EPISÓDIO 15
Enquanto cuidava dos homens, Shunrei se sentia numa das missões da ONU. Muitas vezes precisava atender sob bombardeios e ataques. Suas mãos e suas roupas sujas de sangue não a faziam estremecer. Ela sabia o que precisava ser feito, e fez, sem sequer pensar.
"Mais do que médica, ela é uma healer." Ela se lembrou da frase que um repórter dissera ao narrar o atendimento no ambulatório na Tunísia. "Uma curadora."
- Você nem faz ideia do quanto. – Dohko comentou, parando num sinal vermelho no centro de Kamakura. – Você é uma curadora em vários sentidos. – piscou para ela, que enrubesceu.
- Estava lembrando de uma reportagem num dos campos de refugiados. – viu o hematoma no rosto dele aumentar de tamanho. – Assim que chegarmos, precisamos de um banho quente. – respirou fundo. Evitara conversar para não atrapalhar a concentração dele, mas observara atenta seus movimentos em busca de algum reconhecimento.
Sua cabeça girava, processando tantas informações naquelas poucas horas.
"Será que algum dia saberei com certeza?... Será que isso importa ainda?... Não quero que nossa convivência seja prejudicada."
- Não precisa ficar com receio de falar, Shunrei. – ele declarou com simplicidade, fazendo-a enrubescer e olhar para trás, vendo o marido adormecido. – Podemos fazer um teste, se você se sentir melhor... Não quero tomar o lugar do seu pai em suas memórias. Ele foi um bom homem. – ela assentiu, a garganta fechada impedindo-a de falar. – Não sei se você sabe que o Mestre Ancião me elegeu seu herdeiro. – ela negou. Jamais pensara na posse do terreno de Rozan. – Há alguns meses, assim que você retornou da Grécia, eu comentei com Shiryu que faria algo por você e que algum dia você poderia precisar. – Shunrei ergueu as sobrancelhas, virando o rosto para Dohko. - Indiquei você como minha herdeira. – ela arregalou o rosto de surpresa.
- Por que o senhor fez isso? – ele sorriu, manobrando o carro para fugir das ruas mais movimentadas, seguindo o carro amassado dos gêmeos.
- Notei que você começou a se referir a mim como "senhor"... Bom, eu gostaria que a propriedade do Mestre Ancião ficasse com quem esteve com ele em seus últimos anos. Além disso, - ele pigarreou, suas faces morenas ficando escarlates. - eu queria que pensasse em Rozan como uma luz, um lugar para onde ir quando todos os outros lugares desaparecem. – ela não soube o que dizer, apenas acenando com a cabeça. Precisava se concentrar em ajudar a tratar os feridos e conhecer a real situação da ameaça a si, aos seus e ao Santuário.
No portão, Aiolia, Shaina, June e Ikki os aguardavam e os ajudaram a chegar ao ambulatório, onde Shun já tinha preparado os instrumentos de acordo com as informações que Shunrei lhe passara. Ele desinfetou, suturou e medicou Régulus, Jabu e Shiryu, que tinham os ferimentos mais graves. Shunrei cuidou dos outros três, limpando e fazendo curativos.
- Onde estão todos? – ela estranhou não encontrado ninguém no caminho até ali.
- O Grande Mestre orientou que não viessem aqui. – Shun comentou, forçando um elixir amargo pela garganta de Jabu. - Estão todos no andar de cima. Você vai ficar lá em casa hoje. – informou ao rapaz que tossia com o remédio que fazia boca arder e olhos lacrimejarem.
- Depois que terminarmos aqui, poderão ir para casa. – Shaina afirmou, enfaixando a canela de Saga após a aplicação do anti-inflamatório. – A srta. Elian deve chegar a qualquer momento para buscá-los.
- E o homem que trouxeram? – Shunrei franziu levemente a testa ao se dar conta de que ele estava ferido também.
- Meu pai o levou para o observatório. – Régulus disse, apontando para o teto. Parecia frágil e bem mais novo com a cabeça parcialmente enfaixada e curativos no queixo e na mão direita, embora sua voz denotasse grande contentamento.
- Ryuho está na casa de Seiya. – June limpava os cortes no braço de Shiryu, orientada por Shun. – Pensamos que seria melhor ele ficar lá até resolvermos o que fazer. – o rosto dele estava inchado, os olhos rodeados por bolsas escuras e o nariz coberto por um grande curativo.
- Se o teu garoto te vir agora, acho que ele te deserda, Lagartixa. – Ikki falou displicentemente, amarrando a gaze em torno do tórax de Kanon.
- Aqui estão vocês. – a voz de Serenity na porta os pegou de surpresa. – Capricharam dessa vez, hein?
- Que bom que chegou. – Saga foi até ela mancando. – Aqui está muito cheio. Vamos para casa. – deu um selinho de cumprimento.
Kanon vestiu a camiseta com uma careta, indo em direção a eles. Shunrei o parou, vendo que caminhava com dificuldade.
- Tire o sapato. – ela pediu três vezes. O tornozelo inchado e vermelho. – Devia ter me dito quando o sangue ainda estava quente. – ela lhe ofereceu um sorriso luminoso e quando ele ergueu as sobrancelhas, puxou de uma vez e torceu. Ele não gritou, mas seu punho amassou a beirada da maca.
- Essa é a amiga gentil e doce de Esmeralda. – Ikki arregalou um pouco os olhos e seu comentário fez todos rirem, menos ele. – Agora tudo faz sentido. – Shunrei sacudiu a cabeça, tentando não rir enquanto colocava uma tala imobilizando o tornozelo. – Quer a minha ajuda, Kanon? – o tatuador mostrou o dedo do meio para ele.
- Ele pode não querer, mas eu quero. – Serenity afirmou, ajudando o gêmeo mais novo a levantar. – Consegue se apoiar em mim, meu amor? – ele confirmou. – Pode nos acompanhar até o carro, caso um dos dois caia pelo caminho? – Ikki assentiu, indo com eles pelo corredor.
- Quem pode me levar até o homem ferido? – todos os olhos da sala apertada se viraram para Shunrei. – Economizem a saliva, por favor.
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- Eu disse a vocês que não ficaríamos quietos. – Camus comentou, desligando o viva-voz do celular e se afastando para terminar a conversa com Mu.
Milo foi até a vitrine, dando tchauzinho para os homens que também acabavam de receber um telefonema. Saíram rapidamente, descendo a rua sob os xingamentos de Massimo Di Medici.
- Ainda bem que ele xinga em italiano. – Aldebaran suspirou, franzindo a testa e acompanhando o vai-e-vem de Camus com o telefone. – Os vizinhos acham que ele está sendo agradável.
- Só não me conformo de não terem me pedido. Eu teria ido com os gêmeos. – Milo afirmou, pegando a garrafa de vinho. – Sei que sou novato no Santuário, mas eles me viram lutar.
- Você iria arranhar a cara deles com essa unha, é? – Massimo estava de volta, a expressão de alma lavada por ter esgotado seu repertório de xingamentos com os homens de preto. Sentou-se pesadamente na cadeira e tomou o restante do vinho na taça. Milo estreitou os olhos para ele.
- Quer que eu te recorde o que eu faria com eles? – O Cavaleiro de Escorpião estava cultivando a unha do indicador direito mais longa e fina. Massimo, quando percebera, zombara dele até receber sete estocadas rápidas que o deixaram gritando de dor no chão.
- Vou proibi-los de beber! – Aldebaran trovejou, como se falasse com dois adolescentes. – Não é hora para isso.
- Mu pediu que voltássemos para o Santuário agora. – Camus retornou, pegando o casaco das costas da cadeira. – É a nossa vez de jogar. Vocês dois, fiquem de prontidão. Amanhã, rotina normal de treinos, como se nada tivesse acontecido. – sinalizou para Milo o acompanhar, se despedindo dos chefs. – Mu avisou Afrodite também.
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- Você não quer se deitar? – Yuzuriha perguntou, ajudando-o a sentar na poltrona da sala.
- Quero ficar aqui um pouco. Ainda estou zonzo e se deitar acho que vou vomitar. – Régulus soltou a respiração e deixou a cabeça pender no encosto fofo.
- Está com fome? – Pavlin deixou a sacola com os medicamentos ao lado dele e foi para a cozinha. – Que tal algumas frutas molinhas de mastigar? – ele ergueu o polegar.
- Quem diria que você começaria desse jeito!? – Yuzuriha esperou Pavlin se afastar para sussurrar para o caçula. – Nem nós participamos de algo assim, nunca! – o tom de admiração e orgulho fizeram Régulus sorrir. Apesar das dores no corpo, ele estava satisfeito.
- Eu decorei os movimentos deles. – o garoto confessou, olhando de esguelha a irmã sentada no braço do sofá ao seu lado. – Me concentrei tanto que consegui decorar vários. O sr. Dohko disse que dois serão meus oponentes no campeonato, pela idade.
- Será que eles ainda competirão? – Pavlin trouxe uma tigela de frutas picadas e o ajudou a segurar a colher com a mão enfaixada. – Agora temos provas das más intenções deles.
As duas passaram a tarde recebendo instruções da Mestra Marin. Quando o Grande Mestre orientou que todos deveriam subir para a parte residencial, elas ficaram apreensivas pelo irmão. Assim que Shun o liberou, elas foram chamadas para levá-lo para casa.
- O que o teu namorado falou? – Yuzuriha pegara no pé da irmã com o recente relacionamento com o Cavaleiro de Áries. Pavlin apregoara que jamais namoraria com alguém do Santuário pois achava cansativo e de repente aparecera justo com o discípulo do Grande Mestre.
- Que nenhum jogo de xadrez se vence precipitadamente. – a mais velha dos irmãos não se abalava com as provocações e estava cada vez mais próxima de Mu, passando mais tempo com ele do que em casa, levando-o para conhecer a cidade e seus amigos de faculdade. – E ele está certo. Há mais coisas em jogo do que nós sabemos. Se prepare que nós ainda vamos dar banho no leãozinho aqui. – piscou travessa para a expressão de terror do irmão e de ojeriza da irmã.
A campainha tocou e um pequeno furacão ruivo passou por baixo do braço de Yuzuriha.
- Selinsa me contou. – Shoko disse ofegante, os olhos castanho-avermelhados arregalados para a figura mastigando pedaços de pêra devagar. O rosto de Régulus ficou da cor dos cabelos da garota. – Está doendo muito? – ele balançou a cabeça e fez uma careta. – Vou ajudar a cuidar de você. – a jovem afirmou, olhando para as cunhadas, cujos olhos brilharam imaginando antecipadamente o divertimento.
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- "Quando o jogo de xadrez termina, o rei e o peão voltam para a mesma caixa." – ela recitou em voz baixa, terminando de aplicar a injeção de antibiótico e anti-inflamatório no homem que a olhava sério.
- O que foi que você disse? – a voz rouca com o inglês temperado pelo sotaque grego parecia difícil de sair. Os pequenos olhos amarelo-queimado estreitaram com desconfiança.
- Apenas um ditado chinês. – Shunrei não se intimidou com a agressividade. Desde que presenciara a briga na estrada, sua mente começou a trabalhar na sintonia que precisava nas missões humanitárias. Ela já atendera gente armada até os cabelos que se recusava a cooperar. Apenas sorriu para a cara ferida e arrogante que vigiava todos os seus movimentos. – Só mais esse curativo aqui e eu termino. – apertou o local roxo abaixo das costelas e o homem rilhou os dentes.
Ela nunca estivera ali em cima e, embora a visão estivesse prejudicada pelas luzes acesas, achou maravilhosa a ideia de um espaço para observar o céu sem interferências em um lugar intimamente ligado às constelações. Lembrou-se de Rozan e das noites de sua infância. Respirou fundo, guardando material de sutura e limpeza e os medicamentos na caixa. Virou-se para as pessoas sentadas ao redor e fez uma reverência.
Shion e Aiolia responderam com leves acenos. Mayura não se moveu e Marin se levantou para levá-la até a porta.
- A moça deveria fugir enquanto é tempo. – o homem falou quando ela lhe deu as costas. Shunrei suspirou, olhando para Marin. – É o mais sensato a fazer. E é só o que eu preciso dizer.
- Fugir é colocar outras pessoas em perigo. – ela disse em voz baixa, sem se virar para ele. Deixou as palavras pairarem sobre o pequeno grupo e então marchou para a porta onde Shaina a esperava.
- Dohko e eu o banhamos. Eles estão no meu quarto. – a morena assentiu, o corpo reclamando de cansaço. – Trouxe a sua mala também. Você vai precisar se limpar.
- Vou lavar as mãos e trocar de roupa. Preciso ver meu filho. – ela engoliu em seco antes de entrar no quarto.
Os dois dormiam na cama estreita. Shiryu com o tronco e a cabeça mais altos para ajudar a respiração. Dohko com a lateral esquerda apoiada em travesseiros para não rolar durante a noite. Shunrei podia apostar que eles sequer se mexeriam. Aproximou-se para verificar os movimentos dos diafragmas e tocou-os para medir as temperaturas. Seu coração quis doer, mas ela sabia que ainda não era hora. Pegou um dos vestidos, lavou-se na pia do banheiro rapidamente e beijou as testas antes de sair.
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- Está sentindo dificuldade para mastigar? – Shun observava as caretas que o homem tentava disfarçar. – Quer experimentar algo mais líquido? – Jabu sinalizou que não com a mão.
- É a garganta que está doendo. – pigarreou, massageando o pescoço. – Quase desmaiei com a chave de um deles.
- A pomada vai ajudar a anestesiar o local. Você passa e depois amarra o cachecol para manter aquecido. – o médico sorriu, encorajando-o a continuar comendo aos poucos, ao menos o arroz com o caldo de vegetais.
- Fazia tempo que eu não me metia numa briga. – os olhos de Jabu brilharam ao comentar. – A última vez foi quando saí do Santuário. – Shun balançou a cabeça, rindo. Se lembrava daquela tarde quando eles brigaram em frente ao portão, mas não recordava o motivo. E não importava mais. – Imagina, um livreiro envolvido numa briga de gangue. – tentou sorrir, mas a bochecha deu uma fisgada dolorida.
- Obrigado por ter vindo com eles, Jabu. Sem você, teria sido bem mais difícil. – Shun terminava de misturar a pomada, entregando a pequena cumbuca ao amigo. – Agora não seremos mais incomodados. Não havia nenhum Sombra quando saímos.
- Finalmente dormiram. – June sentou-se ao lado do marido. – O quarto está preparado para você, Jabu. – ergueu a mão para parar o protesto. – Melhor ficar sob observação médica hoje, não é, doutor? – Shun assentiu. – Já falou com Miho?
- Ela dorme cedo. – o loiro começou a organizar as tigelas vazias. June deu uma risada abafada.
- Faz tempo que você não namora, não é? Ligue agora e pare de torturar a garota. Ela pode não estar a par do que acontece aqui, mas sabe o que significa um pedido do sr. Shion. – Shun concordou.
- Não se esqueça que ela tem um longo histórico de se preocupar com os rapazes do Santuário. – o médico se levantou para levar a louça para a cozinha. – Leve a pomada, tome um bom banho e telefone para ela antes de dormir. – piscou para o livreiro. – Pode acordar bem tarde amanhã.
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O bangalô estava silencioso àquela hora, o cheiro da mata próxima bem pronunciado, trazendo uma sensação de paz. Ela tinha que admitir: as casas deles em Kamakura eram mais tranquilizadoras e revigorantes que o apartamento em Gangseo-gu e até mesmo a quase realidade paralela da mansão Kido.
- Ryuho demorou a dormir. – Seiya comentou, trazendo o chá que ela aceitara no lugar do jantar que ele oferecera. – Quis esperar até o último segundo e não houve explicação que bastasse.
Shunrei agradeceu e tomou um grande gole, desejando que o líquido quente a fortalecesse.
- Daqui a pouco, ninguém mais o enganará. – ela sorriu brevemente. – Nesses episódios extremos é onde nós somos colocados à prova. Amanhã, quando ele vir o pai, vai precisar crescer um pouco mais. – Seiya concordou.
Os dois sentavam-se na mesa da cozinha recém-reformada. Enquanto preparava o chá com o sanduíche, ele ouvira o relato de Shunrei com a testa franzida.
- Já lutei com Valentine Harpia. – o moreno informou. - Ele não é um homem que joga sua carreira fora por algo assim. Tem alguma coisa que não estamos sabendo identificar. Marin o conhece bem também. Talvez hoje consigamos entender a motivação deles. – sua expressão indicava uma certa confusão. - Sabe quem eram os outros? – Shunrei sacudiu a cabeça.
- Saga e Kanon tiraram as fotos. Sei que os vi no dia do evento, lembro das vozes, mas não sei os nomes. – ela observou o corpo tenso do amigo. – Por que simplesmente não os denunciamos à Federação Internacional? Temos provas suficientes para colocá-los na cadeia.
- Pelas ações da Federação, não sabemos em quem podemos confiar ainda. – ele se serviu uma caneca de chá também. – Shion e Mayura preferem o maior número de evidências antes de tomar atitudes mais concretas. – Seiya viu que a resposta não agradou. – Sinto o mesmo que você, Shunrei, e eu já teria chamado a polícia e a Federação, mas aprendi a confiar no julgamento do Grande Mestre. – os lábios de Shunrei se comprimiram. – Eles vão saber a hora de agir, pode ter certeza. E olha que quem está te dizendo isso sou eu! Depois, pergunte para o Shiryu como eu resolvia as minhas diferenças. – ele riu e Shunrei ofereceu um meio sorriso, segurando a caneca com as duas mãos.
- O Mestre Dohko disse a mesma coisa. – terminou o chá e respirou fundo. – Amanhã você vai comigo ao hospital? – Seiya confirmou.
Dos amigos de Shiryu, era com ele que ela se sentia mais à vontade. Seiya era transparente e impetuoso. Ela via claramente o que atraíra Saori, esse jeito destemido e aparentemente despreocupado de viver.
- Saori me contou que você vai ajudar no casamento. – ele recostou na cadeira em frente a ela. – Vai adiantar eu dizer que quero uma cerimônia simples e discreta? – o olhar de sofrimento a fez rir. – Já vi que não... Quem mandou eu me engraçar com a dona da Fundação Graad, não é mesmo?
- O ônus e o bônus. – ela tentou esconder o bocejo. – Mas não se preocupe, vou dar um jeito de minimizar o trauma para você... Ele está lá em cima? – Seiya assentiu.
A luz da janela iluminava o ambiente de teto inclinado. Ela levou os futons escada acima e viu o montinho coberto pelo edredom ao lado do armário de brinquedos. Com muito cuidado, estendeu um dos futon e ajeitou o travesseiro. Tirou-lhe a franja das pálpebras, seu coração aquietando ao ver o rostinho sereno, respirando pela boca entreaberta. Shunrei se deitou o mais perto possível sem acordá-lo. A última sensação antes de desmaiar de cansaço foi a do filho rolando para junto de si, aspirando profundamente seu perfume.
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Ele quase adormeceu, embalado pelo calor e a maciez do corpo dela de encontro ao seu. Seus dedos aproveitavam a textura suave dos cabelos, as narinas embebiam-se no perfume floral ao seu redor e esses luxos quase o amoleceram. Sem querer preocupá-la, confirmou que Eiri adormecera antes de mover-se com cuidado para fora da cama.
A contragosto ele saíra do Santuário antes da chegada dos amigos de Tóquio. O Grande Mestre tinha uma outra tarefa para o Cavaleiro de Cisne. O piso frio o despertou de vez. Respirou fundo enquanto esperava o notebook entrar em linha. Preferiu manter as luzes apagadas, embora a penumbra lhe permitisse distinguir as silhuetas das malas perto da porta de entrada.
- Vamos acabar logo com isso. – murmurou, apertando o botão da videochamada. Precisou tentar três vezes até que o outro atendesse. Sentiu a adrenalina inundar seu corpo ao ver o homem de cabelos verdes e rosto entediado. Ele sabia como contornar a raiva que ameaça engolfá-lo. Havia um propósito. – Isaak, – o outro apenas meneou a cabeça. – há mais alguém aí com você? – as sobrancelhas arquearam e a cicatriz do lado esquerdo ficou mais evidente.
- Só estou aqui em respeito à sra. Tétis. – ele escolheu o grego, pensando que fosse uma língua estranha a Hyoga. – Diga o que quer.
- Preciso saber se a Atlantis Team está envolvida com os episódios de Singapura e Kamakura. – subterfúgios não eram o forte do loiro. Ele conseguiu que seu tom de voz fosse neutro e percebeu ter surpreendido o antigo companheiro com seu conhecimento de grego. – E se também estão sendo espionados. - Isaak permaneceu em silêncio e Hyoga repetiu. – Está me ouvindo, Kraken?
- Sim, estou ouvindo. Só não sei se quero responder essas perguntas. – ele passou a mão nos cabelos curtos, assanhando-os num cacoete que o acompanhava desde a infância. – Até onde eu saiba, para nós será muito bom se a Zodiac Team for desestruturada. – Hyoga pensou por um instante.
- Que eu me lembre, você nunca gostou de buscar vantagens injustas.
- E você pensa que ainda me conhece, Hyoga? – o tom misturava deboche com incredulidade. – Quando a sra. Tétis me pediu para falar com você, logo imaginei que Mayura estivesse por trás disso. Só para que você saiba, eu contei como é toda a estrutura do Santuário para o sr. Sorento e o sr. Julian. Você não sabe nada sobre mim, Cavaleiro do Zodíaco. – Isaak cuspiu a última declaração. – Por que eu estaria interessado em ajudar uma equipe que me expulsou?
Hyoga se segurou para não revidar na mesma moeda. Tudo que ele não podia era entrar no jogo do adversário. Escolheu sua voz mais calma para continuar.
- Isaak, os crimes que estão sendo cometidos não são rivalidade entre equipes. Nesse exato momento, estamos descobrindo o que e quem está manobrando esse torniquete em volta do Santuário. Por respeito ao que vivemos no passado e aos laços que unem as duas equipes, o Grande Mestre pediu que eu conversasse com você.
- Ora, mas por que procurar alguém como eu? O que eu tenho a ver com rixas entre o Santuário e os Solo? – Isaak pegou uma garrafa de vinho e tomou um gole. - Por que a sra. Mayura não pede informações à sra. Tétis?
- Porque se há algo a ser feito, certamente não seria pedido para a esposa do herdeiro dos Solo. – Hyoga estranhou aquela atitude, lembrando-se de que ele não bebia álcool. – Quando foi que você... Desculpe, não quero me intrometer...
- Não quer se intrometer na minha vida, mas me chama no meio da noite para trair a minha equipe. – Isaak respondeu com ironia, os lábios na boca da garrafa. – Eu agora não preciso fingir ser um santo frio e distante para agradar a Camus. Aqui na Grécia podemos beber, contanto que estejamos prontos na hora da luta.
- Isaak, pelo que conheço dos atletas da Atlantis, vocês não se prestariam a ameaçar membros de outra equipe, por mais que tenham recebido ordens para isso. Além do quê, nenhum de vocês esteve envolvido em nenhum dos atentados. – Hyoga se recuperou, não se deixando arrastar para o lodaçal de ressentimento que ambos cultivaram um pelo outro. – Nós dois evitamos nos enfrentar esses anos todos, mas se tivermos que fazê-lo dessa vez, tenho certeza de que será com honra. Não podemos ignorar o modo como fomos educados, com o código de honra das antigas confrarias de guerreiros. Então, vou perguntar mais uma vez: a Atlantis Team está atuando junto com o Subway Army ou está também sendo atacada por eles?
Isaak Kraken suspirou, ajeitando-se na cadeira e puxando a tela para mais perto.
- Há alguns meses, os gêmeos sócios dos Heinstein se reuniram com o sr. Sorento. Thanatos e Hypnos Nix. Eles cuidam dos negócios em todo o Mediterrâneo. – ele falava em voz baixa. – Eu fiquei dentro da sala. Eles queriam que nós os ajudássemos a desmontar a Zodiac Team. O sr. Sorento ouviu toda a proposta e se recusou, sem dar maiores explicações. Os gêmeos ofereceram muitos benefícios, parcerias comerciais nos portos do norte da Europa, onde os Solo não têm entrada fácil. Ele recusou tudo. – ele tirou os olhos da tela, distraído, mas logo voltou a olhar sério para a câmera. - Em um momento da conversa, eles afirmaram que perguntariam ao sr. Julian. Deve ter sido quando descobriram que a recusa mais forte, na verdade, vinha dele, porque o sr. Sorento riu e disse que eles poderiam tentar, mas teria que ser pessoalmente.
- Não estou compreendendo. – Hyoga franziu o cenho. Isaak revirou os olhos.
- Nós, lutadores, temos nossa honra e os patrões têm a honra deles. O sr. Sorento não aprova alguns dos métodos dos alemães e prefere resolver seus próprios assuntos, mas o sr. Julian definitivamente não vai sequer falar com eles enquanto a srta. Nishi estiver com vocês. – o queixo de Hyoga caiu, o que fez Issak gargalhar.
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Ela já estava habituada com a rotina do hospital. Determinara que não faria como na Coréia, não doaria todo seu tempo e sua energia em um único local e seu cérebro gostara da diversidade de interesses. A medicina tradicional, a halopática e os debates com sua antiga equipe ampliaram muito seu entendimento da medicina.
Ao pisar na recepção naquela manhã, Shunrei sabia o que devia fazer e não teve nenhum contentamento nisso.
- Não vamos demorar. – ela afirmou novamente, guiando-o para a sala da equipe.
Seiya assentiu, acompanhando-a com curiosidade. Conhecia algumas das enfermeiras por terem estudado juntos.
Demorou para chegarem até lá. Os colegas a cumprimentavam e perguntavam sobre a lua-de-mel.
- Quer que eu entre com você? – ele perguntou ao vê-la hesitar segurando a maçaneta. Shunrei negou, pedindo que ele ficasse ali perto.
Ela sabia que só os dois estariam ali àquela hora. Eles se levantaram para cumprimentá-la e isso fez os planos dela de serenidade irem por água abaixo. Lembrou-se de Shiryu a defendendo em Singapura, seu rosto lavado de sangue na estrada de Kamakura e na fúria ao entender de onde vinham as gravações que lhe mostraram na van.
- Finalmente a senhora conseguiu chegar! - Nyan Aqueronte veio sorrindo ao seu encontro. Shunrei esforçou-se para não dar o tapa que ela merecia.
- Estivemos muito preocupados com a senhora, dra. Suiyama. – a voz de Kiew Durahan a fez olhar com relutância para os rostos jovens.
Ela ergueu as mãos em frente ao corpo, fazendo-os estancar na metade do caminho.
- Vocês têm cinco minutos para sair do prédio. – sua voz tremia de raiva diante das expressões confusas. – E têm até o meio-dia para saírem da cidade.
- Mas, doutora, o que aconteceu? – a garota deu mais um passo para perto e Shunrei sinalizou um novo aviso, os músculos do rosto duros. – Estamos felizes que a senhora retornou bem.
- Nós estávamos preocupados. – o rapaz continuou com a inocência fingida. – Procuramos o escritório da sra. Yukida todos os dias para termos notícias suas.
- Eu vi os vídeos e fotos que vocês fizeram. – a médica informou, não querendo ouvir as vozes deles. – Saíam! Agora! – aumentou o volume, pontuando cada sílaba, o queixo erguido de indignação.
Nyan ia retrucar, mas Kiew virou-se para ela, negando. Os dois pegaram as mochilas e passaram por ela para alcançar a porta.
- A senhora sabe que fizemos isso para o seu bem. – a jovem declarou, tentando evitar o olhar intenso de Shunrei.
- Saberei de cada passo de vocês até saírem da cidade. – abriu a porta, permitindo que Seiya entrasse. Os dois jovens resmungaram, mas desapareceram rapidamente.
Shunrei esperou os passos sumirem e deu um soco na mesa. Soltando o ar dos pulmões de uma única vez.
- Quantas vezes Marin te convidou para fazer o treinamento de amazona? – Seiya piscou para ela. – Vamos até a sua sala?
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Assim que abriu os olhos, a dor entrou fina e quente em seu cérebro e ele ensaiou uma careta, o que fez a dor aumentar e se espalhar. Só então se lembrou do que acontecera no dia anterior. Tocou o rosto inchado e se sentou na cama.
"Deve ser tarde." Apurou os ouvidos, os sons de muitos passos no andar de baixo e ao redor da sede denunciando que o dia transcorria normal no Santuário. "O que será que foi decidido?"
Viu uma bandeja sobre a mesa ao lado da porta, com uma travessa cheia de caldo com os ingredientes triturados, uma garrafa de água fresca e um bilhete de Shun recomendando que ele não se movimentasse muito e, se possível, não descesse para poupar energia. Os remédios estavam num pequeno prato com indicação para serem ingeridos após se alimentar.
Shiryu suspirou, abrindo a janela para a frente do Santuário, vendo a movimentação de estudantes e aspirantes pelo gramado e o arvoredo da entrada. Pela posição do sol, calculou o horário entre 10 e 11 horas. Assim que colocou a primeira colherada na boca, percebeu que estava com muita fome, embora não conseguisse comer rápido por causa da lesão no nariz. Quando estava na terceira tigela de caldo, viu Shunrei e Seiya surgindo entre as árvores. Foi a primeira vez que se preocupou com sua aparência.
Minutos depois, Seiya aparecia sozinho.
- Ela foi ver Dohko e os gêmeos. – informou, observando o rosto arroxeado do amigo. – Foi uma surra e tanto, hein?
- Você precisa ver como ficaram os outros. – Shiryu disse, despreocupado. Deixou a tigela na bandeja e iniciou o processo lento de lavar o rosto. Quando se viu no espelho, soltou todo o ar dos pulmões pela boca. – Dói mais do que aparenta. – reparou nas manchas roxas ao redor dos olhos e no nariz deformado, embora a situação não fosse tão terrível quanto supusera.
- Agradeça ao milagroso dr. Shun Amamiya por isso. – Seiya encostou-se na soleira da porta do banheiro. – Ryuho foi para a escola. Você quer que ele venha para cá ou para a minha casa novamente? – Shiryu mordeu os lábios, pensando. – Ontem, ele passou o dia agitado e demorou para dormir, mas acho que se explicarmos com jeito...
- É melhor ele vir. Não vou poder me esconder por muito tempo, não é? – Seiya assentiu, entregando a toalha. – Sabe como foi a conversa com Harpia? – Shiryu tirou a camiseta, analisando os hematomas e cortes pelo tronco.
- Ele não disse muita coisa, ou Marin não quis me contar. – Seiya deu de ombros, fazendo algumas caretas para as marcas grandes nas costas e na altura do fígado. – Sabemos que ele agiu seguindo ordens do nosso velho 'amigo' Radamanthys Wyvern, tal qual os sujeitos de Singapura. – Shiryu ergueu as sobrancelhas.
Suspeitava do envolvimento do lutador, que fora concorrente direto dos gêmeos e abandonara os campeonatos oficiais há anos.
- Shunrei disse que reconheceu as vozes dos que estavam dentro do furgão... Valentine Harpia não faria nada para desagradar seu Mestre. – ele atou os cabelos e pôs-se a arrumar a cama. – A reunião com os Heinstein vai acontecer, então?
- O mais rápido que um avião puder voar da Alemanha até o Japão. – Seiya emitiu uma risada abafada. – Foi uma ótima idéia gravar e fotografar. Eles estão vindo hoje para Tóquio.
- Você sabe quem foi o homem que os parou em Singapura? – ele não tivera oportunidade de perguntar para seu Mestre.
- Poucas pessoas sabem que houve uma interferência em Singapura. A versão popular é que você os fez correr depois de espancá-los. – Shiryu bebeu dois copos de água de uma vez e se sentou, sentindo tontura.
- Só a sra. Mayura pode responder, você quer dizer. – Seiya piscou para ele. – Você explicou a Shunrei? – o amigo confirmou.
Os dois conheciam bastante bem o comportamento e os métodos da Líder das Amazonas. Lembravam-se de quando a conheceram, semanas após estarem morando ali no Santuário. Ela passara algum tempo na Itália, de onde trouxera a jovem Shaina e uma garota encrenqueira chamada June para se juntar aos selvagens japoneses. Depois ficaram sabendo que ela as iniciara nas artes investigativas e na análise das microexpressões faciais e linguagem corporal, o que se mostrou bastante útil não apenas nas lutas como em negociações e acordos. Além disso, fora Mayura quem organizara a rede de contatos fora do Japão, viajando para vários países e trazendo garotos e garotas desses lugares para Kamakura, mesmo antes da época de Shiryu e Seiya.
- Vou subir a Tóquio com Shion e Mayura. – o amigo disse. – Dohko e os gêmeos também irão, para levar Harpia.
- Eles estão se envolvendo de novo. – Shiryu tomou o medicamento para dor. – Quem diria?
- Bom dia! – Shunrei bateu para anunciar sua chegada, trazendo o material para tratar os ferimentos. – Dormiu bastante? – deu um selinho e começou a examiná-lo.
- Visita médica no quarto é ostentação, meu caro. – Seiya comentou, observando-a aplicar emplastros frios nos hematomas e esfregar uma das pomadas de Shun no fígado.
- Ele me fez prometer assistência de saúde gratuita. – Shunrei comentou, passando faixas de gaze para manter os emplastros nos lugares. – Isso foi antes de eu saber que ele jamais cortaria esse cabelão. – Seiya riu alto do tom de resmungo, ajudando-a a amarrar os curativos.
- Cada um se garante como pode. – se esquivou de um soco alegadamente 'sem querer' de Shiryu.
Satisfeita com a evolução dos demais ferimentos, Shunrei partiu para o rosto. Os olhos azuis pareciam preocupados.
- Agora, deve sangrar muito ainda, mas não quer dizer que esteja ruim, só demora um pouco mais para se recuperar. – ele assentiu. Ela colocou uma toalha fria ao redor do seu pescoço. – Você pode sentir que seu cérebro será arrancado, mas será melhor depois. - puxou os chumaços de algodão das narinas e Shiryu viu estrelas de tanta dor. Saíram vermelho-vivo, acompanhados de mais sangramento. Imediatamente, ela inclinou a cabeça dele para frente e aplicou uma pequena bolsa de gelo. Ele fechou os olhos, fraco. – Seiya, pode segurá-lo?
Seus sentidos estavam comprometidos pela sensação de desmaio, embora se esforçasse para obedecer aos pedidos dela para ficar alerta. Shunrei limpava o sangue que escorria, permitindo que ele respirasse pela boca, o gosto metálico em sua garganta. Ele conhecia essas sensações, já tivera o nariz quebrado antes, e seu corpo sabia reagir à vontade de deitar e dormir indefinidamente. Segurou a bolsinha de gelo e o pano embaixo do nariz.
- Logo vai parar. – afirmou, sinalizando para a doutora se afastar. – Você conseguiu descansar? – ela franziu os lábios, vendo que ele realmente estava estável.
"Preciso me concentrar." A visão de Shiryu estava embaçada e ele piscou seguidas vezes para normalizá-la. "Estamos apenas no início dessa situação. Devo me recuperar o quanto antes." A dor pelo corpo diminuía consideravelmente à medida que a medicação fazia efeito, permitindo que sua mente clareasse. "Preciso me lembrar de quem ela é e de fazer o que o Mestre aconselhou. Ela deve ser livre e devo apoiá-la." Ele adormecera preocupado com a esposa e estava feliz em ver a postura que ela adotara. "É como o Mestre diz, a companheira do Dragão nunca é fraca." Respirou fundo, oferecendo um meio sorriso para o rosto preocupado e determinado dela.
- Nosso dia começou cedo. – apontou para Seiya, que ajeitava a pilha de travesseiros na cabeceira da cama. - Acabamos de voltar do hospital. - contaram a despedida dos ex-residentes. – O pior é que eles realmente são estudantes de medicina. Essas pessoas não têm limites! – os dois a olharam, espantados pelo raro tom belicoso na voz dela. – Se eu pudesse, daria um soco na cara deles! Pandora tripudiando naquele evento! Ela já os havia colocado ao meu lado! Vaca! – ela grunhiu a ofensa e os dois arregalaram os olhos.
- Dra. Nishi! – Seiya fingiu estar escandalizado, ajudando o amigo a se recostar para ela examinar melhor o interior do nariz e da boca. – Não pode machucar essas mãos delicadas. Deixe tudo por conta do seu marido, quando ele se recuperar do atropelamento de ontem, claro. – escapou por pouco de um tapa de Shiryu. – De qualquer forma, nos livramos daqueles Sombras que nos rondavam e seguiam por toda Kamakura. – diante do olhar interrogativo do casal, contou como foram os últimos dias, com dezenas de homens vigiando-os desde que saíam de casa. – Eram jovens demais para serem lutadores da nossa categoria. De qualquer forma, a missão deles parecia ser nos enervar.
Shunrei borrifou um spray analgésico e limpou as narinas o melhor que pôde.
- Respire um pouco antes de fecharmos novamente. – ela pediu, examinando seus reflexos musculares e oculares.
Ele passara anos sendo tratado pelos médicos do Santuário, depois por Shun e por si próprio na Coréia e nunca sentira a paz que Shunrei lhe trazia. Desde que os dedos analíticos dela percorreram seu corpo pela primeira vez, naquele longínquo domingo no ginásio em Gangseo-gu, uma troca de calor e cuidado se estabelecera. Confiava sua vida a ela.
- Então não éramos só nós. – ele comentou quando Seiya terminou a história dos Sombras. – Até mesmo os cavaleiros que estão retornando foram seguidos. – o amigo confirmou, sério. Quando ia responder, o celular tocou e ele saiu do quarto para atender. Shiryu aproveitou a ausência para apertar a mão da esposa e pedir que sentasse ao seu lado. – Não é tão grave assim, doutora. – tentou brincar.
- Você tem a cabeça dura mesmo. – Shunrei se despiu da postura de médica, seus olhos sorrindo aliviados. – Hoje poderemos voltar para casa. – ele assentiu, seu polegar acariciando a palma da mão de pele fina. – Eu pedi licença do hospital. Conversei com o dr. Abe. Enquanto essa situação permanecer, quero me concentrar aqui no Santuário. – o coração dele encolheu.
- Eu sinto muito, meu amor. – ela negou, os olhos rasos d'água.
- Tudo bem, não tem como ser diferente. – sorriu com a voz úmida. – Você tinha razão quanto a não termos uma vida tranquila. – riu mais quando ele fingiu inocência. – Vou aplicar a pomada agora. Pode ser desconfortável. – ele deitou mais a cabeça para ela passar o cotonete com o medicamento de aloe vera. Uma sensação refrescante irradiou para todo o seu rosto, seus ouvidos e o alto da cabeça.
- Podemos entrar? – Mayura e Shion fecharam a porta atrás de si, surgindo sem esperar permissão. O rosto da mulher era indecifrável, embora ela sorrisse com amabilidade para o casal. Shion os saudou, oferecendo a cadeira da escrivaninha à esposa. – Que bom que esteja aqui, Shunrei. Assim poderemos conversar com os dois.
Shiryu endireitou-se, sentando-se encostado na cabeceira, observando o rosto sereno de Shunrei.
- A nossa conversa será longa. – a voz melodiosa de Mayura informou. – É a nossa vez de tomar a dianteira.
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- Mamãe, tudo bem eu faltar à aula? – a mãozinha de Yuna sumia envolvida pela de Eiri. Ela tentava acompanhar os passos rápidos dos adultos pelo saguão do aeroporto.
- Eu conversei com a sua professora, filha. – os três pararam na fila de embarque. - Vamos visitar a vovó e o vovô. Eles estão ansiosos para conhecer você. – observou a garotinha bocejar, coçando os olhinhos. Eles despertaram de madrugada para conseguirem chegar a tempo daquele vôo.
- O papai está bravo? – ela olhou com cautela para a figura ereta e imponente do homem silencioso. Eiri viu o rosto inexpressivo do marido. Franziu o cenho, desacostumada daquela face gélida.
Após explicar o que fariam e saírem de casa, Hyoga se calara. Seus sentidos dedicados a captar qualquer possível ameaça. Assim que desligara a videochamada com Isaak, detalhara a conversa para Camus e Mayura. Eles confirmaram sua missão na Europa e permitiram que ele levasse a família. Aquele era o momento ideal para movimentar-se despercebido devido à retirada dos Sombras e eles não poderiam perder a oportunidade.
- Não estou bravo, Yuna. – ele piscou para a filha, acariciando a cabecinha loira. – Mas não posso me distrair agora.
Quando levantou a cabeça, a sensação o atingiu como um raio. Os pêlos de sua nuca arrepiaram. Ele fechou os olhos, aguçando os sentidos.
"Estamos sendo observados!" A sensação ficou mais forte e ele as fez voltar a caminhar enquanto tentava determinar de onde vinha a ameaça. "Preciso neutralizá-los pelo menos até estarmos dentro do avião."
Testou seu palpite, entrando em lojas aleatórias e parando para reorganizar algo na bagagem. Por fim, entraram dentro de uma loja de lembrancinhas e camisetas para turistas. Eiri e Yuna pareciam confusas com aquele comportamento, embora não o questionassem. A loja estava cheia pela quantidade de vôos partindo de Tóquio àquela hora.
- Fiquei interessado nessas bermudas e camisetas do Monte Fuji. – afirmou em voz alta para a atendente. – Posso experimentar? – a boca de Eiri abriu de espanto.
- O que está acontecendo? – ela se aproximou, perguntando entredentes.
- Por favor, distraia Yuna e a atendente. – ele fechou as cortinas do provador, deixando uma fresta de onde via o olho inquiridor da esposa. – Por 15 minutos. – ela assentiu com relutância, fechando toda a cabine de prova e se virando para as duas.
- Você já viu toda a loja, filha? – sua voz soou um pouco mais estridente que o usual. Ofereceu um meio sorriso. – A senhorita faria a gentileza de mostrar os brinquedos a ela? Eu fico aqui para auxiliar meu marido.
Hyoga se deslocara para a última cabine, conseguindo passar imperceptível entre as araras de roupas, saindo pela porta dos fundos. Não foi difícil se misturar à multidão de turistas europeus, alcançando seu alvo por trás.
O Sombra era pouco mais velho que os aspirantes do Santuário e trajava roupas claras e casuais, como se estivesse de partida após as férias. Os traços ocidentais não o distinguiam e sim a sua insistência em estar continuamente nos reflexos das vitrines por onde os Othonos Yukida passavam. Hyoga sorriu ao vê-lo ainda observando a porta da loja.
"Deveriam treinar melhor seus espiões." Sem hesitar, ele aplicou um golpe na altura dos rins que fez o jovem se dobrar de dor. Apoiou-o e o arrastou para um dos corredores de passagem da equipe de manutenção.
- Me diga onde está o outro. – perguntou em francês após examinar o rosto apavorado. Os olhos azuis perfuravam o outro, mas o Sombra apenas negou com a cabeça. Hyoga apertava dois pontos em seus ombros que o impediam de se mover e a careta de dor se intensificou quando os dedos do loiro afundaram na carne. – Se não me disser, vou lesionar os seus ligamentos. – o Sombra arregalou os olhos, que lacrimejavam, embora ele não emitisse nenhum som. – Será difícil participar do campeonato se estiver sem os dois braços, não é?
- Não precisa se preocupar. – uma voz conhecida soou atrás deles. Imediatamente, Hyoga golpeou com força o esterno do Sombra, que caiu com um baque surdo. Orfeu chegou empurrando uma cadeira de rodas onde um outro jovem jazia. – Peguei-o quando você entrou na cabine.
- Camus não me disse... – Orfeu ergueu uma sobrancelha, imitando à perfeição a expressão do Mestre de ambos quando algum dos discípulos questionava suas ordens.
- Não há mais nenhum Sombra. – a voz melodiosa do músico não se alterou quando ele mostrou o celular que pegara de seu alvo. – Eurídice e eu nos certificamos que o outro está em um carro no estacionamento. – Hyoga assentiu, vendo a jovem seguindo rapidamente com outra cadeira de rodas.
- Sr. Hyoga. – cumprimentou, ajudando-o a acomodar o corpo mole do Sombra. – Encontrei um lugar onde podemos deixá-los.
- Vocês viajarão conosco? – os dois a seguiam pelo saguão até alcançarem um espaço pouco iluminado.
- Aqui é um estabelecimento que faliu e ainda não tem um novo dono. – a jovem garantiu, sinalizando para irem ao local mais distante da porta. – Eles demorarão horas para sair daqui. – Hyoga notou que as mãos dela tremiam levemente quando tirou um rolo de fita da mochila e começou a pregar pernas e braços nas cadeiras e tapar as bocas.
- A missão era garantir que vocês embarcassem em segurança e sigilo. – Orfeu respondeu quando voltavam para a loja de souvenires. Pararam na vitrine e Eurídice entrou para chamá-las. – Ficaremos com a srta. Saori até a reunião.
- Foi difícil aguentar a cara da atendente ao saber que não compraríamos nada. – Eiri veio rápido ao encontro deles. – Você está bem? – o marido confirmou, um movimento rápido dos lábios à guisa de sorriso.
- Papai! – Yuna abraçou sua perna, as mãozinhas agarrando com força a calça. – Você não estava na cabine... Fiquei com medo... – ele ficou desconcertado como sempre ficava com a efusividade da menina. Pousou a mão entre as tranças que ela gostava de fazer.
- Eu estava apenas garantindo que nossa viagem será tranquila. – escolheu sua voz mais suave. – Daqui algumas horas, estaremos na Grécia, a terra-natal de Orfeu e Eurídice. – olhou para os dois.
- Você vai adorar, Yuna! – a garota exclamou. – Os doces gregos são os melhores.
- Vai trazer uma lembrança para nós quando voltar? – Orfeu ajudou. Yuna ergueu os olhinhos verde-claros para o pai, que balançou a cabeça, encorajando-a.
- Vou trazer os melhores presentes. – ela corou quando soltou a perna e se virou para eles. – Depois que eu conhecer a vovó, o vovô e meus tios e tias e primos. – os dois riram e se despediram da família no portão de embarque.
Os celulares dos Sombras vibraram no bolso de Orfeu. Eles precisavam chegar o quanto antes à mansão Kido.
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Marin e Pavlin postavam-se de cada lado da soleira e Yuzuriha instalava-se no parapeito da varanda, observando a movimentação abaixo.
Assim que a porta se abriu, as três se endireitaram. Já passava das duas da tarde e elas permaneceram aguardando em silêncio. Curvaram-se à passagem do Grande Mestre. Marin sinalizou com a cabeça em resposta ao olhar de Mayura e entrou no quarto de Shaina, encontrando o casal pensativo. Captou imediatamente o olhar apreensivo de Shiryu para a mulher que tentava agir normalmente, organizando a caixa de medicamentos e instrumentos médicos.
- Shunrei, preciso que venha comigo. – o tom dela parecia quase indiferente, embora os dois ouvissem a nota de desagrado no final das palavras.
Como se já esperassem, os dois não protestaram. A chinesa suspirou, entregando a caixa sem olhar para a ruiva, parando em frente ao marido.
- Se sentir dor, tome a pílula vermelha. Se não conseguir comer, tome duas verdes. – tocou o rosto dele com as pontas dos dedos. – Logo mais, Ryuho virá e vocês poderão ir para casa. - Shiryu abraçou-a pela cintura, descansando o rosto entre os seios dela, sem se preocupar com a dor. – Vou preparar um jantar gostoso para vocês.
- Aproveite a casa vazia para descansar. – deixou-a se afastar, buscando os olhos azuis. - As garotas vão cuidar de você. – piscou para ela e fez uma careta por ter movido músculos doloridos.
Shunrei beijou sua testa, suas bochechas e seus lábios e saiu com Marin.
- Nós vamos ficar com você no sobrado. – as garotas a acompanharam escada abaixo e numa caminhada silenciosa e apressada.
O sobrado tinha o mesmo cheiro de sândalo e incenso do dia em que eles chegaram, embora estivesse bastante diferente. Os cômodos estavam repletos de móveis, livros, quadros, porta-retratos, calçados e casacos na estante da entrada, evidências de que era o lar de várias pessoas.
Shunrei abriu a boca e respirou fundo.
Pousou sobre a mesa a bolsa grande que usara na viagem.
- Vamos levar a bagagem para cima. – Pavlin anunciou. Elas trouxeram as malas e mochilas que tinham deixado no Santuário na noite passada.
- Deixem essas aqui, por favor. – Shunrei pediu em voz baixa, apontando para o conjunto rosa. As três acompanhantes se entreolharam. – Eu não ficarei.
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Foi uma tarde de navegação à deriva em sua consciência.
"Devem ser os medicamentos." Shiryu pensou em algum momento em que conseguiu emergir do embotamento. A sensação era de estar mergulhado numa bem-aventurança sem dor, dentro de um líquido morno, cercado de maciez. Por outro lado, às vezes, ele precisava respirar fora do líquido e a realidade aproveitava para se esgueirar. "Quer dizer que são apenas os Heinstein e seus lacaios... Como conseguiremos que os Solo nos ajudem a enquadrar o Subway Army?... Então, Julian Solo tem sua própria moral..." Choques percorriam seus nervos corpo a fora, tentando ligá-lo no tranco.
Imagens piscavam incessantes. Shunrei, Ryuho, Julian, o Santuário, o sobrado verde, Dohko, seus amigos, sua família, o apartamento na Coréia, os hospitais, seu jardim, aviões, os agressores em Singapura, as personagens do evento em Tóquio. Os rostos do Subway Army se destacaram. O irmão de Julian e seus lutadores.
"O que ele espera conseguir com essa postura?... Como eu devo agir agora?... Shunrei ouviu as orientações do Grande Mestre, mas ela não tem obrigação de segui-las... Preciso me recuperar e proteger a minha família... Será que iremos às últimas consequências?"
Quando o efeito dos medicamentos passou por completo, parecia que séculos haviam se passado. O ar do quarto estava abafado e havia uma nova bandeja na escrivaninha. Respirou fundo.
"Sem dor... Shaina deve estar querendo seu quarto de volta." Abriu novamente a janela, agradecendo a brisa ajudar a despertá-lo. "Assim que Ryuho chegar, iremos para casa." Comeu com vontade e se higienizou o melhor que conseguiu sem mexer nos curativos.
- Ele está aí dentro. – ouviu a voz de Seiya abafada pela porta antes da batida.
- Você está dormindo, papai? – seu coração acelerou e ele apressou-se a sair do banheiro, vestindo rapidamente a camiseta para que o filho não visse os hematomas. Os dois entraram no quarto e Ryuho parou de chofre ao ver o rosto ferido do pai. Arregalou os olhinhos azuis. – Papai machucou! – correu para perto de Shiryu, que agachou, esperando um abraço. O garotinho evitou tocar no pai.
Seiya sentou-se na cama, atento à movimentação. Shiryu sorriu para o pequeno.
- Está tudo bem, filho. Não está doendo. A mamãe e o tio Shun cuidaram de mim. – os dedinhos esticaram e tocaram o curativo no nariz, testando a reação do pai. – Viu? Logo os roxos vão sumir.
- A mamãe dormiu comigo ontem e me levou para a escola. Cadê ela? Você brigou com os caras malvados? O tio Seiya disse que você e o Mestre assustaram eles. Eu também vou proteger todos vocês! – ele disparou em uma única respiração, fazendo os adultos rirem. Shiryu o puxou para o abraço adiado.
- Ele se empenhou no treino com Teneo. – Seiya informou. – Derrubou Kouga e Souma várias vezes.
- Muito bom! – exclamou, sabendo o quanto ele se esforçava. - Tem que tomar cuidado para não machucar seus amigos, ouviu? – os bracinhos seguravam com força a camiseta. O calor do corpinho tranquilizou Shiryu. – Eu sei o quanto você é forte. Que tal nos arrumarmos para ir para casa?
Ryuho afastou-se e concordou.
- A mochila dele está aqui. – o amigo ergueu o objeto. – Dohko partiu no início da tarde com os outros, mas Shaina vai ficar com vocês. Irá assim que as aulas terminarem. Coloquei a medicação de Shun dentro da mochila.
Pai e filho caminharam devagar pelas ruas quase desertas do final da tarde. Demorou para saírem do Santuário porque todos queriam cumprimentar o garotinho ou saber o que acontecera com o adulto. Por mais evasivo que fosse, alguma explicação precisava ser dada e ele dizia, como Shion recomendara, que fora ferido durante uma tentativa de assalto em Tóquio.
- O que você fez nos dias que passamos fora, Ryuho? – Shiryu retardava seus passos para acompanhar o ritmo do menino, ainda miudinho para a idade. Ajeitou as alças da mochila.
- Fiquei em casa com o Mestre e a srta. Shaina. Haruto dormiu lá e a gente brincava com Éden e Souma. – Ryuho enumerava, gostando de estar lado a lado com o pai. - Um dia, a tia June e a tia Esmeralda nos levaram para passear e tomar sorvete na loja do sr. Afrodite. E depois o sr. Kanon desenhou um dragão nas minhas costas, igual ao seu, papai. Mas eu tomei banho e ele sumiu. Como o seu não some? Ele e o sr. Saga desenharam flores na Yuna e na Yorie e uma espada na Yuki. O Yuuto quis aquele herói do anime que ele gosta. O Haruto quis um lobo e o Souma um leão. A srta. Serenity fez um filhotinho porque disse que o leão grandão era do tio Aiolia. – ele contava e ria, animado. – O Kouga também ganhou um Pégaso filhote. Mas o dragão só nós dois temos, papai. O sr. Kanon disse que eu posso ir lá depois para ele fazer de novo.
- Então, vocês invadiram o estúdio dos gêmeos. – Shiryu riu também. – Eles devem ter ficado tão felizes... Sua semana foi bastante movimentada, hein? A mamãe e eu compramos presentes para todos. Depois, vamos visitá-los e agradecer a hospitalidade. – suspirou ao vislumbrar o sobrado entre os pinheiros altos, tocando o ombro de Ryuho para apressarem o passo. – E os deveres da escola? Conseguiu fazer? – a cabecinha confirmou. – Ótimo. Lembra o que sempre conversamos: primeiro o estudo e aí as brincadeiras. – franziu a testa por não ver nenhuma luz acesa. - Parece que a mamãe está dormindo.
O silêncio incomum acendeu o alerta em seus sentidos. Sentia, desde a porta de entrada, que não havia ninguém em casa. Engoliu em seco, tentando se convencer a abrir a boca e chamar, o temor de não obter resposta machucando seu coração.
- É melhor não fazermos barulho. – Ryuho colocou o dedo em riste na frente dos lábios. Shiryu concordou.
- Vá tomar banho e eu vou ver como está a mamãe e arrumar o jantar.
Respirou fundo, subindo as escadas. Seus passos ecoavam pelo espaço estéril. O sangue fugiu de seu corpo ao abrir a porta e ver sobre a cama o quimono cerimonial que ela usara no casamento e um envelope e uma caixa em cima.
"Estou muito feliz por você estar lendo essa carta. Significa que está em casa. Esses são os remédios que vai precisar e os horários. Por favor, siga a prescrição e logo poderá voltar a treinar. Se cuidar como fizemos hoje, em quatro dias os hematomas desaparecerão.
O carro vai ficar na estação de trem, a chave na seção de achados e perdidos. Não me siga. Sei onde preciso ir e o que preciso fazer. Custe o que custar. Demore o tempo que demorar.
Eu os amo mais do que a minha própria vida.
Me sinto uma covarde por dizer essas coisas numa carta, embora eu saiba que seria impossível fazer o que preciso se você estivesse aqui. Espero que um dia possa me perdoar, mesmo sabendo não ser digna.
Pode me dar mais um pouco de tempo? Não me pressione para voltar logo. Não espere por mim. Não se sinta mal por mim e não tenha pena de mim.
Para sempre sua,
Shunrei Nishi Suiyama"
As mãos trêmulas mal permitiram que ele lesse a caligrafia irregular e emocionada, seu pior temor virando realidade.
Ele imaginara que ela se disporia a se afastar, embora se agarrasse a uma ponta de esperança de conseguir demovê-la.
- Por que não me esperou? – ele murmurou, o peito ardendo de angústia. As lágrimas incessantes molhavam seu rosto pálido.
Sentou-se na cama, tentando acalmar a mente. Ligou para o celular dela. Chamou até cair na caixa postal. Andou de um cômodo para o outro, procurando algum sinal. Releu o bilhete amassado inúmeras vezes, descendo as escadas e vendo que ela deixara diversos potes de comida na geladeira e no congelador.
Ligou para Marin e as filhas e nenhuma atendeu. Sua parte racional gritava internamente "confie nela!".
- Você é uma tola! – Shiryu saiu para o quintal, a respiração tão desordenada que ele quase caiu sem forças. Tentou afastar as memórias da primeira vez que entrara naquela casa inesperadamente vazia. – Não é a mesma coisa. – afirmou alto para si próprio, refreando a comparação com o que acontecera há sete anos. – Há quanto tempo ela partira?
Ligou para a pessoa que poderia ajudar a descobrir onde ela estava.
- Consegue descobrir algo nas companhias aéreas ou nos aeroportos? – perguntou para uma estupefata Saori.
- Vou pedir para procurarem também nas estações de trem e nas rodoviárias. – a voz dela estava aflita. – Os Heinstein chegaram a Tóquio. Shion e os outros estão aqui na mansão. Amanhã de manhã faremos a reunião logo cedo. Resolvendo isso, a ameaça vai cessar. – ela parou um pouco. Ele sacudiu a cabeça, sem conseguir se concentrar na conversa. – Shiryu, escute. Shunrei sabe o que está fazendo. Não sei o que a motivou a agir dessa maneira e imagino como você deve estar se sentindo. Nós vamos encontrá-la. – ele se incomodou com o tom condescendente. Ryuho desceria a qualquer momento, devia se preparar.
- Assim que tiver qualquer informação, me avise, por favor.
- Claro. – Saori respondeu, eficiente. – Vou pedir a Seiya que vá até aí e não aceito um 'não' como resposta.
Ele desligou e foi aquecer a refeição, refletindo o que precisava fazer para mantê-la em segurança. Os ferimentos começavam a incomodar e seus ouvidos zumbiam. Lembrou-se da conversa que os dois tiveram no evento em Tóquio.
"- Eu sou tão forte quanto você. – ela dissera com tanta confiança. E ele respondera:
- Você sempre foi mais forte do que eu."
- Vou provar que você pode continuar ao meu lado. - ligou novamente para o celular de Shunrei e esperou o sinal da caixa postal. - Não vou te pressionar nem esperar por você, mas não suma. – sua voz estava embargada, mas ele não se importava. - Não deixe de voltar.
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Olá!
Nunca me deparei com capítulos tão difíceis de escrever! Foram semanas para conseguir o tom que me pareceu mais adequado para esse turning point.
Espero que vocês perdoem a demora e continuem por aqui até o final, que está próximo. ;-)
Como está sendo para vocês acompanhar esse dorama? E agora, quais serão as consequências do novelo estar sendo desatado?
Agradeço demais a leitura e até o próximo episódio!
Abraços,
Jasmin Tuk
