EPISÓDIO 14
- Pode pegar as malas? – Shunrei se desvencilhou da mão do marido assim que pisaram ao lado da esteira de devolução de bagagem. - Preciso ir ao banheiro.
Shiryu olhou ao redor antes de assentir, recomendando que ela não demorasse.
Ao contrário do que esperavam, somente puderam voltar para Tóquio três dias após o ataque, aguardando a liberação da polícia para sair do país. A parte boa foi que o corpo de Shiryu não doía mais, o que facilitou suportar as quase 8 horas de viagem.
A água fresca ajudou a revigorar a consciência. Ela estava exausta. Apesar da garantia dos policiais e, principalmente, de Dohko e Shion de que não haveria mais nenhuma 'surpresa', ela mal conseguira cochilar esses dias. No avião, seu cérebro desligava sozinho, o que era um tormento porque ela o ligava na marra, sentindo as correntes elétricas reestabelecendo as conexões no susto. Não ousava relaxar com medo de serem alvos novamente.
Molhou o rosto, a nuca e os braços.
- Viagens longas são cansativas, não são? – uma voz grave soou ao seu lado.
- São, sim. Finalmente chegamos. É bom estar em casa. – Shunrei respondeu protocolar, sem sequer olhar para a mulher, secando o rosto.
- A questão toda se resume a quem se quer proteger e o que estamos dispostas a fazer para isso. – aquela declaração a fez procurar o rosto e ela se assustou ao ver a advogada de Taeko Sato a observando com curiosidade, displicentemente encostada na pia ao seu lado. – Se não tomarmos cuidado, ao invés de ajudar, nós acabamos distraindo e estragando as vidas de quem... hum... de quem 'amamos'. – ela meneou a cabeça, parecendo se divertir com a confusão da chinesa, jogando os longos cabelos de um lado para o outro. – A senhora sabe qual é a maior batalha da atualidade, sra. 'Suiyama'? – ela enfatizou o sobrenome e os pêlos da nuca de Shunrei arrepiaram. – Pela mente das pessoas... E, para conquistá-las, a quem esteja disposto a absolutamente 'qualquer coisa'. – os olhos vermelhos brilhavam de malícia.
- Não estou interessada em nada do que você tenha a me dizer, srta. Behemoth. – Shunrei ergueu o queixo, o rosto duro. – Vocês podem me ameaçar o quanto quiserem, não vão conseguir. Não vão nos separar. Eu não vou sair de perto deles. – os olhos azuis escrutinavam a expressão sarcástica da mulher. Os lábios se curvaram num sorriso debochado.
- Quem disse que temos algum interesse na senhora? – ela quebrou o contato visual, retocando o batom no espelho. – A senhora não é ninguém para nós. – caminhou decidida para a porta e parou com a maçaneta na mão. – É só a garota de recados.
Shunrei apoiou-se na bancada, conseguindo respirar.
"Isso não pode continuar." Seus olhos dardejavam sem parar. "Não pode mais acontecer. Não vão me afetar."
- Você demorou. Aconteceu alguma coisa? – Shiryu a aguardava com as malas no carrinho.
- Sim. – a boca de Shunrei estava seca. – Violete Behemoth estava dentro do banheiro. – o rosto dele se abriu de espanto. – Eles não vão parar, Shi. – as mãos dela tremiam levemente, os olhos determinados.
Ele olhou para todos os lados, sem ver nenhum sinal da mulher. Guiou-os para o saguão, encontrando os dois na frente do portão de desembarque. Régulus acenou e o Mestre veio rápido para perto.
- Pensamos que tínhamos errado de vôo. – o tom de Dohko era ansioso. – Onde vocês estavam? – abraçou Shunrei em um cumprimento rápido. – Estão em segurança agora. Vamos embora.
- Eu empurro o carrinho. – o sorriso de Régulus desapareceu ao ver a palidez de Shunrei. – Pode se apoiar aqui, sra. Shunrei. – abriu um espaço para ela segurar na manopla no carrinho. – Quer que eu pegue um chá ou algo doce? – ela assentiu, agradecendo quando ele voltou com dois chocolates.
- Esperem aqui, vou pegar o carro. – Dohko foi o mais rápido que conseguiu.
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O refeitório do Filhos das Estrelas estava em polvorosa naquela manhã.
Era a primeira vez que o namorado da tia Miho tomava café com as crianças e a novidade os transformou em tagarelas além do habitual. Há tempos Jabu ensaiava aparecer para conhecer o local de trabalho da garota e aproveitara a sexta-feira anterior para subir de Kamakura para Tóquio e dormir no apartamento dela.
A pedagoga resolvera dar uma chance ao insistente surfista. Desde o incidente na praia, ele iniciara uma espécie de 'marcação cavalheiresca', como ela gostava de definir os contatos inesperados, os convites charmosos e os momentos estimulantes proporcionados pelo jovem de sorriso sedutor e cabelos loiro-escuros. O casamento de Shunrei e Shiryu foi a ocasião perfeita para avançarem um pouco mais e ela passara a noite na casa que ele dividia com os amigos. Agora, ele retribuíra, ficando durante todo o final de semana.
- Pelo que Ikki nos contou, assim que as primeiras etapas do campeonato forem concluídas será a nossa investidura, aí estaremos à serviço do Santuário. – ele respondia a uma pergunta de Seika. – Por enquanto, ainda continuamos nos nossos empregos.
- E você trabalha de quê, tio? – um menino de mais ou menos 12 anos perguntou.
- Mas é claro que é como modelo, né? – a menina da mesma idade, sentada ao lado, revirou os olhos, como se fosse uma dúvida boba. – É só olhar para ele, seu bobo!
- Ele está falando de santuário. – outro garoto, recém-chegado ao orfanato, ponderou. – Pode ser monge.
- Ele é do 'O' Santuário, não um santuário qualquer. – o primeiro menino explicou. – É o Santuário do tio Seiya e do Éden.
- Além disso, ele não é careca. – uma menina pequenininha, ao lado de Miho, disse como quem sabe das coisas. – Todo monge é careca porque Buda era careca também.
- Calma, crianças. – a jovem ria ao mesmo tempo em que sinalizava para elas diminuírem o volume. – Deixem que ele conte para vocês. – seus olhos verde-escuros cintilando ao pousarem no namorado à sua frente.
- Será que o que eu trouxe de presente para vocês não foi pista suficiente? – ele cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha.
Miho viu as carinhas confusas e mexeu os lábios: L-I-V-R-O-S. Jabu estreitou os olhos para ela.
- O senhor é professor, tio? – o primeiro garoto falou alto de novo, levantando o dedo.
- Será que ele é dono de uma editora? – Seika instigou as crianças, se divertindo com a euforia.
- Tem uma papelaria! – ele apontou o dedo para a menina que falou, sinalizando que ela estava perto.
- Uma livraria! – a menina ao lado de Miho falou.
- Isso mesmo. – ele piscou para ela, fazendo as bochechas ficarem mais vermelhas. – Sou livreiro de uma pequena livraria que também vende pela internet.
Vários "uaus" e comentários. Ele respondeu outras perguntas, até de mesas próximas, com bom humor e paciência.
- Elas sempre fazem isso com os namorados das cuidadoras. – Miho explicou, vendo-o se virar bem com o bombardeio infantil. – Acho que querem se certificar que são boas pessoas.
Jabu prometeu jogar bola depois de ajudar na organização da cozinha.
- Você se daria bem com a família do meu marido, Jabu. – Seika comentou, colocando as tigelas no janelão aberto entre a cozinha e o refeitório. – Todos são escritores e mangakás.
- Seria bacana conhecê-los. – o loiro afirmou, mergulhando os talheres na bacia com sabão. - Nós vendemos mangás também. Não muitos.
- Seika está planejando levá-lo da próxima vez que for a Kamakura. Se ele tiver pelo menos um conhecido no Santuário vai facilitar. – os cabelos de Miho, cortados em camadas na altura de seus ombros, caíam pelas laterais de seu rosto enquanto ela comandava a pia. Ele ficava hipnotizado pelo efeito que provocava. Fora o que mais chamara a sua atenção naquele dia na praia. Os cabelos e a coragem.
- Seiya não o conhece? – o rapaz estranhou aquilo, olhando confuso de uma para a outra.
- Conhece, mas não gosta dele. – Seika mordeu os lábios. – Ele tentou fazer um mangá com Seiya como personagem e você imagina a barulheira que o meu irmãozinho aprontou.
Diferente da primeira vez em que treinaram juntos, mais maduros e com outros interesses além da constelação de Pégasos, Jabu e Seiya haviam entrado num entendimento em nome de uma convivência possível. Não seriam jamais melhores amigos, entretanto conseguiam estar no mesmo ambiente e, se preciso, entabular uma conversa rápida. Aquele dia na mansão da srta. Saori fora decisivo. Em nome de Miho e Saori, os dois selaram um acordo não-verbal de serem civilizados.
Nada disso impediu Jabu de imaginar o qual valiosa poderia ser a informação de que Seiya não gostava de seu cunhado.
- Você vai precisar ir à mansão Kido também? – Miho pareceu perceber onde a mente dele o tinha levado.
- Não. Por que você disse 'também'?
- O sr. Dohko veio com Régulus buscar Shiryu e Shunrei no aeroporto. – Seika respondeu, terminando de guardar as tigelas secas. – Ele avisou para saber se eu queria enviar alguma coisa para Éden. Vão almoçar na mansão e depois para casa. – Jabu assentiu.
- Vocês souberam do que aconteceu em Singapura. Não me admira que tenham vindo por eles. – o rapaz terminou de guardar as sobras na geladeira. – Se quiser, posso levar sua encomenda para Éden amanhã ou até a mansão hoje.
- Vou enviar uma mensagem a Régulus para saber se ainda estão em Tóquio. – Miho pegou o celular e enviou a pergunta.
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O carro zunia pelas ruas de Tóquio num silêncio taciturno.
Shiryu olhava a paisagem sem realmente ver.
"Isso está além dos limites do tolerável." Os lábios crispados contendo a raiva à muito custo. "Sempre houve sabotagens e rusgas, mas nada parecido." Olhou para os dois homens nos bancos da frente, igualmente pensativos. Régulus mexia no celular. Shunrei lutava contra o sono ao seu lado. Passou as costas da mão de leve em seu braço, chamando sua atenção.
- Tente descansar um pouco. – falou baixinho. – Você está com dois cavaleiros e meio agora. – ela emitiu um meio sorriso, segurando sua mão. Deixou a cabeça repousar no encosto e respirou fundo.
- Mais do que meio. – Dohko comentou, olhando-os pelo retrovisor. – Marin consentiu. – sua voz serena e orgulhosa. – Quem fará a tatuagem será Saga, já agendamos. – Régulus virou-se feliz para o motorista.
- Quero fazê-la do lado oposto à do meu pai! – o garoto informou, animado, mostrando o braço esquerdo. – A investidura será na próxima cerimônia! A senhora vai, não é? Sem a senhora, eu não teria conseguido.
- Claro que irei! – Shunrei sorriu para ele e Shiryu viu as olheiras escuras se acentuarem. – Você se esforçou tanto e eu quero assistir a sua sagração, sim. – ela abriu os olhos e estranhou ainda estarem dentro da cidade. - Nós não estamos indo para casa?
- Vamos primeiro ver a srta. Saori. – Dohko disse, virando na rua de acesso ao bairro da mansão Kido. – Ela pediu para ver vocês assim que pousassem. – Shunrei assentiu, franzindo os lábios. – Ela estava comigo quando você me ligou e quer conversar pessoalmente.
- Eu ainda não conheço a mansão. Yuzuriha e Orfeu falaram que é enorme. – Régulus parecia disposto a amenizar o clima tenso. – Disseram que tem uma floresta e um haras.
- É uma propriedade imponente. – ela confirmou. – Quando eu morava lá, gostava de brincar no bosque, mas Saori gostava mais de andar à cavalo, então eu a acompanhava. Ela ainda mantém quatro ou cinco para competições. Você quer experimentar? – Shiryu apertou os dedos da esposa, entendendo o que ela queria. Cavalgar ajuda na concentração. O garoto se virou para trás, mas parou seu ímpeto ao ver o perfil sério de Dohko.
- Não sei se teremos tempo, sra. Shunrei. – disse, as orelhas subitamente vermelhas.
- Estamos chegando. – Dohko afirmou, apontando para o muro branco alto e o portão gradeado preto adiante.
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- Acabaram de entrar na mansão. – Marin informou, lendo a mensagem do filho. – Vão ficar lá até depois do almoço. – sua Mestra balançou a cabeça.
- Tudo leva a crer que foi mesmo uma ação que partiu de alguém de escalão intermediário. – os cabelos castanho-escuros balançavam com o vento da manhã à beira do lago. – Pode ter a ver com a irmã ou nem chegaria a ela? Isso ainda temos que analisar melhor.
- A senhora acredita que não tentarão nada dramático outra vez? – a ruiva sentava-se de frente para Mayura, ambas descansando após o treino físico da manhã. – Eles não têm receio de se mostrar abertamente.
- Você está parcialmente certa. Eles passaram o recado que queriam: nossas defesas estão abertas e eles sabem nos desestabilizar. Agora, têm três alternativas: ou esperam para ver se damos um passo em falso, ou continuam nos distraindo enquanto nos enfraquecem, ou apertam mais a pressão. – a tibetana emitiu uma risada abafada. – Tudo depende de quem está no comando deles e da nossa reação. Aqui dentro – ela fez um círculo com o indicador – estamos seguros. Agora vamos garantir que estejamos preparados lá fora também.
- A reunião que a srta. Saori agendou vai ajudar a esclarecer muitas coisas. – Marin estivera ao lado de Mayura nas últimas semanas, monitorando a situação de todos relacionados ao Santuário. – Conseguimos neutralizar as ações contra Esmeralda no México e Shun dentro da Federação por serem meras questões burocráticas, por assim dizer. Com Shunrei é diferente.
- Com a maioria de nós, são apenas negócios. – um brilho prateado cintilou nos olhos cor de mel. – Quando se trata dela, há muitas emoções envolvidas, direta ou indiretamente. E isso me intriga. Até que ponto as duas organizações estão juntas nisso? Não vimos nenhuma movimentação da Atlantis Team, embora o atentado na Grécia seja definitivamente obra dos Solo. – Marin sinalizou que compreendia.
A ampliação do grupo relacionado ao Santuário, visto como algo desejável para fortalecer a organização, se mostrava mais complexo de manter em segurança. Agora que as patrocinadoras reconheceram as equipes concorrentes, iniciou-se uma corrida para obter informações sobre os principais membros a fim de utilizá-las para obter vantagens físicas, psíquicas e políticas.
Precisaram acionar o representante da Fundação Graad no México para evitar que notícias difamatórias sobre a família de Esmeralda fossem divulgadas. Foi por um triz. Nem Shion conseguira dissuadir a junta médica de aceitar uma denúncia anônima contra os métodos de Shun. O Grande Mestre afastara a denúncia, que poderia bani-los da Federação Internacional, mas teve que engolir uma auditagem inédita.
- Verei o que descubro sobre a participação de Julian Solo e Taeko Sato. – a Amazona de Águia afirmou, séria. – Enquanto estive na Coréia, consegui contato com algumas pessoas. Tenho sua permissão para introduzir as novas amazonas? – um levíssimo sorriso passou pelo rosto da antiga Amazona de Pavão e atual Líder das Amazonas.
- Sim, Yuzuriha, Pavlin e Eurídice. Reforce com Selinsa as instruções sobre a escola de adolescentes e crianças. June e Shaina já estão instruídas.
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- Até que enfim! – Saori exclamou assim que saiu do escritório. Terminara uma reunião que durara a manhã inteira com presidentes dos Conselhos Administrativos de todas as filiais da Fundação Graad. Veio direto até a biblioteca. – Desculpem ter feito vocês esperarem. – abraçou-os com força, estranhando o rosto fino da amiga. – Queria ter enviado um avião para buscar vocês.
A porta dupla fora aberta para a lateral da fonte e uma brisa fria entrava no ambiente. Régulus saíra para explorar os terrenos.
- Nós não sabíamos ao certo quando poderíamos voltar. – a chinesa disse, devolvendo o abraço.
- E, para completar, foram recepcionados por ninguém menos que Violete Behemoth. – o tom de Dohko demonstrava o seu desgosto. – Eu disse que eles estão um passo à nossa frente. – ele se sentou na poltrona em frente ao sofá onde os três se alojaram. Saori franziu a testa e seus lábios sumiram à medida que Shunrei contava o encontro no banheiro.
- Pedi uma reunião com os irmãos Heinstein. – ela segurava as mãos da amiga. - Quero que Shion e Mayura participem. Estamos avaliando também uma denúncia à Federação, mas precisamos agir com cautela. – ela procurava olhar para os três. – Vocês querem ficar aqui na mansão hoje?
Shunrei olhou para o marido, do seu outro lado. Shiryu não dissera palavra depois de cumprimentar a dona da casa. Ele assentiu minimamente.
- Queremos chegar em casa, Saori. Ryuho deve estar preocupado conosco. – a amiga assentiu.
- Dohko deve ter informado as medidas que adotamos no Santuário. – o Mestre confirmou com a cabeça. – Estão seguros lá como aqui. Isso tudo é um ultraje, nunca passei por nada igual. Mas vamos reagir.
Shiryu se mexeu, visivelmente incomodado. Shunrei colocou uma mão em sua coxa.
- Pelo menos almocem comigo. – a expressão de Saori não admitiria uma recusa. – Shunrei, venha comigo para falarmos com a cozinheira. Rapazes, a casa é de vocês. – sem esperar resposta, puxou-a para fora. – Precisamos falar em particular. – explicou assim que saíram da sala.
- Eu sei. – Shunrei previra que a amiga faria isso. – Só não poderemos tomar champanhe com chocolate. – sorriu, seguindo-a até a cozinha e depois para a sala de TV.
- Você está com uma cara cansada e preocupada. – Saori afirmou assim que fechou a porta. – Tem algo mais que não está querendo falar com os outros? – Shunrei respirou fundo. – Nós vamos resolver essa questão antes que se torne mais sério. Não quero, de jeito nenhum, que você pense em ceder. Eu sei como você age e não vou permitir que se sacrifique dessa vez. Eles estão invadindo a sua vida por poder e dinheiro. – a voz de Saori se tornava mais incisiva e aguda e Shunrei sentiu um assomo de gratidão pela amiga. – Não vou descansar até que eles parem. Vou descobrir o que Julian tem a ver com tudo isso também.
- Não estou disposta a ceder nada se houver alguma ponta de esperança. – a chinesa afirmou. – Não conseguirão me intimidar porque sei que vocês estão ao meu lado. Mas é que... Eu não esperava algo assim na minha lua-de-mel... – falou, corando. Só conseguiria falar sobre aquilo com sua melhor amiga. – Eu idealizei tanto isso... Sei que é bobagem minha... Nós nos divertimos, mas ela vai ficar marcada por esses acontecimentos horríveis. E você viu como Shiryu está. – mesmo não chorando, a voz ficou embargada. – Ele estava se abrindo para mim, realmente confiando que nós vamos ficar juntos. Agora o medo voltou. Ele teme que eu o deixe, que faça como a ex-esposa. – Saori franziu a testa.
- Isso é outra bobagem. – ela ergueu a mão quando Shunrei abriu a boca para protestar. – A gente faz e pensa bobagem o tempo todo, eu sei. A questão é admitir isso. Vocês tiveram ótimos momentos em Singapura, as centenas de fotos e vídeos provam isso. Que tal se você contasse histórias das fotos e o convidasse a participar? Vai mantendo as memórias boas sempre vivas. – Shunrei meneou a cabeça. – Agora me conta o que 'realmente' está acontecendo a mais. – os olhos violeta brilharam. – Você está mais magra e duvido que seja apenas pelos quatro dias no hospital. – cruzou os braços, esperando. Shunrei mordeu os lábios e fechou os olhos. Não admitira essa possibilidade nem para si própria e não gostava se sofrer por antecipação.
- Acho que estou doente. – engoliu em seco. – Vomitei várias vezes e minha cabeça está aérea, estou com dificuldade de me concentrar. Minha memória está ruim. Não tenho apetite quase nenhum. – agora as sobrancelhas de Saori fizeram o caminho oposto, erguendo-se quase até a linha do cabelo. - Vou fazer exames quando retornar. Espero que não seja nada grave.
- Shunrei, você pode estar grávida! Não vai me dizer que não pensou nisso. – os olhos azuis arregalaram e estreitaram. Ela negou com a cabeça veementemente.
- Remotas as chances. Eu menstruei há menos de duas semanas.
- Por quê? Você me disse que não usam nenhum contraceptivo há meses. – Shunrei quis retrucar, mas não conseguiu pensar em nada. – Não seria a primeira mulher que sangra grávida, não é? – Saori abriu um sorriso luminoso. – Sei do histórico do atentado, mas não podemos descartar. Me prometa que não vai pensar que é doença antes de confirmar.
Shunrei engoliu várias vezes. Claro que pensara em gravidez, mas não queria jogar suas energias de esperança ali. Por isso, sequer comentara nada com Shiryu. Entretanto, pensar em doença não ajudava a melhorar seu humor e nem seu apetite.
- Não quero alimentar expectativas.
- Concordo, não alimente nenhuma. – Saori assentiu com a cabeça. – Nem de gravidez e nem de doença. Mas, se não resistir até ter certeza, pense que eu quero ser madrinha, hein? – isso fez Shunrei rir. – Aquelas garotas de Kamakura vão fazer fila, mas eu pedi primeiro. – as duas riram e se abraçaram. – Outro assunto antes do almoço, você vai me ajudar com o meu casamento, não vai? – Shunrei piscou pela mudança brusca de assunto. – Imagino como deve estar a sua cabeça com essa pressão enorme, mas pensei que talvez se envolver com algo mais leve seja bom. – algumas pessoas poderiam julgar Saori frívola nessas ocasiões, entretanto, sua melhor amiga entendeu o convite alegre. – Você pode escolher no que prefere se envolver e o seu limite. Vai haver uma agência de eventos envolvida. - era a forma dela afirmar seu amor e que queria tê-la perto.
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- Você está calado. – Dohko disse, assim que as duas fecharam a porta. – O que aconteceu? – Shiryu deu uma risada abafada. Seu Mestre encostou-se na poltrona, cruzou as pernas e esperou. Ele respirou fundo, olhando para o jardim durante alguns minutos antes de fixar os olhos verdes nos castanhos.
- Estou muito envergonhado. De que adiantaram todos os anos de treinamento se não consegui protegê-la? – ele falava baixo, como se a voz não quisesse sair. – Será que eu fiz bem em insistir com ela? Se a tivesse deixado em paz, ela estaria na Coréia, segura. – Dohko umedeceu os lábios com a língua. – Ela não dorme há quatro dias ou sei lá quantos antes. Não fui justo com ela. Fiz promessas que não consigo cumprir.
- Como você lutaria contra três ou mais homens bem treinados? – o Mestre falou devagar, pedindo para ele analisar a questão sem o calor das emoções. – Nada disso tem a ver com justiça, Shiryu. Justiça é dar a cada um o que lhe é de direito, de acordo com suas aptidões (1). O que está acontecendo tem pouco a ver com justiça e mais a ver com vaidade e orgulho. – viu a garganta de Shiryu se mover várias vezes. – Vocês estão no turbilhão de um furacão e precisam ser fortes e se apoiar. Principalmente, não se isolarem. Por isso, Shion e eu insistimos no fortalecimento do controle mental e emocional.
- Ela está sendo afetada por estar perto de nós... Não consigo pensar direito se ela e Ryuho não estiverem em segurança. – seu discípulo o fez calar com a declaração. – Não sei como direi a ela e nem como farei, mas não é mais possível eles ficarem em Kamakura. Não enquanto nós estivermos sob ataque. Não vou continuar a submetê-la a ser 'garota de recados'.
Dohko se levantou e caminhou pela sala. Sabia o que precisava dizer, mas lhe faltavam palavras.
- Shiryu, como foi a lua-de-mel? – ergueu as sobrancelhas como se fosse uma conversa descontraída. – Até o dia do ataque, vocês estavam muito felizes, não estavam? Ou as fotos e vídeos eram mentira? – o discípulo negou lentamente, não entendo. – Lembra que conversamos uma vez que você teve sorte em tê-la conhecido e ela também? – Shiryu confirmou. – Não conheço duas pessoas que funcionam melhor juntos do que vocês dois. Vocês são fogo e ar (2), um alimenta o outro em harmonia. Não adianta negar.
- Não se trata disso, Mestr...
- Pode chegar ao ponto em que precisemos tomar medidas drásticas, mas essa não pode ser a primeira opção. Como é que você decide afastá-la depois dela ter passado tudo que passou por sua causa? – Dohko parou de frente para ele. – Não estou te reconhecendo, Discípulo. Não foi assim que eu ensinei você a lutar. Pelos Deuses, só por ela ter enfrentado a sua ex já seria motivo para você perceber a estirpe de Shunrei! – Shiryu não conseguia olhá-lo, bastante interessado no que acontecia do lado de fora da porta de vidro. Então, subitamente, Dohko compreendeu. Sentou-se na mesinha de centro. – Se tem algo que eu posso te garantir com absoluta certeza é que ela não vai abandonar você nem seu filho. E você precisa superar, Shiryu. Ninguém entra num relacionamento limpo, sem defesas ou traumas, mas ela está se esforçando e você precisa ir além também. – esperou os olhos verdes voltarem-se para ele. – Não há nada no comportamento dela que deixe a menor dúvida, muito pelo contrário. Shunrei está o tempo inteiro provando que escolheu você e não vai soltar. – um meio sorriso curvou os lábios de Shiryu.
- A sra. Yin Seon-in, dona da farmácia em Gangseo-gu, me disse mais ou menos a mesma coisa. Ela disse: 'Não desista dela. Pelas histórias e ações que vi, tenho certeza que ela não vai desistir de você'.
- Você sabe disso aqui. – Dohko tocou dois dedos na testa dele. – Precisa confiar aqui. – tocou no meio do peito... O que foi? – o sorriso aumentara.
- Shunrei me pediu isso também.
- Então você é um péssimo ouvinte! – o tom de divertimento da voz de Dohko fez sua expressão desanuviar. – Precisa acreditar mais. Olha, não sou a melhor pessoa para falar sobre relacionamentos amorosos, mas sei algo sobre relações em geral e não conseguimos nada se não confiarmos de coração. Shunrei vai com você até o inferno sem pestanejar. E sei que você vai com ela de mãos dadas. – os olhos castanhos brilharam ao ver o jovem que era seu filho lutando entre o coração e o que considerava justiça.
Estava na hora de conversar com eles.
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- Da próxima vez, vou trazer os outros. – ele confessou, deitado à sombra da árvore, as mãos sobre o abdômen, recuperando a respiração. Os cabelos e a camiseta estavam úmidos de suor. – Quase me mataram, os pestinhas.
Ele fora descansar ao lado de Miho, que recortava cartolinas e EVAs para decorar o cartaz dos aniversariantes do mês.
- Será bom mesmo. – ela riu, balançando a cabeça com o tom dramático. - Não quero que você morra logo depois de ter me conhecido. – Jabu abriu um sorriso de orelha a orelha.
- Ah é? E por quê? – Ele deitou de lado, a cabeça apoiada na mão. – Você iria sentir a minha falta? – Miho meneou a cabeça, colocando a tesoura no queixo, pensando no assunto.
- Não... É que pode dar azar, né? Um esportista, com vida saudável e fôlego para surfar durante horas, morrer ao jogar futebol com crianças. Vão pensar que eu dou azar. – ele acariciou o braço dela, baixando a voz.
- O meu fôlego é bom para outras coisas também, não é? – ela ficou vermelha como um pimentão e escaneou ao redor para ver se não havia ninguém por perto. – Você mesma testou e aprovou. – os olhos da garota arregalaram e ela bateu no braço dele com um tubo de cartolina.
- Pare de dizer essas coisas, está maluco? – ele aproveitou e deu um selinho, fazendo-a ficar completamente envergonhada.
As crianças riam, assistindo da varanda a tia Miho correndo atrás do tio Jabu, ele rindo e ela tentando pegá-lo com os punhos fechados.
- Onde está o sr. Jabu? – Seika chegou à porta, sorrindo ao ver o casal descontraído. – Ei, crianças! – ela os chamou e as crianças ao seu redor riram mais. – Miho! Jabu! Jabu, telefone! – ela apontou o aparelho sem fio. Os dois a viram gesticulando e foram até ela. – É o sr. Shion.
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- Quer mais? – Saori viu o olhar comprido de Régulus para a bandeja de docinhos e indicou que ele poderia servir-se de mais. O garoto olhou de relance para os outros e mais três maçãs carameladas pularam no seu prato.
- Pode deixar que Aiolia não ficará sabendo, mas é só hoje, hein? – Dohko piscou, fazendo-o corar. – Srta. Saori, há uma última conversa que eu gostaria de ter com os dois. Podemos usar só mais um pouco a sua biblioteca? Não vamos demorar.
- Claro, eu fico com esse devorador de sobremesas aqui. – Régulus sorriu, as orelhas vermelhas.
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Dohko olhava os dois jovens à sua frente, pensando como começaria. Shiryu franzia a testa, não enganando seu Mestre ao tentar esconder a curiosidade e uma leve impaciência. Shunrei praticamente não se alimentara, seu rosto pedindo desesperadamente um local seguro para dormir enquanto usava tudo que aprendera com Shaka para manter-se alerta. E essa condição era a origem da impaciência de seu discípulo.
Ou seja, os dois estavam em seus limites. E ele iria empurrar esses limites um pouco mais.
- Quero conversar com vocês agora porque quando chegarmos a Kamakura talvez não tenhamos outra oportunidade tão cedo. – ele começou e os dois assentiram. – Ryuho não vai largá-los, tampouco Shion e Mayura. – esperava que eles soubessem o quanto os amava. – É uma história antiga, então alguns fatos estarão tingidos pelas cores da saudade, mas vou tentar me lembrar com o máximo de veracidade que eu conseguir. – ele fechou os olhos por alguns instantes. Ao abri-los novamente, Shunrei e Shiryu perceberam que ele estava em outro tempo e lugar. – Havia um garoto, quase um menino, que passara a vida vagando de aldeia em aldeia, nas terras altas do sudeste da China. Ele perambulava sem família desde que se entendera por gente, dependendo da bondade ou da maldade alheia para comer, se vestir, não apanhar e se abrigar da chuva ou da neve. Até que chegou a uma grande cachoeira onde um senhor o acolheu. O menino era quase selvagem, mas ali ganhou comida, um teto, educação e algum afeto. O senhor também o ensinou a lutar. – os dois ouvintes atentos à voz mudando de incerta para feliz. – O menino se tornou o discípulo orgulhoso do grande mestre e passou muitos anos com ele, até as pessoas quase se esquecerem de que ele não nascera ali. E então, como era de se esperar, o menino, agora jovem, se apaixonou. A moça era filha de uma das famílias camponesas, muito inteligente, divertida, corajosa, leal e bonita. – ele enumerou as qualidades da moça devagar, dando peso às palavras. Os dedos de Shiryu entrelaçaram os da esposa. – Naquela época, as famílias que permitiam que as filhas sobrevivessem esperavam trocá-las por vantagens no casamento e o jovem não tinha nenhuma. Apesar de ser respeitado, ele não tinha emprego, nem terras, nem dinheiro, nada a oferecer a não ser o seu coração... Foi muito difícil para eles entenderem aqui – tocou o seu peito. – o que já sabiam aqui. – tocou a testa. Parou para corrigir a respiração, que se tornara rasa e emocionada. Respirou fundo, revivendo as emoções.
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- Desculpe não ter avisado, srta. Saori. – Jabu cumprimentou os dois, que ainda estavam na mesa do almoço. – O sr. Shion pediu para que eu viesse.
- Ele me informou. – Saori indicou para se sentarem e pediu pratos para eles. – Que bom que você está por aqui hoje e trouxe Miho também. Acredito que ainda não tenham almoçado. – sorriu para a jovem, que sempre ficava tímida em sua presença.
- Não é necessário, srta. Saori. – ela tentou recusar, mas as travessas retornaram à mesa e eles realmente estavam com fome, pois saíram às pressas do orfanato.
- Eles entraram na biblioteca, mas o sr. Dohko disse que não demorariam. – Régulus informou, feliz pelo companheiro de treino estar ali. – Aproveitem enquanto eles conversam.
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- O senhor quer um copo d'água? – Shunrei perguntou baixinho, o coração oprimido pela tristeza que nunca ouvira na voz de Dohko. Ele sinalizou que não.
– A família dela encontrou um rapaz com melhores condições que o discípulo e ele, que já havia se comprometido com ela intimamente, recuou. – os olhos castanhos afogados em água salgada e as faces pálidas. - Achava que se afastando faria melhor do que insistindo em algo que não teria futuro. Ele era jovem e sofria de uma doença juvenil chamada ansiedade. Ela, obediente aos pais, aceitou o casamento. Eles nunca mais se viram porque o jovem discípulo evitava a todo custo passar perto dela e conseguira. Não era difícil ficar meses isolado em seu treinamento. Uma noite, ele recebeu um recado que deveria ir. Ela queria vê-lo. – aqui Dohko fez uma longa pausa e Shunrei, sentando-se na pontinha do sofá, segurou a sua mão. Shiryu engoliu em seco. – Ela mostrou uma bebê a ele. Era pequena, de pele branquinha e os olhos enormes, iguais aos dela... Ele propôs que eles fugissem, mas ela não iria manchar a honra de sua família... O jovem saiu de lá com o coração despedaçado e pediu seu mestre o enviar a qualquer lugar. Ele foi atendido e enviado para o Tibete.
- E ele nunca mais a viu? – Shiryu perguntou num murmúrio, com a certeza agora de quem era o jovem. Dohko olhou para ele e depois fixou em Shunrei, emitindo um meio sorriso.
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- Ainda estão nos seguindo? – Camus perguntou, caminhando pela calçada calmamente. Os dois pararam em frente a uma alfaiataria, vendo pelo reflexo os dois sujeitos com quem topavam desde que desceram do trem em Enoshima.
- Se querem nos amedrontar, não estão fazendo um bom trabalho. – Milo retrucou, o rosto sério. – Só estão me fazendo ficar furioso.
- Claro que não podem nos ameaçar aqui. – Camus fez um gesto para a rua movimentada. – Como não estão preocupados em disfarçar, só podemos supor que querem se exibir para nós.
- Era só o que me faltava, uns frangotes desses quererem nos amedrontar. – os olhos azuis-celestes do escorpiano brilharam perigosamente. Camus segurou no braço do namorado.
- Nem pense nisso, Milo. Lembre-se do que Shion nos disse. Eles querem nos pressionar e nos provocar. – os cabelos azul-turquesa balançaram junto com a cabeça reforçando a recomendação. Milo bufou.
- Eu sei muito bem disso, mas não podemos deixar que façam o que querem. Se continuar assim, daqui a pouco não conseguiremos nem sair do quarto sem topar com algum deles. – uma sobrancelha de Camus ergueu levemente.
- E quem disse que não vamos reagir? – apontou o lugar que procuravam, no meio do quarteirão seguinte. A placa simples, com as bandeiras de Brasil e Itália cruzadas, marcava o início do domínio gastronômico do restaurante Esquina Latina.
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– Após concluir os estudos, o jovem voltou à Grande Cachoeira para informar ao seu mestre que iria para o Japão com um amigo que conhecera. Estava falando com ele quando entrou na sala a menininha que ele vira recém-nascida, correndo atrás do irmãozinho ruivo que ria dela. O jovem não a via desde bebê e ali estava ela, uma garotinha corajosa, que enfrentara a morte dos pais e cuidava do irmão menor... – os olhos de Shunrei foram se abrindo, quase rasgando as pálpebras. O coração de Dohko parecia um bicho selvagem enjaulado batendo nas costelas. - Quando os dois entraram na sala, o jovem ofereceu uma das flores que colhera enquanto subia a trilha até a casa do Mestre Ancião e disse que ela...
- Tinha os olhos da minha mãe. – Shunrei disse e colocou a mão na boca, a imagem do jovem alto e imponente, com estranhas roupas de viagem, nítida em sua mente. Seu corpo todo tremia. – Ele falou que eu tinha os olhos da minha mãe e que ela também gostava daquela flor. E Genbu me puxou, dizendo que eu não deveria conversar com estranhos e o Mestre Ancião riu e disse que não era estranho, era um amigo. – ela falou muito rápido, sentindo que fora atingida por um raio. Dohko balançou a cabeça, confirmando. Ela ouviu, vinda da noite em que se conheceram em Gangseo-gu, sua própria voz dizendo 'Então você é o discípulo que foi embora na semana que eu cheguei à casa do Mestre!'
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- Quer dizer que eles podem estar seguindo todos nós? – Jabu perguntou, incomodado com a informação de Régulus. Olhou para Miho, apreensiva ao seu lado.
- Não, os alvos deles são os lutadores profissionais, os que vão disputar o Campeonato. – os olhos de Régulus prestavam atenção às reações da moça e ele resolveu usar seu tom mais descontraído. – Nós aspirantes não oferecemos nenhum risco, não é?
Os três iam até o bosque, caminhando devagar pelo gramado nos fundos da mansão. Saori garantiu que os avisaria quando a conversa terminasse. Era um dia de outono típico, ensolarado e com temperaturas mais baixas. Estaria agradável se não fosse pela tensão subjacente.
- Por que fazem isso? – Miho franziu o cenho. – Planejando algo? – o leonino negou.
- Querem nos intimidar. Minha mãe contou que já usaram essa estratégia antes. – enquanto seguiam, Régulus prestava atenção ao redor, testando o cheiro do vento, algum movimento no canto dos olhos, sons que lhe chegavam. – Não farão nada, só para provocar mesmo.
Jabu notara os movimentos suaves das mãos e a forma como o jovem inclinava a cabeça para um lado e para o outro. Fazia o mesmo, embora soubesse que o amigo tinha um talento nato que o tornava um excelente observador e caçador.
- Será que é seguro ir até o bosque? – Miho se aproximou mais de Jabu, que lhe ofereceu a mão. Os dois rapazes trocaram olhares, percebendo que haviam falado além da conta. A garota não tinha nenhuma relação com o Santuário e nem com as práticas antiesportivas das outras equipes.
- Se vocês quiserem, podemos ir às estrebarias. – Régulus apontou para os telhados ao longe. – Mais cedo fui lá e estavam se preparando para os exercícios com os animais.
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- Naquele dia, eu escolhi novamente ficar longe, pensando que era o certo a fazer. Não me sentia digno e nem preparado. – Shiryu estava admirado como a voz dele permanecia firme com as emoções jorrando pelos olhos e as palavras. – Quero que você saiba que eu faria tudo diferente e tentei fazer agora que a vida foi generosa em me dar uma oportunidade de consertar o que fiz de errado, de tentar mais uma vez. – ele, enfim, se mexeu, colocando a mão morena sobre a dela. – Sua mãe nunca me disse... Não sei se sou seu pai. – a voz era só um sopro. – Sei que amei sua mãe e amo você. No instante em que a vi naquele vídeo em que você se apresentou como namorada de Shiryu o meu amor ressurgiu inteiro, como se nunca tivesse ficado escondido. – os olhos castanhos quase não enxergavam a mulher à frente. – Eu jamais imaginaria que esse meu péssimo discípulo me faria uma surpresa dessas.
Ele se calou e esperou. Shunrei tinha os olhos vermelhos e parecia disposta a sair correndo dali. Seu peito subia e descia, a boca seca. Desde que se lembrou da cena do jovem com a flor o pânico se apoderara dela. Shiryu tocou suas costas e ela se atirou nos seus braços. Estava gelada e se apertou contra o corpo quente para não sucumbir.
- Meu amor... – ele começou.
- Não fale nada, por favor. – ela conseguiu dizer antes de começar a soluçar. Seu peito doía e era a única forma de diminuir a dor. Seus braços o agarravam e ela soluçava alto.
Shiryu olhava absolutamente incrédulo para Dohko. Não precisava explicar o que significava aquilo para uma mulher que pensara, desde os sete anos, estar sozinha no mundo. Os dois esperaram imóveis o choque esvair com o choro. Ele compreendia as motivações de seu Mestre, tanto na juventude quanto agora, mas ele não calçava os sapatos de Shunrei. Depois dos últimos dias, não sabia o que aquilo poderia causar nela.
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- Que cara de pau desses sujeitos! – Aldebaran postara-se de braços cruzados na vitrine do restaurante, olhando ameaçador para os quatro homens encostados no poste do outro lado da rua, fumando um cigarro atrás do outro e comendo salgados da barraquinha ao lado.
Para quem não soubesse o que estava acontecendo, pareceriam um grupo de amigos batendo papo.
- São tutti stronzi (3). – Massimo revirou os olhos, depositando a pizza no centro da mesa. – Querem que eu vá lá mostrar a porta do inferno para eles entrarem?
- Shion quer que aguardemos não sei o que exatamente, mas isso já está me dando nos nervos. – Milo entornou o resto do vinho, pegando uma das fatias da pizza cheirosa.
- Deixe-os aí, Aldebaran. – Camus chamou o amigo para comer com eles. – Eles não estão fazendo nada.
- E esse é todo o problema. – o brasileiro retornou para o fundo do pequeno salão, dobrando uma fatia e mordendo a metade. – Se eles fizessem algo, poderíamos revidar. Ontem, outros dois ficaram ali naquele mesmo lugar até fecharmos. Afrodite contou que tem um na porta da sorveteria também.
Durante algum tempo conseguiram ignorar as presenças incômodas. Quando Massimo trouxe a terceira pizza, Milo empilhou seis pedaços num prato.
- Ma che fai (4)! – o italiano gritou para o grego, que já ia porta a fora. – A outra ainda vai demorar! – olhou para Camus, que deu de ombros, tomando outro gole de vinho. Não demorou dois minutos e Milo estava de volta.
- O que você disse a eles? – Aldebaran perguntou, vendo os homens cheirando, desconfiados, as pizzas.
- Apenas um ditado grego. – Milo se sentou ao lado de Camus, os cabelos azuis revoltos pelo vento lá fora. – 'A guerra é a mãe e rainha de todas as coisas; alguns transforma em deuses, outros, em homens; de alguns faz escravos, de outros, homens livres.' – os chefs ficaram em silêncio por um segundo antes de caírem na gargalhada.
- Você desperdiçou uma bela lição com aqueles enfoirés (5). – Camus suspirou, oferecendo uma mordida do último pedaço a ele.
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Demorou para ela afastar o rosto inchado e vermelho do seu peito, os olhos úmidos buscando os dele antes de se virarem para o homem à sua frente.
- Shiryu disse que o senhor era oito anos mais velho do que eu. – falou em tom de dúvida, os soluços ainda perceptíveis. Dohko pigarreou, pensando que hoje era o dia de revelar todos os seus pecados.
- Quando comecei a lutar, precisei falsificar a minha idade para competir. Sou baixinho e Shion e eu decidimos que seria mais vantajoso se eu competisse como se fosse mais jovem. – Shiryu levantou a cabeça, os olhos verdes escandalizados. – Não me orgulho disso nem um pouco. Fruto de uma outra doença de juventude, o imediatismo e... talvez... da extrema necessidade em que nos encontrávamos... Se eu pudesse voltar, faria diferente. – Dohko apressou-se a dizer. – O fato é que não sou oito anos mais velho do que você. São 15 anos de diferença.
Ela assentiu, enxugando o rosto com as costas das mãos. O coração dele se expandia infinitamente ao vê-la se esforçando para entender.
- O senhor me acompanhou de alguma forma?... Pediu notícias minhas? – ele confirmou.
- O Mestre Ancião me contava. E depois, os Huang. – ele se inclinou para frente, oferecendo as mãos para ela. – Eu gostava de imaginar que a sua veia andarilha você herdou de mim, mesmo sem saber... – a voz dele se partir. Ela assentiu mais uma vez. Mordeu os lábios.
- Por que o senhor não me contou antes? – ela conseguira fixar os olhos nos dele, a voz ainda úmida. – Quando nos reencontramos agora... A srta. Shaina sabia, não é? Quando me conheceu, tive uma sensação estranha, embora não identificasse o que poderia ser... Ela já sabia?
- É uma história antiga e dolorida, que mostra uma grande fraqueza minha. – ele respondeu com sinceridade, as lágrimas voltando a invadir seu campo de visão. – Resolvi que só contaria se isso fizesse algum sentido na sua vida, se pudesse ajudar você hoje. E, sim, Shaina sabe. E ela sempre me incentivou a contar a você. Se eu não contasse a ela, não poderíamos ter um relacionamento. Apenas ela, pelo meu relato, Shion e Mayura, por terem vivido uma parte dela comigo, conhecem essa história. E os Huang, que a conhecem inteira. – novo assentimento de Shunrei.
A apreensão dele diminuía à medida que conversavam. Viu que Shiryu também se acalmava, voltando a pousar uma mão na coxa dela. Os dois respeitando o tempo e os silêncios. Shunrei fungou, suspirando profundamente. Estendeu as mãos geladas e deixou que Dohko as apertasse nas suas geladas.
- Não cabe a mim julgar as suas decisões. Tenho certeza de que o senhor fez o seu melhor. – ela tentou sorrir, mas os músculos não obedeceram. – Não precisa se preocupar. Vamos fazer diferente.
- Shunrei. – por fim, Dohko apertou as pequenas mãos nas suas. - Lúshān huā (6), não falei do passado querendo mudar nossa relação. Você está tão livre como sempre esteve, entendeu? - ela assentiu, agora conseguindo sorrir, os olhos ainda nadando em lágrimas.
Ela respirou fundo novamente, seus dedos apertando afetuosos os de Dohko. Engoliu em seco e, soltando as mãos dele, virou-se para Shiryu.
- Eu gostaria de falar algo com você. – secou o rosto e se recompôs o melhor possível. Esperava que, com a história do Mestre tão fresca, ele ponderasse. – Não sabemos de onde estão vindo realmente as ordens para essas perseguições, mas para o incidente na Grécia conseguimos... A Fundação e o Santuário... conseguimos identificar quem deu a ordem. – Shiryu virou todo o corpo para ela, a postura alerta. – Foi o pai de Julian, o sr. Yiannis Solo. – ela falou com os lábios duros. Os olhos de Shiryu estreitaram e seu corpo enrijeceu. – Ele queria garantir que eu ficasse longe do filho e dos seus negócios. Julian não sabia de nada. Ele tomou medidas para me proteger quando soube.
- Aquela conversa no dia do evento...? – ela confirmou com um aceno. Ele olhou dela para o Mestre. – Provavelmente, é por isso que Taeko não está mais com ele. Então já sabemos de onde está vindo esse comportamento despropositado, Mestre.
- Quando chegarmos em Kamakura Mayura terá as informações que precisa para nos dar certeza. – Dohko ponderou. – O seu raciocínio está correto. Quando tivermos a confirmação, poderemos montar uma estratégia.
- Me desculpe não ter falado com você antes. – Shunrei retornou. – Não queria trazer mais preocupações e o assunto parecia encerrado. – Shiryu negou, um meio sorriso aparecendo.
- Sei que tenho agido impulsivamente e isso a fez agir assim. – tocou o dorso da mão dela em seu joelho. – É mais umas das coisas que não vai mais acontecer.
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A tarde caminhava para o seu fim e os paredões ganharam a coloração dourada que ele gostava de apreciar do portão do sobrado verde. Logo estariam em casa. No rádio, era hora do noticiário local. O locutor alternava as principais informações da região com músicas para tranquilizar os motoristas que enfrentavam o trânsito na hora do rush, embora a pista de descida para Kamakura tivesse poucos veículos.
- Não está com sono, Mestre? – Shiryu agora ia no banco do passageiro e lutava contra o sono para acompanhá-lo. – O senhor acordou de madrugada para chegar ao aeroporto àquela hora.
- Posso dirigir ainda umas três horas sem parar. – o tom de Dohko era relaxado. Ele era bom motorista, fazendo o carro deslizar suave e veloz. Olhou pelo retrovisor e sorriu. – Ela pegou no sono ainda em Tóquio. - Shiryu olhou para a esposa adormecida, voltando lentamente a mirar a estrada à frente, parando por um segundo no perfil de seu Mestre.
- Posso fazer uma pergunta sobre o que o senhor nos contou? – ele estava inseguro se era o momento adequado. Dohko pensou um instante antes de dar permissão. – Como era a mãe de Shunrei? Elas se parecem? – o chinês sorriu.
- Ming Yue era linda como a filha. A pele era muito branca e os dentes fortes porque os pais cuidavam dela como um tesouro. Ela gostava de usar os cabelos na altura dos ombros, retos. O nariz era um pouco mais fino que o de Shunrei, as sobrancelhas grossas. Os olhos eram idênticos. – ele tocava na parte do corpo que descrevia com uma lembrança vívida. – O formato do rosto das duas também igual. O queixo delicado e a boca suave. – o tom de voz era carinhoso e saudoso. - Mas, em personalidade são diferentes, apesar de corajosas e determinadas naquilo que acreditam. Shunrei é aventureira e destemida. Ming Yue jamais saiu de Rozan e queria levar uma vida tranquila, sem atribulações. Shunrei herdou dela a doçura e emotividade.
Uma van vinha em alta velocidade, pedindo passagem. Dohko passou para a pista mais lenta, mas assim que ultrapassou, a van ficou à sua frente.
- E do senhor a teimosia. – Shiryu completou, fazendo Dohko negar com a cabeça, embora continuasse sorrindo. – Obrigado, Mestr...
A van freou e Dohko teve que jogar o carro para a outra pista, passando por ela no último segundo.
- Tem algo errado. – falou, endireitando o corpo no banco. Shiryu viu os vidros escuros e soube que era uma emboscada.
Dohko tentou se distanciar o máximo possível, mas a van logo encostou neles novamente. Manobrou o carro para um lado e para o outro e a van os seguia de perto. Os pneus cantavam na estrada a cada freada ou aceleração brusca.
Shiryu pegou o celular e ligou.
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- Acelera que eles estão realmente sendo perseguidos! – Régulus gritou para o motorista. – Estamos a uns três quilômetros deles. – mostrou o localizador para Jabu.
Os dois vinham num carro cedido por Saori, distantes o suficiente para não levantar suspeitas.
- Vou acionar os outros. – Jabu ligou. – Já viram? – falou com a pessoa do outro lado. – Pelo jeito eles estão chegando a vocês. Sim, vamos pegá-los. – bateu no encosto do banco, sinalizando para o motorista correr.
- Lá estão eles! – Régulus apontou para os dois carros, que pareciam apostar corrida quando desapareceram numa curva.
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Dohko utilizava toda a sua perícia e atenção para correr naquela estrada sinuosa sem perder nenhuma curva e fugindo de bater na van, que hora dançava à sua frente, hora investia contra a traseira do veículo. Mais de uma vez, as laterais se chocaram e ele quase perdeu o controle da direção, recuperando o equilíbrio em seguida.
Shiryu tentou acordar Shunrei, mas ela estava tão exausta que nem o sacolejar das manobras repentinas a despertou.
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- Estamos vendo-os o tempo todo, senhor. – Régulus afirmava pelo celular. – Ainda não os alcançamos, mas estamos diminuindo a distância. Se algo acontecer, conseguiremos apoiar a tempo. Está tudo sob controle. Eles estão agindo conforme esperávamos. Eu retorno, sim, senhor Shion. – desligou o celular, tento comunicado ao Santuário o que estava acontecendo.
- O sr. Dohko dirige bem demais! – Jabu estava boquiaberto com a destreza dos dois motoristas. – Olha o que ele fez nessa ultrapassagem!
Os dois jovens torciam para que não houvesse movimentos em falso e nem muito tráfego à frente. Por enquanto, tinham passado por poucos veículos na estrada e um trânsito mais intenso poderia ocasionar acidentes graves. Os corações bombardeados de adrenalina, não tiravam os olhos dos dois pontos pretos.
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- Precisamos aguentar até passarmos do terceiro carro. – Dohko olhava pelo retrovisor a van escura colada neles.
- Terceiro carro? – Shiryu, franziu a testa. – Quer dizer que isso é uma armadilha?
- Ali estão eles. – Dohko apontou para um veículo parado no acostamento, com pisca-alerta ligado. Estava posicionado perpendicular à pista, mas Shiryu não teve tempo de raciocinar. O cavaleiro de Dragão bateu na perna da esposa como último recurso para despertá-la. Dohko acelerou até o motor do carro roncar alto, se distanciando o máximo possível da van.
No momento em que Shunrei abriu os olhos, o veículo estacionado partiu, batendo na lateral da van.
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Os dois viram a van rodar na pista, parando na proteção do outro lado, mas não parou de pronto. O motorista conseguiu recuperar o controle, deu um cavalo-de-pau e voltou à perseguição.
- Agora a gente tem que correr mais. – Jabu instigou o motorista. – Precisamos alcançar o veículo que bateu.
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- Eles continuam atrás de nós. – Shiryu informou, vendo pelo retrovisor. – Shunrei, se prepara para a gente parar o carro. Se apoia firme. Coloca o travesseiro em frente ao corpo.
- Já estou segurando. – ela ainda piscava para acordar de vez.
- Assim que o terceiro carro passar dele, quero que vocês coloquem força nas pernas para diminuir o impacto da manobra. – Dohko instruiu.
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O carro dos jovens alcançou o veículo, vendo que a lateral e a frente estavam amassadíssimas.
- Eles nos viram! – Régulus levantou o polegar para o motorista do terceiro veículo. – Atenção que agora vai começar a brincadeira!
- Régulus! – Jabu apontou para trás.
Uma outra van vinha zunindo.
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O veículo amassado acelerou, forçando a ultrapassagem. Assim que se viu entre o carro de Dohko e a van, manobrou para ficar atravessado na pista. A freada da van derreteu os pneus.
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- Eles conseguiram! – Dohko desacelerou e rodou o volante, fazendo o carro rodar 180 graus e voltar para onde os ocupantes da van já desciam.
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O motorista dos jovens parou da mesma forma atravessando a pista, para o caso da van querer fugir. Na mesma hora, Jabu e Régulus pularam para fora e o motorista e o segurança no banco do passageiro colocaram-se em posição de tiro usando as portas de escudo. Ato contínuo, a segunda van parou atrás do carro deles e saltaram cinco homens vestidos completamente de preto, com máscaras e coletes reforçados.
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Do veículo amassado, desceram os gêmeos tatuadores. Os cabelos azuis soltos no vento e os olhares frios, observando os sete ocupantes da van descerem já com os cacetetes em riste.
- Como Mayura sempre sabe essas coisas? – Saga emitiu um meio sorriso junto com a voz de ironia ao ver que eles não tinham armas de fogo.
- O que foi um grande erro da parte deles. – Kanon viu Dohko e Shiryu correrem para eles. – Vai servir para desenferrujar.
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Os seguranças apontavam as armas para os integrantes da outra van, pretendendo segurá-los o máximo de tempo possível.
Os primeiros a chegar à van que estava cercada foram Régulus e Jabu, que começaram a socar e chutar os mascarados, defendendo-se dos cacetetes e dos contra-ataques.
Saga e Kanon escolheram os dois mais altos. Dohko e Shiryu vieram para ajudar os dois jovens, que estavam cercados pelos outros cinco.
Era briga de rua, sem regras e sem juiz. Só parava quando um estivesse desacordado ou fraturado o suficiente para não levantar mais.
Os gêmeos eram impiedosos. Os jovens gritavam e zombavam dos adversários. Os rapazes de Shunrei não emitiam um único som além das respirações ruidosas.
Ela ouvia sons de gemidos, gritos e ossos quebrando. Corpos eram atirados no asfalto ou contra os carros. Havia xingamentos e uma fúria nos golpes dos Cavaleiros que era diferente do tatami. Foi quando ela se lembrou, aqueles homens aprenderam a lutar nas ruas de Tóquio, nas estradas da China. E depois haviam recebido treinamento, o que os tornava mais brutais. Mas os homens mascarados também eram treinados. De onde ela estava, conseguia discernir uma ou outra cor de cabelo ou sotaque e ela sabia que já tinha ouvido antes. Prestou o máximo de atenção que conseguiu.
Quando os Cavaleiros estavam quase vencendo, os cinco apoiadores conseguiram passar pelos seguranças e caíram em cima deles.
Ela viu um agarrar Shiryu pelos cabelos e dar um chute na cara dele que o fez tombar para o lado. Ela saiu correndo e parou quando chegou ao carro dos gêmeos, lembrando-se da recomendação do Mestre. Régulus foi erguido e atirado contra um dos veículos. Jabu estava no chão, apanhando do cacetete de dois mascarados. Dohko pulou sobre eles, rugindo como um tigre e os afastando. O cruzado de direita de Kanon acertou o queixo de um e Shunrei ouviu o som úmido quando ele bateu no asfalto perto dela. Saga quebrou os braços de dois, gritando para eles não levantarem ou seriam seus crânios.
Shunrei estava com a boca seca e os olhos ardendo de tão arregalados e sem piscar. Via que eles estavam muito machucados. Sangue escorrendo pelas bocas braços e mãos, ferimentos nas têmporas, arranhões do asfalto. Correu para os dois carros e pegou os kits de primeiros socorros.
Shiryu se levantou e atacou o homem que o chutara, dando uma chave de pescoço e depois jogando todo o seu peso para fazê-lo ajoelhar. Régulus se recuperou e derrubou dois com uma rasteira, batendo com o punho no meio do peito deles antes que pudessem se defender. Jabu ajudou Dohko a colocar três fora de combate. Os gêmeos terminaram de nocautear os últimos que permaneciam de pé. Kanon arrastou pelos cabelos o que parecia ser o líder e Saga tirava as máscaras deles para serem fotografados.
A ação toda durou menos de 15 minutos, mas a sua intensidade foi extrema.
Os dois jovens estavam sentados com os rostos vermelhos de sangue, respirando rápido. Shiryu permanecia de pé, apoiando-se na van, as roupas imundas e a camiseta rasgada em vários lugares. O rosto com a marca da sola e o nariz sangrando aos borbotões.
Dohko chamou os seguranças para colocarem os agressores de volta nas vans e manobrá-las para o acostamento.
- Nós vamos levar apenas esse. – apontou para o homem agora sem máscara e sem gorro. – As cordas estão no porta-malas. Coloquem-no no terceiro carro.
Os gêmeos e Dohko estavam em condições menos ruins aparentemente. Kanon ajudou os seguranças a amarrarem e empilharem os homens nas vans e Saga abriu o porta-malas para o desacordado, com os cabelos brancos manchados de sangue. Foi ele quem falou com Shunrei.
- Acho que é melhor ver os garotos, doutora. – isso a fez sair do torpor de ver tantos corpos feridos, gemidos e sangue; e correr para eles.
Limpou o melhor que pôde os rostos, sabendo que o sangue continuaria brotando mesmo amarrando gazes no couro cabeludo e nas testas. Apalpou os membros para verificar ossos de pernas ou braços quebrados. Jabu tinha um dedo pendendo para o lado errado e Régulus um corte profundo na lateral esquerda do abdômen. Aproveitou a adrenalina ainda circulando nos corpos deles e colocou o dedo sangrento de volta no lugar, imobilizando-o com dezenas de metros de gaze. Puxou o tecido que entrara na carne de Régulus e estancou o sangramento com a camiseta dele. Os dois morderam os lábios e aguentaram firmes.
Shiryu se ajoelhou na pista, zonzo com o chute na cabeça. Ela o examinou com receio de algum dano no crânio, mas aparentemente não havia nada quebrado. Se lembrou do fígado e realmente a região voltara a ficar quente e vermelha. Limpou os arranhões e luxações nos braços, nas mãos e no rosto.
- Será que vai ser difícil abafar um caso desses? – ela o distraiu, apontando para as vans no acostamento e puxou o nariz, forçando-o a voltar para o lugar. Ele urrou de dor e a empurrou. – Tudo bem, agora não precisará de cirurgia. – ela colocou chumaços de algodão nas narinas e deixou os seguranças o levarem para o carro.
Os gêmeos e Dohko tiveram apenas luxações nos nós das mãos e hematomas pelo tronco. A sobrancelha direita de Kanon abrira e o pescoço de Saga estava inchado e quente. Ela limpou os ferimentos e enfaixou as mãos para parar os sangramentos.
- O senhor consegue dirigir? – ela perguntou quando, por fim, examinava Dohko, limpando a ferida no ombro que sangrava muito. Ele conseguia movimentar o braço e os dedos.
- Peça para Shun preparar o ambulatório. – ele orientou. Os gêmeos ajudaram os demais a voltar para os carros.
- Nós iremos atrás, monitorando a estrada. – um dos seguranças falou.
- Nós iremos na frente. – Saga olhava para Dohko, com dificuldade para andar. – Quer que Kanon dirija o carro de vocês?
- Só se eu quiser realmente sofrer um acidente. – Dohko comentou rindo, fazendo o gêmeo mais novo revirar os olhos. – Vamos ver o que essa harpia tem a nos contar.
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(1) Esse é, mais ou menos, o conceito de Justiça que encontramos na obra de Platão.
(2) Shunrei é ariana, signo de fogo. Shiryu é libriano, signo de ar. E Dohko está com a astrologia em dia... rsrs! Interessante destacar que Dohko é libriano e Shaina é ariana. ;-)
(3) Tutti stronzi – todos idiotas no italiano do Google tradutor.
(4) Ma che fai – o que você está fazendo? Também em italiano.
(5) Enfoirés – filhos da puta em francês. Camus elegante sempre.
(6) Lúshān huā – já disse antes, mas é Flor de Rozan em chinês.
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Olá!
Gente, que episódio difícil! Precisei assistir o dorama Vincenzo para poder escrever. Foi ao som de ópera e com as bençãos da máfia... rsrs!
Reta final dessa saga que já está me acompanhando há quase um ano (Conexão Coréia começou a ser publicada em abril de 2021. O tempo não voa, ele corre na velocidade da luz!). Vem mais momentos tensos por aí. E mais emoções. Senti que Dohko e Shunrei mereciam essa ligação ainda mais forte.
Agradeço por estarem lendo e acompanhando. Mandem reviews, comentários, e-mails, sinais de fumaça para eu saber se estão gostando e o que pensam que pode acontecer agora.
Beijos e até o próximo episódio!
Jasmin Tuk
