteligente. Sempre soube que era, Ancel. Aliás, a sua leitura melhorou muito."

"Quando eu puder ler melhor, você vai querer que eu me comporte como os escravos akielons e recite poemas para você em sua cama, Berenger? Vou ter que ler Iságoras nu no fim das contas?"

Berenger franziu o cenho, sacudindo o rosto como se a ideia o perturbasse.

"Não. Eu não quero que aprenda a ler por minha causa, Ancel. Quero que aprenda as letras e a matemática por você mesmo. Pode gostar no fim das contas de aprender e se divertir com isso. Pode também se interessar por algo novo já que os entretenimentos da corte mudaram."

Ancel observou o homem loiro que o espreitava passar por trás da cadeira de Berenger, fitando-o ainda.

"A matemática é mais simples." — respondeu Ancel, evitando demonstrar qualquer interesse no desconhecido e acabar alimentando a sua atenção— "Eu precisava saber contar um pouco porque lidava com dinheiro e era comum alguns clientes tentarem me enganar em Sanpelier. Mas as letras são difíceis."

"Posso ajudá-lo se precisar." — respondeu Berenger, após mastigar a comida.

Ancel ficou um tempo calado e, inclinando o seu rosto bonito, perguntou, tentando chegar a um resultado para as suas inquietações:

"Eu sou o seu amante, Berenger?"

O cortesão veretiano aquiesceu, pensativo.

"Também. Entre outras coisas, sim, você é o meu amante..."

Ancel insistiu.

"Não sei, de fato, o que serei após a abolição."

Lorde Berenger respirou fundo, antes de replicar:

"Você será o que quiser ser, Ancel. Você é livre."

A palavra livre parecia bela na boca de lorde Berenger, do rei Laurent e de alguns cortesões de Arles, mas, na vida de Ancel, a sua alcunha era de vicissitudes e pobreza. Ele se lembrava de sentir a liberdade, quando criança, girando o bastão em chamas em um pátio de uma praça cheia, angariando moedas e tendo o estômago vazio.

Ancel se recordava dos dias difíceis e da sua primeira vez. Um comerciante o observara por trás das chamas do fogo, horas antes da sua profissão mudar e da sua escalada se iniciar. A troca de favores começou quando o homem envolveu o seu ombro e colocou uma moeda na sua algibeira, sussurrando em seu ouvido:

"Pago pra ter a sua boca no meu pau. Pago mais se me deixar meter embaixo. O dobro pra eu gozar dentro."

"Você tem que me pagar um extra. Nunca fiz isso antes." — dissera Ancel, meia hora depois para o comerciante, sentindo a garganta arranhada, antes de se despir na primeira vez genuína das outras onze.

Ancel tinha consciência das barras descosturadas e irregulares da manga de sua roupa; de cada ilhó vazio e sem laço de sua camisa; do remendo em seu xale e das cinzas do número com fogo em suas mãos e bochechas.

"Quantos anos você tem?" — perguntou o homem, desabotoando a calça no quarto pequeno e abafado dos fundos da mercearia que funcionava também como depósito.

"Dezesseis." — respondera o rapaz, subindo números.

"Deite-se de bruços." — ordenou o homem, sem meandros, indicando com o queixo a cama improvisada de palha.

No fim da foda desconfortável e dolorida para Ancel, o comerciante, calçando as suas botas, sentado na cama, declarou:

"Você é bonito demais para fazer números de circo em uma praça. Posso lhe apresentar a um amigo que tem um negócio. É só uma casa com alguns garotos iguais a você. Nada demais. O que acha?"

A liberdade era uma ascensão tracejada com régua para se instaurar alguma lógica no vazio e na instabilidade. A liberdade nunca oferecera muitas escolhas para Ancel. Oferecera-lhe os números com fogo e ele fora o melhor nisso. Oferecera-lhe a prostituição e ele também se tornara o melhor.

Mas ser o melhor não era o suficiente e, em um mundo sem alguém para o conduzir e o alimentar, nada tinha importância.

Depois da sua primeira vez, Ancel, amargando a dor em seu corpo ao deixar a mercearia atrás de si, sentiu uma raiva se revolver em seu estômago, aquecendo-o de dentro para fora. Ele sentiu a bile subir em sua garganta e a acidez arder em sua traqueia. Ele se lembrou das mãos invasivas e do hálito do comerciante, do seu próprio corpo reagindo ao inevitável e experimentou a virulência com todo o seu corpo até que a empurrasse para dentro de si. Até a próxima vez. E a próxima.

A liberdade era como uma prisão quente e que consumia as almas com incertezas.

Na taverna, lorde Berenger acertou as refeições com o atendente da hospedagem, colocando moedas de prata em sua mão, antes de se levantar.

Ancel envolveu o braço do cortesão quando o rapaz vesgo lhe disse, indicando a escada que levava a um corredor balaustrado no andar de cima e lhe entregando uma chave.

"Quarto doze."

Os dois homens rumaram para a escada e Ancel ergueu o seu olhar brevemente para fitar o cliente da taverna de cabelos loiros que ele tinha plena consciência de que o observava desde o momento em que ele entrara na estalagem.

O homem tinha um quê libertino, estando sem a jaqueta de suas vestes e tendo os punhos da camisa dobrados até os cotovelos. Lorde Berenger estava distraído, mas Ancel não. Ele viu quando o cliente esbarrou no ombro do cortesão de propósito, derramando vinho da caneca de lata em Berenger.

"Oh, perdão, meu bom senhor!" — desculpou-se o desconhecido com uma falsidade que irritou Ancel enquanto ele mirava o escravo veretiano dos pés à cabeça.

Lorde Berenger pareceu desconfortável e atordoado por alguns instantes enquanto Ancel se adiantava em enxugar a jaqueta do cortesão com o lenço bordado que retirou de sua algibeira.

"Posso pagar pelo estrago, senhor...?" — indagou o cliente, esperando que Berenger dissesse o seu nome.

"Não se preocupe com isso..." — replicou Berenger, contraindo o canto de seus lábios e voltando a caminhar ao lado de Ancel rumo à escada. Ele não concedeu o seu nome ao desconhecido.

"Cuzão..." — retrucou baixo o escravo de estimação, guardando o lenço embebido de vinho em seu bolso e deslizando as mãos pela jaqueta de Berenger— "Consigo tirar essa mancha. Não se preocupe."

O quarto que foi alugado por lorde Berenger era um aposento modesto em que eles descansariam até o meio da tarde quando retomariam a viagem. Laurent os instruíra a viajarem não de manhã quando as estradas eram movimentadas, mas na segunda metade do dia, a fim de manterem a discrição e a segurança.

Ancel analisou a mancha na jaqueta de Berenger enquanto o cortesão retirava as suas botas para descansar um pouco na cama de lençóis limpos.

"Deixe isso pra lá, Ancel. Venha dormir também um pouco. Deve estar cansado."

O escravo de estimação respondeu:

"Não estou com sono. E posso cuidar disso, apesar de você ter mais dez jaquetas iguais a essa e termos conversado sobre você experimentar o azul e o verde ao invés desse marrom sem graça. Preciso só de limão e sal."

Ancel foi à sala contígua de banho lavar o rosto e, quando retornou, lorde Berenger havia já adormecido. O escravo de estimação cobriu o mestre com a coberta, feliz pelo cortesão se proporcionar algum descanso.

Ancel desceu, então, a escada, retornando para o andar térreo.

O atendente chamado Balain, que estava atrás do balcão, voltou-se para Ancel. O dono da estalagem, um homem mais velho e gordo, havia se juntado ao jovem, servindo as mesas também.

"Mais comida?" — indagou Balain, dirigindo-se a Ancel e revelando os seus dentes irregulares.

"Não." — respondeu Ancel, com azedume— "Preciso de limão, sabão de banha e sal para tirar a mancha de vinho da jaqueta do meu amo."

"Pois não, Alteza." — respondeu o rapaz, movendo-se com agilidade por trás do balcão.

Ancel olhou ao redor e viu que o grupo de homens que o observava ainda estava na taverna. O responsável por entornar vinho na jaqueta de lorde Berenger ergueu a caneca de latão em direção ao escravo veretiano quando seus olhares se cruzaram. Os homens ao seu lado riram de modo conspiratório.

"Ei, quem são aqueles?" — perguntou Ancel a Balain.

O atendente moveu o seu olhar vesgo pela taverna, espreitando os clientes enquanto cortava com uma faca afiada um tablete de sabão.

"Gente importante..." — respondeu o rapaz, baixando o tom— "Gente ligada à realeza."

Ancel franziu as sobrancelhas, identificando o porte; as boas maneiras a despeito da boemia e o gasto perdulário dos homens que esbanjavam em bebida como se não houvesse amanhã. Estavam todos alcoolizados antes do meio-dia.

Eles lembravam a Ancel dos jovens aristocratas que, algumas vezes, visitavam os bordeis de Sanpelier, jogando moedas de ouro para o ar e chafurdando no que diziam ser prazer barato; sem impedimentos; exótico e caridoso.

Ancel odiava aqueles clientes. Talvez odiasse um pouco a si mesmo também quando catava as moedas atiradas em sua direção que rolavam para baixo dos móveis do bordel.

"Quem é o homem mais rico daqui?" — foi a pergunta que Ancel aprendeu a fazer nos bordeis de Sanpelier.

Invariavelmente, era um daqueles jovens aristocratas que nunca poderiam ser enganados e tinham os seus próprios animais de estimação em casa. Eles só queriam se gabar um pouco, dizendo quando retornavam para a corte, que foderam alguns putos provincianos por uma ninharia e que puderam fazer coisas que nem os nobres e nem mesmo os seus escravos permitiriam.

Ancel fitava aqueles clientes aristocráticos por trás das moedas que voavam no ar, tendo o perfil do Regente cunhado no metal duro e frio do dinheiro, assim como, agora, ele fitava os homens que o espreitavam do outro lado da taverna através das partículas de poeira suspensas no sol.

O estômago de Ancel ardeu um pouco e ele julgou que, talvez, o caldo quente não o tivesse caído bem.

"Quem é o homem mais rico deles?" — perguntou o escravo, querendo saber, na verdade, quem mandava no grupo.

Balain moveu o seu rosto, indicando com o queixo o homem de cabelos cor de palha que derramara vinho na jaqueta de lorde Berenger.

"Ele. Dizem que é primo de um dos conselheiros do rei. O nome dele é *Chauvin."

Ancel franziu o cenho.

"Chauvin?"

Chauvin não era um nome tão comum.

No dia após o desmantelamento do ringue da rua das margaridas, lorde Berenger havia procurado os soldados no quartel de Arles e dado uma garrafa de vinho muito cara de presente para Jord, que servia à Guarda Real.

"Aqui. Obrigado por ter protegido Ancel e a mim. Sei que não é nada demais. Mas é só um agradecimento."

Jord, na ocasião, havia abatido seis homens, colocando-se diante do cortesão e do escravo de estimação, antes que um grupo maior surgisse e o afastasse um pouco do ringue.

No quartel, Ancel se mantinha ao lado de lorde Berenger e de Jord quando eles embrenharam por uma longa conversa sobre os velhos tempos e os novos tempos na capital, sentando-se à uma mesinha de madeira rústica. O escravo de estimação já estava acostumado com o jeito de Berenger. Quando eles caminhavam por Varenne, o cortesão parava a cada esquina, conversando com os camponeses, os comerciantes, os vizinhos e os cavalos.

Jord expressou a sua alegria com as bandeiras reais desfraldadas na entrada do quartel, tateando com orgulho a estrela de Vere em seu peito e se lembrando com amargura da época em que o vermelho da Regência tocava cada canto do palácio feito sangue derramado.

"Houve um primo do conselheiro Audin, chamado Chauvin." — começou Jord — "Ele era um desgraçado que lambia o saco do Regente e servia à Guarda dele. Chauvin fez a vida dos homens que serviam à Guarda do príncipe um inferno, unindo-se ao Regente para tentar debandar os homens do jovem Laurent. Até preso injustamente eu fui, após aquele filho da mãe cuspir em mim. Ele também mijou na cama de Huet. Felizmente, o príncipe arrumou uma maneira de expulsá-lo da corte e mandá-lo de volta para Marches." — Jord se inclinou em seu banco de madeira e cuspiu no chão, esbravejando — "Aristocrata de merda! Eu teria enfiado a minha espada no rabo dele se ele não fosse expulso."

Na estalagem, Ancel pestanejou os seus olhos verdes, observando o grupo discretamente, antes de se voltar para o balcão em que Balain o atendia.

"De onde ele é?" — perguntou o escravo de estimação, fingindo desinteresse enquanto recolhia algumas moedas de bronze de sua bolsinha.

"Parece que ele morou na corte durante um tempo, servindo na Guarda do Regente e, depois, foi mandado para Marches. Ele está viajando com os seus homens."

Ancel assentiu, obtendo a resposta que desejava ter enquanto Balain colocava algumas colheradas de sal em um saco de pano.

Nesse ínterim, Chauvin se aproximou do balcão, dirigindo-se ao dono da taverna e colocando as suas mãos revestidas de anéis no tampo de madeira úmida.

"Mais uma caneca de vinho."

O homem gordo que enxugava um cálice com um guardanapo deixou de lado o seu serviço para atender o cliente. Não havia necessidade de Chauvin ter se dirigido até o balcão. Bastava que os clientes estalassem os dedos que eram atendidos em suas mesas prontamente.

Chauvin apoiou os seus braços preguiçosamente no tampo, virando-se para encarar Ancel:

"Oi, lindeza!"

Ancel ergueu o seu rosto e não respondeu ao cortejo, revirando os olhos nas órbitas e tendo a sua atenção concentrada no embrulho que Balain preparava.

"... Eu e os meus companheiros estávamos reparando em você. Nas suas joias. E em toda essa seda. De onde você vem? De Arles?"

Ancel se manteve calado e Chauvin insistiu:

"... Aquele homem que está com você é o seu mestre? Você é bonito demais para ser o escravo de estimação de um tipo daquele..."

O rapaz de cabelos vermelhos voltou o seu rosto, tendo as sobrancelhas contraídas e os lábios crispados com irritação.

"Não sou um escravo e aquele que está comigo é um homem de verdade! Algo que um tipo como o seu nem faz ideia do que seja. Não se atreva a falar dele!"

Chauvin sorriu de um modo irritante e colocou as mãos diante de si como se preparasse para se defender de um ataque.

"Calma aí, ruivo! Não quis ofendê-lo. Se você não é o escravo de estimação dele, o que é então?"

"Sou um amigo dele, seu cretino!"

Balain, que separava dois limões para Ancel, ergueu o seu olhar e o dono da hospedagem se voltou também com uma expressão tensa.

Chauvin riu-se com um sorriso debochado.

"Não, lindeza, você não é o amigo dele. Aquele homem pagou por tudo o que você comeu e para ser amigo dele, você deveria ser um nobre também. Com esse tipo de linguajar e comendo com as mãos feito um animal como o vi fazer mais cedo, está mais para um escravo ou um puto..."

Houve um ímpeto de Ancel dar um pisão no pé do homem. O rei Laurent xingava mais do que qualquer puto quando estava bravo e ele tomava sopa também do cântaro quando estava com os seus soldados. Do que aquele idiota sabia? O rei Laurent fizera bem em expulsar Chauvin da capital.

Mas Ancel não podia mencionar o nome do rei para não afetar a sua missão e nem o nome de Berenger. Ele selou os seus lábios, quase os mordendo.

Chauvin prosseguiu:

"...Apesar de que o comum é os escravos serem alimentados por seus mestres. O que me faz crer que você é um prostituto sem contrato já que o homem que estava com você não estava dando comida em sua boca..."

Ancel respirou fundo, concentrando a sua atenção nas vigas e no teto, buscando alguma paciência em si, antes de responder em desistência:

"Vai se foder."

"Quanto é o serviço? Posso pagar por sua companhia durante a tarde inteira." — indagou Chauvin, ignorando as palavras de Ancel.

Ancel não respondeu, mas deu um tapa na mão do homem quando ele tentou deslizar os dedos até os seus brincos.

"...Você é o tipo de beleza exótica da qual eu gosto. Tenho um amigo comerciante. Posso apresentá-lo a ele..."

Claro que Chauvin tinha um amigo comerciante. Após experimentar Ancel até os ossos, ele ia repassá-lo ao dono de algum bordel para experimentá-lo também e depois o servir em uma bandeja para clientes famintos que também gostavam de se empanturrar de jovens exóticos deitados de bruços. Era assim que as coisas funcionavam.

O escravo de estimação empostou a sua voz e reforçou entre dentes:

"Vai. Se. Foder!"

Chauvin fez o seu gesto irritante de levar as mãos diante do rosto e, rindo-se como se não houvesse sido afetado, voltou-se para falar com um de seus homens que passou ao seu lado, sussurrando-lhe algo privado.

Ancel, cerrando ainda os dentes e tremendo o queixo, fitou a caneca de lata posta sobre o balcão pelo chefe da taverna que se afastou para cuidar de seus copos. Levou somente um segundo para Ancel, recordando-se de Jord, fungar o ranho das suas fossas nasais e cuspir dentro da caneca com uma mira invejável.

Balain, que acabava de amarrar o embrulho de Ancel com barbante, sufocou uma risada nervosa ao arregalar os olhos, presenciando a cena.

Quando Chauvin se voltou para pegar o seu vinho, retornando para a sua mesa com o amigo, ele tomou um gole, dizendo:

"Espumante do jeito que eu gosto." — e, erguendo o copo de lata em direção a Ancel, ele disse com um lisonjeio cínico — "Com a sua licença, puto."

Pisando duro com as suas botinas de salto ao galgar os degraus, Ancel retornou para o seu quarto no número doze. Enquanto caminhava pelo corredor balaustrado, o veretiano ouvia o tipo de conversa pervertida e torpe que os homens travavam em sua mesa, fazendo gestos obscenos com as mãos ao contarem causos.

Ancel não entendia por que estava tão incomodado com aqueles homens e nem porque o teor da conversa o deixava desconfortável. Quando ele foi morar em Arles com lorde Berenger, o cortesão passava bastante tempo ausente, fechado em reuniões secretas com o príncipe e os seus aliados. Ancel se entretinha, então, flertando com os outros cortesões e fazendo piadas sugestivas. Ele andava pelos jardins acoplados, vendo os nobres trocando intimidades com os seus escravos de estimação nos caramanchões.

Por fim, Ancel chupara o rei de Akielos diante de vários cortesões por livre e espontânea vontade, recebendo congratulações pelo desempenho que o levava a ser o melhor puto de Arles. De fato, Ancel não entendia por que aquela atmosfera libertina o chateava tanto agora. Talvez, ele estivesse se habituando muito aos ares induzidos por Berenger.

Retornando para o quarto doze, o rapaz dedicou a sua concentração à jaqueta de lorde Berenger e, mais tarde, trajando somente a sua camisa branca de ilhós e laços, ele se acomodou sob as cobertas ao lado de seu mestre.

O cortesão se moveu em seu sono, puxando o jovem para perto e o acolhendo em seus braços. Abrindo os olhos brevemente e voltando a fechá-los, Berenger murmurou em seu sono:

"Está tudo bem?"

Ancel moveu os seus olhos verdes, tocando com os pés a perna de Berenger.

"Eu sou o seu amigo?"

Lorde Berenger fez um ruído em seu sono, não entendendo a pergunta.

"Eu sou o seu amigo, meu senhor?" — repetiu Ancel, com alguma ansiedade.

O cortesão abriu, então, os seus olhos castanhos e quentes e fitou o rosto pálido de Ancel muito próximo ao seu. O escravo de estimação havia desfeito a trança e tinha os cabelos ruivos caindo por seu rosto e pelo travesseiro.

Berenger esticou os dedos e tateou a maçã do rosto do rapaz em que havia algumas sardas pálidas. Beijou-as carinhosamente e voltou a abraçar o escravo.

"Claro que você é o meu amigo, Ancel."

Sob as cobertas, Ancel se aninhou no amplexo de lorde Berenger e fechou os olhos, sorrindo. Ele sentia o calor do corpo do mestre junto ao seu e experimentou o sono alcançá-lo, embalado por algazarra, pelo barulho de portas batendo e pelo relinchar de cavalos distante.

A queimação em seu estômago se atenuou.

Quando partiram oito horas depois, lorde Berenger vestiu a jaqueta marrom que se encontrava dobrada no espaldar de uma cadeira do quarto. Tateando o tecido sem manchas e seco, ele disse:

"É impressionante! O que fez?"

"Um segredo entre eu e o atendente Balain."

"Não precisava fazer isso, Ancel..."

O escravo de estimação amarrava o seu cabelo comprido em um rabo de cavalo alto e trocou as sedas de sua roupa por veludos escuros. De joias, ele usava agora somente uma gargantilha de ouro em seu pescoço delgado com um minúsculo pingente. Um mimo que Berenger lhe comprara em um passeio por Varenne.

"Eu fiz porque quis. Quando Parsins não está por perto, sou eu quem cuido de você."

Lorde Berenger voltou os seus olhos para o escravo de estimação, beijando a sua cabeça de fios ruivos e dizendo enquanto Ancel ruborizava:

"Obrigado."

Depois, quando os dois veretianos acertaram o valor dos quartos no balcão da taverna, Balain remanchou um tempo no instante em que o seu chefe foi mandar o cavalariço preparar os cavalos.

"Ei, Alteza, aquele homem perguntou por vocês."— disse o atendente para Ancel, pestanejando o seu olhar vesgo.

Lorde Berenger franziu o cenho.

"Que homem?"

"O homem que estava bebendo aqui de manhã. Ele já foi embora, mas tentou arrancar o nome de vocês com o meu chefe. Meu chefe foi coagido a dizer quem vocês eram porque ele insistiu no assunto de que era ligado ao Conselho de Vere."

Lorde Berenger estava viajando sob o nome falso de lorde Arten sugerido por Ancel e Ancel viajava sob o nome da sua égua roan cor de palha chamada Ruby.

Quando eles entraram na carruagem na qual Jean já os esperava, assim como os soldados montados em seus cavalos circundando o vagão, Ancel sussurrou:

"Ele é Chauvin, o primo arrombado do conselheiro Audin da história contada por Jord."

"Como sabe disso?"

"Não tem importância. Estou feliz por não termos que vê-lo de novo. Vamos logo embora."

Durante a viagem vespertina, após um longo tempo, Berenger voltou a se ocupar de seus papeis e Ancel se pôs a ajudá-lo, a fim de empregar o seu tempo em algo que o distraísse.

"Marque nesta lista todas as pessoas com os mesmos sobrenomes." — instruiu-lhe o cortesão, lhe dando uma pena e tinta escura— "Isso será de grande ajuda."

Ancel, a princípio, demorou-se para se situar com a leitura dos sobrenomes diferentes, investindo algum tempo na composição das letras e das sílabas. Depois, no entanto, ele iniciou o movimento de suas mãos, marcando uma estrela ao lado dos nomes.

"Por um acaso, esses são escravos da mesma família que você está tentando manter juntos em Varenne?"

Lorde Berenger, que lia um documento, aquiesceu, erguendo brevemente o seu olhar.

"Sim. Havia famílias inteiras sendo traficadas e o rei e alguns cortesões estão tentando juntar os seus membros em uma mesma terra, a fim de poderem recomeçar juntos. Lady Vannes conseguiu encontrar um garotinho que estava perdido em Arran e trazê-lo para junto da mãe e das irmãs em Lys."

Ancel se demorou um tempo, observando o cortesão de olhos quentes e concentrados. Desde que ele conhecera Berenger, era comum o mestre virar noites inteiras trabalhando sobre papeladas ou lendo poemas em seus momentos de lazer.

Durante muito tempo, o escravo de estimação rotulava esses documentos como chatos, blá-blá-blás infinitos e sérios demais e não se questionava sobre o seu teor. Com a leitura, a dimensão deles se tornava mais nítida.

"Terminei aqui. Pode me dar outro papel." — declarou Ancel, orgulhoso.

Quando o sol já se punha, Ancel entreabriu a cortina de veludo da carruagem e viu que uma chuva fina começava a cair do céu cinza, embaçando as vidraças. Havia nuvens escuras entrecortadas por clarões como veios iluminados no horizonte.

O rapaz se esticou um pouco pela janela e viu que os soldados ainda os seguiam de perto. Mais atrás deles, havia uma outra carruagem, viajando no sacolejo do chão de terra pela mesma estrada.

A chuva apertou quando a noite caía alta e um dos soldados bateu com os nós dos dedos na porta do vagão. Os cavalos e os homens estavam encharcados e o chão enlameado e escorregadio.

"Lorde Berenger, vamos precisar fazer uma pausa em uma estalagem até a chuva estiar. No mais tardar, amanhã no meio do dia, chegaremos em Barbin."

Berenger aquiesceu, sentindo as gotas frias de chuva adentrarem um pouco o vagão. Eles estacionaram em uma estalagem mais modesta do que a anterior. Dessa vez, Ancel e Berenger não se demoraram na taverna cheia de viajantes e subiram direto para o seu quarto, desfrutando de uma refeição quente diante do fogo, após um banho longo.

Ancel usava um blusão simples e o seu cabelo ainda amarrado em um rabo de cavalo. Lorde Berenger deixou um pouco o seu trabalho de lado e tomou a lição do escravo veretiano que levara os seus cadernos escolares para a viagem.

Ancel tinha uma letra grande que ocupava bastante espaço nas folhas e escrevia com demasiada força, marcando fundo o papel. Mas ele era caprichoso e conseguia manter as letras em uma linha reta. Havia poucos erros, que ele se apressou em corrigir quando lorde Berenger os sinalizou. Na matemática, somente em uma conta ele se distraíra e a refizera, movendo os seus dedos para se certificar da soma.

"Você está indo muito bem. Você aprende muito rápido..." — elogiou-o Berenger, fitando-o diante da luz do fogo.

As retinas de Ancel pareciam joias derretidas próximas à lareira. O rapaz sorriu, sentindo os olhos terrosos de seu mestre sobre si e ruborizou mais quando lorde Berenger murmurou, colocando uma mecha do seu cabelo vermelho atrás da orelha:

"Quando o sol nasce nos céus de Skarva, o mundo venenoso se torna flamíneo/ São as mãos raiadas de um amante/ Não é só a manhã que se erige na dança dos dias/ Mas o próprio homem, sequioso das carícias dos deuses/ Nos seus olhos de espelho, vejo o sol se levantar/ Em seus olhos, eu sou crepuscular/ O mundo é o que temos dentro e diante de nós/ O mundo, meu amor, é o sonhar."

Iságoras. Lorde Berenger, de cabeça, recitava Iságoras para Ancel que enrubesceu um pouco mais, sentindo que não encontrava as palavras de desdém que reservava para o poeta favorito de seu mestre. Ele sentiu um ímpeto de cobrir o seu rosto com o caderno de folhas escritas, mas lorde Berenger tinha a mão tocando a sua face.

"Não entendo de poesias." — disparou o rapaz, sem jeito.

Lorde Berenger sorriu, aquiescendo.

"É o tipo de coisa que não precisa entender, basta que sinta..."

Ancel tocou a mão de lorde Berenger, entrelaçando os seus dedos nos dele e se aninhando um pouco mais próximo ao fogo. Ele não sabia se era Iságoras, mas ele se sentia bem recostado a lorde Berenger, tendo o barulho da chuva se abatendo contra as vidraças escuras.

Lorde Berenger fitou a camisa branca solta que o escravo de estimação usava.

"Por que não está usando as sedas e as joias de que tanto gosta? Você as usa até mesmo para dormir..."

Ancel pestanejou, contraindo o seu queixo.

"Não gosta de mim assim sério?"

"Gosto de você feliz. Há algo o preocupando? Parece um tanto calado hoje."

O escravo de estimação sacudiu o seu rosto, não querendo compartilhar os seus questionamentos sombrios.

"Você se preocupa demais, Berenger..." — respondeu Ancel, tocando nos cadarços de camurça da camisa de algodão do seu mestre e os puxando com o toque delicado de seus dedos— "Você ainda vai querer trabalhar nos seus papeis durante a noite ou aproveitar este lugar em que temos que pernoitar para fazer algo divertido?"

Berenger se deteve, deslizando o olhar pelo corpo morno e macio do escravo de estimação e por suas pernas alvas que se afastavam, convidando-o ao toque.

Quando Ancel começou a servir lorde Berenger na cama há quase dois anos, ele estranhou a irregularidade dos encontros. Normalmente, o seu antigo mestre, lorde Louans, esperava ser entretido muitas noites consecutivas e o escravo de estimação se banhava intimamente e se oleava para permitir que o seu mestre pudesse deslizar para dentro dele com a frequência exigida.

Mas com Berenger, as coisas eram diferentes. Mesmo após dormirem juntos, havia noites em que o cortesão trabalhava durante a noite ou, então, sentindo-se cansado, envolvia Ancel em seus braços e somente descansava ao seu lado como havia sido feito na outra estalagem.

"Há algo que prefira que eu faça ou de que goste mais?" — perguntou Ancel, uma semana depois de foderem pela primeira vez, sentando-se na cama diante de lorde Berenger— "Posso animá-lo se não estiver disposto. Não me quer...?" — disse o rapaz veretiano, deslizando a sua mão até a virilha de Berenger na ocasião.

Lorde Berenger fitou o movimento dos dedos de Ancel, ruborizando um pouco. Ele parecia um menino tímido ao responder:

"Como poderia não querer estar com você, Ancel? Todas as últimas vezes foram ótimas. Você é excelente..."

Ancel sorriu com um orgulho privado, jogando os seus cabelos flamejantes por sobre as espáduas muito brancas.

"Então...?"

Lorde Berenger ergueu o seu olhar por um segundo e o baixou.

"Eu não tenho o seu conhecimento nessa área e sou um tanto... Um tanto..."

"Tímido?"

O cortesão aquiesceu e respondeu:

"Além disso... Eu não sei se você me deseja também..."

Ancel, na ocasião, deslizou os dedos pelo cadarço em sua camisa de seda, descendo-a até os seus ombros.

"Achei que havia deixado claro nas últimas vezes o quanto gostei. A minha reputação fenece quando você me rejeita, Berenger."

"Eu só não sei como saber se você está também disposto ou não. Não sei como é ter um amante de fato. No passado, houve algumas tentativas de minha parte. Houve um cortejo que durou alguns meses, mas eu, eu... Eu sou um tanto desajeitado. Eu não... Eu não o rejeito, Ancel!" — respondeu o homem, tendo o tom de vermelho se alastrando por todo o seu rosto.

"Prove então. Ou melhor, me prove!" — respondeu o rapaz, despindo a camisa totalmente e se revelando nu diante de um Berenger que o fitou com uma atenção ininterrupta.

Não havia um cronograma de quando Berenger e Ancel iam foder e isso era estranho para um escravo de estimação ou um prostituto. Sempre acontecia naturalmente e, apesar de eles terem dormido juntos o suficiente para que a timidez de Berenger se dissolvesse consideravelmente e o cortesão provasse o seu desejo, havia ainda noites em que eles só conversavam; noites em que Ancel treinava a sua caligrafia enquanto Berenger lia ou eles, simplesmente, dormiam abraçados.

Em outras vezes, quando Ancel não esperava por nada e transitava pelos aposentos, saído do banho com um roupão fresco e tendo os cabelos molhados, Berenger deixava a sua mesa de trabalho e o rodeava com carícias sugestivas.

"Do que gosta que eu faça com você?" — murmurara lorde Berenger, certa vez, tendo Ancel sentado sobre os seus joelhos e desamarrando o nó de sua roupa, após beijos febris e toques.

Com um formigamento nos lábios, Ancel respondeu, sentindo-se tonto perante o olhar quente de Berenger. Quando o desejo era extraído de Berenger, o cortesão parecia focado como o era com os seus livros e Ancel se sentia desejado de um modo que não se lembrava de ter sido antes. Ele sempre havia fodido por dinheiro, mas Berenger fazia perguntas estranhas. Ancel também sempre dizia o que pensava para o cortesão, mas ruborizava naqueles momentos. No fundo, ele derretia.

"Gosto quando o meu senhor me dá prazer com a boca... E quando se satisfaz dentro do meu corpo. Gosto da sensação de dar prazer também ao meu mestre..."

Ancel deixou que Berenger fizesse aquelas coisas consigo, abrindo-se mais para o cortesão e perdendo a consciência de si mesmo ao mover os seus quadris e gemer, entregue.

Isso era um erro grave para um puto conforme Ancel fora instruído nos bordéis de Sanpelier.

Gozar na boca de seu mestre como Ancel gozava, então, nem entrava na pauta discutida pelos prostitutos. Será que Berenger era sério demais para cuspir na cuba do banheiro ao invés de engolir?

Havia alguma coisa de errada naquele relacionamento. O próprio Ancel se flagrava, muitas vezes, participando das festas modestas que Berenger oferecia para o seu séquito em reuniões políticas, divertindo-se ao ouvir alguns músicos que eram trazidos ou outras apresentações artísticas. Ele se sentava no colo de Berenger, degustando doces arquitetônicos, e, vez ou outra, o mestre perguntava se as coisas estavam de seu agrado ou se ele estava entediado.

A entrega de presentes também era um caso à parte. Lorde Berenger mandava o ferreiro vir em momentos inesperados e o vendedor mostrava para Ancel as novas tendências de joias. Também, havia o comerciante de tecidos que tirava as medidas de Ancel para lhe fornecer vestes luxuosas em fazendas caras. Fornecia-lhe também a nova moda de quítons de seda com mangas compridas e largas.

Não havia um padrão recompensador para o surgimento de presentes, sendo o escravo pego de surpresa e se divertindo ao deslizar os dedos por todo aquele luxo. Quando lorde Berenger o presenteou, certa vez, com um colar extravagante de rubis, o escravo de estimação esperou que o mestre retornasse do jantar, semideitado no tampo de nogueira da escrivaninha do cortesão e vestindo somente a joia com meias de renda até a altura das coxas.

"Ainda acha que o luxo combina comigo?" — indagou o jovem, deslizando os dedos com unhas pintadas de vermelho pelos rubis no meio de todos aqueles papeis e livros chatos.

Os olhos de Berenger se derramaram nas formas bem talhadas e muito alvas do borrão vermelho e branco que era o rapaz, tocando-o com a sua atenção primeiro. Em seguida, com as suas mãos. E depois, com todo o seu corpo, puxando Ancel pelas costas dos joelhos em sua direção e o enchendo de carícias adoráveis.

Conforme Ancel suspeitava, era bem o estilo de lorde Berenger querer foder sobre a mesa de trabalho.

Havia, por último, os momentos em que Berenger lhe recitava poesia. Em que os dois conversavam sobre as mudanças no reino e na capital. O cortesão, com interesse, perguntava a opinião de Ancel e se punha a pensar em tópicos levantados, apoiando a sua mão no queixo.

Definitivamente, o relacionamento deles era difícil de nominar e, agora, com a proximidade de uma abolição da escravidão, tudo se tornava mais confuso.

Ancel nunca havia sido pago para falar, estudar, ouvir música, passear, escutar poesias e receber felação. Nem para ganhar joias sem precisar agradecer com um boquete demorado e com a sua garganta experiente.

O que eles eram afinal? O que uma declaração de amor significava entre um cortesão e um escravo quando eles achavam que iam morrer pelas mãos do Regente? O que queria dizer Berenger reforçar o tempo todo que Ancel não era mais um escravo.

Era a possibilidade de lorde Berenger, sem um contrato, poder mandar Ancel embora algum dia? Arrumar um amante com o gosto pela arte e pelas letras, ordenando que o rapaz de cabelos ruivos esvaziasse o seu quarto?

Ou queria dizer que ele era somente a puta de seu mestre agora? Nesse caso, as joias eram só uma garantia para o caso de ele ser dispensado quando envelhecesse, podendo recomeçar em algum lugar, sem haver perdido tempo? A instabilidade o atormentava e confrangia o seu peito.

Na estalagem, lorde Berenger fitou o escravo de estimação, que erguia a sua camisa comprida e se colocava sobre ele. As pernas de Ancel estavam afastadas quando ele se sentou no colo do cortesão. Os cabelos presos em um rabo de cavalo com uma fita de cetim brilhavam à luz do fogo mortiço e o perfume de sabonete de rosas exalava do corpo do rapaz.

Berenger observou o rosto do escravo de estimação junto ao seu, tateando o seu cabelo que ardia sob a luz da lareira.

O fogo crepitava e criava sombras nas paredes quando os dois homens se beijaram de um modo entregue e demorado.

"Quero você." — murmurou Ancel na orelha de Berenger, sem entender por que a sua pulsação aumentava. Ele já convidara homens para foder antes, sem meandros— "Quero que me possua. Preciso dormir com você, Berenger."

Lorde Berenger deslizou os dedos pelas costas do rapaz, respondendo:

"Eu também quero você, Ancel. Quero poder tocar em seu corpo..."

Diante da luz do fogo, entre os cobertores de pele próximos da lareira, Ancel proporcionou aquele prazer impiedoso que sabia que podia arrancar dos homens quando ele desceu a sua boca até a virilha de lorde Berenger. Ele sentiu o movimento suave do quadril do cortesão; sentiu-o endurecer em seus lábios; as suas palavras murmuradas; o toque de sua mão e Ancel cessou os movimentos quando Berenger pediu que eles se deitassem em posições contrárias.

Os clientes dos bordeis em Sanpelier e os mestres anteriores de Ancel não o chupavam, fazendo uma indiscreta cara de asco com a simples ideia do ato. Os homens não queriam pagar para proporcionarem prazer, mas para extraí-lo. Lorde Berenger fora o primeiro a usar a sua boca no experiente Ancel, que se gabava por sua habilidade na felação. Berenger gostava de proporcionar aquele prazer simultâneo e derradeiro enquanto Ancel o estimulava em um meia nove demorado.

O escravo de estimação gemeu quando sentiu a boca de seu mestre entre as suas pernas e sorveu a ranhura que tinha diante de si, introduzindo a sua língua e tornando mais pesada a respiração de Berenger.

A pele de Ancel ardia em uma febre como se ele fosse se incendiar. Ele gostava da sensação de sentir prazer enquanto proporcionava prazer. Ele poderia explodir termômetros quando Berenger lhe introduziu o seu dedo ao mesmo tempo que ainda o acariciava com a boca.

Após algum tempo de satisfação indelével, molhada e latente em que as bocas, línguas e mãos inflamavam uma profunda lascívia, Ancel sorriu por sobre o seu ombro, oferecendo o seu corpo para o mestre. Berenger deslizou os lábios pelo pescoço muito branco do escravo circundado pela gargantilha de ouro, descendo beijos curtos até as vértebras na pele macia como se tocasse um piano com as suas carícias.

O ato foi lento com Ancel permanecendo a princípio por cima, até que lorde Berenger assumiu o comando e se deitou sobre o escravo, estocando contra ele lentamente no início até que o ritmo aumentou e os dois homens tinham os seus membros entrelaçados e arquejantes.

Ancel já compreendia que os momentos de intimidade com Berenger não eram performáticos. Havia muitos beijos e o processo era lento e sem pressa até as estocadas alcançarem um ritmo firme e forte. Ele sentia o mestre enterrar o rosto em seu peito, deslizando a língua por seus mamilos rosados e o provocando até que o escravo de estimação perdesse o controle. Ele estava tão quente.

Ancel apertou as peles sob o seu corpo, sentindo que Berenger controlava o seu movimento enquanto o escravo de estimação deslizava os dedos por seu pau, proporcionando-se prazer. Ele tinha as suas pernas afastadas e erguia o quadril, sentindo o deleite lhe envolver enquanto Berenger, de joelhos, se movia dentro dele.

Ancel tinha consciência do seu corpo totalmente nu e febril; da sua respiração acelerada e dos gemidos que escapavam de seus lábios; da palidez da sua pele, arrepiada e sensível. Ele tinha consciência de Berenger, o homem sério que preferia ler a falar, penetrando-o com desejo.

Quando Ancel tentara construir um personagem desejável para Berenger há dois anos, ansiando pela renovação de um contrato, ele se flagrara pensando que deveria fingir despreparo emocional sob as camadas adiposas de experiência física durante a foda. Berenger gostaria de um grau de inocência e de ouvir que a sua cama não era como nenhuma antes experimentada pelo escravo.

Mas Ancel, de fato, sentia-se sempre despreparado para aquilo no seu corpo perito. Havia inocência quando ele se derretia sob os murmúrios carinhosos de Berenger e ele pensava que nunca fora assim antes. Berenger não era um homem de ringues ou de bordeis de Sanpelier. Não havia espaço para a sua natureza naqueles antros.

Quando Ancel envolveu o corpo do cortesão, ele tinha os olhos fechados e sentia que poderia morrer com as suas pernas afastadas e todas aquelas sensações sutis e adoráveis desenhadas por dois homens que se permitiam aquela intimidade.

"Você é tão bom, Ancel..." — murmurou lorde Berenger no ouvido do rapaz, com a sua respiração arquejante.

"Eu sei. Eu sei que sou bom." — gemeu o rapaz, com os olhos ainda fechados.

"Eu amo você." — murmurou Berenger em seu ouvido, ruborizando e escondendo o seu rosto nas madeixas vermelhas do escravo de estimação com uma timidez juvenil.

Acontecia algumas vezes. Berenger gostava de dizer aquelas palavras, revestindo o prazer em algo que fugia totalmente ao cálculo e a qualquer experiência de Ancel.

O escravo de estimação, jogando o rosto para trás, conduziu o seu próprio prazer até o ápice, esvaziando-se em um gemido profundo. Ele esperava pelas palavras de Berenger? Segurava-se até o momento em que o mestre coroasse as suas fodas como algo do qual Ancel nunca fizera parte antes. Berenger descobrira uma virgindade oculta no escravo e a deflorava todas as vezes.

O amor era como a liberdade proclamada por Berenger? Gigantesco, incompreensível e imprevisível. De alguma forma, talvez, todos esperassem por essas duas coisas para se entregarem a si mesmos e se verem livres de cativeiros autoimpostos durante toda uma vida.

Quando o prazer alcançou lorde Berenger, Ancel envolveu o corpo do cortesão com braços acolhedores, permitindo que o mestre lhe preenchesse com o seu gozo naquela breve morte.

Ele se abria mais. Cedia-se totalmente, sentindo a força da natureza de ter o homem que lhe dizia amar dentro de si. Sentindo-se irrigar por aquele prazer derradeiro. Brutal. Doce. Lorde Berenger era bom também. Muito bom. E Ancel o amava.

Os dois homens evaporaram naquele abraço, sob o fogo mortiço e se mantiveram com os seus membros entrelaçados, mesmo quando o sono os alcançou, após trocarem beijos curtos e compartilharem do silêncio que o amor exige quando está confortável e é bem recebido.

Houve chuva durante toda a noite, cessando somente na primeira hora da manhã. Após tomarem banho, comerem o desjejum e se vestirem, lorde Berenger agilizou os preparos para que eles voltassem logo para a estrada.

Os soldados esperavam pelo cortesão e pelo escravo de estimação na entrada da estalagem, tendo as suas espadas embainhadas enquanto Jean havia ido encilhar os cavalos.

Ancel, vestindo roupas discretas e escuras de viagem, passou a mão por seu pescoço, dando por falta da gargantilha de ouro fina.

"Acho que deixei que o meu colar caísse próximo à lareira ou na tina. Vou buscá-lo."

Lorde Berenger, que fechava a conta com o dono na estalagem pelos quartos e pela alimentação da comitiva, voltou-se, dizendo:

"Deixe pra lá. Compro outro para você."

"Não. É o seu presente. Vou buscá-lo e já volto."

"Tem certeza de que quer ir sozinho? Espere eu fechar a conta que vou acompanhá-lo." — replicou lorde Berenger, apontando para o comerciante da estalagem que calculava números em um caderno de folhas escuras, atrás do balcão da taberna.

"É melhor eu ir rápido para podermos voltar logo para a estrada. Me espere aqui."

Ancel subiu com pressa os degraus da escada, tendo o seu rabo de cavalo alto sacudindo em suas costas. Ele adentrou o quarto em que pernoitara com Berenger. O criado encarregado pela limpeza do cômodo ainda não havia estado lá.

O rapaz preferiu procurar pelo objeto primeiro entre as peles, almofadas e cobertores próximos às cinzas do fogo da lareira, inspecionando o espaço com a mão espalmada no chão.

Ele sorriu quando tateou no carpete escuro um fio fino e dourado com um minúsculo peridoto em seu pingente. Sorrindo, o escravo prendeu a gargantilha em seu pescoço, esticando os braços para trás, a fim de alcançar o fecho.

Quando se voltou para a porta, Ancel se deteve, tendo a respiração presa e uma surpresa desagradável que fez o seu coração gelar.

Chauvin estava parado junto à porta e a fechou atrás de si, falando com o seu sorriso irritante enquanto fazia questão de cruzar os braços, mostrando o punhal afiado que carregava em uma das mãos.

"Oi, lindeza! Que agradável coincidência..."

Ancel deu um passo para trás, olhando o espaço ao seu redor. Uma algazarra começara no andar térreo.

"...Achou que sem toda a seda e aquelas joias, eu não o reconheceria?"

O rapaz de cabelos ruivos fitou a lâmina afiada da adaga e a porta fechada. Ele recuou mais um passo.

"Coincidência uma ova! O que quer?!" — retorquiu o escravo de estimação, fitando a janela gradeada em desespero.

"Nem pense em correr, seu puto!"

"O meu amigo está lá embaixo!" — respondeu Ancel, com nervosismo — "Ele vai vir aqui me encontrar. Você vai ver!"

Chauvin se deteve, usando a ponta da adaga para coçar o queixo quadrado, fingindo considerar a resposta.

"Eu acho que não. Os meus homens vão dar um jeito em lorde Arten. Ou devo dizer..." — Chauvin curvou o rosto com um sorriso, sussurrando — "...lorde Berenger?"

Ancel, dessa vez, tentou correr até a porta, mas teve a sua cintura envolvida com truculência e foi jogado na cama de onde os lençóis e cobertores haviam sido removidos na noite anterior.

Houve uma luta corporal em que o escravo de estimação tentou dar uma joelhada na virilha do homem, até que Chauvin ergueu a sua adaga, fincando-a no colchão muito próximo ao rosto de Ancel.

"Da próxima vez, eu vou retalhar esse rostinho. Acha que não reconheci os homens do rei? Acha que não soubemos do desmantelamento do ringue em Arles; que Laurent de Vere e Damianos de Akielos entraram disfarçados num dos nossos prostíbulos e receberam a ajuda do fiel lorde Berenger e de seu escravo de estimação? Não existe nenhum lorde Arten. Foi fácil descobrir quem vocês são com o sotaque dele de Varenne e esse cabelo vermelho chamativo. Temos uma boa rede de comunicação."

Ancel, deitado sob Chauvin, olhou para a lâmina próxima a sua cabeça e indagou:

"O que quer?"

"Interrogar vocês? Estão indo para Barbin, eu sei. Um de meus homens já arrancou isso do cavalariço que cuidava dos cavalos daqui. Vão para o ringue de Verona desmantelá-lo também? O que o rei pretende fazer? Tem mais pessoas com vocês?"

Ancel sentiu o seu pulso ser seguro com truculência por Chauvin. No andar de baixo, ouvia-se gritos e o ruído de louça sendo derrubada. O seu coração apertou quando ele pensou em Berenger.

"Estamos só passeando. Essa viagem não tem nada a ver com o rei!" — respondeu o escravo de estimação, cerrando os dentes.

Ancel sentia o pau duro de Chauvin se esfregando contra ele através das camadas de tecido e a sensação fez com que a bile quente subisse até a sua garganta.

"Ah, não? E por que estão viajando com nomes falsos e em horários de pouco movimento? Por que estão acompanhados de soldados armados até os dentes? Vim, seguindo-os desde a última estalagem..."

Ancel se moveu com irritação, recordando-se de Chauvin tentando arrancar informações sobre ele e Berenger na pousada anterior. O rapaz se lembrou da carruagem, viajando atrás deles na estrada sob a chuva. Ele selou os seus lábios.

"...Se não começar a desembuchar, eu vou arrancar esse olho bonito pra mim..." — ameaçou-o Chauvin.

Ancel tinha a respiração curta e manteve os seus lábios fechados. Houve um silêncio irregular em que Chauvin aguardava uma resposta, mas não a obteve.

O homem, respirando com impaciência, moveu a sua mão e deferiu um bofetão forte no rosto do escravo, partindo os seus lábios. Ancel tossiu, sentindo o gosto férreo de sangue em seus dentes, logo após experimentar a dor dos anéis das juntas de Chauvin em sua face. Por fim, Ancel voltou o seu rosto com o olhar faiscante de ira, mas se manteve em silêncio.

Chauvin retirou a adaga do colchão com um sibilar de desapontamento e se curvou sobre o escravo, arrancando um beijo de sua boca à força.

Ancel tentou manter os lábios fechados com o cenho franzido, mesmo quando Chauvin forçou a língua em sua boca. O escravo soltou um ruído agoniado de desespero pelos segundos em que o beijo se sucedeu, movendo as suas pernas com angústia sobre o colchão como se sentisse dor.

Chauvin se afastou, dizendo, após deslizar a língua pelos lábios:

"Só queria fazer isso enquanto ainda é bonito. É uma pena ter que retalhar um rostinho desses, mas acho que isso o fará falar..."

O homem ergueu a faca, encostando a sua lâmina na maçã do rosto de Ancel, indagando-o mais uma vez, com uma voz dura:

"O que você e Berenger vão fazer em Barbin? O que o rei pretende?"

O peito de Ancel oscilava, tendo consciência do frio metálico em sua pele. Ele sentia o seu estômago afundar e estava paralisado de medo, mas ele não abriu a sua boca, ainda quando o punhal se afundou um pouco na sua face, feito faca na manteiga macia. O sangue subiu vermelho e fino junto ao corte.

A porta foi escancarada com violência por um pé e um dos soldados que os acompanhavam na viagem surgiu ao lado de um lorde Berenger um tanto desgrenhado.

Os dois homens se detiveram e Chauvin os olhou, sendo pego de surpresa. Depois, retrucou:

"Estava me divertindo com a sua puta, lorde Berenger."

Ancel, vendo o seu mestre, sentiu o soluço em sua garganta enquanto Berenger ordenou entre dentes:

"Solte-o agora mesmo!"

"Eu acho que não."

Chauvin se levantou, segurando o escravo de estimação pela raiz dos cabelos e apontando a faca para o seu pescoço.

"Um movimento e eu vou enfiar o punhal na garganta dele. Se tentarem algo, o garoto morre..."

Ancel sentia o seu couro cabeludo doer, tendo os dedos anelados de Chauvin o segurando com truculência.

O soldado olhou para lorde Berenger, esperando por um comando.

Lorde Berenger fitou com ansiedade a lâmina e o rosto ferido de Ancel e respondeu, erguendo as mãos.

"Não o machuque."

"Diga para ele colocar a espada no chão." — replicou Chauvin, gesticulando com o queixo para o soldado que flanqueava lorde Berenger.

O cortesão fez um movimento apressado para que o guarda obedecesse.

Chauvin sorriu com deboche, falando enquanto fazia um movimento com o seu queixo arrogante para que os dois homens desarmados se pusessem a andar.

"Vamos dar um passeio até lá embaixo. Gosta tanto assim desse puto desbocado, Berenger? Ele nem beija tão bem assim."

Com ordens rudes, Chauvin mandou que Berenger e o soldado seguissem em frente, obrigando-os a manterem as mãos no ar. Ancel foi empurrado em direção ao cortesão veretiano e, com os lábios trêmulos e vermelhos, ele fitou o mestre enquanto seguia pelo corredor e se punha a descer a escada.

No andar térreo, os soldados que serviam a Laurent pareciam levar a melhor sobre os homens de Chauvin no cenário em que havia estilhaços de vidro, cerâmica partida, vinho, canecas de lata e comida espalhada pelo chão de tábuas de madeira rústica.

Alguns clientes se encolhiam nos cantos próximos aos braseiros, com olhos temerosos e inquietos. Outros, residiam caídos no chão, tendo sido acertados por acidente. O dono do estabelecimento, um homem franzino e pequeno, estava escondido atrás do balcão, abraçado a sua esposa.

"Larguem as armas! Senão eles morrem." — ordenou a voz peremptória de Chauvin, olhando diretamente para os soldados que haviam escoltado lorde Berenger e Ancel.

Os guardas veretianos estavam lá para acompanhar e defender o cortesão fiel ao rei e o seu escravo de estimação. Entreolhando-se e praguejando, eles largaram as suas espadas sobre o chão com ruídos secos e metálicos, dardejando Chauvin e os seus homens com fúria.

"Bem melhor assim." — disse Chauvin, empurrando lorde Berenger para o meio da taberna e o forçando a se sentar em uma cadeira derrubada que um de seus homens levantou — "Quer dizer que todos vocês servem àquela puta fria de Vere que dorme com o brutamonte akielon? Por causa do desgraçado do Laurent, fui expulso da Guarda do Regente. Inocência dele achar que os únicos homens que serviam ao Regente estão na capital."

Lorde Berenger se manteve sentado na cadeira do estabelecimento semidestruído em que todos eram feitos de refém. Ele olhou ao seu redor, encontrando o olhar de Ancel. O escravo percebeu um hematoma na testa do amo, visível à luz do braseiro.

Havia um motivo tácito para Chauvin e seus homens se revelarem diante de todos contra o rei, ameaçando o cortesão de Varenne. Eles não permitiriam que ninguém saísse dali vivo. Era comum essa estratégia entre mercenários e homens sem honra. No fim, quando conseguissem o que queriam, ele e seus capangas iam trancar o lugar e queimá-lo com as pessoas dentro.

Chauvin tinha um ar que oscilava entre a frieza e a inconstância. Parecia de fato um dos aristocratas de Sanpelier, a quem poucas vezes na vida fora dado limite e impedimento. O homem se recordava ainda da represália de Laurent quando o rei ainda era um príncipe há sete anos. Laurent já tinha mais senso de justiça naquela época do que o primo do conselheiro Audin jamais sonharia ter.

"Vamos lá, Berenger." — começou Chauvin, apoiando a sua bota envernizada numa outra cadeira tombada.

"O que quer saber?" — indagou o cortesão.

"Por que estão indo para Barbin?"

"Estamos somente passeando."

"Ah! É exatamente o que o seu escravo de estimação me disse, mas algo me diz que não..." — replicou Chauvin, coçando o queixo áspero com a ponta da lâmina— "Você tem se tornado famoso, senhor de Varenne. O que o rei pretende fazer em Barbin?"

Enquanto lorde Berenger era interrogado, os olhos verdes de Ancel se detiveram no candeeiro que ainda ardia no início da manhã escurecida pelo mau tempo. Uma garrafa de óleo residia em uma mesinha no canto próximo à escada e os fornos cozinhavam a carne que seria servida aos clientes no café da manhã.

Mapeamento.

O escravo de estimação semicerrou os olhos por um segundo e, com um gesto discreto, ele desamarrou a capa de veludo que deslizou por seus ombros, amparando-a, antes que ela alcançasse o chão.

O olhar de Chauvin se concentrava em lorde Berenger e os dos seus homens nos soldados rendidos.

"O rei não tem nada a ver com a minha viagem." — insistiu Berenger— "Ele tem assuntos mais importantes para resolver, ao invés de perder o seu tempo comigo."

"Laurent tem atrapalhado os nossos negócios e quer fazer o mesmo com o ringue de Verona!"

Lorde Berenger fingiu surpresa:

"Existe um ringue em Verona?!"

"Ora, não tente se fazer de idiota, senão eu vou enfiar essa faca em você pra refrescar a sua memória..."

Havia os clientes tremendo e se mantendo parados ao redor da cena que se desenrolava. A maioria se tratava de comerciantes ou viajantes indo procurar trabalho em cidades periféricas vizinhas.

Passando com uma discrição delicada, Ancel deslizou entre as pessoas, tomando uma bengala de madeira de um senhor ao se apressar a levar o dedo indicador em riste pelo lábio partido, pedindo silêncio.

Em seguida, o seu olhar cruzou com o de um dos soldados que franziu o cenho e acompanhou o escravo de estimação discretamente com a sua atenção. Ancel moveu o seu queixo em direção a Berenger, sibilando:

"Quando eu avisar."

Chauvin enfiou a sua adaga ansiosa na mesa empenada e praguejou.

"Se não abrir a boca, vou matar todos aqui. Eu juro por Deus!"

Lorde Berenger olhou ao redor, engolindo em seco ao ver os soldados; o velho Jean que havia sido arrancado do coche da carruagem; os donos da estalagem e os rostos desconhecidos e amedrontados. Ele não viu Ancel de primeira, mas pode o ver, depois, deslizando quase imperceptivelmente em um canto da parede de tijolos crus, com as suas roupas escuras. O cortesão arregalou os seus olhos castanhos discretamente e disse:

"Está bem! O rei nos mandou ir inspecionar o ringue de Verona. Íamos repetir o feito de Arles e entraríamos disfarçados de clientes no lugar."

Chauvin soltou um grunhido de raiva e Ancel aproveitou a atenção dele e dos seus homens totalmente focada em lorde Berenger para se adiantar até a garrafa destampada do óleo de candeeiro e o sorver, armazenando o líquido com gosto terrível em suas bochechas. Depois, com movimentos lentos, ele enrolou a sua capa de veludo na bengala com o rosto impassível e os olhos fixos à sua frente.

O senhor de idade que tivera a bengala tomada, observava os movimentos do escravo de estimação e manteve a discrição. Quando um dos homens de Chauvin ia olhar na direção de Ancel, o idoso de barbas e cabelos brancos tossiu, fingindo derrubar um cálice da mesa e recebeu um empurrão do capanga como represália.

"Quem mais está com vocês?" — inquiriu Chauvin a Berenger.

"Ninguém mais veio de Arles conosco. Íamos encontrar alguns soldados do rei em Barbin."

Chauvin sacudiu o rosto com desdém.

"Não percebem que essa obsessão de todos vocês com a abolição dos escravos é ultrajante?! Como esperam que Vere prospere? O que vão fazer com tantos putos andando por aí e frequentando a corte feito aristocratas bem-nascidos? O que o rei vai fazer com essa escória que só serve pra foder?"

Lorde Berenger retorquiu com uma expressão aborrecida:

"Há escravos de estimação com mais honra, lealdade e valor do que o senhor poderia sonhar em ter um dia. O Conselho aprova as decisões do jovem Laurent e ele é um rei progressista; com ideias inovadoras para o seu reino. O seu primo Audin apoia a abolição..."

Chauvin, ao ouvir a menção ao nome do conselheiro, respondeu com uma surpresa controlada:

"Ora ora, pelo visto não fui só eu que andei me informando sobre nomes. É divertido esse jogo de gato e rato, não? O meu primo me traiu, preferindo apoiar aquele príncipe desgraçado a mim!"

Lorde Berenger retrucou:

"O conselheiro Audin apoiou Laurent quando você, mancomunado com o Regente, tentou desmantelar a Guarda do Príncipe. Achava que era intocável, Chauvin? O rei escolheu os homens certos. Sabe Jord, a quem detestava e em quem cuspiu? Ele é um dos homens de Laurent e comanda outros soldados, tendo a estrela de Vere em seu peito. Ele é leal e é um dos melhores soldados do rei! Ele marchou ao lado de Laurent para derrubar o Regente!"

"CALE-SE!" — gritou Chauvin, deferindo um bofetão em lorde Berenger com a sua mão pesada de dedos circundados por anéis grossos.

Chauvin detestava Jord, Huet e o falecido Orlant. Eles haviam sido os pivôs do seu rebaixamento e de sua expulsão. Pouco importava o inferno que Chauvin tivesse feito na vida daqueles homens.

Lorde Berenger insistiu, tendo um fio de sangue escorrendo por seu queixo. A sua voz saiu raivosa e resoluta:

"Você se acha grande coisa, mas é bosta, Chauvin! É escória aristocrata. A bosta deixada pelo Regente. O resquício de um mundo bárbaro e antigo que está ruindo e ficando para trás. Podem montar mil ringues. Desmantelaremos todos! Vida longa ao rei!"

Houve um movimento apressado de Ancel deslizar até o forno de pedra com carne vermelha e faisões untados com manteiga em espetos, sendo assados. Ele sentia que não conseguiria segurar mais o óleo de gosto forte em sua boca e poderia desmaiar se aguentasse por mais tempo.

"Vai pagar por essas palavras, lorde Berenger. Acho que já consegui de você o que queria. Vamos acabar logo com isso." — disse Chauvin, rodando em sua mão o punhal.

Ancel buscou o olhar do soldado que o acompanhava com uma expressão inquieta, fazendo um movimento com a sua mão, após acender com fogo a capa de viagem enrolada na ponta da bengala.

O guarda, então, livrando-se da vigilância do homem de Chauvin, deu uma cotovelada na barriga do capanga e, agarrando-lhe pelo tecido dos ombros, ergueu-o no ar, girando-o com uma força descomunal sobre uma mesa que se partiu com o peso.

Houve uma gritaria e Ancel tocou com a bengala em chamas a roupa de um outro homem de Chauvin que se moveu entre a multidão. Os outros soldados se libertaram e começaram a esmurrar os capangas.

Jean e os donos da estalagem se armaram de frigideiras e panelas para deferirem golpes.

Lorde Berenger tinha a mão firme de Chauvin o forçando a ficar sentado, com a faca em punho. Ancel girou sobre uma das mesas, aproximando-se do seu oponente.

Chauvin sorriu com desdém ao ver o escravo de estimação com as bochechas infladas, sem entender o motivo. Ele fixou o olhar na tocha e achou que ia ter a roupa incendiada como a do homem que correra pela porta da estalagem, procurando nas baias dos cavalos, água.

Mantendo-se distante e erguendo o punhal no ar, ele disse:

"Tarde demais, seu puto. Seu mestre já era!"

Ancel não tentou encostar a tocha nas vestes de Chauvin. Revisitando o seu número circense antigo, ele aproximou a tocha acesa de seu rosto e, inclinando a cabeça flamejante levemente para trás, cuspiu o óleo de candeeiro na chama, criando uma bola de fogo que se inflou no ar, alaranjada e brilhante.

Lorde Berenger, sentado na cadeira, sentiu o calor em suas faces e, de baixo, viu o momento em que o fogo atingiu o rosto de Chauvin, cozinhando as suas bochechas. O punhal caiu sonoro no chão.

O sol criado por Ancel era lindo, chamas vivas, famintas. Um truque circense no qual o escravo de estimação era o melhor. Houve um momento em que tudo era um clarão. Luz. Fogo. Combustível. O mundo em vermelho. Ancel com suas roupas escuras era um dragão belo cuspindo fogo do alto de uma ameia.

"Sou o melhor cuspidor de fogo." — gabava-se Ancel com dez anos entre os meninos da praça em que se apresentava, tendo o rosto sujo de cinzas; os pés descalços na terra vermelha de Sanpelier e o sorriso orgulhoso, antes de se tornar o melhor puto de Vere.

Chauvin gritou, sentindo o fogo consumir a sua pele enquanto Ancel jogava o bastão no alto em uma roda perigosa de luz giratória. Amparando-o na descida, ele queimou Chauvin mais uma vez, tocando a bengala dessa vez em seu peito.

O homem, tonto e em chamas, berrou, lançando-se pela porta da estalagem e se jogando no chão da frente da taberna em que poças de chuva haviam se acumulado sobre a lama durante a madrugada. Uma galinha que andava por lá disparou a correr, piando insegura.

Houve mais um giro em que Ancel moveu a bengala, brincando com o perigo onipresente do fogo. Ele queimou um capanga que tentou desarmá-lo e o chutou. Um dos soldados do rei deu uma chave de braço no homem e lhe enfiou a espada.

Depois disso, Ancel levou a mão à garganta e tossiu um pouco dos resquícios de óleo quando lorde Berenger o abraçou, puxando-o para fora da área de combate, para o lado do grupo em que os clientes, Jean e os donos da estalagem se aglomeravam, gritando vivas.

Os soldados desarmaram os homens um a um.

"Alguém chame as autoridades!" — declarou Jean para um dos atendentes franzinos que disparou pela porta.

Lá fora, Chauvin parara de se mexer há algum tempo.

Lorde Berenger apertava forte a mão de Ancel. Ele lhe tocou o rosto cortado na superfície da pele macia.

"Você está bem?"

O idoso que tivera a sua bengala confiscada disse, batendo palmas ao lado de algumas outras pessoas:

"Esse rapazinho é muito corajoso! Nunca vi um número desses. Foi espetacular, meu jovem! Deu àquele bostinha desgraçado o que ele merecia."

Ancel sorriu, pestanejando os seus olhos verdes e dizendo ao colocar a sua mão na cintura:

"Viu só, Berenger? Eu sou um triunfo!"

"Ancel..."

Lorde Berenger desmoronou e puxou o rosto do rapaz para o seu peito, não podendo falar mais nada. A sua voz estava embargada e os seus olhos ardiam. Ancel, entendendo o sentimento do mestre, permaneceu muito quieto.

"...Tive medo de perder você." — sussurrou o cortesão em seu ouvido, envolvendo o seu rosto com as mãos.

Ancel fitou o mestre sério, parecendo visivelmente abalado.

"Não vai se livrar de mim tão fácil, Berenger. Eu quem senti medo de perdê-lo."

As autoridades locais de Vere chegaram à estalagem, montadas a cavalo e prenderam os homens que foram mantidos amarrados. Chauvin ainda estava respirando, mas o seu estado era grave e ele seria levado a um lugar de tratamento, antes de ser guiado até a prisão.

O cavalariço do estabelecimento foi, infelizmente, encontrado morto com a garganta cortada, próximo a uma baia do estábulo. Lorde Berenger desembolsou uma volumosa quantia em dinheiro para os donos da estalagem que se adiantavam em arrumar o local, erguendo cadeiras e limpando os estilhaços com a ajuda dos atendentes e de alguns clientes.

Quando retornaram para a estrada no meio da manhã, Ancel havia lavado a sua boca com chá de hortelã a fim de tirar o gosto de óleo de seu paladar e comera morangos com açúcar para remover os resquícios do sabor desagradável.

Lorde Berenger havia feito um curativo nos lábios e no rosto do escravo de estimação. Em seguida, o rapaz cuidou do mestre também dentro da carruagem.

"Está se sentindo melhor?" — perguntou o cortesão enquanto Ancel passava um unguento para dor em sua fronte inchada.

"Hum. Chauvin e os seus homens estavam nos seguindo desde a estalagem anterior. Achei que pudessem só estar atraídos por mim, mas eles suspeitavam da nossa missão. Jord vai gostar de saber do destino que aquele puto desgraçado do Chauvin encontrou."

"Como soube que ele era o primo do conselheiro Audin?" — perguntou Berenger, fazendo uma careta de dor.

Ancel se deteve um instante, preparando um pedaço de pano para utilizar como curativo.

"Eu me informei com Balain, o atendente da outra hospedagem. Chauvin havia tentado se aproximar de mim. Ele percebeu que eu não era da nobreza, naturalmente, e inferiu que eu era o seu prostituto. Ele me convidou para passar a tarde com ele, mas eu recusei..."

Berenger estava aborrecido.

"Ele o que?"

Ancel deu de ombros.

"Eu o dispensei. Mas não posso culpá-lo por perceber que não tenho a classe ou a boa educação dos cortesões. Eu sou um escravo de estimação no fim das contas e mesmo quando não uso sedas e joias, creio que seja notória a minha casta de chão de bordel..."

Berenger sacudiu o rosto, tendo a sua atenção momentaneamente perdida no cenário trepidante da estrada.

"Você não é um escravo, Ancel..."

"O que eu sou então?" — inquiriu o jovem, descansando a mão em seu colo e tendo a sua voz saindo um pouco mais aguda do que desejava.

Lorde Berenger o fitou e os olhos verdes o encaravam do assento oposto.

"...Nós dormimos juntos; passeamos juntos e eu cuido de algumas coisas suas no palácio quando não acordo depois do meio-dia. Comemos juntos; dançamos e conversamos por horas. Você me conta dos seus planos e eu estudo. Ouvimos juntos música e você cede aos meus caprichos bobos. Você recita Iságoras para mim! O que somos afinal, Berenger? O que seremos sem um contrato?"

O escravo de estimação tinha os lábios e o queixo trêmulos. Berenger o fitava profundamente agora. Ancel prosseguiu:

"...Não quero ser o seu serviçal! Não quero que me mande embora quando enjoar de mim ou quando arrumar outra companhia. O contrato é a garantia de que você quer estar comigo, a garantia de que me quer! Mas sem ele, eu sou só um prostituto morando em sua casa e dependendo da sua caridade até você me passar adiante..."

Lorde Berenger sacudiu o rosto.

"Eu não quero que você seja o meu serviçal, Ancel. Só compartilhei com você algumas das estratégias do rei. Você não poderia sê-lo. Tampouco é um prostituto que vive comigo. Acha, de fato, que quero passá-lo adiante como se você fosse uma coisa da qual disponho? Eu achei que... Achei que... Eu o vejo como..."

"Você diz que me ama e isso não torna as coisas mais fáceis, Berenger!" — disse o rapaz— "Na primeira vez, achávamos que íamos morrer pelas mãos do Regente, mas você continua fazendo isso na cama. Você me toca de uma forma... É assim sempre com os seus amantes? Eu não posso ser um aristocrata sério, Berenger. Eu só posso ser... eu. Eu dormi com muitos homens por dinheiro. Muitos. Às vezes, com mais de um ou dois ao mesmo tempo. Fiz coisas que o fariam querer não olhar mais para mim. Coisas de que um homem bom como você teria vergonha!"

A voz de Ancel embargou e ele baixou o rosto, enxugando as faces com o pedaço de tecido que ele usaria no curativo de Berenger. Seus olhos estavam nervosos e o seu peito se movia, oscilante.

Lorde Berenger respirou profundamente e, após quase um minuto que concedeu a si mesmo, ele se sentou no assento acolchoado ao lado do escravo, tocando em suas mãos. Elas estavam geladas. Ancel moveu o seu rosto úmido em direção à janela.

"Olhe para mim." — disse lorde Berenger, fazendo com que o rapaz se voltasse— "Eu sei que, no passado, houve outros. Sei o que fazia em Sanpelier e com os mestres que vieram antes de mim. Não me importo com o passado, Ancel. Eu não digo que amo outras pessoas se isso o preocupa. Digo só para você. Fazia um bom tempo que não sentia nada parecido por ninguém até conhecer você. Sinceramente, achei que seria só eu e os meus sonhos para sempre."

"Você nunca me fala do seu passado! Você é tão sério e tão correto e tão íntegro!" — fungou Ancel.

Lorde Berenger sorriu.

"Acha isso? O passado não existe mais, mas se quer tanto saber sobre ele, houve somente duas pessoas antes de você, Ancel. O primeiro deles foi uma paixão fulminante de adolescência em Varenne. Era um cortesão jovem de Toutaine. Eu era completamente louco por ele. Tão louco que me perdi de mim mesmo. Eu me forcei a estar em lugares que não queria estar e conviver com pessoas que não queria conviver só para estar ao lado dele. Eu me doei inteiramente. Até que descobri que ele estava sendo cortejado ao mesmo tempo por um outro nobre. Não é nunca bonito ter um coração partido. Eu precisei me tornar recluso por muitos meses em minha propriedade e superar essa ferida. Eu disse para ele que o amava, mesmo quando estava sofrendo tanto. Sim, eu o amava naquela época. Mas ele passou. Não penso mais nele. E eu aprendi que só posso ser do jeito que eu sou. Não sei ser de outro jeito. Quando ele se foi, só havia eu mesmo lá. Foi importante aprender essa lição. Eu não podia ser outra pessoa, ainda que não fosse correspondido. Era uma barganha terrível de mim comigo mesmo aquele cortejo."

Ancel fungou, pensando num Berenger de dezesseis anos em Varenne entre livros, cavalos e um copo de cidra simples curando o seu coração perdido. A imagem encheu o coração de Ancel de ternura e ele imaginou que abraçaria o cortesão e cuidaria dele com carinho e zelo, convidando-o para tomar sol no jardim.

Lorde Berenger estendeu a mão e colocou uma mecha solta do rabo de cavalo de Ancel atrás da orelha.

"...Depois, houve um outro homem que foi apresentado a mim por amigos em comum. Ele lia livros; gostava de cavalos; gostava de uma vida mais discreta e apreciava as artes. Tínhamos ideais parecidos e conversávamos bem. Era um jovem rico de Belloy..."

Ancel pestanejou os seus olhos verdes, pensando que essa era a fiel descrição do principal rival que o escravo de estimação poderia ter assombrando os seus medos.

"Você deve tê-lo amado muito." — disse Ancel, sentindo ciúme.

Berenger sorriu:

"Por que tem tanta certeza disso? Nós nos cortejamos por alguns meses. Ele era uma boa companhia, mas eu apreciava mais a sua amizade. Não havia paixão da minha parte. Eu não o desejava. Mas eu fui covarde e deixei que a relação se estendesse por algum tempo. Ele fez planos grandiosos e eu estava no centro da maioria deles. Precisei tomar uma atitude e rompi a nossa ligação. Ele ficou muito desapontado comigo e eu sofri com isso. Me vi pela primeira vez na posição de alguém que magoa outra pessoa sem ter a intenção. Percebi, então, que o amor não é um cálculo simples. Não se pode criá-lo ou forçá-lo. Você sente paixão ou não sente."

Ancel se recordou da primeira vez que ele se apresentou à Berenger com sedas e pinturas e o cortesão o desprezou, indo para Ladehors.

"...Então, houve você quando eu não estava procurando por nada, além de um protocolo. Eu precisava frequentar a corte do Regente e um homem solteiro da minha idade precisava ter um escravo de estimação como acompanhante. Fui àquela festa odiosa indicada por Parsins para que encontrasse um jovem que buscasse uma vida confortável e entendesse o meu distanciamento e a minha crença sobre certas condutas. Daí eu vi você no jardim daquela casa em Sanpelier. Vi quando provocou aqueles homens, mas o vi pouco depois entre as flores, comendo frutas cristalizadas e sorrindo. Você parecia tão sonhador. Tão cheio de vida. Tão radiante. Nunca havia visto nada tão bonito antes. Eu fui inflamado por essa visão."

Ancel baixou o seu olhar, confuso por Berenger ter uma lembrança sua que ele mesmo não guardara. Com o que ele sonhava na ocasião? Com o luxo? Com a sua escalada? Com lorde Rouart? Ou ele não pensava em nada naquele instante e era só um jovem de vinte anos?

"...Eu vi você no ringue. Percebi o que estava tentando fazer para conseguir um lance. Vi como pisou em todos aqueles homens com a mesma coragem que o fez cuspir fogo em Chauvin. Eu dei o lance mais alto porque não podia deixar de levá-lo comigo."

Ancel sacudiu o rosto.

"Você não me quis na primeira noite, Berenger. E nem depois."

"Eu tinha uma esmeralda nas mãos. Não queria que se forçasse a dormir comigo, Ancel. Não queria pagá-lo para me suportar. Você é só um garoto e o meu jeito parecia irritá-lo bastante. Eu não podia tratá-lo como os aristocratas de ringue tratavam os escravos, mas você se esforçou me ajudando na corte e eu não teria conseguido agir naquele covil sem a sua ajuda."

Ancel fungou, dizendo:

"Achei por meses que me desprezava por eu ser um puto. Eu estava magoado com você, Berenger! Queria o maior lance de Arles para que notasse o quão bom eu era..."

"Não, Ancel, eu o observava de longe o tempo todo. Eu achava você inteligente, divertido e sincero. Via você conversando com outros cortesões e todos riam dos seus gracejos. Todos só tinham olhos pra você. Eu só tinha olhos pra você. Percebi quando lorde Droet me perguntou como você era na cama e me disse que daria um lance por você que eu estava em apuros porque morri de ciúmes. Quando você e Damianos de Akielos fizeram aquilo no caramanchão, percebi que estava me envolvendo demais porque meu coração doeu. E depois, quando fizemos amor pela primeira vez, Ancel, eu já estava completamente apaixonado por você. Você é diferente de tudo."

Ancel se recordou dos primeiros meses em que vivera na corte e de como se sentia especial por comungar do luxo, da riqueza e dos bons costumes da capital. Contudo, no dia seguinte, após dormir com Berenger pela primeira vez, ele engoliu em seco, percebendo que não era Arles que o fazia se sentir importante. Nunca fora a corte.

"Então, o que quer que eu seja?"

"Para mim, você é o meu companheiro. É assim que o vejo, Ancel. Vejo-o como meu companheiro. Meu amigo. Meu amor. Meu amante. Mas quero que se sinta livre para decidir ser também o que quiser ser..."

Ancel sentiu um calor e uma onda de júbilo em seu coração. As palmas das suas mãos estavam muito quentes. Um namorado. Ele nunca tivera um namorado. Era ridículo ele ter fodido com tantos homens e nunca ter namorado ninguém. Há pouco somente, ele descobrira a sensação de foder sem ser por dinheiro.

"Namorado...?"

Berenger sorriu, ruborizando e aquiescendo.

"Se você quiser e..."

"Eu quero ser o seu namorado!" — adiantou-se em dizer Ancel com um brilho em seus olhos e um sorriso genuíno.

Ancel se jogou em um abraço em Berenger, beijando-o na boca com um beijo rápido, antes de franzir o cenho e indagar:

"Mas que garantias há de que isso dará certo? Sem um contrato, como saberemos como será...?"

"Não saberemos, Ancel. Não há garantias para esse tipo de coisa. Mas eu prometo cuidar de você e, caso deixe de me amar algum dia, você é livre para partir. Não precisa se forçar a estar comigo, mas também nunca mais precisará voltar para um prostíbulo. Você é o meu amigo. Eu me importo com você, independentemente de qualquer coisa. Posso deixá-lo confortável e com a garantia de uma vida honesta. Podemos fazer um contrato para isso."

Ancel se sentiu tão empolgado e revitalizado com aquelas palavras que lorde Berenger precisou refreá-lo quando ele tentou subir sobre o cortesão.

Berenger, seu namorado, precisou lembrá-lo de que os dois estavam em uma carruagem em movimento na estrada e que ainda estavam fazendo os curativos dos ferimentos causados pelo assalto de Chauvin.

Ancel abriu, então, a janela de seu vagão, sentindo o vento em seu rosto matizado pelo sangue que subia em suas bochechas. Ele experimentou um calor envolver o seu corpo e um sentimento novo o tomá-lo quando fechou os olhos, apreciando o sol suave e a vida em proporções que não caberiam dentro de um homem.

Ancel sorriu e, assim como as letras expandiam a sua compreensão, o seu universo se expandiu um pouco mais, a fim de comportar a palavra nova repetida inúmeras vezes por lorde Berenger, por Laurent de Vere, pelo cortesões e pelos pensadores.

Ele sentiu o seu coração aquecido, pulsante e vivo. E sentiu como se afundasse nele.

Na estrada, Ancel podia ver o menino cuspidor de fogo; o prostituto de Sanpelier; o escravo de estimação; o homem que se descobriu homem na capital e o futuro veretiano livre entre tantos outros. Ele pode acenar para eles. E libertá-los também de si mesmo.

Quando chegaram em Barbin, o céu estava menos cinzento e, com o decorrer da noite, revelou-se salpicado de estrelas. A comitiva pernoitou em uma estalagem bem equipada e a manhã se apresentou com raios de sol vívidos atravessando feito lanças pontiagudas os farrapos de nuvem.

Ancel trajou as suas roupas de seda habituais e tinha uma tiara de esmeraldas sobre a cabeça, assim como braceletes, anéis e colares se emaranhando em voltas douradas. Ele esperava lorde Berenger do lado de fora, portando uma sombrinha rendada com fitas quando um dos hóspedes, sentado em um dos bancos da soleira, assobiou para ele, retirando o seu chapéu.

"Você é uma delícia, garoto bonito! Seria muito atrevimento da minha parte convidá-lo para tomar comigo uma taça de vinho em meu quarto?"

Ancel, com o rosto impassível, ergueu um pouco a sombrinha, olhando o homem e retrucando com uma expressão confiante:

"Sim. Seria muito atrevimento de sua parte, meu senhor. Sou um rapaz comprometido e estou esperando pelo meu namorado."

Era a terceira vez na manhã que Ancel fazia uso daquela nova denominação de lorde Berenger em sua vida. O desconhecido arqueou as sobrancelhas, olhando ao redor e indagando com incredulidade e algum desdém:

"Namorado? Quem é o seu namorado?"

Lorde Berenger deixava a estalagem, acompanhado de um dos soldados e tinha a jaqueta pendurada em seu braço. Ele não usava marrom naquele dia, mas um tom de verde escuro que combinava com as pedrarias de Ancel. Olhando a cena, o cortesão disse, dando o braço para o rapaz de cabelos flamejantes e recebendo um beijinho de Ancel em seus lábios. Desde o dia anterior, Ancel estava mais afetuoso e demostrando carinhos espontâneos e joviais a todo momento.

"Eu sou o namorado dele. Com licença, o senhor tem algo para me dizer?"

O homem espreitou o rosto sério de Berenger, o rapaz que fora confundido com um prostituto e o soldado de cara amarrada. Ele já ouvira falar de nobres que se divertiam, vestindo-se como escravos de estimação e viajando por Vere. Aquele rapaz belo revestido em ouro, seda, pedrarias e munido de uma sombrinha de renda, certamente, deveria se tratar desse caso.

"Queiram me desculpar." — disse o homem, levando o seu chapéu à cabeça e rumando para o interior da estalagem, um tanto atarantado.

A comitiva partiu, então, para a cidade, seguindo as coordenadas de um mensageiro real de Barbin que os alcançou na estrada.

Verona era um centro movimentado e conhecido pelo comércio alimentício e pela venda de móveis e de produtos forjados em metal. Havia também um núcleo que comercializava perfumes, pomadas, óleos e cremes de estética. Como em todas as cidades, havia também prostíbulos nas áreas mais lúgubres e soturnas do centro.

Não foi necessário que lorde Berenger e Ancel se disfarçassem de clientes dessa vez. Quando a carruagem conduzida por Jean chegou à casa em que os homens do rei já haviam identificado um ringue clandestino e invadido o local durante a madrugada, a região se encontrava isolada.

Soldados armados transitavam pela ruela, transportando homens presos e com o porte inconfundível da aristocracia. De um casarão com a frente discreta igual ao prostíbulo da rua das margaridas, via-se soldados veretianos entrando e saindo do local, dando ordens e arrastando pessoas. Alguns homens carregavam caixas e correntes. Outros, tinham cães sendo trazidos em correias, latindo nervosos.

Lorde Berenger e Ancel desceram da carruagem e observaram os dois lados da calçada de lajotas em que os soldados fizeram uma divisão clara. Do lado direito, estavam os nobres veretianos presos com expressões ultrajadas e vestindo roupas suntuosas. Entre eles, era possível se ver homens com roupas patranas, vaskianas e mesmo akielons.

Do lado esquerdo, havia escravos de estimação sentados no chão com os rostos baixos. Alguns estavam bem-vestidos com joias e cetins. Outros, encontravam-se seminus. Havia muitos com os membros machucados, a pele ferida e parecendo muito magros e abatidos com as costelas à mostra e os tornozelos finos.

Lorde Berenger se apresentou ao capitão da operação, tirando de dentro do seu bolso uma carta redigida pelo rei. O comandante leu o papel com o sinete da realeza de Vere e fez um movimento para um de seus soldados.

"Chegaram as pessoas pelas quais estávamos esperando. Acompanhe o cavalheiro para que inspecione os escravos."
Lorde Berenger e Ancel, sendo flanqueados pelos guardas, caminharam pela calçada, olhando homens e mulheres abatidos e com expressões assustadas. Havia muitos deles e eles pareciam temer o cortesão, mas, ao mesmo tempo, a presença de um Ancel vivaz e bem-vestido lhes trazia alguma tranquilidade intrigada.

Não precisou que Berenger e Ancel procurassem muito entre os corpos desnutridos pela pessoa que eles queriam encontrar. Sentado no chão e com os cotovelos apoiados nos joelhos, havia um jovem de cabelos negros como o azeviche, pele pálida e olhos violetas que se tornavam mais intensos pelas safiras que revestiam o seu pescoço.

O olhar de Toby deslizou de lorde Berenger para Ancel, como se ele oscilasse entre expectativa e tédio pela espera.

"Até que enfim." — falou o rapaz, colocando-se de pé e amarrando a sua capa sobre os ombros estreitos. Ele tinha uma bolsinha de tecido simples também.

Lorde Berenger fez um gesto para o soldado ao seu lado, reconhecendo o jovem como o mesmo do ringue de Arles que Laurent queria que eles buscassem. O escravo que conhecera Tharname em Belloy e tinha alguma informação importante sobre o Regente.

"Estarei em Barbin em quinze dias. Meu mestre vai visitar o ringue de Verona. O nome do meu mestre é Durand." — sussurrara Toby para Ancel no prostíbulo de Arles, antes de os dois performarem a ilusão de foda para saciarem uma plateia diante do ringue.

"É ele." — determinou Berenger, com assertividade.

Houve um momento em que o guarda trouxe Toby para a frente e todos os olhos se voltaram para ele. Havia um cortesão enviado pelo rei que estava procurando por um escravo específico num ringue desmantelado. Um escravo que esperava pelo seu salvamento como uma cortesã espera por sua charrete. Havia fúria declarada e enervada entre alguns dos prisioneiros. O escravo era o delator.

Toby olhou Ancel de cima a baixo, dizendo:

"Achei que Laurent de Vere viria me buscar pessoalmente. Por que tinha que ser você?"

Os dois jovens não se davam bem e a animosidade entre eles era mútua. Ancel fez um ruído de zombaria com os seus lábios crispados.

"Pfff, seu mal-agradecido de merda! O rei não viria para Barbin por você. Espero que a informação que tenha valha a pena. Se for um truque seu, vai pagar por deixar Laurent de Vere aborrecido e vai levar uns tapas meus por fazer eu e Berenger perdermos o nosso tempo."

O escravo de estimação sorriu, deslizando os dedos pelo cabelo brilhante.

"O que eu tenho é muito valioso. Tão valioso para o rei que ele adorará me ter por perto, depois de saber um pouco mais do que o tio dele era capaz."

Ancel ia responder algo, mas houve uma comoção entre os escravos de um rapaz com a pele morena que avançou do grupo, tendo os dentes brancos à mostra e uma expressão ultrajada. Ele usava roupas de cortesão e interrompeu a conversa, gritando para Ancel:

"Seu puto desgraçado! Você destruiu o ringue em que lorde Rouart investiu! Você ajudou a destruir mais um ringue! Onde está o meu mestre?"

Ancel soubera através de Berenger que o escravo de lorde Rouart chamado Kato trabalhava como uma espécie de contador no outro ringue. Ele devia ser bom com os números para ocupar uma função tão importante no prostíbulo. O rapaz havia sido responsável por delatar o grupo do rei disfarçado no ringue de Arles aos capangas que vigiavam o local.

Ancel se lembrava de não ver Kato entre os escravos resgatados pela equipe de Jord e dos soldados akielons. Agora, estava claro que ele fugira e viera atuar em Barbin, passando-se para outro mestre.

Ancel recuou, retrucando:

"Não sei de lorde Rouart."

"Você queria tomá-lo de mim! Você quer tomar tudo o que eu tenho!" — esbravejou o rapaz brunete, erguendo o seu punho no ar, que foi seguro por lorde Berenger.

"Não faça isso, rapaz! Não vou permitir que bata nele. Ringues são ilegais em Vere agora. Os aristocratas e responsáveis por isso terão que prestar contas à lei. Mas o rei compreende que os escravos não têm escolha e é generoso com eles. Você vai poder recomeçar em algum outro lugar!"

"Eu tinha um mestre para tomar conta de mim! Eu tinha um ofício!"

Lorde Berenger e Ancel trocaram um olhar. Não, o escravo não tinha um trabalho. Lorde Rouart, possivelmente, usava o conhecimento e a lealdade do jovem para investir em sua falcatrua. O rapaz estava vestido como cortesão para ajudar na escravidão de garotos e garotas que não sabiam contar. Ele empilhava moedas acumuladas com o sofrimento de seus iguais.

Berenger respirou fundo, mas o jovem se adiantou até ele, inquirindo com um tom desolado:

"...O senhor conhece o meu mestre? Esteve com lorde Rouart? Ele perguntou por mim?"

Lorde Berenger via a expectativa e a tensão no rosto bonito e jovem do rapaz.

"Perdoe-me, eu não sei dizer. Mas seja receptivo às pessoas que virão cuidar de você. Siga em frente, meu jovem. E não se associe mais com meliantes desse tipo. Use o que aprendeu com tudo isso para recomeçar."

Toby seguiu andando à frente do grupo e as suas roupas de cetim eram um tanto reveladoras com a capa tremulando atrás dele feito uma bandeira e a sua corrente de escravo com guizos sendo arrastada, sem comando, pelo chão. Ele tinha o rosto um tanto sombrio.

Ao passar pelo grupo dos aristocratas, o rapaz se deteve um instante ao ver os nobres deferindo palavrões e impropérios a seu respeito por se tornar muito claro quem os havia delatado.

Com uma postura raivosa, Toby se pôs a cuspir nos mestres e nos participantes do funcionamento do ringue, olhando-os com desgosto. O mestre de Toby, lord Durand, um homem na casa dos cinquenta anos, aproximou-se da corda que havia sido amarrada pelo soldado, isolando os nobres. Ele tinha a sua boca frouxa em surpresa e um ar de desapontamento:

"Toby, foi você...?! Por que fez isso?"

O escravo de estimação moveu os seus olhos violetas e retrucou, com raiva:

"Eu tinha no máximo mais seis meses de contrato! O senhor já estava de olho num garoto de Marches porque prefere ter os muito jovens. Ia me dispensar, sem piedade, após me colocar noites e noites para lutar no ringue e ser fodido por seus amigos e todos aqueles homens. Quando eu estava doente, cansado e com febre, o senhor me obrigou a chupar o seu pau e a ser montado por uma fila de homens mesmo assim. Achou mesmo que eu não ia tentar me livrar do senhor na primeira oportunidade...?"

Houve um silêncio pesado em que lorde Berenger sentiu a mão enluvada em seda de Ancel apertar um pouco mais o seu braço. Até mesmo o soldado olhava para o chão, desconcertado.

Durand franziu o cenho, contrariado.

"Eu fiz um contrato com a vagabunda da sua mãe, Toby! Deixei uma grande quantia de dinheiro com ela e é assim que me retribui, seu bostinha? Eu estava certo em querer passá-lo adiante. Eu ia vendê-lo para os ringues!"

Toby observava o mestre com um distanciamento frio.

"O senhor ameaçou a minha mãe e os meus irmãos com palavras difíceis, termos que eles não conheciam, usando a sua influência para intimidá-los e poder me comprar. O senhor me pegou à força nos vinhedos enquanto os seus capangas me seguravam. Acha que me esqueci daquele dia? Acha que não esperei pelo momento certo em que me agarraria a qualquer coisa que pudesse destruí-lo, Durand? Espero que apodreça na cadeia..."

"Seu puto barato e sem vergonha!"

Toby contraiu o rosto e deferiu uma cusparada no antigo mestre, acertando-lhe em cheio. O nobre levou a mão à face, enxugando com ódio a saliva que escorria por sua testa.

Não houve choro da parte do recém-liberto escravo de estimação. Somente mais algumas cusparadas deferidas contra a linha de nobres esperando na calçada.

Por fim, Toby desistiu, limpando a boca com o dorso da mão.

Talvez não houvesse saliva o suficiente. Era preciso tempo para que o seu rancor cicatrizasse.

Ancel não provocou mais o rapaz, e, quando Toby se pôs a caminhar até a carruagem, alguns escravos batiam com as suas correntes no chão, produzindo um alarido e saudando o rapaz. Alguns assoviavam. Outros, batiam os seus braceletes.

Uma revolução se içou. Talvez a liberdade fosse mesmo contagiosa. Toby não era um pensador ou um abolicionista. Ele era um escravo que se alimentara de esperança dentro de um fosso. Quantos não eram como ele?

Agora, ele era a própria esperança. E muitos também seriam como ele.

Jean serviu ao jovem um copo de refresco e um pedaço de queijo, dizendo:

"Coma um pouco, filho."

Na viagem de volta, o humor de Toby parecia haver melhorado um pouco. A estrada estava um pouco mais movimentada do que no dia anterior, com muitas carruagens rumando para o sul.

Toby, cruzando as pernas ao se acomodar no assento acolchoado à frente de Berenger e Ancel e saboreando a uva de um cacho, indagou com a boca cheia, fitando a paisagem com uma atenção juvenil:

"Então, como é a corte?"