Não há vermelho na sua paleta

Capítulo 14: A única constante

Sasuke pode reconhecer a voz dela mesmo antes de entender as palavras que Sakura diz. Elas penetram seus ouvidos, densas e estridentes, e ele pode sentir, muito lentamente, a um centímetro abaixo da pele, o significado delas quando involuntariamente sussurra que pode ouvi-la.

Ele estremece até os ossos, cuidadosamente olhando na direção do som. Colocando a mão no bolso e sentindo o fio de cabelo rosa dela se enrolar em seus dedos.

Naruto e Kakashi não são nada mais do que sombras quando Sasuke se levanta, soltando a mão do sensei.

— Por quê você não fala com eles, Sasuke-kun?

A voz dela soa chorosa, um choramingo emocional e profundo. Sasuke sente seu toque em seu braço e ele para. Lentamente escorregando até o chão. Tão cansado. Ele olha para sua mão, a coceira familiar retorna e ele esfrega a pele até que fique vermelha e sensível.

— Você não pode fazer isso com eles. Comigo. — O timbre dela é ousado, quase rouco. O Uchiha afasta a imagem do rosto dela, a expressão que ele tenta adivinhar que possa estar bem ali, determinada, delicada e danificada.

Sasuke olha na direção do que resta do seu time. Naruto parece pequeno e Kakashi o embala, calmamente sussurrando palavras em seus ouvidos.

— Deixe sair — o Hatake dizia. — Eu estou ao seu lado. Deixe sair.

— Eu não consigo tirar isso da minha cabeça — Naruto gagueja. — Nã-não consigo, nem por um segundo.

— Eu sei, mas... vai ficar mais fácil — Kakashi diz, firme e com uma certeza assustadora. — A mudança das coisas é a única constante.

— Eu te imploro — Sakura hesita. — Por favor.

Sasuke balança a cabeça, negando o que Sakura lhe pede com tanto desespero, sem esperar que ela ou qualquer pessoa no mundo entenda sua lógica. Ele apenas tem certeza absoluta – com um instinto e uma dolorosa realização – de que isso é o melhor para eles. Eles não precisam fazer parte dessa transação com Orochimaru.

No fim, Sasuke nunca poderia ter o time sete por muito tempo, de qualquer maneira. Uma parte dele sempre esteve ciente da transitoriedade que suas pessoas queridas tinham em sua vida. Era uma questão de tempo. Tudo que ele ama vira… memória.

Então que pelo menos Kakashi e Naruto sejam uma memória viva, desassociada dele e dos perigos que ele atrai.

Ele só precisa aguentar mais um pouco. Mais um pouco para poder devolvê-la ao time sete. Aguentar e deixá-los longe da lama em que ele está se afundando.

— Eu não posso — Sasuke sussurra para ela, baixinho, os cabelos escondendo seu rosto. — Eu me recuso.

Ele pode ouvir Sakura gaguejar.

— Isso não faz sentido. Você… você não é egoísta assim.

Sasuke consegue sentir a raiva dela fermentar. As palavras que ela parece engolir tem um sabor de carne e sangue. O dele. Ele mede seu silêncio, enrolando-se ao seu redor, suas próprias tripas dando voltas. O menino não consegue rebater, algo tão volátil como seu orgulho ferido não permanece em ênfase nem por um segundo, porque talvez ele esteja mesmo sendo egoísta, talvez ele apenas esteja tomando a decisão mais fácil.

— Garotos, eu vou preparar alguma coisa na cozinha — Kakashi diz, afastando Naruto pelos ombros. O Uzumaki ainda está tremendo levemente, mas suas lágrimas secaram. O Uchiha permanece de cabeça baixa, afastado. — Venham me ajudar.

Naruto funga e se aproxima da cozinha, seguindo Kakashi, que lhe passa algumas batatas e breves instruções. Sasuke se atrasa, o corpo dolorido quando ele se levanta. Sakura ainda não diz nada, mas ele consegue sentir o vínculo em um puxão que lhe dizia que ela ainda estava ali. Ele provavelmente esgotou suas palavras e argumentos.

Mas Sasuke a conhece o suficiente para saber que Sakura é mais persistente que isso. Talvez ela só estivesse guardando-os para quando pudesse jogar na cara dele quando estivessem sozinhos.

Apesar disso, Sasuke apenas agradece a oportunidade de assimilar o novo degrau adquirido nessa estranha conexão. Ouvir sua voz faz parecer que ela está viva. Que ele olhará na direção do som e verá seu rosto. Todo seu corpo tinha se arrepiado a cada vez que a ouviu.

Ele se junta a Kakashi e a Naruto calmamente. A privação de sono faz sua mente parecer uma caverna de ecos e sua mão parece pesada e leve ao mesmo tempo quando ele manuseia a faca quando o sensei o deixou encarregado do peixe.

O time não fala muito, também. Sasuke está focado, apesar de tudo, em verificar a presença de Sakura no cômodo a cada meio segundo. Ela ainda está ali. Ele queria poder ouvir seus pensamentos, também, mas rapidamente recua diante dessa ideia quando isso implica conhecer os sentimentos mais profundos dela.

Eles comem em silêncio logo depois. Sasuke se força a engolir, em parte porque ele não quer desapontar Kakashi, na outra porque está sendo ferozmente vigiado por ele e o Uchiha suspeita de que o sensei possa mandá-lo para o hospital caso ele não o faça.

— Terminaremos os papéis-bomba em outro momento — Kakashi diz. — Ainda temos tempo.

Os meninos mastigam a comida. Kakashi vê como eles estão cansados e observa cuidadosamente a incapacidade de Sasuke para se abrir. Ele parece ainda mais fechado do que quando começaram com o time sete, com pequenas e raras aberturas que se fechavam rapidamente. A respiração dele parecia tensa e rarefeita, como se quisesse apenas gritar.

O Hatake entende. Ele já esteve nesse lugar antes.

Mas uma coisa não poderia ser ignorada.

Kakashi notou no momento em que Naruto pulou em seus braços. O jeito que os olhos negros dele seguiam em uma direção específica e seus lábios balançavam palavras baixinhas demais para que Kakashi pudesse compreendê-las, mas a leitura dos movimentos lhe dando a oportunidade de decifrá-las.

O sensei se pergunta se seu aluno estava perdendo a sanidade.

Não era impossível, considerando tudo. Talvez ele tenha demorado demais, concentrado em seu próprio luto e desprezo pelo que os garotos fizeram. Ele devia ter se desconsiderado. O Hatake sente o trauma arranhá-lo, lembrando-o de todas as vezes que seu atraso, sua falta de reação e passividade custou a vida de alguém importante.

Kakashi observa-os de perto, cuidadosamente. Esses meninos provavelmente precisavam falar com alguém mais qualificado. Pessoas que tivessem as palavras certas. Ele mesmo talvez devesse, muito envolvido em seu sentimento rígido de arrependimentos.

Sasuke leva o hashi a boca e baixa. O Hatake observa como ele segura os palitos com mais força que o necessário e seus olhos dançam de incerteza.

— Os pais da Sakura, — ele o vê estremecer — você falou com eles de novo?

Sasuke pergunta na esperança de que Sakura lhe diga alguma coisa, que isso a distraia do pedido desesperado de conversar com o time sete.

— Você tem coisas mais importantes para se concentrar, Sasuke — Kakashi tenta, pensativo enquanto o analisa.

— Sensei. — Naruto interfere, seu apetite parece um pouco melhor quando ele chega ao fundo da tigela, mas a voz dele ainda tem um tom profundo e sombrio. — Como eles estão?

Sasuke sente o vínculo se aquecer, Sakura está mais perto, mas ainda não diz nada.

— Estão tentando reuniões com a Hokage, mas até o momento sem sucesso. Nos últimos dias alguns panfletos informando sobre... o incidente foram distribuídos em alguns pontos da vila. Os genins e jonins que ajudaram receberam uma desagradável carta notificando-os de uma futura medida disciplinar.

— Os genins da nossa turma? — Naruto aperta os punhos quando o Kakashi assente. — Jonins, também?

— Apenas eu, na verdade. É possível que eu receba uma multa generosa por desacato. As crianças devem fazer trabalhos de merda como punição.

— Mas a obaa-chan não faria isso… — Naruto protesta.

— Ela, não. A godaime está numa situação delicada no momento. Manter vocês aqui desafia as ordens do conselho diretamente. Parte civil da vila está insatisfeita com ela, pois acreditam que passaram impunes, e os credores nos portões de Konoha cobrando dívidas de jogo não a deixam em situação melhor quando avaliam seu julgamento.

— Os pais da Sakura também vão receber uma medida disciplinar? — Sasuke pergunta, sombriamente.

— Essas medidas são contra quem infrigiu o código shinobi ou uma ordem direta. Eles são apenas civis.

O vínculo pulsa em uma onda de irritação, medo e alívio.

— Eles estão em perigo? — Sasuke insiste.

Kakashi puxa o ar pela boca. Os dois meninos lhe encaram com profunda atenção. Há um pequeno e suave brilho em seus olhares. O sensei se endireita na cadeira quando ele não tem opção, a não ser mentir:

— Eles estão seguros.


Naruto e Sasuke não entendem, no começo, quando Kakashi pede que eles levem os colchões da cama para a sala. Os dois apenas obedecem silenciosamente, emparelhando-os. O sensei leva a mão aos ombros dos meninos, hesitantemente.

Kakashi conviveu com o trauma quase toda sua vida. Ele nem se lembra como era antes. Essa vida antes de Sakumo partir, essa época sem registros em que provavelmente foram os únicos tempos sem a esmagadora e mortificante sensação de sempre estar preso ao passado.

Aos cinco anos ele já tinha as mãos sujas de sangue. Ele ainda se lembra do olhar no rosto do shinobi de Kiri, o brilho se apagando e uma sílaba escapando dos lábios em algo que talvez fosse uma súplica ou uma pendência: não. O primeiro homem que ele tirou a vida.

Kakashi, no entanto, não se lembrava mais das outras centenas que vieram depois daquele homem.

Não até Obito. Ou Rin.

E se não fosse Naruto, Sasuke e Sakura na sua vida ele continuaria simplesmente se esquecendo quando matar se tornou um ato compulsório e automático.

Zabuza nunca teria sido considerado humano naquela ponte. Kakashi apenas o dilaceraria como um cão e ele seria página de rodapé na missão, apenas mais um mercenário eliminado com sucesso.

Esses garotos o mudaram. Lhe deram esperança, orgulho. Um propósito. Ele não seria como Sakumo. Não morreria chorando, frustrado e envergonhado. Kakashi finalmente tinhas pessoas novamente para proteger. Três genins adoráveis que suspiravam com qualquer coisa que ele fazia.

E ele relaxou. Como um tolo.

Ele ainda consegue sentir o cheiro de ferro que dominou suas narinas no teto daquele hospital.

Kakashi, sempre vestindo seus próprios traumas como uma segunda pele, os vê enrolado em seus meninos. Ele tinha detectado isso em Sasuke no momento em que ele abriu a boca para falar de sua vingança. Ele tinha percebido a fome de Naruto por atenção. E mesmo após todos esses anos o Hatake não conhece a cura para isso.

Ele apenas conhece remédios paliativos que parecem funcionar e sufocar seus pensamentos: livros duvidosos, visitas a memoriais e cães inocentes.

Kakashi se senta no centro do colchão e pede para que os meninos sigam seu exemplo, um de cada lado.

— Eu preciso que vocês durmam — Kakashi diz. — Eu sei que não é simples. — o Hatake morde o polegar até que uma gota de sangue forme uma bolha vermelha. — Então eu vou lhes dar um pequeno truque.

— Sensei? — Naruto pergunta em dúvida, olhando para seu polegar ferido. Ele daria tudo por uma noite de sono tranquilo, sem sonhos e interrupções.

— Contato — Kakashi responde, chamando pelo jutsu ao fazer uma invocação. A sala se enche da fumaça da pressão, parecida com vapor, os ninken aparecem um segundo depois, com as orelhas caídas quando percebem a expressão de seu dono e mestre.

A aparência de Kakashi não estava muito melhor do que quando os invocou ontem a noite em seu minúsculo apartamento.

— Olá, chefe — Pakkun cumprimenta, tristemente, olhando para as crianças ao lado dele que não entendem bem o que está acontecendo. — Tem certeza?

Kakashi assente, deitando-se. Pakkun solta um pequeno ganido, se aproximando de Naruto e empurrando-o com o focinho para que ele se deite, também. Os outros cães rapidamente se aproximam. E Sasuke entende que deve fazer o mesmo enquanto é engolido por um amontoado de patas, focinhos e orelhas.

Eles sentem pequenos carinhos em seu rosto. Bull cobre suas pernas, ocupando quase todo o espaço inferior dos colchões. Pakkun e Urushi sufocam Naruto, pousando as cabeças suavemente em seu corpo e peito. Sasuke é cercado por Bisuke e Akino. E Kakashi fica soterrado sob Uhei, Shiba e Guruku.

O Hatake acaricia a orelha macia de um deles, sentindo uma lambida carinhosa na mão.

É quentinho, aconchegante e seguro, mas os meninos sabem que isso não os fará dormir.

— Se concentrem no som do coração deles — Kakashi interrompe, como se estivesse lendo seus pensamentos. — No ritmo da respiração. Na temperatura subindo. Não pensem em nada que não seja nisso.

Sasuke olha para Kakashi sob uma nova ótica, talvez pela primeira vez vendo o tamanho da sua solidão. Ele quase consegue imaginar uma criança pequena e inconsolável cercada por seus cães de estimação.

Sasuke olha para os dedos, a patinha do cãozinho em sua mão. Ele não pode obedecer um pedido tão difícil. Não há conforto suficiente no mundo para que Sasuke simplesmente relaxe e não pense tudo, em rever a cena do que ele fez uma e outra em, em checar a cada segundo sobre Sakura, em pensar sobre como tirá-la dessa situação.

Ele não pode simplesmente desligar.

Ele não pode. Nunca mais.

Ser vulnerável assim.

— Faça o que Kakashi-sensei diz — A voz de Sakura o assusta e Akino abre um dos olhos para encará-lo.

Sasuke balança a cabeça, sutilmente. Eu não consigo, ele queria dizer, porque de repente lhe ocorre a ideia de que ele vai acordar e ela não estará aqui, como quando ele acordou no hospital da primeira vez e percebeu o que havia feito. Que ela se foi.

— Por que você me trouxe até aqui se não pode fazer uma mínima coisa que eu peço?

A tristeza dela ressoa dentro dele, as emoções fluem como um canal e Sasuke sabe que ela percebe também a apreensão e insegurança dentro dele. Se ele usar morse aqui, Kakashi facilmente perceberá e decifrará. Ele tem tanto a dizer e está completamente limitado. Sasuke franziu as sobrancelhas.

— Eu não entendo, Sasuke-kun. — A voz dela, doce e alegre, soa preocupada. — Eu não entendo você.

Sasuke olha para Kakashi, tentando ouvir a respiração dele acima das tranquilas dos cães. Ele ainda não está dormindo, apesar dos olhos fechados. Provavelmente apenas se entregará ao sono depois que os meninos ao menos tentarem.

Sasuke gesticula com os lábios: eu sei.

— Durma, Sasuke-kun, eu estarei aqui. — Sakura diz, com dor e resignação. Como se soubesse seus temores. Talvez ela pudesse, recebendo dele o mesmo tipo de vibração que vinha dela.

Sasuke sente seu perfume – provavelmente imaginado e retirado do fundo de sua memória – mas ele sabe que ela está perto. Ele presta atenção, então, não nas respirações dos cães ou seus ritmados corações batendo, mas na sensação de conforto que vem do vínculo que ele possui com Sakura.

— Obrigada por perguntar dos meus pais.

É mais do que ele merece, essa gratidão e... algo mais. É tão bonito. Perto de ser estonteante, quase, como se sua fome finalmente estivesse sendo saciada.

É a primeira coisa boa que ele sente em dias antes de finalmente adormecer.