Fazia muito frio ali no alto. A corrente de ar que se formava ao redor da montanha assobiava em seus cabelos. Os músculos das pernas tensos pela subida íngreme o faziam pensar na força de vontade para morar em um lugar como aquele, embora a natureza exuberante dos Cinco Picos Antigos de Rozan tornasse a caminhada aprazível. A vegetação de altitude, com seus pinheiros e árvores altas, estava bem verde e cheirosa. A terra úmida e a miríade de rios e riachos, bons para agricultura, fizeram aquela região ser habitada desde milênios atrás, embora à medida que subisse as casas ficassem mais escassas. Os degraus baixos ajudavam o corpo treinado de Shiryu a escalar sem maiores dificuldades.
Ajeitou a mochila pesada nos ombros, testando as amarras na cintura. Deixara a maior parte das roupas no hotel e, seguindo o conselho do Mestre, a enchera com comida. A recepcionista o avisara para não ir enquanto a municipalidade não desobstruísse a passagem.
- E os moradores perto da Grande Cachoeira? – ele perguntara.
- Eles já estão acostumados. – ela dera de ombros, estranhando que alguém de fora se preocupasse com algo assim. – Devem estar gostando de não ter que lidar com os turistas. São muito arredios e não gostam de estranhos se intrometendo nos negócios deles.
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A temperatura caía à medida que os dias passavam, mas a vida não podia parar.
Shunrei acordou cedo, pretendendo descer para saber sobre a liberação da passagem. Estava quase sem mantimentos, mesmo racionando as porções de farinha, óleo, manteiga e leite. O que tinha na despensa daria para quatro dias, talvez cinco. O que mais a preocupava era a falta de eletricidade. Seu celular e notebook se tornaram inúteis e ela estava nervosa por não conseguir se comunicar com o dr. Lee Kang. A geladeira começava a cheirar mal e ela tinha que lavar as roupas na antiga tina de alvejar, que não usava desde criança. O aquecimento a gás deixara de funcionar, fazendo-a dar trabalho a Hen, que fornecia lenha para o fogão e os fogareiros da sala e do quarto.
"Pelo menos, estou me exercitando mais."
Após um café da manhã rápido, desceu a trilha até alcançar o tigre de boca aberta.
- Não precisa ir, Shunrei. – Satsuki a saudou com um aceno. – Mal conseguimos ouvir os homens trabalhando. Ainda estão muito longe.
- Já faz cinco dias. O que será que os está atrasando?
- Hen acha que eles perderam o jeito. Há mais de dez anos não acontecia algo assim. Ele e outros quatro rapazes estão lá, tirando entulhos desse lado, mas logo terão que parar para cuidar das plantações. – as duas voltaram devagar para cima. – Mamãe me pediu para ir vê-la. Como você está?
- Preciso encontrar uma forma de me comunicar com meus amigos na Coréia. Se ao menos eu pudesse carregar o celular... – ela suspirou. Satsuki enlaçou seu braço.
- Quer ficar lá em casa um pouco? Almoce com a gente. Você fica muito tempo sozinha lá no alto. – Shunrei ia recusar, mas se lembrou de que precisava lutar contra o desejo de querer se isolar completamente.
- Tudo bem. Estou mesmo precisando pegar umas dicas de unguentos com a sra. Huang.
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Mais ou menos na metade do caminho até o pico da montanha, ele encontrou o deslizamento que fechara completamente a passagem. Havia dois postes e fios no chão.
"Estão também sem energia e linha telefônica. Por isso ela não se comunicou mais." De alguma forma, aquela constatação diminuiu a angústia em seu coração.
Alguns homens trabalhavam com pás e carrinhos. O serviço era moroso porque não havia espaço para veículos ali. Redes de contenção e tábuas de sustentação impediam que houvesse novos deslizamentos enquanto o reforço de pedra e concreto não ficasse pronto.
- Fora de cogitação. – declarou o chefe da equipe assim que Shiryu lhe explicou o que o levara ali. – O entulho está instável e pode haver novos deslizamentos. A sua esposa está em segurança lá em cima. Mais quatro ou cinco dias e a passagem estará liberada.
- Não temos notícias dela há quase uma semana, senhor. – ele argumentou. – Eu prefiro passar agora, quando consigo ver o caminho, do que à noite. – o chefe franziu a testa com a ameaça velada. Pediu que ele aguardasse e chamou alguns homens para conversar perto do início do monte de terra e pedras soltas com o dobro de suas alturas.
Shiryu os observou de longe, aproveitando para analisar a paisagem onde Shunrei crescera. Imaginou as milhares de idas e vindas até a vila abaixo, o som da voz dela ecoando por aqueles paredões. Era um lugar que transmitia muita paz e uma energia que vinha tanto da terra quanto do céu. Encostou a palma da mão na rocha atrás de si, informando silenciosamente o motivo de querer seguir em frente. Os homens conversavam e olhavam para ele, desconfiados. Muitos balançavam negativamente a cabeça e ele começou a tecer planos para voltar à noite, lembrando da lanterna pendurada na mochila. O chefe o chamou.
- Está vendo como a terra está solta? – enfiou a mão no monte de entulho. – A única coisa que você conseguirá é afundar e ser levado por uma nova avalanche. Quer que a sua esposa fique viúva tão nova? – questionou quando Shiryu abriu a boca para retrucar. – Dois dias e teremos como abrir uma passagem estreita para uma pessoa obstinada. – falou, sério. Era um homem de meia idade com a pele curtida pelo trabalho diário ao ar livre. Se expressava de maneira simples e com tranquilidade e Shiryu reconheceu a sabedoria em suas palavras.
- Me mostre onde posso ajudar e faremos em um dia. – tirou a mochila, atou os cabelos longos, pedindo ferramentas para mover a montanha do seu caminho.
Trabalhou sem descanso, puxando a terra com uma picareta, enchendo carrinhos com uma pá e levando baldes de terra para jogar no penhasco. Ajudou a rolar as pedras maiores para perto da montanha. À tarde, carregou tábuas e toras de madeira para escorarem a terra que ainda removeriam e quase escorregou ao pisar em falso num degrau. Movia-se em silêncio, focado em abrir nem que fossem 30 cm onde pudesse colocar os pés. Seu empenho era tão grande que conquistou alguns trabalhadores, que formaram uma pequena equipe para abrir a fresta perto do penhasco.
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Os canteiros se desenvolviam bem. Uma das condições para Shunrei ficar na antiga casa do Mestre Ancião foi tomar conta do jardim de ervas na lateral da cozinha. Ela se sentia bem mexendo com as plantas, adubando, regando, podando e colhendo frutas, legumes, verduras e folhas que usava na comida e nos medicamentos que produzia sob orientação da sra. Huang.
Após pegar os ingredientes que precisava para preparar uma pomada hidratante de capim-limão para as mãos, estendeu as roupas de cama para arejarem e tomarem sol. Subiu até um dos braços de rocha, sentando-se para admirar a enorme queda d'água que sempre a impressionara quando criança. Lembranças de Genbu vinham sempre que percorria aquela trilha e ela terminava invariavelmente chorando, embora fosse também o lugar onde mais se lembrava de Shiryu, Ryuho e Dohko. Por algum motivo desconhecido, ela pensava que seria o local preferido deles.
- Hoje está particularmente difícil. – o rosto de seu marido aparecia com muita nitidez, chegando a ouvir a voz dele trazida pelo vento. – Mas é impossível. - Fechou os olhos e rezou para que eles estivessem em segurança e que seguissem suas vidas. Pedia também para eles a perdoarem. Não sabia se seria aceita de volta, quando pudesse voltar. – E quando será isso? Quando eu não serei mais uma ameaça ou uma ferramenta?
Tentou se lembrar de algum ensinamento do Mestre Ancião, alguma história que a ajudasse a navegar por aquela situação. O sol da tarde escondeu-se nas nuvens e ela voltou para assar dois pães que comeu com queijo curtido e chá de uma combinação de ervas que a sra. Huang fizera para ajudá-la na sua condição. Depois, recolher as roupas, procurar os livros de medicina tradicional da biblioteca do Mestre, preparar o pequeno jantar, esquentar a água do banho, acender as lamparinas e velas, acompanhar o pôr-do-sol pintando as lavouras nas terras mais abaixo de incontáveis tons de verde, azul, amarelo, laranja e cinza.
- Será que nunca vou parar de sentir essa inquietação no meu peito? – lembrava-se de Genbu correndo naquele mesmo gramado e logo Ryuho vinha se juntar a ele. – Eu não posso ficar perto de nenhum de vocês. – sua voz quebrou, úmida. – Eu não devo chorar ou ele vai sentir. Preciso ser forte por eles.
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Dezenas de baldes e carrinhos de terra montanha abaixo, finalmente alcançaram o outro lado da barreira. Ao ver seu objetivo mais perto, Shiryu aumentou os esforços e a velocidade, suas roupas empapadas de suor e cobertas de lama. Precisavam correr porque nuvens escuras se aproximavam e se houvesse chuva forte poderia haver novos deslizamentos ou agravar aquele.
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- Melhor prevenir. – ela acendera também o fogareiro do quarto dessa vez. – Quando vier dormir, coloco mais algumas achas.
Um dos peixes que o sr. Huang lhe dera rendeu um ensopado espesso e cheiroso, temperado com gengibre, alho, anis estrelado e cebolinha. Temperos energéticos, mas que não atrapalhavam seu sono. Ela planejava dormir cedo, após algumas horas de leitura, por isso comeu enquanto os últimos raios de sol iluminavam as copas das árvores mais altas.
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O sol já se punha e a maioria dos homens havia partido quando a última tábua foi escorada na estreita passagem. Os músculos das costas e dos braços de Shiryu tremiam ao colocar a grande mochila nas costas.
- Não se vire. A passagem é muito estreita e essa mochila vai fazer você perder o equilíbrio. – o chefe instruiu. – Não olhe para baixo, apenas para frente. Espero não ter que tirar seu corpo lá de baixo. Vai dar muito trabalho. – disse, à guisa de despedida. Ele e os quatro homens que ficaram observaram o jovem maluco iniciar a lenta travessia.
Shiryu precisava arrastar os pés no chão e as mãos na parede, o corpo inclinado para as tábuas de contenção. A cada passo reencontrando o equilíbrio, até que a parede de terra sumiu e a escadaria se abriu novamente. Só então percebeu que estivera prendendo a respiração.
- Consegui! Cheguei! – gritou alto duas vezes, sem ouvir resposta. Aspirou fundo o ar úmido e terroso, vendo as primeiras estrelas no céu cada vez mais escuro no leste e ainda pintado de centenas de cores no oeste. Mesmo exausto não deixou de apreciar a vista esplêndida dali.
Escalou por mais uma hora até encontrar o caminho que o Mestre Dohko lhe dissera, com a estátua de um tigre guardando a entrada. Seguia em meio às árvores. Ele acendeu a lanterna, atento aos sons da mata. Via, de um lado e outro, luzes fracas à distância, imaginando que fossem os vizinhos dos quais o Mestre falara. Não eram muitas e quanto mais alto o som da cachoeira, menor era a frequência das luzes.
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Um arrepio na coluna a desconcentrou da leitura e a fez olhar para a noite pela janela. Não era medo. Parecia um aviso, embora ela não conseguisse identificar do que se tratava. Preparou um chá de erva-doce, aguçando seus ouvidos para escutar ruídos do lado de fora. A única resposta foi o vento trazendo as nuvens escuras que ela vira.
- Vai chover muito hoje. – vestiu a camisola de algodão por cima das duas camisetas e da calça comprida. Pegou algumas brasas na lareira com o aquecedor de ferro e o colocou embaixo do cobertor da mesinha. Pegou também o xale verde da sra. Huang
O livro era um tratado antigo sobre a utilização de ervas como tratamento profilático de algumas doenças como enfraquecimento muscular e osteoporose. Até mesmo cáries e outros problemas bucais. Pediria ao dr. Lee Kang para repassar as informações para Shun e o dr. Heo Im. Tomava notas para enviar pelo correio, caso a eletricidade demorasse demais a voltar.
- Não posso ficar lendo até tarde. – a luz das lamparinas e do fogareiro não era própria para longos estudos. – Vou tentar inverter amanhã e estudar assim que retornar da caminhada matinal.
As costas a incomodaram e ela colocou mais uma almofada para segurar seu corpo. A escrita era lenta por não poder forçar a mão rebelde durante muito tempo sem provocar os tremores. A sra. Huang preparara um unguento para diminuir a rigidez dos dedos e ela conseguia executar atividades mais delicadas, como costurar e escrever, por um tempo maior, embora a precisão para cirurgias neurológicas estivesse perdida para sempre.
A imagem de Shiryu vinha insistentemente à sua mente, fazendo-a olhar novamente pela janela e rir de si mesma por esperar vê-lo ali.
"Deve estar ajudando Ryuho com os deveres da escola." Imaginou-os na mesa da sala, esperando o jantar do Mestre Dohko. "E pensando nas aulas para a turminha iniciante no Santuário." Sorriu, recordando do receio inicial dele em assumir ser sensei.
- Faça como se eles fossem seus filhos e vai dar tudo certo. – ela lhe dissera na noite anterior à primeira aula. – Você é um pai maravilhoso.
Sua garganta travou e ardeu ao engolir o chá. Respirou fundo, puxando o caderno de anotações e voltando a ler as descrições de efeitos das misturas de ervas.
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De repente, a mata se abriu para uma plataforma e o impacto da Via Láctea no céu noturno o fez parar de chofre. Seu coração bateu forte e a boca ficou seca. A sensação era de flutuar no espaço em meio a milhões de estrelas.
- Então era a isso que o senhor se referia? – ele murmurou, enfim entendendo a fala de Dohko.
Ao seguir o caminho estelar, acostumando seus olhos à fraca iluminação, viu luzes quadradas à curta distância. Caminhou rápido para lá, conseguindo distinguir a silhueta de uma casa e suas janelas altas e largas, de onde emanava a luz. Olhou pela vidraça e sua mente deu um tranco. Shunrei estava sentada numa mesinha baixa. Ele se demorou no rosto dela, a expressão concentrada e serena lendo alguns papéis e fazendo anotações. Havia uma caneca ao lado e ela estava coberta com um xale que ele nunca vira. Engoliu em seco, pela primeira vez pensando na sua imundice e no odor pouco agradável. Fechou os olhos, sentindo a pulsação descontrolada nos ouvidos e no alto da cabeça.
Bateu de leve na porta, ouvindo os sons da mesa sendo arrastada.
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"A essa hora?" Ela estranhou a batida e a ausência do costumeiro anúncio de quem era. "Será que aconteceu alguma coisa?" Empurrou a mesinha e levantou-se, não conseguindo enxergar pela janela. "Das próximas vezes, vou deixar a lanterna da entrada acesa."
Nos poucos passos até alcançar a maçaneta, pensou se deveria falar algo, recriminando-se por não ter fechado as folhas de madeira das janelas.
"Certamente, já viram tudo aqui dentro... Embora não houvesse risco de algum desconhecido vir aqui, com o deslizamento... Você está imaginando coisas, Shunrei... Não está em Gangseo-gu e nem em Tóquio... Não há perigo nenhum aqui."
- Quem é? – projetou a voz para atravessar a porta. – É você, Hen?
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A voz dela o deixou atônito por um momento. Pousou a mão na madeira vermelha da porta.
- Não. Sou eu. – ele pronunciou as palavras alto e claro.
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A boca dela se abriu, olhando ao redor a procura de algo que não sabia o que era. Seu corpo reagiu como se tivesse corrido dezenas de quilômetros, a adrenalina circulando rápido em suas veias. Seu diafragma começou a puxar e empurrar os pulmões com tanta violência que ela ficou tonta.
"Frio."
Passou as mãos pela roupa inapropriada, tentou ajeitar os cabelos o melhor possível.
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A porta se abriu rapidamente e ali estava ela, os olhos azuis arregalados. Parecia menor naquela camisola larga demais, mais pálida talvez, mas era ela. Seus dedos flexionaram de vontade de apertá-la e seus braços se estenderam antes que ele pudesse raciocinar. Ao contrário da sua imaginação, ela se afastou de seu toque, fazendo sua testa franzir.
– Posso entrar? Eu trouxe comida. – sua mente não estava funcionando direito. Há três meses não a via.
Shunrei piscou para sair do transe, assentindo e ficando de lado para ele entrar no ambiente morno e aconchegante da sala. Foi quando percebeu como estava frio lá fora. Era um cômodo amplo. Ao centro, a mesa com algumas almofadas ao redor e um banco recuado próximo a uma lareira de ferro com uma abertura de vidro onde se viam as chamas alegres que aqueciam o ambiente. Alguns armários baixos encostados nas paredes, onde havia pergaminhos e livros. Nas poucas paredes entre as enormes janelas, pinturas em aquarela chinesa com cenas campestres ou de luta com espadas.
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Era ele.
Após meses de ausência, Shiryu estava ali na sua frente, com as roupas imundas como se tivesse rolado na lama e uma mochila enorme nas costas. O rosto parecia exausto, mas era ele ali, em pé na sala da pequena casa de Rozan.
Shunrei sentia que seu peito explodiria vendo-o examinar o ambiente com os olhos verdes curiosos. Tinha medo dele tocá-la e descobrir, então ela estaria perdida. Fitava-o com uma vontade imensa de abraçá-lo e, ao mesmo tempo, sair correndo para o outro lado. Não estava preparada para enfrentá-lo agora.
"É a casa onde Dohko cresceu também." O rosto franco e alegre do Mestre apareceu claro em suas memórias. "Como eu não previ algo assim? Até parece que não o conheço. Você é tão boba, Shunrei."
- Como você?... Suas roupas?... – gaguejou de nervosismo. – O que?... Como chegou? – aparentemente o cérebro dela também parara de funcionar.
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Shiryu tirou a mochila dos ombros com um suspiro de alívio. Encostou-a na parede ao lado das botas enlameadas.
- Eu gostaria de um banho. – ela sacudiu a cabeça e assentiu, sinalizando para ele a seguir pela abertura oposta, entrando no interior da casa de paredes brancas. Havia duas portas de cada lado. O banheiro era a segunda à esquerda.
- Não há energia elétrica, mas eu vou esquentar água. – Shunrei informou, abrindo a torneira da banheira. – Você pode... Você pod... – suspirou para se acalmar. – Pode controlar a água para não transbordar? – ele assentiu.
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Shunrei saiu para o corredor a tempo de se segurar na parede para não cair.
"O que eu vou fazer?"
Encheu as duas maiores panelas com água e colocou-as diretamente nas chamas do fogão a lenha para aquecerem mais rápido. Sua mente não conseguia completar nenhum raciocínio, por isso ela se sentou e fechou os olhos, recordando-se dos ensinamentos de Shaka. Executou os mudras até a água ferver, conseguindo retomar o controle da pulsação e da respiração.
"Por que com ele é tão difícil? Não é só Shiryu que age de modo passional." Os dois baldes pesavam bastante, embora àquela altura ela estivesse acostumada a equilibrar o corpo transportando ambos de uma só vez.
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Shiryu sentou-se no banquinho de banho, tirando a crosta de sujeira dos braços. Começara a tirar o excesso dos cabelos quando ela voltou, trazendo a água quente. Levantou-se para ajudá-la e ela novamente recuou.
- Não seja boba, Shunrei. – ele pegou os baldes e despejou a água na banheira. Ela não olhou para ele ao dizer que iria buscar mais.
Ele terminou de se limpar, tirou a lama dos cabelos e entrou na banheira. Seu corpo tenso queria relaxar, mas sua mente não parava de tecer hipóteses para aquele comportamento.
"Eu a assustei. Como eu cheguei aqui com o deslizamento? As roupas deram a resposta. Preciso ter paciência, ela está há meses aqui."
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"As cicatrizes que eu não pude tratar." A garganta dela tremeu ao ver os cortes e sinais nos braços e nas pernas que quase terminaram a mudança de cor do rosa para o esbranquiçado final. "E os olhos estão tão tristes." Ela não conseguia retribuir o olhar. Tinha medo do que poderia ver no fundo dos olhos dele. "Se ele veio até aqui, quer pelo menos conversar."
A nova carga de água fez seus braços reclamarem. Ela cerrou os dentes e continuou pelo corredor. O viu dentro do ofurô, esfregando a pele para tirar os resquícios de sujeira do mesmo jeito que Ryuho fazia após uma tarde de brincadeiras com os amigos no Santuário. Os cabelos pretos, antes atados num coque, caíam pela borda, emaranhados. E ele parecia não comer há dias.
"O que ele quis dizer com 'trouxe comida'? Será que achou que eu estava passando fome aqui?" O pensamento quase a fez sorrir.
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Shunrei voltou com mais dois baldes cheios, despejando um na banheira. Sem dizer nada, posicionou o banquinho às suas costas e começou a lavar seus cabelos com shampoo. O toque delicado o fez arrepiar. Ela pediu que ele inclinasse a cabeça e esfregou os fios e o couro cabeludo, enxaguando com as mãos em conchas, como a vira fazer com Ryuho.
- Você comeu alguma coisa? – a voz voltara ao timbre habitual.
- Não, estive trabalhando duro hoje. – ela sorriu brevemente, desembaraçando os fios e os prendendo no alto da cabeça. – Eu trouxe...
- Comida. – ela completou. – Sim, depois veremos isso.
Esfregou-lhe as costas, os dedos tocando com cuidado as cicatrizes que ela presenciara serem feitas marcando as escamas do Deus dragão, e anunciou que iria preparar uma refeição.
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Limpou o outro peixe e refogou com algumas cenouras, batatas e folhas de couve, juntando o que sobrara do jantar. Acrescentou mais gengibre, anis e alho para que ele não ficasse doente pelo frio que passou no caminho. Lá fora, o vento assobiava, prenunciando a chuva.
O foco no preparo dos ingredientes ajudou-a a se acalmar.
"Para quê esse nervosismo todo, afinal? Vamos conversar como adultos e pronto." Experimentou o tempero, decidindo se seria bom colocar um pouco de farinha para engrossar. "Ele parecia faminto."
- O cheiro está muito bom. – Shiryu comentou, vestindo a camiseta de flanela de manga comprida que encontrara metendo a mão entre as embalagens de alimentos. Depois a calça do conjunto. – Quer ajuda?
- Não. É só um ensopado de peixe e legumes. – Shunrei corou ao vê-lo colocando a roupa no batente da porta. - Melhor você ficar perto da lareira para secar o cabelo. Levo a travessa daqui a pouco.
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Ele procurou o pacote de pão e colocou sobre a mesinha. Era uma sala menor que a da casa deles, com três portas: a de entrada, a do lado oposto, para o corredor dos quartos, e à esquerda da entrada era a cozinha. O piso de madeira escura tinha as marcas dos pés enlameados dele. A lareira aquecia o ambiente e o tornava aconchegante.
"Então foi aqui que o Mestre foi criado." Ele sorria, tentando adivinhar se a casa já era daquele jeito na época de Dohko. Reparou que a luz das lamparinas brilhava nas vidraças e, ao prestar atenção na cintilação, viu que estava chovendo. "Qual o assunto nesses pergaminhos? Parecem muito antigos. Os livros de folhas amareladas e grossas."
- Eu já comi, mas me deu fome de novo. – Shunrei trazia uma bandeja com a travessa de ensopado, uma panelinha de arroz e as tigelas. Por pouco não se desequilibrou. Shiryu ajudou-a.
- Será um prazer ter a sua companhia. – ele piscou para ela, vendo sua garganta se mover sob a expressão séria. Seu estômago roncou ao ver os pedaços de peixe e ele tomou uma tigela inteira de uma vez. – Delicioso! – exclamou, servindo mais e arrancando um leve sorriso dela.
Os dois comeram diligentemente, estudando-se enquanto conversavam amenidades sobre o tempo, o deslizamento e os assuntos da biblioteca da casa. Shiryu percebia a tensão nas linhas do rosto de Shunrei, nos olhos que não ousavam encará-lo e na postura rígida do corpo, completamente escondido por aquela camisola larga demais e o xale florido que ela insistia em puxar para cima dos ombros.
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Seu coração queria pular para dentro dele.
Assistiu-o comer com avidez a comida simples, conversando com grandes bocados de pão na boca, contando a sua aventura para chegar até ali como algo trivial. Ela percebia a gentileza e o carinho nos menores movimentos. Sentia o calor que vinha de Shiryu ao oferecer um pão ou servir uma concha de caldo para ela.
"Estou tão feliz que você veio!" Queria dizer, mas não podia. Ainda não. "Talvez não faça mais diferença daqui a pouco."
Ela comeu com gosto após aqueles meses sem querer que ele soubesse sequer seu paradeiro. Não foi difícil deduzir, Shunrei supôs, quais eram os locais onde se esconderia.
Shiryu procurava deixá-la menos arredia e seu sorriso era tão sedutor que ela se viu sorrindo de volta, arrumando os fios soltos do cabelo atrás da orelha.
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- O seu cabelo cresceu mais. – ele comentou, sabendo que eram alvo de preocupação desde o atentado na Grécia. Shunrei passou a mão pelos fios que agora chegavam abaixo das orelhas. – Estão brilhantes. Quero saber se continuam macios. – estendeu a mão e ela se afastou, segurando-a no ar. Shiryu comprimiu os lábios. – Está tudo bem? Não, não desvie o olhar. – pediu e ela atendeu.
Ouvia a chuva tamborilar nas janelas e no telhado. O rosto dela iluminado pelas chamas da lareira, as pupilas tomando todo o espaço das íris azuis. Ela levou sua mão e a colocou sobre a própria barriga. A compreensão veio devagar, à medida que ele movia os dedos em volta de algo arredondado, oculto sob tantas camadas de tecido. Ela assentiu ante a pergunta muda dos olhos dele, soltando a mão e esperando.
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"Que os Deuses me ajudem." A súplica silenciosa era repetida à medida que os olhos verdes se arregalavam e o rosto todo dele se abria de choque. Ela sustentou o olhar que a perfurava, sentindo a mão morna mover-se em seu abdômen.
Fazia poucos dias que a barriga crescera o suficiente para se notar, tornando o conhecimento real. A felicidade que ela sentira só rivalizava com a tristeza de não poder dividir com sua família a notícia, os acontecimentos, as transformações em seu corpo e na sua vida.
Shunrei via no semblante dele o impacto forte do que aquilo significava. Ele não iria mais se esforçar para deixá-la tranquila. O sorriso sedutor sumiu, dando lugar a lábios comprimidos e uma testa franzida.
"Foi algo que eu mesma causei." Os dedos dele continuavam suaves sobre seu ventre. A garganta dela doeu terrivelmente quando finalmente falou.
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A mente de Shiryu estava em branco. Jamais imaginara encontrar isso em Rozan. Sua mão continuava se certificando que entendera corretamente.
- Eu precisava protegê-lo. – a voz de Shunrei quase não saia. – Precisava proteger vocês e ele também. Por isso eu vim. Se eu contasse, você viria e colocaria tudo a perder... Mas, você veio de qualquer forma.
Ele teve vontade de bater nela. Seu corpo todo tremeu e ele respirou fundo. Os olhos deles fixos um no outro.
- Você não pode ter imaginado que eu não viria buscá-la. – o tom era de incredulidade. – Que espécie de homem você acha que eu sou? – os cantos da boca dela se curvaram sutilmente, embora seu sangue tivesse parado de correr nas veias.
"Não estou conseguindo conversar direito." Ela escolhera mal as palavras. Assumira que ele entendera a carta que deixara ao partir.
"Não foi para isso que eu vim aqui." Ele tentou controlar a ira que nublou de vermelho a sua visão, sem conseguir refrear a língua.
- Da espécie que atravessa uma montanha de escombros para vir me ver. – a respiração dele estava descompassada. – E da espécie que perdoa a esposa por esconder uma gravidez.
- Qual era o seu plano? – Shiryu não iria facilitar tanto assim. - Você apareceria um belo dia com a bebê nos braços como se fosse algo normal? – ela gaguejou bastante antes de firmar a voz.
- Meu único plano era ficar longe de você e Ryuho e levar essa gravidez até o fim. – ele viu um brilho de desafio no fundo dos olhos. – Eles estavam me usando para atingir você, não podia permitir que colocassem as pessoas que eu amo em risco.
- Ama? É assim que você nos ama? – ele nem a esperou terminar de falar. – Indo embora e sumindo? Deixando um bilhete e potes de comida. É assim que você demonstra o seu amor?
- Me desculpe por ter feito você reviver um momento tão doloroso. – ela se postou em constrição, ajoelhada de frente para ele, o tronco curvado e a testa no chão. – Sei que não devia ter agido como agi. Não mereço perdão por ter abandonado você e Ryuho. Eu fui covarde em usar os planos do Santuário e não conversar direito, mas eu sabia, eu sabia que não conseguiria sair com vocês me olhando.
- O dr. Lee Kang tem contado a você o que nós fizemos? – o tom da voz dele era rigoroso. Suas entranhas se revolviam ao vê-la naquela posição. – Os homens de Julian Solo a mantinham bem-informada? – a entonação que desnudava a raiva e os ciúmes saíram sem que ele conseguisse refrear. Shunrei hesitou antes de assentir. – Compreende que agora não precisa mais se esconder? – viu os nós dos dedos dela brancos de tão apertados em punho. Novo assentimento. – Há quanto tempo você sabe?
- Oito dias. – ela precisou repetir, as palavras recusando-se a sair pela garganta fechada. – Desde que o último deles partiu e não foi substituído por ninguém. Eu iria descer para a vila, mas houve o deslizamento.
A chuva não dava mostras de arrefecer. Shiryu, conhecendo-a como a conhecia, sabia como haviam sido aqueles meses para Shunrei, praticamente isolada ali, como uma tigresa ameaçada protegendo sua cria. Olhou ao redor, tudo tão diferente da vida dela. Seu peito doía e tinha a sensação de suas entranhas serem removidas, tal o vazio crescendo dentro de si.
"Então ela realmente pensou que estando longe conseguiria afastar o perigo de nós e manteria o bebê vivo. Ela me subestima tanto assim? Preferiu que outros soubessem?" Ele sacudiu a cabeça violentamente. "Não vou alimentar esses pensamentos!... Mas, por que ela não me avisou? Por que não me disse quando enviou aquela mensagem? É claro que eu viria, como vim agora!"
- Você sabe o que provocou na nossa família? Como nosso filho se sentiu? – ela balançou a cabeça. – Ryuho chorava à noite e não queria mais sair de casa, com medo de ser abandonado outra vez. – as frases temperadas com raiva e frustração soavam como tapas.
- Eu sinto muito. – ela repetia baixinho, deixando-o mais nervoso ainda. A alegria que sentira ao finalmente poder vir ao encontro dela afundou num lago de ressentimento. Não suportando mais vê-la, levantou-se e começou a andar pela sala, fingindo se interessar por um ou outro detalhe, sem realmente ver nada. A chuva parecia que duraria para sempre.
Shunrei se preparara para ouvir tudo isso e mais, e mesmo assim não conseguiu explicar. Não conseguia falar das ameaças e nem da decisão mais difícil de sua vida. Se ele estava ali, com certeza não havia mais ameaças e restava apenas uma mulher que o abandonara. Ouvia os passos no assoalho de madeira, querendo arrancar a dor que colocara no peito dele.
- Como estão Ryuho e o Mestre? – a pergunta o fez se virar para ela após vários minutos. Permanecia na dogeza. – Eu comprei presentes de Ano Novo para eles da última vez que fui à vila. – Viu que seus ombros tremiam e se xingou absurdamente. Ajoelhou-se e pousou a mão em sua cabeça.
- Macios como sempre. – murmurou, uma onda de calor percorrendo seu braço e irradiando para o resto do corpo. Shunrei ergueu o rosto e endireitou a coluna com uma careta de dor. – Me desculpe. – ficou aflito ao ver que ela estava mais pálida, encostando-se nas almofadas e fechando os olhos. – Está sentindo algum mal-estar? – ela negou.
- Só um pouco tonta. – Shunrei respirou fundo. – Faço acompanhamento com a ginecologista do posto de saúde. Estamos bem. – apressou-se a informar, não querendo colocar mais pressão nas emoções dele.
Sem pensar, Shiryu tocou a barriga dela de novo.
- Você está com quantas roupas por baixo? – a pergunta a fez erguer as sobrancelhas. Desabotoou a camisola grossa, revelando duas camisetas que puxou para cima, deixando-o ver a pele branca do abdômen intumescido. Acariciou-a muito de leve, sentindo e provocando arrepios. Um movimento em sua palma o fez parar. Olhou para Shunrei, igualmente surpresa. Era como se algo deslizasse e cutucasse. Aconteceu mais três ou quatro vezes. – É a primeira vez? – ela confirmou, pousando a mão sobre a dele. – Eu tinha esquecido como é mágico.
- Estou feliz por compartilhar esse momento com você. – ela respondeu com carinho, sua mão apertando a dele contra si. – Queria ter compartilhado todos os outros.
O coração dela batia no céu-da-boca. Era o máximo que ousava declarar agora. Se ele não pudesse entender, então não tinha jeito.
"Será que ele acredita que eu estou contente com toda essa situação?"
Ele não soube se foram as palavras, os olhos brilhando de alegria e expectativa ou o contato com a pele macia e quente. Soube apenas que no instante seguinte a beijava com uma satisfação imensa, sentindo o dragão dentro dele levantar a cabeça e rugir para o céu.
Ela tocou-lhe o rosto com as pontas dos dedos, fechando os olhos ao sentir a respiração quente em suas faces. Moveu os lábios devagar, temendo que fosse um sonho. Para felicidade dela, a sensação cálida se intensificou com o movimento do corpo dele, colado ao seu.
- Fico feliz que os remédios tenham evitado as cicatrizes no rosto e as outras são finas. – as pontas dos dedos de Shunrei acariciavam as faces angulosas.
- Se você fugir de novo, a punição será severa. – Shiryu sussurrou, abraçando-a com força.
Com os olhos ainda fechados, seus outros sentidos aguçaram-se e ela sentiu os fios ainda úmidos em suas bochechas e a respiração quente em sua nuca.
- Se você continuar me apertando assim, eu não vou conseguir respirar. – ela disse baixinho, seus braços agindo no sentido contrário e apertando-o também. – Está me ouvindo, Shiryu?
- Huuummm. – ele não aumentou nem diminuiu a força, envolvendo-a até que os corpos regulassem um a temperatura do outro.
- É tão bom ficar assim. – as mãos de Shunrei passeavam por suas costas. – Mas preciso arrumar a cozinha antes de dormir. Você pode ir se deitar. O quarto é a porta em frente ao banheiro. – ele negou, começando a recolher as tigelas.
- Dois é melhor do que um.
- Deve estar cansado da viagem e da escalada. – ela protestou. Ele já levava as louças para a cozinha quadrada, com uma mesa pesada de madeira, um fogão a lenha e outro a gás, uma geladeira de pelo menos 30 anos e uma máquina de lavar-roupa mais recente. Duas grandes prateleiras exibiam as panelas e utensílios maiores e uma cristaleira da mesma madeira rosada da mesa completavam o ambiente simples. Ali o piso era de cerâmica de um vermelho desbotado e gasto pelo tempo.
Enquanto ele lavou e guardou a louça e as panelas, Shunrei calçou luvas grossas para encher um saco de lenha cuidadosamente arrumada ao lado da porta da cozinha que saía da casa.
- Hen trouxe para mim ontem. Ele sabe quando o tempo vai mudar.
- Quem é Hen?
- Marido de uma amiga querida que reencontrei. – ela testou erguer o saco e precisou retirar algumas achas. – Eles moram aqui, mas me deixaram ficar por esses meses. Amanhã devem vir saber quem é você.
- Me deixe fazer isso. – Shiryu suspendeu o saco com facilidade.
Shunrei apagou as lamparinas e velas, separando algumas brasas da lareira dentro de uma espécie de frigideira de ferro com tampa. Levou junto com uma lamparina pelo corredor, apressando-se a acender as duas lanternas do quarto. Havia uma lareira semelhante à da sala, o fogo quase extinto. Estava frio ali. Ela o ensinou a atiçar e reviver as chamas, colocando a frigideira embaixo dos dois edredons da cama de casal estreita.
- Logo vai esquentar. – ela afirmou como se pedisse desculpas pela acomodação precária. Ele sorriu, tirando as luvas e espreguiçando.
Seu corpo finalmente relaxara e o cansaço tomou conta de sua mente também. O quarto era ainda mais simples. De móveis tinha apenas a cama, um baú aos pés dela, um guarda-roupas de três portas e uma cômoda larga de duas gavetas fundas, sobre a qual ela colocara vários porta-retratos com cenas que ele conhecia bem: na ilha de Jeju, nos parques de Gangseo-gu, Ryuho e ele deitados no gramado ensolarado do sobrado verde, o Mestre e ela cuidando das flores da entrada de casa, os quatro na praia, fotos de treinamentos e no ambulatório no Santuário. Ele engoliu em seco várias vezes, emocionado. Seu coração encheu-se de ternura.
"Ela sempre faz essas coisas." Sua própria voz ecoou em sua mente.
- Posso ficar perto da porta? – a voz dela o tirou das lembranças. – Me levanto para ir ao banheiro várias vezes e não quero acordá-lo. – ele concordou, dando a volta para se enfiar, sem camiseta, embaixo das cobertas aquecidas pela frigideira, que Shunrei alojava agora embaixo do colchão. – A cama não é igual à nossa.
- Shu, não se preocupe. – as pálpebras dele pesavam. – Vem aqui. – pediu, assistindo-a despir o xale e a camisola. Agora os contornos da gravidez ficaram evidentes, os seios e os quadris volumosos e a curva da barriga marcada pelas camisetas justas. – Você não cansa de ficar cada vez mais linda? – murmurou nos cabelos dela, acomodando-a nos braços.
Dormiu com o nariz no meio dos fios sedosos.
Shunrei ficou acordada, atenta à mudança na respiração de Shiryu. As emoções borbulhavam dentro dela, a única forma de extravasá-las sendo através de lágrimas silenciosas, o calor da pele dele passando para a sua, as pernas encaixando-se como se nunca tivessem estado longe. O peito dele roçava suas costas e ela logo notou que as respirações tinham o mesmo ritmo.
Seu último pensamento consciente foi como era injusto a noite ser tão curta.
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
Shunrei despertou, mas não abriu os olhos.
O ar entrava fresco em suas narinas e a claridade não se insinuava forte em suas pálpebras, indicando que ainda era quase madrugada.
"Quase amanhecendo." Respirou fundo, mexendo um pouco o corpo sob os cobertores macios, virando-se para o outro lado, a visão do rosto de Shiryu a acordando completamente. "Como pude esquecer... Eu estava mesmo exausta." Riu de si mesma porque durante a noite tomara tanto cuidado para não o acordar e agora se assustava ao vê-lo.
O fogo estalava a madeira no fogareiro. A chuva continuava mansamente.
Se pôs a estudar os detalhes dos olhos, os cílios longos que ela brincava serem postiços, a testa sem os vincos da noite passada, o nariz afilado e a boca meio aberta por onde escapavam sons de ressonar. As maçãs altas e o queixo triangular terminavam o conjunto que ela julgava uma obra de arte. Via a pulsação serena na base do pescoço, acompanhando a respiração profunda que fazia o abdômen distender e encolher sem preocupações.
Shunrei ajeitou alguns fios da franja preta espalhados pelo rosto e pelo travesseiro, seu corpo esquentando e despertando com os estímulos da contemplação, do cheiro e da presença sólida de Shiryu. Seu desejo, praticamente inexistente no primeiro trimestre, retornara paulatinamente e, algumas vezes, ela pensara que estava maior agora do que antes da gravidez.
"Será que já tiramos coisas suficientes do caminho?"
Num impulso calculado, encostou os lábios na bochecha, esperando uma reação que não veio. Beijou a testa, depois o pescoço e o ombro, chamando baixinho por ele. Suas mãos acompanhavam os lábios, reconhecendo o território de seu corpo. Ele se mexeu e resmungou algo ininteligível, encorajando-a a provocá-lo mais. Roçou lábios com lábios e ele finalmente correspondeu, puxando-a para mais perto e segurando sua nuca para aprofundar o beijo.
- Senti falta de ser acordado desse jeito. – murmurou entre um beijo e outro, a voz ainda etérea. Pressionou seu corpo sobre o dela, fazendo Shunrei parar e o deter com as duas mãos.
- Assim não, Shi. – a voz dela soou nervosa. Ele demorou um segundo para entender.
- Me desculpe. – passou a mão na barriga da esposa. – É muito novo para mim. Machuquei você? – ela negou, corando.
- Levei um susto. – ele sorriu da expressão envergonhada dela. – Quero tanto você que me esqueci por um momento...
- O que a doutora disse sobre fazer amor? A gravidez é de risco? – os lábios de Shunrei ficaram finos.
"Depois de tudo que aconteceu... Eu estive numa redoma de proteção desde que saí de Kamakura."
- Se tomarmos cuidado, ele estará seguro... O bebê está se desenvolvendo bem e não tivemos nenhum problema. Tomo os chás que a sra. Huang me indica e os medicamentos da ginecologista. – ele assentiu, completamente acordado agora. – Elas dizem que a altitude faz bem para mim, meu corpo reage bem. – ela se virou para a mesinha de cabeceira, tirando uma folha de papel fotográfico de dentro de um envelope pardo. – A primeira foto dele.
Era apenas uma imagem em preto e branco, de contornos pouco definidos, do perfil de um minúsculo bebê deitado em meio a um mar escuro. Shunrei identificou a cabecinha e as mãozinhas, entregando para o marido. Os olhos de Shiryu umedeceram e sua garganta secou. Ele já passara pela experiência de aguardar o nascimento de um filho e descobriu, ao contemplar aquela imagem borrada que era nada e tudo ao mesmo tempo, suas emoções intactas e poderosas como naquela ocasião. A mesma alegria, maravilha e ansiedade. O mesmo receio, contentamento e orgulho.
- Nunca vou parar de mimar essa menina. – declarou, fazendo-a rir. – Pode pedir o que quiser, filha, o papai vai fazer o impossível para conseguir. – devolveu a foto para a mesinha, aproveitando a volta ao seu lado da cama para beijar a mãe da bebê.
O coração de Shunrei dilatava no peito, dominando os seus sentidos. Seu corpo vibrava, reagindo ao contato com a pele quente de Shiryu. As mãos tocando os pontos sensíveis de ambos.
- A doutora Liena disse que o bebê sente as mesmas sensações da mãe. – ela informou, ofegando com os dedos dele tocando seu mamilo.
- Me deixa vê-los. – o pedido foi prontamente atendido. Os seios começavam a ficar maiores, as auréolas adquirindo um tom mais escuro. A ponta fria do nariz dele os tocou antes da língua quente, fazendo-a estremecer. – O seu gosto me inebria. – essas observações a deixavam fora de si. Shunrei acariciava e beijava o alto de sua cabeça, seus dedos embrenhando-se nos cabelos espessos. Shiryu desceu a boca até seu ventre. – Minha florzinha, eu vou fazer a sua mamãe se sentir muito bem. – declarou, os olhos fixos nos dela. Voltou a beijá-la, os dois gemendo e tremendo. – Vamos fazer mesmo? – ele perguntou com o último lampejo de sanidade.
- Você está sendo cruel. – as faces de Shunrei estavam vermelhas. Ela sentia seu corpo latejar, o fluxo de sangue intenso em seus lábios e sua feminilidade. Estava tão sensível que teve seu primeiro orgasmo ao senti-lo dentro de si. Agarrou-o com força pelos ombros, abraçando-o e sentindo o corpo derreter.
- Está me apertando muito. Vibrando e se contorcendo ao meu redor. – ele sussurrou, os dois unidos de lado. Puxou uma perna dela para cima do seu quadril, indo mais fundo e provocando mais espasmos. – Assim está gostoso? – ela confirmou com um aceno.
- Pode começar a se mexer. – Shunrei via o fogo verde arder nos olhos que vigiavam suas reações.
- Não vou fazer forte, não se preocupe. – ela fechou os olhos, seus ouvidos captando os ruídos úmidos, os gemidos e as respirações. Embaixo dos edredons parecia uma fornalha e cada movimento deixava sua mente mais vazia.
- Devagar assim eu consigo sentir você inteiro dentro de mim. – conseguiu dizer. – É bom. Está crescendo mais... Tão quente.
Ele seguiu o ritmo até o fim, quando eles não aguentaram e gozaram várias vezes. Ficaram abraçados, esperando juntos os choques e os espasmos diminuírem.
- O que? – ele perguntou à interjeição dela. Shunrei colocou sua mão aberta onde ocorria uma dança na barriga dela.
- Acho que ele está feliz. – sentiram o movimento por vários minutos, acabando por adormecer.
Quando Shiryu acordou, ela já saíra. Virou-se na cama, encarando o teto de grossos caibros escuros como o piso. Aspirou o cheiro dela ao seu redor.
"Algumas palavras ainda precisam ser ditas." Percebeu que o som incessante não era da chuva e sim da Grande Cachoeira. "Uma filha!" Ele sorriu, relembrando a sensação na palma da mão, o coração subitamente feliz ao imaginar a bebê em seus braços. "Depois de tudo que passamos... Depois da perda da nossa primeira bebê... Vai ficar tudo bem." Fez uma oração silenciosa, pedindo a proteção de todos os Deuses que conhecia. "Não vim para brigar. Vim para reatar todos os laços." Bateu na testa ao lembrar onde deixara a mochila.
- A chuva espalhou a terra e as pedras. – uma voz masculina comentou da cozinha. - Diminuiu a altura, mas cobriu a pequena passagem.
A claridade revelou que a casa, apesar de antiga, estava conservada. O piso de madeira brilhava, destacado pelas paredes brancas. As janelas abertas deixavam entrar o ar novo da manhã ensolarada. Ele tentou passar despercebido, pretendendo escolher uma roupa no quarto. Sem sucesso.
- Foi ele mesmo que nós vimos passando. – a voz feminina o apontou. – Os cabelos são inconfundíveis. – era diversão que ele notava? Não teve outra alternativa a não ser aparecer com a calça e a camiseta velhas e puídas. Shunrei, de pé junto ao fogão, piscou para ele, dizendo que iria servir o café.
- Esses são os amigos de quem falei: Satsuki Huang e Hen Zhao. Lembra do sr. e da sra. Huang? – Shiryu confirmou. – Satsuki é a filha deles.
Ele os cumprimentou com uma reverência e apertos de mão. A mulher, da altura de Shunrei, tinha perspicazes olhos castanhos amendoados e o sorriso amplo. O homem era mais alto e magro, com um aperto de mão forte e expressão séria. Tinha o mesmo tom de pele do chefe da equipe de desobstrução que ele conhecera no dia anterior.
- Você nunca disse que o seu marido é famoso, Shunrei. – Hen comentou com simplicidade. – Eu apostei uma boa quantia em você, sr. Suiyama. É verdade que você vai voltar esse ano? – Shiryu demorou a responder, pego de surpresa pela fama num lugar tão longe das grandes cidades.
- Sim. Estou me preparando há meses. – pegou as tigelas para o café, perguntando se todos já tinham comido. – O campeonato mundial começa em duas semanas. – serviu as tigelas de arroz e do ensopado com um ovo cozido.
- No seu primeiro campeonato, eu ganhei tanto dinheiro que consegui comprar a lavoura ao lado do meu sogro. – Hen estava empolgado com a notícia, aceitando dividir a refeição com Shiryu, mesmo a esposa dizendo que ele já comera. – E foi como nos conhecemos. – sinalizou para Satsuki. – Com o dinheiro do ano seguinte, nos casamos.
- Eu nunca soube disso, Hen. – Shunrei sentou-se ao lado de Shiryu.
- Nem eu. – as sobrancelhas de Satsuki demonstravam a novidade. – Papai não deveria tê-lo proibido de apostar. Você é cheio de surpresas!
- Por que eu iria ficar contando essas coisas? Se todo mundo soubesse, a minha aposta valeria menos. Além disso, a informação só é relevante no momento adequado. – Hen disse com sua voz rouca e tranquila. – Você veio levá-la de volta? - Shiryu assentiu, olhando para Shunrei. – Ainda vai levar uns três dias para conseguirmos passar com segurança.
- O que você fez ontem foi absolutamente imprudente. – Satsuki balançou a cabeça como se falasse com uma criança desobediente. - Pelo seu estado quando subiu, foi sorte não ter rolado encosta abaixo. Ainda bem que trouxe comida, ou teria sido tudo em vão. – isso o fez rir. – Vocês só vão embora quando não houver perigo. – Shiryu assentiu, notando a familiaridade com a sra. Huang no modo de falar dela.
- Mas nós podemos limpar também, não podemos? – lançou um olhar convidativo a Hen. – Somos quantos desse lado?
- Trabalhamos algumas horas lá, mas é difícil porque precisamos também cuidar das lavouras. – Hen afirmou com paciência. - Estamos nos organizando para depois de amanhã ficarmos o dia todo e limpar até o fim.
- Eu gostaria de aproveitar que você veio e mostrar os Cinco Picos. – Shunrei disse, servindo mais chá para todos. - Afinal, é o lugar de nascimento do Mestre Dohko também.
Combinaram de, se o sol firmasse, se encontrarem no meio da tarde. Satsuki e Hen precisavam voltar para os afazeres e Shunrei levou Shiryu para conhecer os arredores.
Do mirante próximo à casa, a luz potente fazia cintilar a colcha de retalhos em vários tons de verde dos campos de cultivo, os alagadiços e a névoa úmida que pairava sobre o vale abaixo, mesmo em dias quentes como hoje. Ali, entre montanhas, se via uma miríade de cachoeiras e rios serpenteando pelo vale.
Shunrei mostrou os marcos de pedra que delimitavam as trilhas pela montanha e o ensinou a localizar o promontório de qualquer lugar onde estivesse, para ele não se perder. Depois desceram para um dos planaltos onde as plantações eram irrigadas por pequenos canais desviados do rio principal. Shiryu aspirava o cheiro da mata com vigor. Raramente tivera contato maior com a natureza do que pequenas explorações nos terrenos de mata no Santuário. Já Shunrei parecia completamente à vontade, como se nunca tivesse saído dali.
Caminhavam sem pressa, quase sem conversar. Seus ouvidos ocupados com os sons dos passos na folhagem e nas pedras. O vento fresco acariciando seus rostos. Os corações repletos de expectativas.
Procuravam aberturas para continuar a conversa da noite anterior. Shiryu notava como a presença do bebê naturalmente o tornara mais alerta com os menores movimentos dela. Shunrei tentava não parecer tão ansiosa como se sentia para mostrar tudo a ele.
- Como foi voltar? – a voz dele era gentil e delicada. Ela suspirou.
- A dor foi diminuindo. – um sorriso triste o fez segurar sua mão. – Ao mesmo tempo que é onde estão as minhas raízes, tenho vontade de chorar quando penso no que aconteceu. E sinto saudades das pessoas que caminharam comigo por essas trilhas. Os Huang não podem ficar de babás de uma mulher crescida, apesar de estarem sempre por perto. Satsuki e Hen insistiram tanto para eu ficar na antiga casa do Mestre Ancião... Todos têm sido muito bons comigo. Estou em débito com eles. – a última frase foi dita entre soluços. – Nessas últimas semanas esses malditos hormônios me fazem chorar por qualquer coisa!
Rindo ele a abraçou sem dizer nada. Ela se assustou e depois se viu apertando as mangas do casaco escuro dele, escondendo o choro em seu peito.
- No bolso da minha direita tem chocolate. – Shiryu informou ao perceber uma diminuição nos tremores da respiração dela, pegando o lenço estrategicamente guardado no bolso de trás da calça. Esperou ela terminar de comer e enxugar as lágrimas. - Quer voltar para casa? – ela negou, puxando-o para mostrar um arbusto onde as flores resistiram ao tempo frio. As pétalas eram de vários tons de rosa, formando uma espécie de pompom macio e de miolo amarelo.
- Acho que o Mestre pensa nessa flor quando me chama de Lúshān huā. É uma flor que eu só vi aqui. – colheu uma, querendo levar para Kamakura. – Quero fazer novas memórias daqui. Você me ajuda? - Shiryu assentiu.
- Darei o meu melhor! – ele próprio colheu uma e equilibrou na orelha dela. Ela abriu um sorriso tímido e suas faces ficaram da cor das pétalas. Impossível ele não tirar uma foto.
Shunrei o guiou para o alto novamente. Eles chegaram a um dos braços de pedra que se esticavam da montanha, parecendo querer tocar a Grande Cachoeira. Os dois ficaram muito tempo sentados em silêncio, admirando a força da famosa queda d'água que dava vida à toda região.
- Diz a lenda que ela é formada pelas inúmeras estrelas cadentes e que embaixo dela mora um dragão. – Shunrei contou, encostando-se nele. – De tempos em tempos, esse dragão ascende aos céus e depois retorna para seu refúgio... Você consegue entender o porquê de eu ter vindo? – perguntou sem tirar os olhos das águas.
- Sim... As minhas palavras ontem foram egoístas. Me perdoe. – Shiryu falou depois de alguns minutos. – O Mestre me contou essa história. Ele disse que era o Deus Dragão. – bateu no ombro. – O dragão de Rozan viveu mil anos e se enfurece quando mexem com o que lhe é mais sagrado. Por isso, escolhi a constelação de Dragão e o Mestre ficou com Libra. – sentiu os dedos dela sob a camiseta, seguindo as linhas da tatuagem. – Sei que você agiu pensando no que era melhor para nós. Já disse uma vez e é verdade, você é muito mais forte do que eu, Shunrei. – ele parou para contemplar a grandiosidade do cenário e como seu corpo todo aqueceu, parecendo se ampliar ali no alto. - Eles nunca mais farão algo semelhante, posso garantir. Nem a nossa família e nem o Santuário correm perigo. Nos certificamos disso. – a convicção fez o coração dele saltar. – Mas eu preciso dizer mais uma coisa sobre isso: você nunca será a minha fraqueza. Jamais pense novamente que estar perto de você me deixa vulnerável. Corri bastante para encontrar você. Houve momentos em que quis parar. Em outros, só queria desabar no chão. Outras vezes, me perdi. Mas, por sua causa, consegui chegar até aqui. – declarou em tom grave, quase cerimonial. - Não se afaste de mim pensando que me protege, pois é justamente o contrário. Tudo que eu conquistei por você não quero perder. Não desistirei do nosso amor jamais.
Sentia a brisa em seus cabelos, admirando a potência da Grande Cachoeira. Soltou o ar devagar e esperou, aliviado por finalmente poder falar com o coração.
Shunrei continuou acariciando suas costas, impactada pela declaração. O perfil dele parecia esculpido em mármore, a franja esvoaçando.
- Shiryu. – ela o fez desviar os olhos da cachoeira. No fundo das pupilas dele, tantas emoções que quase a deixaram sem fôlego, por mais que a expressão permanecesse neutra. Havia expectativa, medo, ansiedade, determinação, alegria e amor. Um sentimento tão forte que ela ainda não vira. Pegou a mão dele e o fez sentir seu coração batendo como as asas de um beija-flor. – Eu nunca esqueci a promessa que fizemos de estar sempre juntos. Todos os meses que passei aqui, levei vocês comigo. Por mais que outras pessoas se comunicassem comigo, era em vocês que eu pensava todos os instantes. Nossos sonhos não vão perecer. Nós resistimos e ninguém vai nos separar. - Os olhos emitiam faíscas verdes à luz do sol. – Mesmo se o nosso destino for lutar, eu não desistirei e estarei sempre ao seu lado. Às vezes, só à distância conseguimos perceber melhor. Aqui em Rozan, nas noites estreladas, tive a certeza de que as nossas almas dançam entrelaçadas no cosmo infinito.
Cada um se via refletido nos olhos do outro, os corações querendo a todo custo sair pela boca e se enfiar no peito do outro. A natureza ao redor se calou como se prendesse a respiração, assistindo os dois vislumbrando um a alma do outro. Correram tanto para finalmente encontrarem a paz que a certeza traz.
Shiryu estendeu a mão e acariciou o rosto dela. Shunrei a pegou entre as suas e massageou cada articulação e cada parte devagar, com movimentos circulares, querendo se acalmar e acalmá-lo. Os dois começaram a respiração que aprenderam com Shaka para serenar os pensamentos. Ele fez o mesmo com a mão dela, beijando sua palma antes de descansá-la no colo dela. Shunrei brilhava aos seus olhos.
- Sinto como se Genbu, o Mestre Ancião e meus pais estivessem aqui conosco. – o sorriso dela não demonstrava mais receio algum. Era um sorriso novo para ele, sem reservas. Ele pensou que ela devia sorrir assim quando criança.
- Deve ser por causa do calor. O sol está ficando forte. – ele brincou, fazendo-a estreitar perigosamente os olhos enquanto batia em seu ombro. – Por favor, não esconda mais nada de mim. Mesmo se for uma decisão difícil ou se for algo complicado, eu vou me esforçar para entender. – a voz dele soou grave e baixa. – me perdoe por fazer você se sentir insegura ou impotente. Me perdoe por te deixar sozinha. – Shunrei negou com a cabeça. – Nunca vou parar de te pedir perdão... Eu me perco sem você. – sorriu, contente por ter conseguido falar o que passava em seu coração. – Quero ser a pessoa em quem você se apoia e em quem pensa quando um problema aparece, quero massagear suas costas, provar suas invenções culinárias e te dar doces quando estiver triste. Quero ouvir as suas explicações sobre seus projetos médicos, seus relatos de discussões com colegas do hospital e suas reclamações sobre o comportamento dos homens da casa. Quero te abraçar e segurar a sua mão quando nossa filha nascer. Quero os seus olhares de reprovação, acordar e dormir com você até sermos velhinhos banguelas. – ela assentiu, a garganta trêmula demais para falar. Ele expirou com força, respirando fundo para se recompor. – Que tal prepararmos o almoço e encontrarmos o pessoal na lavoura?
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
À tarde, Shiryu quis aprender o manejo do arrozal e da horta na propriedade dos Huang. O sr. Huang o ensinou apontando o que devia fazer a seguir. Hen, com pena do rapaz da cidade, traduzia as indicações do sogro. Enquanto isso, Shunrei colhia ervas e as separava entre as que usaria ali mesmo e as que levaria para o Japão. A sra. Huang e Satsuki a ajudaram com as duas caixas de mudas que ela torcia para se adaptarem em Kamakura.
- Ela é uma garota forte. – o sr. Huang comentou, aproximando-se para mostrar como ele deveria colher as abóboras sem arrancar toda a rama da planta. – Isso pode confundir um homem e fazê-lo pensar que não precisa se esforçar perto dela. Mas é justamente o contrário.
Shiryu concordou, vendo-as embaixo de uma árvore, embrulhando as raízes das mudas em tecido e depois as colocando em saquinhos plásticos.
- Nós cuidamos dela desde criança e nos preocupamos. Não com o dinheiro porque ela sempre se empenhou. Mas não é qualquer um que percebe...
- Ela se entrega sem limites. – Shiryu completou com naturalidade. O sr. Huang assentiu, ajeitando os óculos redondos. – Aprendi a lição. Isso não vai se repetir, é o meu compromisso com o senhor. – novo assentimento. O dono do arrozal encarou o visitante para ter certeza de suas intenções.
- O pai dela também precisa aprender isso. – Shiryu, que já estava envergonhado de falar sobre relacionamento com mais uma figura paterna de Shunrei, sentiu as bochechas quentes ao ser lembrado sobre seu Mestre. – Ele é o pai dela, não interessa o que algum teste médico diga. E precisa assumir a responsabilidade. Direi a ele assim que puder descer até a vila. Eu e minha mulher nunca mais queremos vê-la como ela esteve até ontem. – a voz do sr. Huang não alterou um tom da neutralidade de uma conversa casual.
- Ei, saiam do sol quente! – Satsuki gritou, levantando a garrafa com chá fresco que ela acabara de tirar de dentro do rio. Deixar os alimentos em cestos submersos era o truque para mantê-los frios. – Não podem passar mal! – Hen chamou os homens para irem até a sombra das árvores.
- O fracasso de um homem é a infelicidade da sua família. – o sr. Huang disse com convicção, encerrando a conversa.
- Querido, você nunca provou um tomate tão doce. – Shunrei fez sinal para ele, entregando uma fruta vermelha e macia. Riu quando Shiryu mordeu e o suco escorreu pelo queixo. – Não é boa? – ele assentiu, admirado com o sorriso dela.
"Tão solto e despreocupado. Parece o de uma garotinha."
Ao pôr-do-sol, se despediram da família Huang, recebendo legumes, ovos e dois peixes para o jantar.
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
No banho, Shiryu pôde ver as mudanças no corpo da esposa – os seios maiores, os quadris mais largos e a barriga arredondada. Shunrei ficou da cor de um pimentão ao notar como ele a observava e entrou rapidamente no ofurô. Ele entrou após prender os cabelos num coque alto.
- Sabe, eu fiquei com algumas cicatrizes bem estranhas. – mostrou uma na coxa em forma de raio e outra no ombro que, segundo ele, parecia o mapa do Vietnã. – Ontem eu estava tão cansado que não me importei se você visse.
- Elas são provas de coragem. – Shunrei as tocou com delicadeza. A água morna relaxando os músculos deles. – Eu não sei se gosto do que está acontecendo comigo...
- Se você quiser a opinião de alguém, para mim você está mais linda do antes. – não havia ironia no rosto dele. – As mudanças em você são provas de amor. – ela riu, envergonhada. "Quando ele aprendeu a dizer essas coisas?" – Quero acompanhar de perto.
- Seu bobo! – ela se atirou, escondendo o rosto vermelhíssimo no peito dele. Shiryu aproveitou e a abraçou com firmeza.
- Dessa distância está bom. – ele usou seu tom mais baixo, sua voz escorrendo pelos cabelos dela. – O meu mundo cabe dentro de um abraço.
o.o – 0.0 – o.o – 0.0 – o.o
Shiryu a acompanhava em silêncio pelo pequeno cemitério.
Uma estrada serpenteante passava pelas lápides que subiam até o alto daquele pico. Como era bem cedo, a névoa estava espessa. Ele levava os baldes com água e as flores. Shunrei levava os bolinhos de arroz, as frutas e o chá de cevada com mel.
Ela caminhava um pouco a frente e parou de repente. Ele pensou que haviam chegado, mas não era isso. Os olhos arregalados dela diziam que era medo.
- Paguei pela lápide, mas nunca vi os nomes deles. – confessou num sussurro. Shiryu pousou a mão em seu ombro e deu um aperto encorajador. Os punhos dela apertaram as alças das sacolas.
O túmulo era igual aos demais: simples. Havia o espaço para o incenso e as oferendas e a lápide de granito quadrado identificando aquele como o descanso dos membros da família Nishi. De cada lado havia os nomes do pai, da mãe e do irmão de Shunrei.
Lágrimas silenciosas brotavam abundantes enquanto limpavam, os dedos finos da filha e irmã desenhando os ideogramas em baixo relevo, porém, cessaram quando eles dispuseram as flores e os alimentos, servindo o chá em pequenas tigelas. Shiryu acendeu os incensos e os dois assumiram posição de oração.
Shunrei respirou fundo.
- Mãe, pai, Genbu. Desculpem não vir antes. – ela começou devagar, falando as palavras como estivesse lendo. – Pedi a Satsuki que assumisse essa responsabilidade que é minha porque estivesse fora, como vocês devem saber... A verdad... A verdade é que eu... Eu imaginei que se não viesse aqui vocês continuariam vivos, em algum lugar dos Cinco Picos... – Shiryu viu a garganta dela mexer várias vezes, engolindo o choro. – Me perdoem... Mesmo que eu não venha aqui com muita frequência, a partir de agora falarei mais com vocês.
O sol dissipava a névoa e eles podiam ver a vegetação em volta do cemitério. Era como acordar de um sonho. O único som além da voz oscilante de Shunrei eram os bambus balançados pela brisa fria e as folhas das árvores altas.
- Mãe, pai, irmão, eu estou conseguindo trabalhar com o que sempre gostei e ajudo as pessoas a recuperarem a saúde. Isso me deixa contente e tenho conhecido muita gente que tem o mesmo desejo que o meu. Eu me casei. – ela abriu os olhos e sorriu para o homem ao seu lado. – Meu marido é um homem honesto, corajoso e companheiro e se preocupa muito comigo. Ele está aqui.
- Bom dia, sr. e sra. Nishi e pequeno Genbu. – ele falou com reverência. – Meu nome é Shiryu Nishi Suiyama, sou lutador de artes marciais e amo muito a sua filha. Agradeço por me deixarem cuidar dela. Prometo que farei sempre o meu melhor para que ela seja feliz e que nada falte para nossa família.
- Nós temos um filho de 7 anos chamado Ryuho. Ele é um garoto saudável e inteligente. – um sorriso orgulhoso apareceu nos lábios dela. - Tem vários amigos e vai muito bem na escola. Me ajuda nas tarefas domésticas e é obediente. Agor... Agora... Agora nós estamos esperando um bebê... Shiryu acha que é uma menina... – ela apertou os lábios. - Mãe... Eu estou com muito medo... Sofri um acidente e perdi uma filha dentro de mim... Por favor... Por favor, mãe, pai, protejam a neta de vocês. Genbu, proteja sua sobrinha... Ontem ela mexeu dentro de mim e eu quero que ela venha para esse mundo.
Shunrei fechou os olhos e repetiu o pedido várias vezes. Shiryu se lembrou da foto que a sra. Huang entregou no final do dia. Era a única foto dos pais de Shunrei. O pai de pé atrás da poltrona onde a esposa se sentou com a pequena filha apoiada em suas pernas. Ela estava grávida.
- Amanhã voltarei para minha casa no Japão, por isso quis vir hoje para apresentar a minha família e dizer que sempre penso em vocês. A saudade não passa, eu só aprendi a lidar com ela. – um sorriso tímido apareceu. – Sou abençoada porque agora minha família cresceu. Não estou mais sozinha. Agradeço por tudo que fizeram por mim e por ainda tomarem conta de mim. Por favor, cuidem também das pessoas que eu amo.
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Organizaram a bagagem da melhor forma que conseguiram. O mais complicado foram os medicamentos e as mudas vivas. Shunrei acondicionara tudo em caixas de madeira, mas não sabiam se teriam que solicitar permissão especial para transportar tudo aquilo. Decidiram pedir ajuda de Saori, mesmo que a liberação demorasse mais do que o esperado.
- Meu trabalho de meses! Não vou deixar para trás.
No dia seguinte, Shiryu se juntou aos outros homens e, no final da tarde, finalmente a passagem foi reaberta. Foi uma sorte que a equipe da municipalidade fosse a mesma que acompanhara o cabeludo louco três dias antes. O encarregado apenas riu ao vê-lo sujo e enlameado mais uma vez.
- Não me diga que você passou os três dias tirando entulho!
A equipe ajudou a descer a bagagem. Os Huang se despediram com muitas recomendações e exigências de visitas em futuro próximo.
Eles desceram a montanha deixando seu paraíso particular para trás, levando a determinação de uma nova etapa em suas vidas.
Assim que pisou no saguão do hotel, Shiryu recebeu os recados de Dohko, Saori, Shion, Ikki e Shun.
- Se vocês não aparecessem hoje, eu iria abrir aquela escadaria no soco. – os dois piscaram várias vezes para Seiya, que saiu do quarto vizinho ao deles. – O pessoal da recepção me avisou. – ele sorria de orelha a orelha e os abraçou com força. – Agora, sim, o equilíbrio do universo foi restaurado!
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E então, gostaram desse episódio exclusivo dos nossos protas? Eu queria tanto chegar aos dois em Rozan que escrevi antes de vários outros acontecimentos... rsrs! Na madrugada em que terminei, estava envolvida pelas músicas Chikyuugi - Pelo Mundo ("Ouvir uma canção é melhor do que chorar...") da Saga de Hades, e Laços de Flor, a ending de The Lost Canvas, e vocês podem brincar de descobrir as referências a elas.
A série podia finalizar aqui, mas resolvi escrever um episódio bônus para mostrar um pouquinho mais dos nossos personagens e da comunidade Kamakura e do Santuário. Quando releio a primeira temporada de Conexão Coréia, vejo o quanto a história mudou e cresceu e fico imensamente feliz por vocês terem chegado até aqui. Muito obrigada por acompanharem, comentarem e não desistirem. Espero que tenha valido a leitura e que o próximo episódio agrade vocês.
Por favor, reviews!
No último episódio:
"Nunca mais julgarei mães de primeira viagem." Fez uma careta enquanto levantava e lavava o rosto. "Até parece que não sei nada de crianças!" Olhou-se no espelho, penteando os cabelos que agora voltaram ao tamanho que ela queria – na linha do queixo - e tentando melhorar a aparência das olheiras. Vestiu sua saia xadrez de vermelho com preto, a camisa de botão bege e as sapatilhas pretas, apressada.
