EPISÓDIO 2
Há meses eles não dormiam assim.
"Você está crescendo tão depressa. Preciso prestar mais atenção." Sua respiração movimentava o corpinho de Ryuho, molinho sobre seu peito. O hálito fresco do garotinho aquecia seu pescoço. Com destreza, depositou-o na cama, o quarto iluminado apenas pelo móbile fosforescente do sistema solar. O filho demorou para dormir, querendo saber sobre a capital da distante Grécia e, o mais importante, porque não podia ver a mãe.
Shiryu entendia perfeitamente o receio de Shunrei, só que para Ryuho a mãe era uma heroína. Ele não entendia como ela poderia estar doente a ponto de precisar ficar longe dele.
Aguardou até que o filho se virasse para o outro lado, abraçando a estrela de pelúcia, para sair do quarto.
- Realmente, na medicina tradicional essas são utilizadas para tratar infecções no aparelho reprodutor feminino. – Shun concordava, a lista na mão e a cesta com vários frascos de ervas na sua frente na mesa da cozinha. – Essas aqui são para as vias respiratórias. E essas são para o sistema imunológico. – ele lia e separava os frascos por uso medicinal. – Que bom que a especialização que fiz está ajudando. – sorriu brevemente. - Enquanto não cessar uma das infecções, a situação se manterá. – ele conversava com Dohko, Seiya e Saori.
Shiryu respirou audivelmente, avisando de sua presença.
- Você também precisa descansar. – seu Mestre afirmou.
- Tomo um pouco desse chá e vou dormir. – instalou-se ao lado de Seiya. – Vocês podem continuar conversando. – Saori teve vontade de abraçá-lo. O rosto demonstrava que ele estava no limite da exaustão.
- Shiryu, amanhã iniciarão um tratamento integrativo com alguns profissionais da equipe de Shunrei. Soube que os pulmões estão reagindo bem à medicação. – ele assentiu. Passara o dia no hospital, chegando em casa no final da tarde. – Shun está vendo o que ela pode tomar sem entrar em conflito com a medicação e já providenciarei para começar amanhã também. – ele meneou a cabeça, agradecendo com a voz no modo automático que ela ainda não sabia ser seu escudo emocional.
- No caldo que enviei hoje, já coloquei um pouco de sálvia e algumas outras ervas. – Dohko comentou, atento ao discípulo.
Shun franziu os lábios, bebendo um pouco do chá.
- Shiryu, vou voltar para o Japão. Gostaria muito de ficar, mas Ikki e a família chegaram e June e as crianças precisam que eu esteja lá. – os expressivos olhos verdes expunham a divisão que ele sentia. Shiryu assentiu com a cabeça. – Shunrei está muito bem assistida e sei que logo se recuperará. Essas ervas vão ajudar a reestabelecer o organismo dela. Vou ensinar ao Mestre Dohko como prepará-las tanto para ela no hospital quanto para quando ela estiver aqui.
- Só tenho a agradecer, Shun. – a voz estava cansada, embora ele procurasse demonstrar sua gratidão pela disponibilidade e abnegação do amigo. - Você ficou aqui esse tempo todo, está na hora de ir para casa. Logo nós iremos visitá-los. Por favor, diga a Ikki que falarei com ele assim que a situação aqui se equilibrar. Vai junto com Aiolia? – Shun confirmou.
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
"Eu sou uma boba." Shunrei sabia que a autoestima de pacientes de cirurgias neurológicas podia ser abalada, mas o conhecimento não a livrou do problema. Aiolia comprara duas toucas azuis e brancas para ela e tentara animá-la usando uma também durante a viagem. Bastava alguém a olhar para ela inferir os sentimentos de pena e pesar. "Não querer ver seu filho, Shunrei... Você não era covarde assim."
Observava os cabelos lustrosos de Marin, a acompanhante daquela noite, e seu olhar devia ser de avidez porque a ruiva riu, terminando de ajudá-la a tomar o caldo enviado por Dohko.
- Cabelos crescem e os filhos também, mas você só consegue reparar um dos dois acontecimentos. – os olhos de águia viram suas microexpressões. – Deixe-os vir, Dohko e Ryuho. Você já está mais corada, ele não vai se assustar. – Shunrei assentiu.
- Desculpe ter pedido para você ficar enquanto Aiolia volta para casa... – ela recostou nos travesseiros, tentando manter a comida no estômago. – Eu não sabia que ele iria agora.
- Tudo bem. – Marin retirou a mesa-suporte, sentando-se na cadeira ao lado da cama. – Ele é o mais indicado para lidar com nosso filho rebelde. Além disso, precisa descansar. Ele esteve numa maratona: Tóquio, Moscou, Seul, Atenas e Seul novamente. – Shunrei franziu os lábios, pensando que metade desse percurso fora por ela. – O Santuário vai recarregar as energias dele. – Marin piscou.
- Vocês me falam desse lugar e parece maravilhoso. – a chinesa gostava de ouvir as histórias da propriedade onde Shiryu crescera.
- Já te disse que você seria uma Amazona e tanto! – a ruiva comentou, tentando animá-la. – Além disso, precisa conhecer o restante da família. – Shunrei aproveitou a menção.
- Marin, você o conhece desde criança. – pedira que ela dormisse na sua segunda noite no Hospital Graad para que Shiryu descansasse e ficasse com o filho e também porque estava aflita com o que poderia ser forçada a fazer. – Sabe qual o pensamento dele sobre... sobre casamento, família, filhos? É muito provável que eu não consiga mais engravidar, mesmo se a infecção for curada e... – ela suspirou, fechando os olhos para diminuir a dor por exigir demais dos pulmões machucados.
A Amazona mordeu os lábios.
- Shunrei, eu imagino onde os seus pensamentos estão tentando te levar. – inclinou-se para a cabeceira. – Não os siga. Eles estão te impedindo de ver a verdade. – os olhos azuis se arregalaram. – Foi, sim, Shiryu quem inventou essa história de zodíaco querendo, inconscientemente, um laço mais forte do que a amizade. Foi o primeiro a se referir a nós como uma família. – Marin sorriu, lembrando como o pequeno Shiryu tentava parecer tão adulto, jovem demais para perceber que seu mantra de querer ser forte não escondia o trauma de ter sido abandonado. - Durante algum tempo eu tripudiava dizendo que não tinha filho daquele tamanho, até que percebi como isso é importante para ele, mas não do jeito que sua mente está vendo.
- Eu estive pensando em como ele se casou e teve Ryuho rapidamente. – Marin assentiu, seus olhos não deixando de encará-la. – Sei que ele não vai querer me pressionar, porém preciso saber como lidar se realmente não puder ter filhos. – a voz de Shunrei falhou.
- Não faça isso consigo mesma! – o tom de Marin era duro. – Tome as suas decisões quando elas tiverem que ser tomadas e não fique sonhando sobre o que poderia ter sido. Você é uma mulher adulta, não uma adolescente que fica fantasiando a vida! – suspirou, amenizando um pouco o tom. – Nós somos sua família também. Você conquistou seu lugar e nós vamos apoiá-la, qualquer que seja a circunstância. Tenho certeza absoluta de que Shiryu pensa o mesmo. Você percebeu qual é o conceito de família dele? Não tem nada a ver com sangue. – um brilho frio passou pelos olhos de Marin. – Pensei que isso era bastante evidente, mas vou dar um desconto porque você bateu a cabeça. – Shunrei sorriu.
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
# Shunrei 'Lúshān huā' Nishi: Olá, Mestre Dohko. Já estão dormindo?... Como Shiryu está?
Ele se alegrou ao ver a tela acesa no quarto escuro. A claridade iluminou as aquarelas com cachoeiras e cerejeiras e os móveis em estilo chinês que faziam o cômodo tão aconchegante.
"Ela gosta de fazer essas coisas." Começava a entender o que Shiryu quisera dizer com a declaração. "Gosta de cuidar e acolher."
# 'Dàshī' Dohko Jiang: Acredito que eu seja o último acordado. Shun, Seiya e a srta. Saori estiveram aqui até agora a pouco. Shiryu dormiu bem cedo. Fiz como combinamos e deu certo, Shunrei. (emoji sorrindo) E você, o que está fazendo acordada? Marin está aí?
A mente de Dohko, naturalmente ágil e estratégica, gostava da forma de pensar de Shunrei.
"Ela realmente conviveu com o Mestre Ancião."
# Shunrei 'Lúshān huā' Nishi: Ela está dormindo depois de me dar uma bronca. (emoji envergonhado) Que bom que você conseguiu fazê-lo beber o calmante! Ele nunca recusa chá de lírio. Se não fizéssemos assim, ele não descansaria. Tenho mais um pedido: venham me visitar amanhã, você e Ryuho, depois da aula. Amanhã cumprirei um protocolo durante todo o dia e no final da tarde devo estar mais disposta.
"O Mestre ficaria orgulhoso de você, garota." Ela não apenas acabava de vez com a bobagem de se esconder como sutilmente garantia que Shiryu tivesse companhia para casa. "Marin, te devo uma." Digitou a resposta satisfeito.
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
Os quatro caminhavam nos primeiros raios da manhã, descendo o morro calmamente. Chovera na noite anterior e o ar estava agradável, cheiroso e fresco.
June vestia uma malha de ginástica por baixo do casaco comprido, os longos cabelos loiros numa trança frouxa caindo às costas. Yuki e Yuuto levavam as mochilas, os uniformes impecáveis. Yorie caminhava ao lado da mãe, na rotina diária de levar os irmãos antes de irem ao Santuário.
- Hoje vocês voltam sozinhos, estão lembrados? – ela perguntou, ao avistarem a escola. Os dois confirmaram. – Yuuto, obedeça a sua irmã e não demorem.
- Mamãe, o Souma e o Éden não vem para a escola? – Yuuto perguntou, estranhando os primos não frequentarem desde que retornaram ao Japão. June mordeu os lábios antes de responder.
- Logo eles virão, filho. O tio Ikki e as tias vão matriculá-los no próximo período.
- Yuuto, o Souma vai estudar na sua sala. – Yuki deduziu, pois os dois eram da mesma idade. O irmão abriu um sorriso.
- Vai ser legal. – o garotinho endireitou a alça nos ombros, virando-se para a mãe quando pararam no portão gradeado. A adulta se ajoelhou, ajeitando a gravatinha do filho e o casaco da filha.
- Espero que o dia de vocês seja proveitoso. – June se espantava como eles estavam mudando rapidamente. Cada dia parecia que seus rostos de criança se transformavam, os detalhes infantis desaparecendo aos poucos. - Se comportem, viu?
Os dois a beijaram e entraram.
Assim que as duas viraram na rua de casa e do Santuário, viram Shun descendo do táxi com as duas malas grandes. Yorie deu um grito e correu para ele. O pai levantou-a bem alto antes dos bracinhos apertarem seu pescoço com força.
- Mamãe, o papai chegou! – a garotinha exclamou. June chegou perto dos dois e entrou no abraço que Shun abriu para ela.
- Pensei que você só viesse amanhã. – ela também o apertou, o coração disparado com a visão do marido.
- Quis fazer uma surpresa para vocês. – Shun comentou, animado com a recepção. – Vamos entrar?
- Teu irmão vai levar um susto! – June comentou, os olhos cinzentos faiscando de contentamento. – Vamos preparar um bom café da manhã!
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
Quando o dr. Heo Im chegou, com sua animação costumeira, as duas o aguardavam. Ainda não amanhecera, mas o céu já estava claro.
- Bom dia! Gosto quando a paciente se arruma para o médico. Significa que está pronta para a cura. – cumprimentou-as com uma reverência. - É aqui que vamos expelir duas inflamações na unha? – vestia-se todo de branco, trazendo nas mãos a cesta com as ervas.
- Pontual como sempre, doutor. – Shunrei sorriu. Gostava muito dele e sua leveza no tratamento com os pacientes.
- Como passaram a noite?
- Ela acordou algumas vezes com dor e precisamos colocar compressas quentes no abdômen. – Marin respondeu. – Depois que ela tomou o caldo, as dores diminuíram, mesmo assim tivemos que trocar as compressas continuamente para manter a região aquecida.
- As ervas estão preparadas: emplastros e chás. Pode levar para a srta. Moon Cha Young, por favor? Estão com as anotações do dr. Amamiya. – pediu a Marin, entregando a cesta. – Ela vai nos ajudar aqui hoje... Como você está? – pousou a mão na cabeça de Shunrei, assim que a acompanhante saiu. – O diagnóstico eu li no prontuário. Quero saber o que está sentindo. - a paciente suspirou e descreveu os sintomas.
Enquanto conversavam, o acupunturista desceu a cabeceira e retirou o cobertor, examinando e apertando, perguntando onde doía. Por fim, decidiu como seria o tratamento, tirou o estojo de agulhas do bolso e começou a aplicar.
- Vou punturar para ajudar a diminuir a dor e melhorar a cicatrização. – ele explicou. – Também para estimular o sono e diminuir a ansiedade. Vai amenizar bastante essa dor nos braços e nas mãos e também a resposta do organismo ao tratamento. Atuando no baço, vamos conseguir distribuir o sangue de forma que você vai sentir a mente mais clara e as energias voltando. – com as agulhas nos pontos, colocou o quarto na penumbra e a deixou relaxar por uma hora.
Shunrei faria esse tratamento mesmo após voltar para casa, pois a ajudaria a recuperar o movimento dos membros imobilizados e a combater as dores e inchaços, contribuindo para aumentar seu bem-estar e deixá-la confortável enquanto se recuperava.
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
O suor pingava dos cachos loiros-escuros. Desde antes do amanhecer ele se exercitava, aproveitando para treinar sem camisa. Queria moldar seu corpo para realmente fazer jus ao comentário de que era uma cópia do Leão. Terminara a última série de alongamentos e estava relembrando as séries dos lutadores que vira ontem quando a porta se abriu.
- Papai! – Régulus exclamou, vendo Aiolia pelo espelho da sala de treinamento. Correu para abraçá-lo.
- Passei em casa e sua irmã me disse que você estaria aqui. – há meses os dois não se viam pessoalmente. Apesar de se falarem todos os dias, nada substituía a presença, ainda mais na fase atual do adolescente. Aiolia e Marin concordaram que ele deveria ficar mais tempo em casa.
- A mamãe veio com você? – Régulus vestiu a camiseta e calçou o sapato para os dois caminharem pelo corredor iluminado pelas grandes janelas.
- Ela vai ficar alguns dias em Gangseo-gu. – o pai admirou como o garoto crescera. A cabeça já alcançava seu queixo. – Como você ficou aqui no Santuário?
- Chegaram muitas pessoas novas. – os olhos verdes, tão parecidos com os seus próprios, se apertaram num sorriso largo. – Precisa vê-los lutar, pai! – Aiolia ergueu uma sobrancelha, lembrando-se de Shion e Camus comentando que o filho era um prodígio.
- Você já deve ter memorizado todas as técnicas deles. – o garoto sorriu, travesso.
- Algumas.
Aiolia via o prazer que ele sentia com o ambiente das lutas, totalmente à vontade, desafiando até lutadores mais experientes. Ao mesmo tempo que compreendia a atração e a paixão por esse universo, não queria que o filho virasse as costas para o mundo fora dos dojos. Escolheu sua voz grave e afirmativa.
- Régulus, antes de qualquer coisa, precisamos conversar. – Aiolia assistiu o rosto do filho desanimar. Teve vontade de rir do quanto o garoto, com seus 15 anos, era transparente contudo, sustentou a expressão séria de pai. – Aulas, estudos, escola... Tome um banho e me encontre no jardim, ok?
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
As crianças maiores terminavam de organizar as tigelas do café da manhã na abertura entre a cozinha e o refeitório iluminado pelas janelas largas. Eram apenas 23 as que se alimentavam nesse primeiro turno, vestidas com seus uniformes escolares.
- Não demorem a escovar os dentes. – a voz suave da mulher os guiava para não perderem a hora. - O sr. Tachibana já ligou o motor. – os curtos cabelos pretos eram presos em duas maria-chiquinhas, o prático penteado que ela aprendera ainda na infância. O avental azul-claro protegia o vestido laranja simples. Acompanhou as crianças até o pátio, conferindo se todas embarcavam no ônibus antigo.
- Senhorita Miho. – ela se virou para a voz que a chamou enquanto o veículo manobrava para sair.
- Éden! – ela se espantou, indo ao encontro do garoto aguardando no portão do orfanato. – O que você está fazendo aí? – olhou ao redor, procurando possíveis acompanhantes, franzindo levemente o cenho ao constatar que ele estava sozinho. - Venha, sua mãe está no escritório.
Ele trazia apenas uma mochila pequena, as costas eretas e a expressão séria de sempre. Miho passou o braço por seus ombros e o acompanhou. O menino se encolheu com o toque, como ela esperava, relaxando à medida que caminhavam pelo corredor. Não fez outras perguntas.
- Seika, olha quem eu encontrei tentando invadir. – comentou ao abrir a porta.
A ruiva ergueu os olhos castanho-claros do relatório que estava escrevendo e seu rosto se abriu de alegria. Apertou o filho num abraço, beijando o alto dos cabelos azuis. Fazia seis meses que não o via.
- Quem trouxe você, Éden? – ela inquiriu Miho com o olhar e a amiga negou com a cabeça. – Você veio sozinho de Kamakura até aqui? – se ajoelhou para ver o rosto do menino. Éden deu de ombros.
- Eu sei o caminho. – havia um desafio no seu tom. – Eles demoraram a me trazer e eu queria ver você. – Seika apertou os lábios e suspirou.
- Falei com seu pai ontem e ele me disse que vocês viriam amanhã. – ela acariciou o rosto do filho, vendo Miho saindo e fechando a porta. – Como foi no México?
O menino desvencilhou-se, colocando a mochila na cadeira.
- Foi legal. – ela ergueu as sobrancelhas.
- Você teve problemas com o Souma?
- Ele é legal. – ela continuou com as sobrancelhas erguidas.
- Então, por que a pressa em vir? – ele mordeu os lábios e olhou para baixo, as mãos enfiadas nos bolsos da calça jeans. Seika via uma versão miniatura de Ikki.
- Vim para ver você. Quero ficar aqui. Não quero mais morar com meu pai. – ele disse tudo baixo e rápido e ela adivinhou mais do que entendeu os resmungos.
- Mesmo assim, filho, você não dev... – uma batida na porta a interrompeu. Assim que permitiu a entrada, o pai de Éden entrou.
Seika levantou-se para recebê-lo.
- Se estava com tanta vontade assim de vir, era só ter pedido, Éden. – o adulto observou o olhar desafiante do garoto. – Ficamos muito preocupados com você. – a voz dele estava controlada.
- Eu pedi e você não me ouviu, então eu vim. – Ikki suspirou.
O menino estava com problemas com a vida que seus pais levavam e o arranjo para ele passar os seis meses com o pai no México pareceu piorar a situação. Os dois tinham personalidades muito semelhantes e entraram em choque tantas vezes que a única solução de Ikki e Esmeralda foi retornar para o Japão.
- Tudo bem, meu filho. – Ikki disse, a voz baixa e os gestos comedidos. – Você chegou são e salvo, mas preciso que você entenda que não pode andar sozinho em ônibus e trens. É perigoso. Além disso, eu disse que o traria amanhã. Hoje eu tinha compromissos.
- Eu sei me virar. – o menino retrucou e Seika perdeu a paciência.
- Éden, pare já com isso. Você sabe que o que fez foi errado. Se você queria vir, poderia ter me ligado, poderia ter pedido a qualquer adulto do Santuário para trazê-lo. – a voz dela era dura. – Peça desculpas ao seu pai. – os olhos castanhos estavam severos.
A contragosto, o menino fez uma reverência para o pai e rosnou um pedido de desculpas. A mãe o despachou, dizendo para pedir café da manhã a Miho.
- Agora nós, Ikki Amamiya. – ela taxou, quando a porta se fechou. – Você não estava prestando atenção no garoto?
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
Shiryu aproximou o rosto, atento ao menor sinal de desconforto. Ela não se afastou quando os lábios acariciaram os seus. Se segurou para não a arrebatar, apoiando o rosto dela com uma das mãos, posicionando a outra na curva da cintura. Um beijo de reconhecimento e carinho, as bocas reencontrando sua cadência, os sabores cálidos e doces se misturando. Ouviu a respiração acelerada de Shunrei e diminuiu o contato. Usou a ponta do nariz para acariciar as faces dela.
- Eu queria fazer isso desde Atenas. – sussurrou. – Cedo demais? – ela negou, recostando-se nos travesseiros.
- Tem minha permissão para fazer sempre. – ele emitiu um meio sorriso, preocupado por ela demorar tanto a se recuperar. – Acupuntura e as ervas de Dohko aliviaram um pouco a dor. – Shiryu assentiu.
Os doutores Lee Kang e Heo Im tinham acabado de sair após explicarem como seria o dia.
- Vocês têm certeza de que não querem que eu fique? – Marin saiu do banheiro, deixando os absorventes e emplastros organizados. Shiryu enrubesceu e afastou o rosto, vendo a sombra do sorriso da amiga. – Vai ser agitado.
- É melhor você descansar. – ele afirmou. – Ela é leve, consigo erguê-la sem problema. – riu, levando um tapa no braço. – Muito obrigado, Marin.
Os procedimentos eram exaustivos e Shunrei agradeceu por Shiryu ter um corpo tão resistente. O sangue estagnado no útero desceu com a ação da medicação, dos emplastros, dos chás e da acupuntura. Ela precisava ser carregada para expelir os coágulos e se limpar. Fez inalações para tratar as contusões nos pulmões. O braço esquerdo imobilizado dificultava o manejo da paciente. Ainda assim, Shunrei insistia em se movimentar o máximo que conseguia.
"Não sei porque estava com tanto receio dele ficar." Ela pensava enquanto Shiryu aguardava na porta do banheiro para levá-la para o leito. Sentia seu organismo ser purificado pouco a pouco. "Ele não tem medo de sangue."
Moon Cha Young vinha aplicar as medicações e checar os sinais vitais. Na hora do almoço, informou que a temperatura estava normalizando e os horários dos exames para acompanhar a evolução do quadro.
- É bom quando o organismo reage bem ao tratamento. – o rosto da chefe da enfermagem ficava cada vez menos anuviado. - Se continuar assim, amanhã as inflamações estarão praticamente extintas.
- Descanse um pouco. – Shunrei recomendou ao ser levada para a tomografia e os demais exames, no meio da tarde. – Você deve estar cansado de me carregar.
Shiryu esperou-a sair para fechar um pouco os olhos que ardiam há dias pela falta de descanso. Sua parte racional lhe dizia que ela já estava fora de perigo e que precisava se concentrar na recuperação. O lado intuitivo percebia que ela se sentia incomodada com a presença dele e conseguia imaginar o que fosse. Colocou a cadeira na faixa de sol que entrava pela janela, esquentando o corpo enrijecido.
A noiva voltou e ele ajudou-a a deitar, cobrindo-a e trazendo a cadeira para perto da cabeceira.
"O rosto está mais corado." Os olhos verdes a observavam atentamente. Shiryu sentia o peso em seu coração sumir ao acompanhar a recuperação dela. "Será que já é seguro?" Escolheu seu tom mais suave e engoliu em seco. Puxou a cadeira para bem perto e apertou os dedos finos e delicados da médica.
- Está tudo bem? – Shunrei piscou várias vezes. Respirou fundo até onde aguentou, abrindo a boca para aliviar a pressão no peito enfaixado. Balançou a cabeça, os olhos vermelhos.
– Eu só soube quando cheguei em Atenas. – ele finalmente via a dor tremular no fundo dos olhos azuis que nadavam em água salgada. – Enjoei no avião e fiz o teste de farmácia... Pensei que o fluxo diminuíra por causa do excesso de trabalho... Não seria a primeira vez... – não conseguiu continuar. Shiryu a deixou chorar. Queria abraçá-la, mas sabia que ela precisava ver seu rosto. – Fiquei tão feliz e nervosa... E agora se foi... Não sei se vou conseguir gerar outro filho... – expor em palavras o que a afligia fez a represa de emoções estourar.
- Você é tão forte, meu amor. – ele murmurou, sabendo que o tom era o importante naquele momento. Beijou e segurou a mão entre as suas. – Você está lutando bravamente e vou ficar com você. Não se preocupe com nada. – o corpo dela todo tremia com os soluços e Shiryu continuou murmurando palavras de carinho, suas mãos tocando-a com suavidade. – Você é a mulher que eu quero comigo e é perfeita para mim. – evitaria a todo custo que ela guardasse aquelas emoções sombrias dentro de si. Ao conseguir respirar de novo, Shunrei levantou a cabeça.
- Hoje de manhã, eu tentei escrever a indicação do dr. Heo Im e não consegui. – mostrou a mão direita trêmula quando assumiu a posição de escrita. – Durante todo o dia, foi difícil... Minha mão não me obedece, mesmo após 15 dias da cirurgia. - Havia desamparo misturado à dor no olhar dela agora. A garganta ardia. – Não vou mais conseguir fazer cirurgias.
Ele não sabia o que dizer e ela abaixou os olhos, as lágrimas molhando a mão rebelde em seu colo. As entranhas de Shiryu reviraram vendo o sofrimento que ele não podia fazer sumir, mas não permitiria que ela fosse para dentro da escuridão.
- Nós vamos passar por isso juntos. – afirmou, segurando a mão úmida e fazendo-a buscar seu rosto. – Venha o que vier, seja o que for, nós daremos um jeito. – procurou transmitir toda a confiança que não sabia que sentia. – Vou estar com você em cada passo da sua recuperação.
Shunrei soluçou e foi se acalmando com as palavras e o calor que sentia vindo do noivo. Recostou-se no travesseiro, um cansaço surgindo de repente. Pediu novamente que ele descansasse antes de fechar os olhos e se render a um sono sem sonhos.
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
Hyoga pedira indicações do endereço que a garotinha lhe dera, não esperando que fosse tão íngreme. Resolveram ir à tarde, antes de visitar Shunrei, e o sol forte tornava a subida mais difícil.
- Vamos parar um pouco. – Eiri ofegou, sentando-se em alguns degraus numa das esquinas das ruas estreitas demais para automóveis.
- Aparentemente não estamos longe. – ele informou, conferindo novamente o mapa e o endereço. Ofereceu a garrafa d'água e esperou a vermelhidão das faces dela diminuir para continuarem.
Era uma casa simples e várias crianças brincavam na área interna. Eles abriram o portão e procuraram a diretora.
- A situação dela não é fácil. – a mulher comentou, lendo a ficha com o histórico da menina que chegara ao abrigo há 4 anos. – Pais desaparecidos. Ela chegou trazida por uma pessoa na rua e desde então tentamos encontrá-los, sem sucesso. Pelas roupas, a aparência e a língua que ela falava, presumimos que sejam russos ou, no mínimo, eslavos.
- Foi o que imaginei. – Hyoga assentiu. Ele próprio tendo crescido na Rússia identificou na hora o acento linguístico. Eiri franziu o cenho.
- E ela tem o hábito de fugir? – perguntou em grego e o marido traduziu o melhor que pôde. A diretora fechou o semblante.
- Completamente indisciplinada! Sempre temos queixas dela! – os dois piscaram várias vezes, encostando-se na cadeira ante a ferocidade das palavras. – Tentamos colocar ordem na cabeça da garota e ela agradece nossos esforços nos envergonhando! Do jeito que age, nunca conseguiremos um lugar para ela viver. E não obedece! Pula o muro, apronta das suas e volta pensando que é uma heroína! É um mau exemplo para as outras crianças e mancha o nome da nossa instituição! – mostrou os diversos formulários com infrações de Yuna.
Eiri olhou para Hyoga, que não parecia impressionado com os papéis ou a reação da diretora. Traduziu calmamente o que a diretora disse e não esperou a resposta da esposa antes de dizer que queriam vê-la mesmo assim. A diretora pareceu perceber que tinha exagerado. Respirou fundo e pediu à secretária que buscasse a menina.
Yuna chegou com o olhar desafiador, pronta para enfrentar a diretora. Sua expressão mudou completamente ao ver quem estava ali. Sua boca abriu de espanto e ela prendeu a respiração. Eiri acenou discretamente para ela, sorrindo. Hyoga a chamou e começou a conversar em russo.
- Yuna, nós viemos como eu prometi. – ela piscou várias vezes, olhando os adultos sem entender. Ele repetiu pausadamente. – Consegue se lembrar? - a garotinha desviou os olhinhos verdes-claros e mordeu os lábios. Lentamente, confirmou com a cabeça. – Ótimo. A diretora disse que você tem o hábito de fugir. Por que faz isso? – Yuna afastou-se dele como se quisesse fugir dali. Não entendia o que estava acontecendo.
- Pelo jeito que você estava segurando aqueles bolinhos, não era só para você, não é mesmo? – Eiri disse num russo hesitante. – Não precisa ter medo.
- Quando tem crianças doentes ou tristes. – ela balbuciou, apertando com força os lábios e as mãozinhas. – E quando me castigam. – Eiri viu um dos pés passar por trás da perna. Já vira cenas nos doramas nas quais a criança apanhava na canela, onde as marcas são fáceis de esconder com roupas compridas.
Como advogada de família, ela estava habituada a conversar com crianças em situações em que se sentiam ameaçadas. Conversara com Hyoga longamente sobre o que poderiam encontrar ao procurar pela garotinha que os intrigara e uma das hipóteses se concretizara. Os dois ficaram impressionados por uma criança claramente estrangeira estar vagando pelas ruas, por isso voltaram outras vezes à confeitaria, até que ela confiasse neles o suficiente para lhes contar onde morava. Se surpreenderam ao saber que era um abrigo privado oficial e decidiram agir.
- Yuna, você sabe que eu não sou de rodeios. – Hyoga declarou após uma rápida confirmação visual com Eiri. – Viemos aqui com a intenção de levar você conosco. – a menina de sete anos abriu a boca, prendendo a respiração. – Não será imediatamente, mas se você aceitar, podemos vir vê-la e você pode nos visitar até que esteja segura para ficar conosco. Você gostaria de tentar?
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
- Parece que o tratamento intensivo deu resultado. – o dr. Lee Kang veio pessoalmente ver o resultado dos exames e estava pressionando seu abdômen, fazendo movimentos circulares para sentir o ventre. – A inflamação diminuiu consideravelmente. – ele sorriu, deixando. – Está sentindo algum incômodo? – ela negou.
- Se continuarmos mais essa semana, pode ser o suficiente, não é senhor diretor-presidente? – a expressão de Shunrei relaxara após ver os exames e conversar com seus colegas especialistas.
- Sabia que esse protocolo foi inventado especialmente para você? – ele continuou o exame pelas pernas, passando pelo dreno no tórax, a clavícula e o curativo da cirurgia na cabeça, finalizando nos olhos e língua. Pediu que Shiryu a ajudasse a virar de lado para apalpar a coluna e a região dos rins. – Se realmente der certo, será um belo estudo de caso. Vamos acompanhar como o organismo vai reagir. Consegue continuar com o esforço durante a noite? – ela confirmou.
- Estou sentindo a mente mais clara. Apesar do cansaço, sinto minha energia voltar. – Shunrei observou pelo canto do olho o noivo suspirar e o vinco na testa dele suavizar.
- Muito bem, então. O dr. Heo Im volta pela manhã e repetiremos a mesma rotina. – observou o acompanhante por cima dos óculos redondos. – Quem vai ficar com ela hoje à noite?
- Uma amiga. – Shiryu respondeu, adivinhando que o médico recomendaria mesmo uma troca de turno.
- Ótimo. Vou passar as orientações para a enfermagem e depois eles explicarão a ela. – o dr. Lee Kang se despediu e Shunrei viu que a postura dele também mudou, indicando que estava satisfeito com o dia.
- Obrigado, doutor. – eles ouviram a conhecida voz de Dohko, entrando pela porta aberta pelo médico, carregando algumas sacolas de comida, roupas limpas e trazendo pela mão um garotinho ansioso.
Os olhinhos azuis de Ryuho estavam enormes, dardejando para todos os lados. Trajava o uniforme escolar, a mochila às costas. Entrou rápido no quarto, parando ao ver os pais.
Shunrei se preparara, colocando uma das toucas e passando uma leve maquiagem para não parecer tão pálida para o filho. Sua insegurança se insinuou quando viu a expressão de espanto dele, parando de chofre. Seus músculos tremeram ao tentar sorrir.
- Finalmente chegaram! – Shiryu exclamou, indo até os dois. – Trouxeram sopa? – Dohko entregou as sacolas com a garrafa térmica e alguns potes para o lanche e o jantar. – E você, Ryuho? Não estava com saudades da mamãe? – o tom casual escondia a preocupação com a reação do garotinho.
- Vamos lá. – o Mestre tocou seu ombro, fazendo-o caminhar lentamente até o leito.
Ryuho hesitou em tocar na mão que ela estendeu, procurando a aquiescência do pai. Shiryu viu a garganta dela se mover e iria interferir, mas Dohko o segurou.
- Estava com muita saudade de você, meu pequenininho. – a voz embargada o fez olhar para a mão que apertava a sua e de volta para o rosto da mãe. – Desculpe ter demorado tanto.
O garotinho começou a acariciar a lateral da perna que conseguia alcançar, mas recolheu a mãozinha, assustado quando viu as lágrimas no rosto dela. Se afastou da cama. Shunrei balançou a cabeça e estendeu o braço para ele. Ryuho olhou novamente para os dois homens. Shiryu o ergueu para sentá-lo na cama.
- Você está com medo da mamãe? – ele negou.
- Mamãe Shunrei está doente. – afirmou, tentando não encostar nela. – Precisa descansar. – ela sorriu, finalmente entendendo.
- Tudo bem, pequenino. Não estou sentindo dor. – notou o olhar dele para a touca e o braço imobilizado. – Posso te dar um abraço? – Ryuho mordeu os lábios e assentiu, envolvendo o pescoço dela com os bracinhos finos.
Shiryu os ajudou a se acomodarem de modo que o garotinho não pressionasse demais o corpo de Shunrei.
- Não precisa chorar, mamãe. O papai, o Mestre e eu vamos cuidar de você até você ficar boa de novo. – a vozinha afirmou, os dedinhos enxugando as bochechas dela, fazendo-a sorrir.
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
Aiolia espalhara os papéis pela metade da mesa, verificando as contas da família e lançando gastos e créditos na planilha do notebook. Mas apenas metade de sua atenção estava nas finanças. Suas três crianças encontraram desculpas para ficar ali por perto e ele estava apreciando sua pequena alcatéia.
Pavlin lia com as pernas cruzadas no chão da sala, a postura ereta e concentrada. Brincava sem perceber com a gargantilha com uma águia com as asas abertas que pegara emprestada da mãe. Chegara da faculdade no final da tarde, ajudando-o com o jantar. Ela falara com entusiasmo de seu projeto de formatura, focado na projeção da personalidade do lutador em seus golpes característicos. Ele se surpreendera como ela conseguira unir suas duas paixões – psicologia e artes marciais.
- Eu pretendo chegar às nossas constelações. – ela afirmara, rindo enquanto cortava os tomates e os pepinos para fazer a salada com o queijo feta trazido pelo pai. – Só não sei se terei coragem de me autoanalisar.
- Você escolheu a sua, então? – Aiolia grelhava os peixes frescos inteiros, regando-os com azeite e limão. Fazia questão que os filhos conhecessem os sabores gregos e trouxera uma caixa de produtos genuínos para usar com os frutos do mar japoneses.
- Eu também escolhi a minha. – Yuzuriha, que viera cortar o tijolo de baklava em pedaços servíveis, comentara. – Comunicamos à Mestra Shaina e ao sr. Shion quando chegamos. – o pai sorriu internamente, mantendo a face neutra diante da informação.
- Assim que todos voltarem da Coréia, faremos a cerimônia. – ele dissera, sabendo da ansiedade delas. Haviam treinado nos últimos dois anos em cada momento livre, aguentando resilientes as exigências de Shaina e de Marin.
Os longos cabelos loiros da adolescente, presos no rabo de cavalo alto que ela gostava de fazer, caíam pelo braço do sofá. Ela estava deitada, os olhos amendoados castanho-avermelhados como os da mãe fixos no celular enquanto ela digitava sem parar. Estava terminando o ensino médio e precisava escolher qual caminho seguiria, o que a tornava um foco de atenção maior que o normal.
As duas garotas Kodama Sollis eram uma mistura dos pais em graus diferentes. Pavlin desenvolvera muito o senso de responsabilidade e perspicácia de Marin e o instinto protetor de Aiolia. Yuzuriha tinha toda a personalidade responsável e séria da mãe unida ao pavio curto e à ironia do pai. Ele gostava de pensar que elas conseguiam equilibrar bem o sangue japonês com o grego.
Régulus já era outra história. Aos 15 anos, ele era um leão com olhos de águia. Estava agora sentado em frente ao pai, terminando as tarefas da escola e tamborilando os dedos da mão livre incessantemente. O pai podia sentir a impaciência do garoto em estar ali sentado. Sentia não, ele sabia.
- Tem muita matéria atrasada? – Aiolia perguntou. Conversara com o diretor, comprometendo-se a fazê-lo entregar resumos e passar por provas orais diante da banca de professores dos conteúdos perdidos nas semanas que ele faltara às aulas. O filho ofereceu-lhe um sorriso de canto de boca.
- Terminei biológicas e humanas. Faltam cívicas e exatas. – fez uma careta antes de prosseguir. – Desculpe você ter precisado ir à escola, pai.
- Você sabe que se fosse a sua mãe, você estaria no hospital agora. – Aiolia prometera a Marin que seria firme, mesmo se solidarizando com o garoto. – Já falamos sobre isso. – apontou para os livros e sinalizou para ele continuar.
Em Régulus, a impulsividade, agilidade e rapidez do pai foram potencializadas pelo raciocínio lógico e sintético da mãe, o que exigia muito dele e da família. Excelente aluno, não conseguia compreender a rigidez das regras das escolas japonesas. Aprendia tudo a que se dedicava com uma profundidade espantosa. Os pais precisavam lidar o tempo todo com excesso de estímulos físicos e mentais, ajudando-o a permanecer sempre ativo e relaxado.
- Mais uma hora e depois cama, ok? – anunciou com o tom de reunir a alcatéia. Pavlin concordou com a cabeça, Yuzuriha fez sinal de positivo com o polegar e Régulus suspirou.
Aiolia sorriu para o notebook, feliz por finalmente poder estar em casa.
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
As três mesas do refeitório foram ocupadas naquela noite e as conversas permaneceram animadas após um dia de treinos e aulas. Os recém-chegados ainda se adaptavam às normas do Santuário e alguns estavam cansados das longas rotinas, especialmente os jovens que tinham que acordar, iniciar as atividades físicas antes de irem para a escola regular e depois, à tarde, terem mais treinos físicos e aulas especiais, além da manutenção do lugar.
Cada um dos Mestres mais antigos ministrava uma disciplina e a ausência de Aiolia, Marin, Dohko e Shun sobrecarregava os demais. Quando o quadro estava completo a divisão era: Shaina e Aiolia com os exercícios físicos; Shun com anatomia; Camus ensinava ética e filosofia; Dohko e Marin ensinavam estratégia e raciocínio lógico e Shion supervisionava todos os integrantes e acompanhava o desempenho escolar e nas competições. Além disso, cada um deles poderia ter seus discípulos, a quem dedicavam um tempo maior.
A mesa dos aspirantes se destacava, com os veteranos Eurídice, Orfeu e Teneo contando como foram seus primeiros tempos ali para Kiki e Yato.
- Isso aqui parece um internato. – o coreano Yato comentou. Fora difícil trazê-lo para o Japão. Ele chamara a atenção de Marin durante os treinos aos finais de semana e após meses de negociação com os tios responsáveis por ele, pudera vir para Kamakura quando a competição terminou. Tinha 15 anos, a mesma idade de Teneo e Régulus. – É incrível! – os olhos azuis-escuros estavam sempre admirando tudo à sua volta, embora ele tentasse disfarçar.
- Pode-se dizer que é um internato muito particular. – Eurídice comentou, pegando mais um sushi. – O modelo são as escolas tradicionais de artes marciais, como os shaolins e os samurais. O Mestre Camus vai contar para vocês.
- Se vocês conseguirem ficar. – Teneo disse, escolhendo duas tempurás de polvo. – Muitos não aguentam. – Kiki e Yato se entreolharam. – Muita gente fica alguns anos, outros só suportam alguns meses. Não é uma vida fácil.
- Mas também não é ruim. – Orfeu interveio. A voz calma do rapaz de brilhantes cabelos e olhos azuis-claros se sobrepôs à do moreno. – Não os assuste, Teneo.
- Ele pode falar o que quiser, mas eu vim acompanhar o meu Mestre Mu e não vou desistir tão facilmente! – Kiki, o mais jovem do grupo, exclamou. Com seus 13 anos e seus cabelos ruivos sempre bagunçados, ele acompanhava Mu desde pequeno. Tomou um gole do missô. – Nós vamos ficar, vocês vão ver!
- Já que estão tão entusiasmados, a louça do jantar é de vocês. – a garota de porte altivo e curtos cabelos azuis-claros anunciou ao passar por eles, vinda da cozinha, levando uma travessa com mais tempurás para a mesa onde se sentou ao lado de Shaina. Kiki murchou na cadeira e sua expressão fez todos rirem.
- Está muito saboroso, obrigado, Selinsa. – Mu disse, ainda acostumando-se com os hashi, pegando um dos tempurás de camarão e passando no molho devagar. – Aquelas pessoas filmando o Santuário hoje eram representantes da Fundação Graad? – a pergunta foi para Shion, que estava entretido com sua sopa de missô com alga, cogumelo, polvo e camarão.
- Sim. Como nossos patrocinadores, ainda não vieram conhecer as instalações, por isso enviaram uma equipe para fazer a gravação e reportar como está indo o investimento. – os olhos dourados de Shion passaram por todos os rostos da mesa. – Nós nunca conseguimos um patrocínio que nos permitisse ampliar a equipe como estamos fazendo agora. Fico feliz que tenhamos conseguido e que vocês puderam se juntar a nós. Como está a adaptação?
- É muito promissor que haja pessoas de várias nacionalidades aqui. – Shaka se pronunciou, sentado do outro lado de Shaina. Mastigava a metade de um tempurá de polvo. – Como conseguiram?
- Prestando atenção por onde quer que estivéssemos. – a Amazona comentou. – Teneo, por exemplo, fui eu quem os acolheu durante um torneio que participei na Itália. – apontou a garota, que piscou para o indiano, fazendo-o erguer as sobrancelhas. – Selinsa, Eurídice e Orfeu, Aiolia trouxe após uma temporada na Grécia. A equipe começou assim e é meio que uma tradição nossa, retribuir o que fizeram por nós. – ela meneou a cabeça para Shion.
Foram ele e Dohko quem iniciaram essa corrente, há mais de trinta anos, ao acolherem Camus, Marin e outros dois que não estavam mais no grupo. Depois, vieram Shun, Ikki, Seiya, Hyoga e Shiryu. Então, Aiolia, Shaina e June. Durante os anos, muitos vieram e muitos partiram, mas eles não desistiram e o grupo estava em constante movimento.
- Logo, logo todos estarão de volta. – Camus afirmou, vindo com Milo sentar na mesa deles. Traziam duas taças e duas garrafas de vinho, que colocaram no centro da mesa. Os dois eram amigos de infância e Camus tentara durante anos trazê-lo para a equipe. Estava entusiasmado desde que Milo aceitara se integrar à Zodiac Team. – Hyoga me avisou que chegará na próxima semana com a esposa, Seiya e a srta. Kido.
- Estou curioso para conhecer pessoalmente todos eles. – Milo emitiu um meio sorriso e seus olhos azuis brilharam. - Tenho assistido aos vídeos das lutas e ouvido falar sobre a reputação deles há anos. Pelo que soube, o garoto que foi bicampeão também retornou à equipe. E a srta. Kido é a patrocinadora, não é? – Shion confirmou.
- Precisamos estar à altura das expectativas que depositam em nós. – Mu observou com sua voz ponderada. Em pouco tempo, ele se tornara um ponto de serenidade entre os lutadores e muitos aspirantes e alunos o procuravam para conversar. – Mesmo o membro mais novo em idade ou os recém-chegados, como nós.
- Vocês têm grande experiência e uma liderança natural entre os mais novos. – Shion afirmou. – Até você, Shaka, arrumou admiradores. – o comentário fez o indiano erguer as sobrancelhas.
Olhou para a mesa onde estavam os jovens que ainda não haviam participado de nenhuma competição e ainda estavam aprendendo e descobrindo suas linhas de combate. Eram seis garotos e quatro garotas que comentavam animados os treinos do dia e a escola. Tinham entre 14 e 18 anos, alguns com famílias que moravam no interior, outros sem ninguém no mundo. Duas das garotas acenaram tímidas assim que viram o loiro as observando, fazendo-o enrubescer e Milo zombar dele.
- Assim que todos estiverem em Kamakura, faremos a cerimônia de investidura. – Shaina comentou, apontando para o teto do refeitório. – Os quimonos foram encomendados essa semana. – o telhado era de vidro naquele cômodo e, devido à fraca iluminação, eles conseguiam ver o céu estrelado.
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
Ryuho adormecera no sofá, por isso os adultos controlavam o volume das vozes.
- Você tem certeza disso, Shunrei? – Shiryu perguntava mais uma vez. Ele e Dohko sentavam um de cada lado do leito. Ela assentiu.
- Tive bastante tempo para refletir. – a expressão dela estava serena. – Eu quero fazer isso.
- Mas, meu amor... – Shiryu parou ao ver o gesto do Mestre.
- Shiryu, nós temos que respeitar a decisão dela. – Dohko afirmou. – Shunrei, sei que não foi fácil. – ela franziu os lábios. – Às vezes, quando passamos por situações extremas, queremos fazer tudo diferente do que temos feito. É importante ter a mente clara para começar a trilhar um novo caminho, senão podemos nos arrepender das escolhas.
- Há algum tempo me incomoda que tenhamos que ficar aqui por causa do meu trabalho. – ela disse, evitando olhar para eles. – Eu posso trabalhar em qualquer lugar. E, além disso... – ergueu a mão que ela chamava de rebelde. – agora terei que pensar no que vou fazer. É a oportunidade perfeita.
- Shunrei, não quero que você desista da sua vida dessa forma. – Shiryu se remexeu na cadeira, apesar de manter a voz calma. - Há tratamentos que podemos tentar. Nós conversamos sobre eles hoje. Amanhã vamos combinar com o dr. Heo Im e o dr. Lee Kang. – não queria que ela se sacrificasse. – Você conseguiu a sua Unidade, vai poder ajudar tantas crianças como você sempre sonhou. – ela engoliu em seco, mordendo os lábios. – Seu esforço de anos, não é razoável deixar tudo assim!
- Shiryu, independente do que aconteça, eu não quero mais ficar aqui. Sinto que a minha etapa em Seul acabou. – ela tentou sorrir. – Quero muito conhecer Kamakura e o Santuário. Sempre pensei em você me apresentar os seus lugares. E também tem as pessoas de quem tanto ouço falar e as que conheci e estão lá. Sua família. – ele abriu a boca para argumentar, mas o Mestre foi mais rápido.
- Que tal se fizermos assim: não uma mudança definitiva, mas uma temporada? – Dohko, assim como Shiryu, percebia que havia algo oculto no desejo repentino de Shunrei em largar tudo na Coréia e ir para o Japão. Ao mesmo tempo que poderia ser muito bom para eles estarem perto dos amigos, era temerário na situação frágil em que ela se encontrava. Afinal, a vida dela estava estruturada ali e ele não compreendia bem seus planos, entretanto decidiu confiar. – Concordo que seja um bom lugar para se recuperar, mas não precisa revolucionar sua vida num átimo. Vamos organizar para ficar alguns meses e aí vocês vão poder decidir melhor, que tal?
Os dois jovens desanuviaram os rostos. Shunrei abriu a boca e parou ao ouvir a batida na porta.
- Olá, desculpem a demora. – Eiri entrou, seguida do marido. Seria a acompanhante da noite. – Nos atrasamos no compromisso. – podiam notar o entusiasmo na velocidade acelerada com que ela falava enquanto cumprimentava efusivamente os amigos. – Foi uma tarde muito boa, não foi, querido? Nossa, Ryuho já está dormindo, tadinho. É melhor vocês irem para casa. Podem deixar que eu vou cuidar bem dessa moça. Foi uma tarde ótima! Nós conseguimos!
- Calma, Eiri. – Hyoga abraçou seus ombros. Parecia feliz também. – Nós conseguimos permissão para iniciar as visitas. – anunciou, o rosto brilhando de contentamento. – Foi mais fácil do que estávamos esperando. Eiri estava pronta para petições de urgência, mas acho que querem se livrar da menina o quanto antes. – os três os parabenizaram. Dohko estava mais a par do caso.
- Essas são as melhores! – o Mestre afirmou, rindo. – Quer dizer que Camus vai ser avô? Mal posso esperar para comentar a novidade com ele!
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Lúshān huā – Flor de Rozan.
Dàshī – Mestre.
Ambos em chinês, com ajuda do Google tradutor. ;-)
Dr. Heo Im – personagem do dorama Honra Teu Nome, que eu gosto muito, apesar de não ter feito tanto sucesso. Ele é um médico da dinastia Joseon que viaja no tempo até os dias de hoje. Recomendo. Tem na Netflix.
Baklava – doce com versões em vários países. Essa grega que Aiolia trouxe é uma pasta de nozes, pistaches e gergelim triturados, envolvida em massa filo e banhada em mel.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Olá!
Valeu a pena esperar por esse episódio? Estão aparecendo mais núcleos, os personagens estão se movendo em vários lugares diferentes. Espero não ter ficado difícil de acompanhar.
Eu gostei tanto da dinâmica do Aiolia pai de jovens e adolescentes que acho que me empolguei... rsrs! O que vocês acharam dessa face dele?
E o tratamento da Shu está fazendo efeito, mas o acidente deixou muitas sequelas com as quais eles vão precisar lidar.
Continuo querendo reviews, hein?
Beijos,
Jasmin Tuk
NO PRÓXIMO EPISÓDIO:
"Será bom para Shunrei também, tenho certeza. – Shiryu assentiu.
- Espero que sim... E espero que as expectativas dela não estejam altas demais.
- Estão bastante altas. – eles se viraram para a porta. Ela caminhava devagar, apoiando a mão livre na parede. – Chegando, mais ou menos, à estratosfera."
