EPISÓDIO 10
Ele não se esquecera da emoção e dos detalhes da cerimônia de investidura das constelações. Nas memórias do Shiryu de 17 anos, as tochas brilhando na escuridão do Santuário espelhavam as estrelas no céu. O coração dele batia tão forte que seus pulmões quase não conseguiam respirar. As pernas tremiam, mas os passos eram firmes. Sensações que ele imaginava estarem acometendo os aspirantes que caminhavam nas fileiras do meio.
A lua cheia reinava imensamente dourada, os sons de passos no cascalho e as respirações ansiosas puxando o ar frio da madrugada para ajudar mantê-los com os sentidos completamente em alerta eram semelhantes às de 15 anos atrás.
Os mestres conduziam o grupo, caminhando em ritmo constante. Depois, os aspirantes que receberiam seus novos quimonos. Fechando a procissão, os cavaleiros e amazonas já investidos. A tocha de Shiryu iluminou o garoto à sua esquerda, fazendo-o voltar para a tarde daquele mesmo dia, onde os dois terminavam a limpeza da arena.
- Será sempre a maior honra da minha vida. – ele dissera a um Yato com os cabelos verde-escuros espetados como uma nuvem e os olhos vidrados. Sentira pena do garoto, descobrindo que ele fora aterrorizado por Teneo e Régulus.
- Eu fiz a tatuagem, mas ela ainda não cicatrizou. – Yato levantara a calça e mostrara o unicórnio pateando o ar subindo da canela para o joelho.
- É muito bonita. – Shiryu dissera com bondade. – O traço de Kanon evoluiu. – oferecera um meio sorriso ao estupefato coreano. – Acredito que ele tenha desenhado em metade de nós do Santuário. – Yato recompôs-se, se afastando com a vassoura. – Não vejo medo em você.
- Não é isso. – o garoto balançara a cabeça. – É que ninguém nunca acreditou que eu me tornaria o que estou me tornando. A minha família me queria seguindo a história do meu pai, mas não é o que eu quero. – ele se aproximara novamente para segredar o que o atormentava. – A família do Régulus inteira está no Santuário. Teneo e Orfeu não têm família de sangue para lhes dizer o que fazer e como ser. – os olhos verdes estreitaram num sorriso tranquilizador.
- Yato, sempre temos ao nosso redor pessoas nos aconselhando no que elas acreditam ser o melhor para nós e isso é bom. – o coração de Shiryu desacelerara, batendo com força e ritmo à medida que suas próprias experiências vinham à mente. - Ficamos seguros por ter amparo e acreditamos que fazer o que outros desejam é como os faremos se orgulhar de nós. – a garganta do garoto se mexera e o Cavaleiro de Dragão entendera que os dois estavam emocionados. – Entretanto, essas pessoas querem apenas que nós demonstremos saber discernir o certo e o errado. Quando mostramos conseguir fazer nossas próprias escolhas e continuar nosso caminho de forma honrada e respeitosa com a Vida, eles nos apoiarão.
Yato ficara em silêncio, apreendendo o significado das palavras. Shiryu o acompanhara nos treinamentos algumas vezes e percebera a empolgação de início de jornada, entretanto o coreano precisava de um pouco de realidade e de senso de responsabilidade. Afinal, ser cavaleiro ou amazona era mais do que técnica e força física. Havia um código de ética e conduta. Havia o senso de justiça e dever. Era como Buda ensinara: o nobre óctuplo caminho (1).
Os mestres vestiam seus trajes cerimoniais. Seguiam na ordem: Dohko de Libra e Shion de Áries, Marin de Águia e Camus de Aquário, Aiolia de Leão e Shaina de Ofíuco. As amazonas tinham quimonos prateados com os emblemas de suas constelações em ouro e vermelho. Os quimonos dos cavaleiros eram dourados e os emblemas pretos e prateados.
Os aspirantes vestiam quimonos pretos e calçavam chinelos de madeira. Milo e Shaka, Mu e Pavlin, Orfeu e Eurídice, Yuzuriha e Yato.
Os cavaleiros vinham com seus quimonos brancos com emblemas coloridos: Ikki de Fênix em tons de laranja e Hyoga de Cisne branco e azul, Shiryu de Dragão preto e verde e Seiya de Pégaso azul e vermelho, Shun de Andrômeda rosa e verde e June de Camaleão azul e rosa.
Assim que chegaram à arena, os mestres fizeram uma fila na escadaria. Amazonas e cavaleiros passaram, fazendo um semicírculo no palco, as tochas bruxuleando em suas mãos. Os aspirantes tomaram lugar na primeira fileira do auditório, permanecendo de pé.
Shiryu suspirou, o olhar fixo à frente, lutando com a vontade de buscar os olhos curiosos das famílias e demais aspirantes ao redor. Não havia nenhum som, apenas a energia deles era perceptível. Suas sapatilhas não filtravam a sensação da pedra áspera e fria. A força da terra subia por suas pernas, encontrando o fogo em seu peito ardendo de expectativa, vibrando junto com os jovens em cujas faces as sombras e a luz das chamas brincavam. O restante do anfiteatro estava escuro.
O Grande Mestre Shion dirigiu-se para o centro da arena, ao lado de um banco comprido onde estavam várias peças de roupa cuidadosamente dobradas. Ele assentiu para os mestres e Camus se mexeu ao mesmo tempo que Orfeu. Na entrada da arena, o Cavaleiro de Aquário se virou para seu discípulo, recebendo uma longa reverência. Orfeu tirou todo o quimono preto, ficando apenas com um shorts curtinho. Camus levou-o até o centro, os dois ajoelhando-se perante Shion. Os cabelos verde-claros esvoaçavam na brisa e Shiryu notou como seus olhos dourados pareciam faiscar para os dois à sua frente. Entregou o novo quimono a Orfeu, que se levantou para vestir e depois se ajoelhou novamente.
- Testemunhamos o nascimento do Cavaleiro de Lira. – a voz de Shion ressoou clara pelo ambiente. A lira desenhada em azul escuro com o traço da constelação ressaltado em prata. Camus sinalizou onde ele deveria ficar, um passo à frente do espaço entre Andrômeda e Camaleão.
As próximas foram Marin e Pavlin. A jovem ficou com um top e um shorts, seguindo os passos de sua Mestra para receber seu quimono prateado, como o deu Orfeu. A silhueta do pavão num laranja queimado com as estrelas ligadas por fios verdes.
- Testemunhamos o surgimento da Amazona de Pavão. – pareceu a Shiryu que ela sorria ao virar de costas para ele e se posicionar no espaço entre Dragão e Cisne.
Aiolia trouxe Yuzuriha e Shiryu subitamente percebeu como ela também se parecia com ele, inclusive na maneira de caminhar. Ela se ajoelhou um pouco atrás do pai, permanecendo de cabeça baixa até ouvir o chamado de Shion.
- Temos o nascimento da Amazona de Grou. – seu quimono era igualmente prateado, com o emblema preto e as estrelas da constelações trançadas em azul-claro. Ela caminhou decidida para ocupar o espaço entre Pégaso e Andrômeda.
Shaina trouxe Eurídice. Ao contrário dos outros aspirantes, que revelaram há tempos suas constelações, nem o namorado sabia qual era a escolhida pela garota. Shiryu conseguiu ver o emblema quando Shion abriu a uwagi e arregalou os olhos de surpresa, mudando de avaliação rapidamente, ao pensar no mito por trás e dar razão a ela.
- E agora testemunhamos o surgimento da Amazona de Lince. – Eurídice respirou fundo antes de tomar posição entre Fênix e Cisne com seu quimono branco com o emblema do lince laranja com os olhos pretos e as presas à mostra.
Aiolia trouxe Yato para trocar o quimono preto pelo branco com o unicórnio vermelho erguido nas patas traseiras e a constelação em seu interior traçada com fios amarelos. Shiryu notou que as mãos dele tremiam levemente e ele evitava fixar o olhar num ponto. Foi o único que ergueu a vista para as arquibancadas.
- Vemos agora o nascimento do Cavaleiro de Unicórnio. – a voz de Shion o fez se concentrar de novo e Aiolia o conduziu para o espaço entre Dragão e Pégaso. Shiryu assentiu sutilmente para ele.
Marin, Shaina e Aiolia posicionaram-se para completar o círculo.
Então Dohko e Camus trouxeram Milo, Mu e Shaka. Os cinco ajoelharam-se lado a lado.
- Levantem-se. – Shion disse com firmeza. Dohko entregou o traje dourado para Shaka. Nas costas, a silhueta prateada de uma mulher sentada numa flor de lótus, com as estrelas da constelação destacadas de azul-claro. - Agora você é Shaka de Virgem.
O indiano fez uma profunda reverência e tomou lugar um passo à frente e no espaço entre Fênix e Águia. Dohko se encaixou entre Leão e Camaleão.
Camus entregou o traje com o escorpião negro com o rabo em riste e as estrelas brilhando vermelhas para Milo. Shiryu viu as mãos dele flexionarem e a boca abrir num suspiro silencioso.
- De hoje em diante, você é Milo de Escorpião. – o grego agradeceu com uma reverência rápida e ocupou, com um passo à frente, o espaço entre Leão e Libra. Camus se colocou no grande espaço entre Shaina e Aiolia.
Então, Shion tirou sua uwagi e a entregou a Mu, que a recebeu com as duas mãos estendidas. Era algo bastante singular, pois, até aquele momento, nenhum cavaleiro abdicara de sua constelação. Shion pegou uma uwagi branca com detalhes verdes e dourados, sem qualquer emblema.
- Testemunhamos o nascimento do novo cavaleiro da constelação de Áries, Mu. – os longos cabelos lilases do indiano estavam atados e Shiryu viu a imagem do carneiro branco e o traçado dourado das estrelas quando Mu se virou para se posicionar entre Shaina e Marin.
Havia dois círculos: o externo com os veteranos e o interno com os recém-investidos. A lua iluminava fracamente as arquibancadas e os olhos de Shiryu, acostumados com a escuridão, conseguiram distinguir alguns vultos, tentando adivinhar onde estariam Shunrei e Ryuho. Pensou ver uma mão acenando discretamente do seu lado esquerdo.
- Cavaleiros e Amazonas, - Shion os chamou. - as suas constelações não são apenas emblemas, tatuagens ou simples imagens. Elas são declarações de intenção e podem se tornar seus guias, propondo uma filosofia de vida digna. Nós conversamos em particular sobre o significado de cada uma. Espero que a memória não lhes falhe. A investidura não corta os laços entre mestre e discípulo, muito pelo contrário. Seus mestres permanecem, a diferença é que vocês estarão ombro a ombro, como companheiros que são. – a um gesto seu, o círculo externo deu um passo e agora só havia um único, onde não existia distância entre os ombros e os braços.
As tochas iluminaram as expressões sérias e o calor interno realçou o frio do lado de fora do círculo de união.
- Quero que cada um reafirme consigo mesmo os compromissos assumidos comigo, com seus companheiros e com seus mestres. – Shion girou lentamente para vê-los. – Que esses compromissos acendam e alimentem o seu fogo interno para que nunca se desvie da busca da Verdade, da Sabedoria e da Justiça. Aqui no Santuário, as lutas e os campeonatos são os veículos para exercitarmos e espalharmos nosso Ideal por onde passarmos.
Ele se espremeu entre Camus e Aiolia e ergueu o punho bem alto. Todos os imitaram, permanecendo em silêncio. Mais do que em qualquer outro momento, Shiryu sentiu-se intimamente conectado com os outros integrantes e seu coração expandiu, abarcando as pessoas nas arquibancadas. Ele viu suas lágrimas brilhando também nos rostos ao seu lado, as emoções afloradas e compartilhadas.
- Que vocês possam levar esses sentimentos para cada instante das suas jornadas! – Shion bradou.
Dohko, Aiolia, Camus e Marin bateram palmas e desfizeram a formaçaõ para cumprimentar os novos integrantes. June foi até a lateral da arena e acendeu as luzes do anfiteatro. As fileiras mais próximas estavam cheias com as famílias, os demais aspirantes e moradores do Santuário.
- Que tal se voltarmos para a sede para saborear aquelas iguarias? – a sugestão de Dohko reverberou enquanto ele abraçava Shaka e Mu pelos ombros.
O cavaleiro de Dragão encontrou Shunrei e Ryuho. O filho conversava com Yuuto, Yuki e Haruto. Shunrei acenou, segurando Yorie, que parecia adormecida em seu colo. Ela falou com as crianças e elas correram escada abaixo para abraçar os adultos. Shun levantou Yuuto bem alto e June levou Yuki para falar com Yuzuriha e Pavlin. Haruto e Ryuho vieram direto para Shiryu.
- Papai, quando a gente crescer, também teremos esses quimonos? – os olhinhos azuis enormes mirando com assombro Yato e Orfeu.
- Quantos anos precisamos treinar para ter um desses? – a franja de Haruto teimava em lhe cair no olho. Ele se tornara hóspede frequente do sobrado verde, a amizade com Ryuho cada vez mais forte.
Seiya colocou Kouga nos ombros e os dois conversavam um pouquinho em cada grupo. Camus segurava Yuna nos braços, falando com Milo, Hyoga, Eurídice, Yato e Orfeu com Selinsa ao seu lado e Arya orgulhosa abraçando seu pescoço. Souma, Éden e Kiki escutavam com atenção Shaina, Mu e Ikki. Shion, Shaka e Dohko começavam a fazer o caminho de volta e os aspirantes aproveitaram a oportunidade para os acompanharem. Marin e Aiolia pararam para esperar Eiri, Esmeralda e Shunrei com a adormecida Yorie. As três senhoras da cozinha e o caseiro já tinham se retirado.
- É preciso um duro treinamento. – Shiryu respondeu aos dois, agachando-se para eles entenderem a seriedade da ocasião. – Para ser um Cavaleiro do Zodíaco, precisamos treinar nossos corpos, - segurou os ombros. - nossos corações, – espalmou as mãos no meio dos peitos. - e nosso espírito. – pousou as mãos sobre as cabeças. – São muitas provas em cada etapa. – os olhinhos azuis e verdes o encaravam sem piscar. - Vocês querem ser Cavaleiros? – os dois afirmaram efusivamente. – Muito bem. Dentro de alguns anos, farei essa pergunta novamente. Por hora, a prova de vocês será manter essa Vontade ardendo dentro de vocês. – os garotos assentiram, sérios.
- Shiryu, não fique prendendo os meninos com conversas chatas agora! – Dohko gritou, chamando-os para a festa que os aguardava lá em cima.
Mesas com comidas e bebidas foram instaladas nos jardins. As conversas foram animadas pelas garrafas de saquê, cerveja e vinho, entrando madrugada adentro. Régulus e Teneo trouxeram uma caixa de som e houve dança. Em algum momento da noite, Seiya, Orfeu e Pavlin tocaram para uma plateia entusiasmada. Até Shaka pediu música e dançou com Shaina e Shunrei.
- Quem diria que estaríamos numa cerimônia novamente. – Seiya comentou, sentando-se ao lado de Shiryu. Brindou as garrafas de cerveja. – O Santuário está revivendo.
- Posso imaginar como foram esses anos para vocês. – os grupos falavam animados. Shiryu sentia sua respiração leve e sua mente tranquila com a atmosfera festiva.
- Shion e Camus estão convocando os outros cavaleiros. – os olhos castanhos de Seiya observavam a multidão, tomando mais um gole. – Alguns já responderam positivamente. – Shiryu ergueu as sobrancelhas.
- Você está falando dos...
- Exatamente. – Seiya piscou para ele. – Será interessante, não é mesmo? – Shiryu deu de ombros, sem saber o que pensar sobre aquilo. – Mudando de assunto, vou dois dias antes para Tóquio. Que tal irem junto comigo? Eu ficaria mais confortável com vocês lá na Mansão também.
- O que foi, Seiya?
- É só que, bem, a casa é enorme. Não sei como a Saori consegue morar ali sem se perder. E tem todos aqueles empregados e seguranças. – Shiryu respondeu com uma risada abafada. – Nem vem, Shiryu, você sabe que aquilo é demais para qualquer um.
- Nunca fiquei hospedado lá como você e Hyoga, mas sei o que quer dizer. – tomou um grande gole da cerveja gelada. – Acredito que Shunrei vai aceitar. Ela está conversando com Eiri para irem antes também. Vou perguntar a ela e te falo. Kouga vai também? – Seiya confirmou.
- Sim, teremos um almoço em família. Éden vai conosco. Jabu também. – Shiryu riu alto. – Miho o convidou. – Seiya parecia não querer entender o que estava acontecendo e Shiryu quis provocá-lo.
- Ora, então a Mansão estará movimentada. – antes que ele pudesse continuar, Kouga veio cambaleando, esfregando os olhinhos castanhos.
- Papai Seiya, nós vamos dormir aqui? – Seiya o amparou.
- Sim, vamos ficar aqui hoje. – sinalizou que depois continuariam a conversa e Shiryu assentiu, subitamente ciente da hora.
Localizou Ryuho e Haruto ao lado do Mestre Dohko, as cabecinhas apoiadas na mesa.
- Melhor nós irmos. – tocou o braço de Shunrei, conversando com Selinsa e Eurídice.
O dia seguinte amanheceu muito cedo, na opinião de Shiryu. Parecia que ele tinha acabado de encostar a cabeça no travesseiro, por isso virou para o outro lado, sentindo o braço de Shunrei em sua cintura, a respiração em sua nuca e o calor morno em suas costas. A presença dela lhe transmitia muita paz. Fora assim desde o primeiro dia, quando ela entrara na farmácia pedindo remédio para ressaca. Segurou a mão em seu abdômen, seus demais sentidos aguçados devido aos olhos fechados. O perfume suave trouxe lembranças da noite anterior, dela queimando e derretendo junto com ele. Suspirou, satisfeito por estarem reconstruindo suas vidas.
Acordaram só depois do meio-dia.
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- O senhor queria falar comigo, sr. Shion? – Shunrei entrou no escritório do Grande Mestre após sua habitual conversa com Shaka.
No mesmo dia em que ela começara a trabalhar no ambulatório, o indiano a convidara para meditar com ele, instruindo-a sobre as técnicas de respiração, concentração e controle dos pensamentos. Ela não conseguia acompanhá-lo totalmente, pois Shaka tinha mais de 15 anos de experiência e seu nível de foco e objetividade eram fora do alcance da maioria das pessoas, porém, ele era incrivelmente gentil e compreensivo com Shunrei. Dizia que ela, ao contrário das outras pessoas, tinha a rara capacidade de realmente ouvir e enxergar a essência da vida. Shunrei gostava da companhia silenciosa e grave de Shaka, após lidar o dia todo com emergências e pessoas com o emocional alterado. Se imaginava em um oásis, limpando a sujeira em sua alma. Sentia-se fortalecida, com a mente mais clara e objetiva.
- Vejo que ainda não fugiu das sessões com Shaka. – Shion comentou, oferecendo-lhe a cadeira à sua frente. Sinalizou para uma jarra com rodelas de limão e folhas de hortelã, servindo dois copos.
- Acho que estamos nos tornando amigos. – ela provou um pouco da água saborizada refrescante. – Ele tem me ensinado muito. – o Grande Mestre assentiu, sério. Conversara poucas vezes com Shion. Os olhos dourados profundos ainda a desconcertavam, como se ele pudesse ver o que se passava em sua cabeça. Tinha essa mesma sensação com Dohko algumas vezes, mas com Shion havia uma leve inquietação na boca do estômago, enquanto com Dohko seu coração se sentia protegido.
- Confesso que não esperava que ele fosse se interessar tanto. Fico feliz em saber que vocês estão se saindo bem. – ela não sabia que fora Shion quem pedira a Shaka que começasse a fortalecer sua consciência sobre sua mente e seus pensamentos. - Como está a sua rotina, Shunrei? Desculpe ter passado a missão de acompanhar os estudantes para você e Shun nesse início de temporada, mas estive tão ocupado organizando as agendas para o próximo ano e as turmas novas, os treinamentos de discípulos, enfim. – ele a observou por um instante. - Está conseguindo manter os compromissos sem muito desgaste? – ela corou ligeiramente, sem entender onde aquela conversa desembocaria. Já haviam conversado sobre esse apoio e ela se dispusera de bom grado. Será que algum dos garotos teria se queixado dela, em apenas uma semana? – Desculpe, deve parecer uma intromissão da minha parte. – a voz dele era confortante. – Tenho a tendência de conversar com todos como se fossem meus discípulos. – ela negou, terminando de engolir a água.
- Tudo bem. É só que o senhor me fez lembrar Shiryu. – ele sorriu levemente. – Ele sempre me pergunta se está tudo bem e não é por formalidade. – Shion assentiu, os cabelos verde-claros caindo ao redor de seus ombros. Outra batida na porta e Dohko entrou. Sentou-se na cadeira ao lado de Shunrei, cumprimentando-a com um aperto no ombro.
- Os dois foram para casa preparar o jantar. – ele piscou para ela. – Prepare-se para mais macarrão frito! – Shunrei riu, ainda sem entender o que estava acontecendo.
- Como o de Shiryu, o meu interesse é genuíno. Dohko me contou tudo sobre o seu acidente e a sua ligação com os Solo. – Shunrei piscou seguidas vezes para os dois, sua respiração suspensa. – Ele tomou providências para mantê-la em segurança até que vocês viessem para Kamakura. Trabalhamos junto com a Fundação Graad em investigações paralelas na Grécia e o resultado saiu hoje. – Shion pegou um papel de dentro da gaveta, colocando em frente a Shunrei. – Eu queria que você estivesse mais adiantada com Shaka, mas decidimos que isso não pode esperar.
No papel estava descrito em poucas linhas o objetivo do trabalho, que era descobrir se o que ocorrera em Atenas fora realmente um acidente. A conclusão, também sucinta, era uma que Shunrei já desconfiava, embora não tivesse desenvolvido o raciocínio muito bem. Ela se esforçava para não focar sua atenção no que acontecera e sim no que precisava fazer para voltar a viver. Assim, foi sem surpresa que leu o nome do pai de Julian como a maior probabilidade de ter encomendado o atentado contra sua vida. Recolou o papel sobre a mesa e olhou magoada para Dohko.
- Por isso você insistiu tanto para sairmos da Grécia? O dr. Lee Kang me contou que você ligava todos os dias para ele. – o moreno engoliu em seco. – Por que não me contou, Mestre?
- Você estava muito fraca. – ela mordeu os lábios, sentindo o sangue sumir de seus membros. - Pedi para que ninguém comentasse com você sobre essa possibilidade até termos certeza. – Dohko respirou fundo antes de continuar. - Os Solo são uma família muito poderosa e adotam certas práticas para que esse poder não seja ameaçado. Nós já havíamos nos deparado com eles nos campeonatos internacionais quando patrocinavam uma equipe de lutadores. Os atletas deles foram suspensos várias vezes, até que a própria patrocinadora recebesse uma penalização. Isso foi antes da geração de Shiryu. – acrescentou, antecipando-se à pergunta. – Ele não sabe disso ou teria adotado outra estratégia com Julian Solo.
- Shunrei, não precisa ter medo. – Shion retomou a palavra. – Depois da repercussão do seu acidente até em nível internacional e do envolvimento da Fundação Graad, o sr. Yiannis Solo não fez mais nenhum movimento em sua direção. Ele conseguiu o que queria: tirar você de perto do filho. – os olhos dourados a faziam confiar absolutamente nele. - O porto de Incheon representa quase ¼ do faturamento da família e a insistência de Julian em se comprometer com você atrapalhava os planos deles.
- Mas ele calculou mal. – a presença física de Dohko a impedia de cair da cadeira. - Subestimou você e a sua reputação na ONU e na comunidade internacional. E subestimou a sua ligação com a Fundação Graad e conosco, embora a nossa participação seja menor. – ela forçou seu diafragma a funcionar, a garganta doendo ao imaginar diversas possibilidades horríveis, envolvendo acidentes de carro, de avião, atropelamento, explosões. Sua cabeça girava e as imagens vinham incessantes.
- Como eu sei que não sou uma ameaça? – os olhos azuis iam de um para o outro. – Quero dizer, um dia posso estar caminhando na rua com Ryuho e sermos atropelados, ou estar em casa e ela ser invadida por homens armados... Ou posso ser alvejada estando perto de outras pessoas. – ela não conseguiu disfarçar a voz trêmula. Quando Dohko segurou sua mão, ela percebeu que as fechara em punho. – Eu deveria estar aqui em Kamakura perto de tanta gente?
- Shunrei, não se preocupe. – os olhos castanhos dele forçaram os azuis dela a permanecerem focados. – Pelo que apuramos, Julian desistiu de você. Jurou ao pai que não viria atrás de você. Ele ficou bastante assustado com o que aconteceu. – essa informação deu um nó em seu cérebro e a fez sentir um assomo de gratidão pelo ex-namorado.
- Não estamos contando isso para aterrorizá-la, muito ao contrário. – Shion apoiou os braços na mesa. – A srta. Saori, Dohko e eu acreditamos que é fundamental você saber a verdade para transitar com mais segurança e confiança. – ela franziu o cenho. – Provavelmente os irmãos Solo estarão presentes no evento dessa semana.
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- Eu não sabia que Saori tinha mantido seu quarto. – Shiryu parou à porta do cômodo amplo, com duas janelas altas iluminando a cama larga, a penteadeira e a mesa redonda. Arrastou as duas malas, colocando-as sobre o banco baixo ao lado da porta para o closet. – É do tamanho da nossa sala. – Shunrei riu pelo nariz, apressando-se a abrir as cortinas para o sol entrar.
- E você ainda não viu o banheiro. – ela começou a organizar as roupas nos cabides e os produtos de higiene na pia. Deixou o notebook sobre a mesa. – É um lugar muito silencioso quando Saori não está na fase de oferecer festas.
Shiryu abriu as vidraças com vista para o extenso gramado, margeado ao longe por um denso bosque. Embaixo da janela, um caminho de cascalho de terracota parecia rodear toda a mansão. Ladeado por trepadeiras e arbustos floridos, se abria na metade do edifício para uma fonte quadrada, com a estátua de uma mulher segurando um jarro derramando água em uma mão e a outra mão virada para o alto.
- É um lugar bem solitário para uma pessoa só. – ele comentou, admirado com a escala grandiosa da propriedade. – Nem parece que os outros estão nos quartos ao lado. Não escutamos nada.
- O sr. Kido gostava de ter sua privacidade respeitada. – Shunrei inspecionava o vestido simples de seda lilás, manga ¾ e saia rodada. Ela marcara a cintura com um cinto branco, combinando com as sapatilhas brancas. – Ele costumava receber amigos e várias moças até nós completarmos 15 anos. – Shiryu franziu o cenho. – Os quartos das festas eram na outra ala e éramos proibidas de ir até lá, mas a estrutura acústica é a mesma em toda a mansão.
- Obrigado pela imagem mental que eu não precisava para viver. – ela riu, aproximando-se para arrumar a camisa branca que ele vestia com a calça jeans e os tênis pretos. - Vamos descer? Seika e Miho devem estar chegando.
As duas já estavam no sofá da sala de TV, conversando com Seiya, Hyoga e Eiri. Éden sentado entre elas e Jabu do outro lado de Miho.
- Só faltavam vocês. – Saori e Kouga estavam no chão em volta da mesa de centro, montando um enorme edifício com os blocos coloridos. – Vinte minutos para o almoço. – informou, apontando uma jarra de refresco no bar.
Shiryu sentiu uma leve tensão no ar. Ele conseguira que Jabu viesse com eles e Éden, enquanto Seiya e Kouga vieram no carro de Hyoga e Eiri. Desde o dia da praia, o surfista voltara a frequentar o Santuário com seus quatro amigos inseparáveis, tendo o cuidado de evitar os lugares em que o Cavaleiro acontecesse estar. Ninguém esquecera a disputa quase fratricida de ambos para ter o direito de usar a constelação de Pégaso. E, agora, Jabu tentava com todas as suas armas conquistar Miho, que Seiya considerava sua irmã.
- Você sabe que ela não te vê como irmão, não é? – Shiryu comentara quando o amigo viera falar com ele, reclamando que vira Jabu falando com Miho no celular. Seiya fechara a cara.
- Você falou com Ikki e Hyoga? – Shiryu rira alto. – Parem de falar essas coisas da Miho!
Shiryu lembrou da expressão de Seiya porque ele a repetia ali na sala da mansão Kido. Seika estava ocupada com Éden. Eiri conversava com Saori sobre os próximos passos sobre um caso de exportação de materiais médicos para a Europa. A anfitriã quase não conseguia fingir não ver o comportamento estranho do noivo. Shunrei olhou de relance para Shiryu, apressando-se a sentar do outro lado de Jabu e Shiryu se segurou para não sorrir para ela.
- Quando vocês vão ao escritório do registro familiar? – Hyoga estava numa poltrona entre os dois sofás maiores. Shiryu escolheu sentar entre Seiya e Eiri, fazendo o amigo se distanciar um pouco mais de Jabu.
- Amanhã à tarde. Foi o único horário que conseguimos para essa semana. - Shiryu observou Shunrei engatar uma conversa com Miho e Jabu, perguntando sobre as crianças e contando as peripécias de Ryuho e cia limitada. – O que vocês estão programando?
- Seika e Miho nos convidaram para ir ao orfanato à tarde, mas podemos mudar para a manhã. – o loiro acrescentou rapidamente, sinalizando com os olhos azuis para o amigo entre eles. – Tudo bem para você, Seiya?
- Ãããh? – os olhos castanhos de Seiya foram de Miho e Jabu para Hyoga e de volta várias vezes. – Acho que sim. – respondeu de modo robótico, fazendo as sobrancelhas de Shiryu erguerem.
Hyoga e Shiryu se entreolharam.
- Seiya, você pode me mostrar a parte de trás da casa? A janela do nosso quarto é virada para lá e eu queria ver como é por fora. – Hyoga segurou a risada com a desculpa esfarrapada para tirar o amigo de lá.
- Deixem para ir depois do almoço. – Eiri falou, sem entender o pedido.
- Precisa ser agora. – Hyoga disse, empurrando Seiya para levantar. – Não vamos demorar.
- O que deu em vocês dois? – Seiya protestou. – Quero ficar perto das garotas. – tentou resistir inutilmente.
Os dois só pararam ao se certificarem que ninguém ouviria.
- Não é muito inteligente ficar encarando uma garota que você diz ser sua irmã. – a voz de Shiryu soava entediada. – Ainda mais com a sua noiva e o seu filho no mesmo ambiente.
- Você só pode estar maluco! – Seiya exclamou.
- Acalme-se e você vai perceber. – Hyoga disse, colocando a mão no meio do peito dele. – Sei que você não gosta do Jabu, mas se continuasse provavelmente você dormiria no sofá hoje. – Seiya franziu o cenho, encarando os amigos. – Pode nos agradecer depois.
- Aquele sujeito está envolvendo a Miho na conversa mole. Não posso permitir! Ela é muito gentil e ingênua, ele vai magoá-la.
- Seiya, a Miho é uma mulher adulta. Ela não precisa de proteção, ainda mais contra o Jabu. – Hyoga argumentou. – Ele é honesto e respeitoso. É só ver os dois juntos.
- Você nunca foi o tipo de homem que gosta de ter um monte de garotas ao seu redor. – Shiryu cruzou os braços.
- O que você está dizendo? – Seiya parou de insistir em voltar.
- Parece que você quer manter a Miho esperando por você. – Hyoga respondeu com um toque de impaciência na voz. Conversara com o amigo algumas vezes sobre as atitudes dele. – Eu sei que você é devagar, mas imaginava que até você perceberia o que está fazendo.
- Comece a separar a sua rixa com o Jabu do que está acontecendo ali dentro. – Shiryu tentou diminuir a frieza da declaração do loiro. - A sua reação está incomodando Saori. – bateu no ombro do amigo estupefato.
- Fique aqui e esfrie um pouco a cabeça. – Hyoga sugeriu, entrando na casa.
Shiryu ficou ao lado do amigo, vendo os olhos castanhos fixos no bosque distante.
- Quando éramos crianças, você imaginou que nós estaríamos num lugar como este? – Seiya murmurou. Respirou fundo várias vezes. – Seika e Miho sempre estiveram ao meu lado. São as pessoas mais antigas na minha vida. – engoliu em seco. – Estou falhando em retribuir tudo que elas fizeram por mim. Não sei ser o irmão que elas precisam que eu seja.
Shiryu sentiu o vento aquecido pelo sol em seus cabelos. Era a primeira vez que conhecia o lugar onde Shunrei passara parte de sua vida e também se perguntou como teria sido para ela viver ali.
- Elas tiveram experiências que nós jamais teremos, Seiya. – falou, pesando as palavras. – Não fará bem ficarmos presos ao passado, pretendendo ser o que não somos. Não é isso que elas esperam de nós. O seu coração, e não a sua mágoa, é o seu melhor conselheiro. Seika e Miho estão aqui por você.
O peito de Seiya expandiu e contraiu lentamente. Assentiu com a cabeça.
- Você está sempre certo. – bateu nas costas do amigo. – Não sei se serei o melhor amigo do pateta do Jabu, mas vou tentar não ser o pior inimigo.
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- Como está sendo o retorno ao Santuário, Shiryu? – Seika veio se proteger do sol num dos bancos em volta da fonte. Éden e Kouga continuavam brincando no gramado com Seiya e Jabu, gritando ao tentar fugir dos adultos. Saori, Shunrei e Miho conversavam e riam ali perto.
- Melhor do que eu esperava. – ele sorriu para ela, com o rosto afogueado de correr atrás dos meninos. – Uma experiência completamente diferente.
- Shiryu precisou de um autoexílio na Coréia para abrir os olhos. – Hyoga instalara-se no encosto do banco.
- E você precisou de uma boa sidra de maçã, não é? – o tom da voz de Shiryu não se alterou, mas Eiri, alojada entre os joelhos do marido, riu.
- Essa temporada internacional transformou as vidas de vocês. – a loira afirmou. – Seika, estávamos comentando outro dia que eles saíram daqui solteiros e voltaram casados e com filhos.
- Sempre foram apressadinhos. – a ruiva acompanhou a risada, balançando a cabeça para secar o suor. – Até o sr. Kondo ali. – apontou para Jabu, que foi beber água gelada da jarra perto do grupo das garotas.
- Ele voltou a treinar no Santuário. – Hyoga informou. – Quem o está treinando é o sr. Milo. Algumas vezes nós treinamos juntos. Ele é um lutador honrado.
- Éden é um amor, Seika. – o elogio de Eiri a fez abrir um sorriso largo. Os meninos foram pedir água gelada. – Está bem mais aberto para falar conosco e tomou para si proteger todos os menores que ele. Ele continua introspectivo, mas está se envolvendo nas brincadeiras.
- Ikki e eu temos nos empenhado. – Seika sinalizou para Seiya diminuir a intensidade da correria. O sol estava muito forte. Seu irmão piscou para ela, apontando que iriam para a sombra da mansão. – E vocês têm sido fundamentais. Agradeço pelo apoio de todos.
- Fomos a um karaokê antes de começarem as aulas e ele se soltou. – Hyoga lembrou de Haruto, Éden, Souma e Ryuho cantando a plenos pulmões. – Rivalizou com o tio hiperativo.
- E você, Seika? – Shiryu devolveu a pergunta. – Como estão as coisas no orfanato? Soube que você se casou novamente. – ela franziu os lábios, mas se recompôs quase imediatamente.
- Ainda vou precisar de um tempo para trazer meu marido para a realidade do Éden. – ela conhecia todos eles desde crianças e os considerava irmãos mais novos. Perdera a conta dos ferimentos e arranhões que tratara e quantas broncas dera quando se metiam em confusão. – O orfanato vai passar por uma reforma agora. Vamos ampliar mais quatro quartos. Amanhã vocês verão. Nunca é fácil, não é? Demoramos anos para conseguir o dinheiro e a obra será demorada, mas necessária. – sorriu para o filho, que veio correndo.
- Mamãe, o tio Seiya disse que nós vamos ao cinema hoje! – os cabelos azuis revoltos e os olhinhos verde-água brilhando de excitação. – Você vai com a gente, né? – ela confirmou e o rostinho se iluminou, correndo de volta.
- Você e Miho precisam ir mais a Kamakura. – Eiri afirmou, fazendo um coque para refrescar a nuca. Os rapazes concordaram.
Shiryu respirou aliviado pelo dia estar correndo bem, o mal-estar da manhã esquecido. Observou como a postura de Seiya mudou com relação a Jabu e Miho, fazendo a dinâmica do grupo ficar mais leve e agradável. Via o esforço de Saori em se aproximar de Seika e Miho e a sutileza de Shunrei e Eiri em conduzir as conversas para temas menos polêmicos. Hyoga e ele próprio imbuídos de aconselhar e apoiar os amigos.
No final da tarde, Saori, Seiya, Seika, Miho e Jabu levaram os meninos ao cinema. Shiryu, Shunrei, Hyoga e Eiri aproveitaram para conversar com os filhos por videochamada. Yuna e Ryuho estavam na sala da casa Kodama Sollis, com Pavlin monitorando os deveres de casa. Os dois ficariam ali até os pais retornarem e pareciam contentes, na expectativa da chegada do trio Shiroi Amamiya. Vendo o garotinho desenvolto pela tela do celular, Shiryu se lembrou que ele não tinha nenhuma crise respiratória há meses.
Os quatro passearam pelos terrenos da mansão, com Shunrei contando algumas situações inusitadas, como a vez em que ela e Saori entraram de roupa na fonte, depois de beberem para comemorar a entrada de Shunrei na faculdade.
- Agradeço não haver internet naquela época porque muita gente testemunhou. – ela riu das expressões dos amigos. – Foi a última festa da qual eu participei aqui.
Comentou também das brigas entre as duas e como terminavam sempre com vinho e chocolate. Eiri começou a contar suas histórias nas baladas de Atenas e os dois homens escutavam com interesse, um pouco incrédulos.
- Não vão me dizer que vocês foram sempre certinhos assim?! – Eiri exclamou ao voltarem dos estábulos, caminhando em direção às luzes da mansão. Eles deram de ombros. – Nunca fugiram dos treinos para aprontar na cidade? – a loira piscou para Shunrei e as duas conseguiram que eles contassem alguns fatos da infância em Tóquio.
Os causos se estenderam pelo jantar e só terminaram quando Shunrei os alertou da hora. Não viram os outros retornarem. O dia seguinte seria cheio de compromissos. Pela manhã, ida ao orfanato e à tarde cada um com uma agenda individual.
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Os dois chegaram cedo ao fórum, aguardando na recepção com a pasta de documentos. Encontraram dois lugares vagos na sala de espera coletiva, cheia àquela hora.
- Será que precisaremos do registro de Ryuho no colégio de Gangseo-gu perto do seu apartamento? Com o nome de nós dois? – Shunrei perguntou, revisando as certidões do colégio, as declarações das professoras e as cópias das presenças nas reuniões de pais e mestres. A pasta estava repleta de fotos dos três. Havia também reportagens antigas do divórcio de Shiryu e cópia da denúncia de abandono contra a ex-esposa. – Para mostrar desde quando alguma instituição me reconheceu como responsável por ele.
- Se for necessário, pedimos à escola e apresentamos depois. – Shiryu segurava a mão gelada dela, procurando tranquilizá-la. – Como é a primeira audiência, acredito que queiram apenas saber a nossa real disposição em alterar o registro de nascimento. – ela assentiu, aspirando e expirando pela boca entreaberta.
Poucas vezes se sentira tão ansiosa com um procedimento burocrático. Não afetaria o dia-a-dia deles, menos ainda o laço apertado entre Shunrei e Ryuho, entretanto juridicamente fazia diferença, pois ela passava a ter todos os direitos parentais assegurados de forma inquestionável. Queria ser mãe dele de fato e de direito.
- Por favor, srta. Taeko Sato e advogada, srta. Shunrei Nishi e sr. Shiryu Suiyama, queiram me acompanhar. – os dois olharam ao redor ao ouvir o nome e ela estava lá, de óculos escuros e terninho e saia bem cortados. Uma mulher elegante a acompanhava. Os longos cabelos púrpuros brilhavam mais que os intensos olhos vermelho-sangue e a postura dela lembrou a de June no tatami. – O sr. Hachiya vai recebê-los agora.
As duas entraram no corredor indicado, sem tomar conhecimento da presença do casal. Shunrei percebeu que Shiryu ficou impactado pela advogada. Acompanhou-as com o olhar assustado.
- Precisamos entrar. – ela chamou sua atenção, puxando-o pelo braço.
A sala do chefe da Vara de Família era pequena, com um computador antigo sobre uma mesa simples de madeira. A atendente indicou os lugares vagos ao lado de Taeko e sua advogada. O chefe era um homem de meia idade, com bastos cabelos grisalhos e uma barba completamente branca. Seu rosto era escondido por óculos de grossos aros pretos e quadrados. A placa em frente dizia: Takanori Hachiya – Divisão de Registros.
- Boa tarde a todos. – sua voz era baixa e límpida. Shunrei notou como sua mesa parecia imaculada, sem nenhum objeto fora do lugar. Um estenógrafo ocupava um pequeno posto ao fundo, pronto para registrar o encontro. – Convidei-os aqui a respeito da petição feita pela srta. Shunrei Nishi para a alteração do registro de Ryuho Suiyama, atualmente com sete anos e pai e mãe vivos. – ele leu a capa do processo, abrindo a pasta com diversas folhas de ofício e cópias dos documentos que Shunrei trouxera. Acenou em reconhecimento para a chinesa. – Pelo que entendi do processo, a srta. Taeko Sato, mãe do menino, o abandonou aos seis meses de vida e sempre esteve ausente. A srta. Nishi começou um relacionamento com o pai, sr. Shiryu Suiyama, há oito meses, na Coréia do Sul. Deixei alguma informação importante de fora? – olhou para os quatro ao perguntar.
- Senhor Hachiya, - a voz da advogada era grave, como se ela não a utilizasse há muito tempo. – gostaria de deixar registrado o protesto da minha cliente. A srta. Sato descobriu apenas recentemente o paradeiro de seu filho. Foi até a cidade coreana onde ele vivia e tentou diversas vezes fazer um acordo com o ex-marido, mas o sr. Suiyama se mostrou irredutível. – Shunrei apertou os dedos de Shiryu num pedido mudo para que ele não reagisse. – Ele e sua amante têm reiteradamente mantido uma mãe longe de seu amado filho. – a chinesa viu a garganta do noivo num movimento incessante de engolir, tentando manter a boca fechada.
- O protesto está registrado. – o chefe da seção assentiu, apontando para o estenógrafo. – Gostaria de conversar com a sua cliente. – endireitou os óculos ao se virar para Taeko, que sorriu com simpatia. – Vou ser bem direto. A senhorita é acusada de abandono. Posso saber por que não procurou seu filho antes? Não há, nos documentos que me enviou, nada sobre isso. – ela mordeu os lábios e seus olhos se tornaram úmidos.
- Isso é difícil de explicar, sr. Hachiya. – seu tom era aveludado, mas havia uma nota de dor. – Meu ex-marido é lutador profissional de artes marciais. Foi como nos conhecemos. Depois do nascimento do meu Ryuho, ele começou a treinar com tanta determinação que nada mais importava. Acabei me sentindo um fardo para ele. Veja, eu o amava profundamente, mas ele estava obcecado com os campeonatos. - Shiryu não se conteve em olhar diretamente para ela. Taeko devolveu o olhar com uma expressão de mágoa e tristeza. – Quando pedi que ele ficasse mais em casa, ele se tornou... bem, ele se tornou um pouco violento. – ela disse a última palavra bem baixinho. O chefe da Vara de Família franziu a testa, pegando uma caixa de lenços e oferecendo para ela. – Ele nunca me agrediu fisicamente, mas eu já não podia ficar na mesma casa.
O sangue de Shunrei subiu num instante e ela se inclinou para contestar tudo aquilo. Parou ao sentir a mão de Shiryu em seu pulso. O rosto dele continuava virado para Taeko, mas em seu colo Shunrei viu a mão traçando vários mudras.
- Sinto muito por ter passado por essa situação, senhorita. – o sr. Hachiya ofereceu-lhe um copo de água. – E por que a senhorita não levou seu filho bebê em sua fuga? – Taeko tocou os cantos dos olhos com um dos lenços e tomou um grande gole de água.
- Ele deixou claro várias vezes que considera o menino como propriedade exclusiva dele, então eu tive medo de tornar tudo pior se o levasse. – a advogada suspirou, um estranho brilho nos olhos vermelhos ao desviá-los para o casal ao lado. – Desde então, não pude mais me aproximar do meu querido Ryuho. Há alguns meses, soube onde ele estava e fui até lá. O que eu quero é apenas cumprir meus deveres de mãe de forma apropriada. Eu quero a minha família de volta. Estou disposta a voltar para meu marido. – essa afirmação foi demais para a advogada, que sinalizou ostensivamente para ela se calar.
O sr. Hachiya afastou-se, recostando no espaldar alto da cadeira, juntou as pontas dos dedos em frente ao queixo, observando os quatro. Respirou fundo várias vezes.
- Sr. Suiyama, gostaria de conversar com o senhor. – os longos dedos pararam de fazer os mudras. Shiryu conseguira fazer seu coração e sua respiração voltarem ao ritmo normal. Assentiu, aguardando. – Em geral, os pedidos para alteração de registro são feitos pela família adotiva, não envolvem um dos pais biológicos. São muito raros porque o documento de adoção é o suficiente em termos legais. Por isso, eu estou conduzindo o processo pessoalmente e pedi essa reunião. Recebi todos os documentos que o senhor enviou e a sua carta de próprio punho. – Shunrei piscou para o papel que o chefe tirava da pasta do processo. Não sabia da carta. – O senhor se arrependeu do nascimento de seu filho?
- Não. – Shiryu respondeu imediatamente, a voz serena. – O senhor deve ouvir sempre declarações como essa, mas Ryuho é a melhor parte de mim. É um menino doce, inteligente e companheiro. Ele me ensina a ser um homem melhor todos os dias. E é por ele que apoio o pedido de minha noiva para alteração do registro de nascimento. Sei como é difícil para uma criança crescer sem os pais e compreendo a importância de uma mãe presente. – entrelaçou os dedos nos de Shunrei. – Ryuho tem uma ligação de carinho e confiança com ela. Desde o início do nosso relacionamento, Shunrei assumiu espontaneamente responsabilidades para com ele, inclusive perante as escolas. No que me diz respeito, em tudo, ela é a mãe dele. O senhor pode constatar como a melhoria nas notas aconteceu no mesmo período em que ele passou a conviver com ela e os desenhos onde ele representa a nossa família. A condição entre os dois não vai mudar pela alteração no registro, portanto pode soar como capricho ou um desperdício de tempo e energia. Contudo, esse pedido mostra o grau de comprometimento de Shunrei com Ryuho e não há motivo para eu, como pai que quer o melhor para seu filho, não incentivar.
Shunrei sentiu as faces corarem. Um sorriso apareceu e desapareceu num piscar de olhos pois sabia que estava sendo observada por todos na sala. O sr. Hachiya voltou a unir os dedos, pensando. O telefone tocou e ele teve que se ausentar um instante.
- Mas que bela declaração de amor, Dragão. – a advogada falou de soslaio. – Ela deve ter ficado toda derretida.
- Não sabia que você trabalha para Julian Solo, Behemoth. – ele retrucou no mesmo tom de voz. Taeko se limitou a procurar uma lixa na bolsa e ignorar os demais. Shunrei confirmou suas suspeitas. – E nem que tinha assumido uma nova profissão.
- Ora, se você pode ser farmacêutico, por que eu não posso acompanhar gente tola? É divertido e eu ainda sou paga. Quanto ao meu empregador, continua o mesmo. – ofereceu um esgar à guisa de sorriso. – E isso vai deixá-lo intrigado por um bom tempo. – ela concluiu assim que ouviram a fechadura se abrir para o retorno do chefe da Vara.
- Bem, de qualquer forma, estamos quase terminando aqui. – ele voltou a se sentar em frente aos quatro. – Srta. Nishi, agora nós dois. – ela prestou atenção enquanto ele tirava os óculos para limpar as lentes com um dos lenços de papel. – O que dá à senhorita tanta certeza de conseguir assumir um compromisso tão definitivo com uma criança quando ainda não o fez com o pai?
Essa era uma das perguntas que treinara com Eiri. Molhou os lábios antes de falar.
- Nosso casamento já está marcado, senhor. Só não ocorreu ainda por causa de um acidente. – ela respondeu rápido demais. Se recompôs por um instante, lutando contra a vontade de passar a mão pelos cabelos. - O meu sentimento com relação a Ryuho é independente. Mesmo se algum dia Shiryu e eu nos separarmos, jamais deixarei de ser mãe do meu filho. Eu trabalho com crianças em situações extremas há mais de dez anos e consigo discernir emoções passageiras de sentimentos mais íntimos e maduros.
- Sim, eu recebi o laudo do nosso psicólogo. – ele trouxe o parecer para o alto da pilha de documentos do processo, tamborilando os dedos na mesa enquanto o lia novamente. – Aqui diz que a senhorita tem o "firme propósito de deixar as situações mais claras possíveis". É esse mesmo o seu objetivo?
- Não. – a voz soou firme e cristalina. – Meu objetivo é que Ryuho tenha em seu registro de nascimento o nome da mãe dele e que os seus filhos e toda a sua descendência saibam que ele foi muito amado por ela. A meu ver, sr. Hachiya, não existe a possibilidade de ele não ser meu filho ou de que eu o abandone por qualquer motivo que seja. – seu corpo estava incrivelmente colaborativo, calmo e concentrado.
O chefe da Vara releu alguns outros papéis. Pediu para ver as fotos que Shunrei trouxera e algumas declarações e relatos de itinerários de Taeko. Finalizou a reunião informando que a decisão seria comunicada nos próximos dias.
- É uma decisão que precisa de tempo para ser tomada acertadamente. – ele afirmou, despedindo-se. Apertou com força as mãos de Shiryu e Shunrei.
As duas mulheres já passavam pela porta de entrada quando eles alcançaram a sala de recepção.
- Quem é a advogada? – pararam na calçada, vendo-as entrar em um carro que disparou pela avenida.
- É uma lutadora muito forte e habilidosa. – Shiryu franziu o cenho ao lembrar. – Chama-se Violete Behemoth e era a principal adversária de Marin e Shaina nos torneios... Não faz sentido ela estar com Taeko. – murmurou a última frase, como se falasse consigo mesmo.
- Ela não ficou feliz com a srta. Sato. – Shunrei comentou. – Por que te incomodou tanto ela estar aqui? – perguntou quando viraram a esquina para ir até o metrô.
- Porque ela não precisa desse trabalho. É casada com um outro lutador e os dois são muito ricos. Ou, pelo menos, eram. Há anos não a via. – ele suspirou, buscando a mão da noiva. – Acho que nos saímos bem, não? – ela sorriu para ele, enlaçando seu braço para caminharem mais próximos.
- A srta. Sato agiu como Eiri disse que agiria, mas, mesmo sabendo, foi difícil ouvi-la falar. – ele assentiu. – Como ela pode contar tantas mentiras? Espero que o sr. Hachiya não tenha acreditado em nada daquilo.
- Para mim, não são mentiras. Acredito que Taeko, a srta. Sato, se lembre daquele período da maneira como descreveu. – a voz dele adquiriu um tom de pesar. – Infelizmente, não posso fazer nada sobre isso. – eles caminharam algum tempo em silêncio.
- Shi, há um filósofo romano, Marco Aurélio, que ensina que as coisas são de duas naturezas: as que dependem de nós e as que não dependem. – Shunrei abraçou-o pela cintura. – O que ela pensa sobre o tempo em que vocês viveram juntos não depende de você. A única coisa que você pode fazer é viver a sua vida e mostrar como é realmente o seu caráter e o seu comportamento.
- Você nunca teve medo de mim? – Shiryu passou o braço pelos ombros dela.
- Imagino que os seus adversários no tatami queiram sair correndo. – ela o fez sorrir com uma tentativa de imitação. – Já eu só quero correr, mas é para te derrubar na cama. – ela riu alto porque ele corou de surpresa. – Que é o que eu vou fazer assim que chegarmos no nosso quarto porque a advogada estava certa: aquela declaração me deixou muito animada. – ela sublinhou a última palavra.
Shiryu a parou no meio da caminhada e sinalizou para um táxi, o transporte mais rápido e direto para a mansão Kido.
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(1) Nobre Óctuplo Caminho – também conhecido como Caminho do Meio. Em sua doutrina, Buda ensina como cessar o sofrimento seguindo 8 princípios: compreensão correta, pensamento correto, fala correta, ação correta, meio de vida correto, esforço correto, atenção correta e concentração correta.
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Olá!
Como estão vocês?
Desculpem não ter postado na semana passada. Estive às voltas com alguns assuntos pessoais e acabei não conseguindo revisar o texto, mas já voltei à ativa.
A idéia de imaginar como é a investidura dos lutadores é antiga e fiz pensando numa cerimônia que transmitisse a seriedade e o mistério do compromisso. Espero que tenha dado certo.
E a ex-senhora Suiyama voltou, agora em outra companhia. Será que ela vai causar tumulto?
Aguardo vocês no próximo episódio!
Abraços,
Jasmin Tuk
No próximo episódio:
"Assim que abriram a porta do carro, os flashes piscaram incessantes e os chamados e pedidos para Shiryu se virar se misturaram. Ele deu espaço para Orfeu sair e cumprimentou os fotógrafos com uma leve reverência e alguns acenos antes de ir até a outra porta e estender a mão gelada para a gelada de Shunrei. Ela saiu corajosamente, equilibrando-se nos saltos."
